Esta coluna foi publicada na Folha de S.Paulo em 23 de agosto de 1998. Não está disponível na versão HTML daquela edição do jornal (https://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/inde230898.htm). Mas ainda pode ser vista no Acervo Digital.
Folha de São Paulo, 23 de agosto de 1998
Gilberto Dimenstein
O macho Caetano
Durante a festa de seus 40 anos, um homem tira a virgindade de uma menina de 13 anos.
Ele, um ídolo, famoso, reverenciado; ela, uma fã deslumbrada.
Descrita tão friamente, a cena sugeriria a relação entre um calhorda e a vítima.
Talvez não. Por que alguém de 40 anos não poderia se apaixonar por uma menina? Ainda mais porque, tempos depois, eles se casariam.
Talvez sim; talvez ali ocorresse um típico caso de abuso provocado por alguém repleto de poderes.
O próprio Caetano Veloso nos jogou este “talvez” – e não se importou em responder, arrogância típica de quem se acha impune.
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Paula Lavigne resolveu tornar público como perdeu a virgindade durante a festa de 40 anos de Caetano Veloso – o que já é, em si, uma impropriedade, sintoma da “cultura Caras”.
Dou desconto: compreensível a dificuldade de um ser humano lidar com a notoriedade súbita provocada apenas e tão-somente pela notoriedade alheia.
Fomos, portanto, chamados, sem pedir, a vasculhar a vida sexual de Caetano Veloso, provocados por dúvidas éticas.
Nos dias de hoje, no Brasil, não é apenas a imprensa que invade a privacidade, o que é uma pobreza.
Mas os astros também esfregam em nossas faces sua privacidade, na lógica de que aparecer, seja como for, é o que importa.
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Admito que tenho dificuldade de escrever esta coluna.
A trilha sonora de minha vida é, em boa parte, movida a músicas de Caetano Veloso.
Nova York, onde morei, e o disco “Fina Stampa” se confundem e se mesclam.
Gosto de suas idéias. Mesmo as de que não gosto me fazem pensar. Considero-o referência de cidadania num país sem referências; um educador num país sem educadores.
Vejo por trás das críticas a ele nos meios intelectuais indisfarçável ponta de inveja pelo contínuo sucesso e talento.
A admiração cresceu mais ainda porque ele se aproximou de um programa de meninos de rua em Salvador (Projeto Axé), o qual acompanho quando ainda era papel.
É a nossa melhor síntese da ética com a estética.
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Com vontade de entender sua versão, aguardei sua resposta.
Mas preferiu desdenhar e resvalar no deboche. Comentou que adorou a entrevista e, depois, limitou-se a dizer que não estava preocupado: “Não sou Michael Jackson, não”.
Ao preferir o deboche em vez da explicação, deu pontapé em seu papel de referência e educador, transmitindo a mensagem de que é normal ou aceitável um poderoso homem de 40 anos seduzir uma criança.
Não é.
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Talvez (e provavelmente) o caso de Caetano seja diferente.
Mas já que lançaram publicamente a dúvida deveriam explicar publicamente.
E não se refugiar no “sabe-com-quem-você-está-falando”, fazendo lembrar um coronelismo nordestino estilo ACM. É a turma que não se sente, de fato, obrigada a dar explicações, separada pelo fosso da vaidade.
Um estilo que vemos aqui em São Paulo, quando Paulo Maluf põe na sua própria propaganda eleitoral que “não é santo, mas faz”.
Está dizendo em nossa cara algo assim: “Sou desonesto mesmo, e daí?”
Por conta desse estilo, não se confia nos políticos; basta ver como, segundo as pesquisas, é baixa a atenção aos programas eleitorais.
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Vivemos drama disseminado do abuso sexual, favorecido pelo silêncio.
Raros casos demonstram tanto o limite da violência, da crueldade, do que esse tipo de abuso.
Vi isso ao viajar o país na rota de meninas escravas, o que acabou moldando meu jeito de encarar o ser humano – uma delinqüência relatada semana passada em investigação da repórter Daniela Falcão sobre rede de exploração sexual de meninas em Goiás.
Pessoas responsáveis tentam difundir os direitos da mulher, criar malhas de proteção à criança, punir a exploração, acabando com uma prática antiga.
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Não é com pessoas, ainda mais ídolos, apresentando como normal uma menina perdendo a virgindade com o homem de meia-idade que vamos reeducar a população.
Queremos que o Haiti não seja mesmo aqui.
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PS – Por falar em respeito à mulher, começou uma inspiradora experiência em São Paulo.
A partir deste mês, estão sendo treinadas adolescentes pobres para servir de agentes de saúde em suas comunidades. A idéia é que, por serem de idade semelhante, terão maior abertura para se comunicar.
Sua missão é convencer suas colegas no bairro sobre medidas preventivas de saúde, a começar dos cuidados sexuais.
O projeto é desenvolvido pelo Hospital de Referência da Mulher, ligado à Universidade de São Paulo, com a Bolsa de Mercadorias e Futuros.