sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Quero Liberdade (cap. II), de Rose Wilder Lane

II

Eu estava na Rússia transcaucasiana na ocasião, bebendo chá com cerejas em conserva e tentando segurar ao mesmo tempo uma pelota de açúcar entre os dentes. É difícil. Minha roliça anfitriã russa e seu marido tranquilo, de barba dourada, sorriam para mim e algumas crianças de bochechas redondas fitavam maravilhadas a americana. A casa deles tinha um século de idade e era charmosa. Havia imagens penduradas nas paredes grossas, mais brancas que a neve. Colchões de penas circundavam o nicho de camas do grande fogão de tijolos, que também era caiado. Todos os tecidos eram bordados. O colarinho do meu anfitrião e o vestido de sua mulher eram obras de arte. Havia uma máquina de costura americana e um orgulhoso samovar.

A aldeia era comunista, é claro. Sempre tinha sido comunista. A única fonte de riqueza era a terra e nunca tinha ocorrido a esses camponeses que a terra podia ser propriedade de alguém.

Essas planícies da Geórgia russa são muito parecidas com as de Illinois. Os russos chegaram lá como pioneiros, por volta da mesma época em que os americanos estavam entrando em Illinois. Vieram do mesmo jeito, a pé, chuchando os bois que puxavam as lentas carroças pelas pradarias sem estradas. Diligentes, frugais, afáveis e eminentemente sensatos, os russos avançaram em grupos, se estabeleceram em aldeias, cultivaram a boa terra em comum e prosperaram.

Em Illinois, todo colono pagou pela sua terra. Não havia terra de graça para os americanos até 1862. Na Rússia, a terra era de graça. Cada aldeia cultivava tanto quanto precisasse. Dentro da aldeia, cada família cultivava uma área pré-determinada. Quando, no curso dos eventos naturais, o tamanho das famílias se alterava de maneira que a divisão de terras não mais fosse satisfatória, todos os camponeses se reuniam e discutiam uma nova divisão. Isso acontecia a cada mais ou menos dez anos, dependendo dos nascimentos, casamentos e mortes.

Essas pessoas nunca foram oprimidas por donos de terras; a maioria deles não tinha conhecido donos de terras e nenhum tinha tido qualquer contato real com o governo do czar. Estavam acostumados a pagar a um coletor de impostos, uma vez por ano, no outono, um décimo da produção anual dos campos de grãos. O coletor vinha a cavalo pela planície, recolhia os impostos em carros de boi e ia embora. Os rapazes ocasionalmente iam para a guerra, normalmente alguma pequena guerra particular contra uma aldeia tártara. A maioria desses russos era de cristãos primitivos, contrários à guerra; eles haviam vindo ou sido obrigados a sair da antiga Rússia por que não mandariam seus filhos para os exércitos do czar. Mas depois de um século, sua oposição havia se enfraquecido; os jovens às vezes tinham disposição suficiente para se alistar para a guerra. Assim, ocasionalmente, um militar cavalgava até a aldeia, alguns jovens iam embora com ele e, quando alguns retornavam meses ou anos depois, traziam notícias de onde haviam estado e o que haviam feito e visto.

Tinha diante de mim o espetáculo de um país virgem, terra de graça, solo rico, para onde os pioneiros tinham levado o comunismo. Eles viviam lá havia cem anos, sem serem perturbados. Encontrei entre esses camponeses muitos velhos que me perguntavam o que tinha acontecido em meu país quando morreu o czar do mundo. Encontrei jovens que tinham estado em campos alemães de prisioneiros, e que explicavam aos vizinhos de olhos arregalados que eu vinha da América, uma terra fabulosa onde você podia escrever uma carta e pedir qualquer coisa – comida, cigarros, meias, fósforos, açúcar, até um casaco – e chegaria.

E eles não eram estúpidos, de maneira nenhuma. Eram os melhores fazendeiros e criadores de gado, eram bons mecânicos; as mulheres eram ótimas donas de casa e cozinheiras. Tinham mente aberta e gostavam de fazer experiências. Uma aldeia tinha contratado um suíço, por um bom salário, e construído um chalé suíço para ele e sua família; sua tarefa era melhorar a raça de vacas leiteiras e produzir queijo na fábrica da aldeia. Havia uma aldeia de duas milhas de comprimento e uma rua de largura, iluminada por eletricidade da usina elétrica da aldeia; as mulheres de lá não lavavam a roupa no rio, mas numa lavanderia comunitária.

A colheita tinha sido boa naquele ano; o gado estava gordo, os celeiros transbordavam, e em todos os sótãos havia pilhas de abóboras vermelho-douradas. É claro que não havia mendigos no vilarejo. Todos trabalhavam e – se o clima permitisse – qualquer um que trabalhasse era alimentado com abundância. Nenhum comunista poderia ter desejado uma prova melhor do valor prático do comunismo que o próspero bem-estar daqueles aldeões.

Os bolcheviques estavam no poder havia cerca de quatro anos e os impostos na aldeia não haviam subido, nem os jovens haviam sido convocados ao exército em maior quantidade que durante o regime do czar. Essas aldeias dependiam muito pouco de Tiflis, a cidade mais próxima, mas até Tiflis estava então revivendo por causa da NEP, a Nova Política Econômica de Lênin, uma pausa temporária para o capitalismo respirar.

Meu anfitrião me deixou perplexa com a força com que disse que não gostava do novo governo. Eu mal podia acreditar que alguém que foi comunista a vida toda, com abundantes provas do sucesso do comunismo em volta de nós, se opunha a um governo comunista. Ele repetia que não gostava dele: – Não! Não!

Sua queixa era a interferência governamental nos assuntos da aldeia. Ele protestava contra a burocracia crescente que estava tirando mais e mais homens do trabalho produtivo. Ele previa caos e sofrimento resultantes da centralização do poder econômico em Moscou. Não eram suas palavras, mas era o que ele queria dizer.

Isto, eu disse a mim mesma, é a oposição de uma mente camponesa a novas ideias, grandes demais para o seu entendimento. É minha pequena oportunidade de espalhar um pouco de luz. Eu compreendia um pouco de russo, mas não podia falar bem e, com a ajuda do meu intérprete, expliquei em palavras simples o paralelo entre as terras da aldeia, como fontes de riqueza, e todas as fontes de riqueza. Desenhei para ele uma figura da Grande Rússia, até seus cantos mais remotos, desfrutando a igualdade, a paz e a prosperidade dividida com justiça que existiam na sua aldeia. Ele balançou a cabeça com tristeza.

– É grande demais – ele disse. – Grande demais. E o topo é pequeno demais. Não vai funcionar. Em Moscou há apenas homens e o homem não é Deus. Um homem só tem uma cabeça de homem e cem cabeças juntas não fazem uma grande cabeça. Não. Só Deus pode ter a Rússia inteira em sua mente.

Um ocidental entre russos frequentemente acha que eles são todos meio loucos. Em outros momentos, seu misticismo se parece com puro bom senso. É bem verdade que muitas cabeças não fazem uma grande cabeça; na verdade, fazem uma sessão do Congresso. O que então, perguntei atordoada a mim mesma, é o Estado? O Estado Comunista – ele existe? Ele pode existir?

Hoje, gostaria de saber se aquela casa ancestral e aquela aldeia já foram varridas do solo da Rússia para dar lugar à fazenda comunal, cultivada em três turnos diários de oito horas, arada por tratores e com a colheita feita por colheitadeiras, iluminada à noite por enormes refletores. Será que meu anfitrião e sua esposa comem num salão de jantar comunal e dormem em barracas comunais agora?

Certamente, o padrão de vida deles era primitivo. Em cem anos, não havia mudado. Eles não tinham luz elétrica nem encanamento. Tomavam banho, suponho, uma vez por semana na casa de banho da aldeia e talvez isso não fosse higiênico. Quantos germes havia na água que eles bebiam ninguém sabia. Não havia tela em suas janelas. Suas estradas poeirentas viravam sem dúvida um lamaçal sem fundo no tempo chuvoso. Não tinham automóveis nem cavalos; apenas carros de boi. Seu padrão de vida, numa palavra, era o mesmo daqueles pioneiros de Illinois de cem anos atrás. Possivelmente, seu padrão de vida já subiu. Deve vir um tempo em que todo dente na Rússia seja escovado três vezes ao dia e toda criança alimentada com espinafre.

Mas, se isso for feito com o povo da antiga Rússia, não será feito por eles, mas para eles. E quem o fará? O Estado?

http://www.libertarianismo.org/index.php/biblioteca/234-rose-wilder-lane/1074-quero-liberdade

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

Ação de Graças, segundo Ayn Rand

O Dia de Ação de Graças é um feriado tipicamente americano. Apesar de sua forma religiosa (dar graças a Deus por uma boa colheita), seu significado essencial, secular, é a celebração da produção bem-sucedida. É um feriado dos produtores. A refeição farta simboliza o fato de que o consumo abundante é o resultado e a recompensa da produção. A abundância é (ou foi, e deveria ser) o orgulho da América — assim como é o orgulho dos pais americanos que seus filhos nunca precisem conhecer a fome.

http://aynrandlexicon.com/lexicon/thanksgiving.html

terça-feira, 20 de novembro de 2012

The Case for Israel, de Alan Dershowitz

Gostaria de recomendar um livro que li no ano passado: The Case for Israel, de Alan Dershowitz, publicado em 2003. Existe uma tradução brasileira, com o título de "Em Defesa de Israel", publicada pela Editora Nobel em 2004, e esgotada. Pode ser encontrada em sebos.

Publico a introdução da edição brasileira.

Introdução

A nação judaica de Israel é acusada pela justiça internacional. As incriminações incluem a de ser um Estado criminoso e violador dos direitos humanos, uma imagem especular do nazismo e de ser a barreira mais intransigente para a paz no Oriente Médio. Pelo mundo todo, das comissões da ONU  aos campi das universidades, Israel é discriminado com condenações, despojamentos, boicotes e demonizações. Seus líderes são ameaçados de processos como criminosos de guerra. Seus amigos são acusados de dupla lealdade e provincianismo.

Chegou a hora de uma defesa proativa de Israel ser apresentada na corte da opinião pública. Neste livro apresento tal defesa – não de qualquer política ou ação israelense, mas do direito básico de Israel à existência. De proteger seus cidadãos do terrorismo e de defender suas fronteiras de inimigos hostis. Mostro que Israel há muito tempo deseja aceitar a existência de dois Estados, propostos no “mapa da estrada” para a paz, e que foi a liderança árabe que persistentemente se recusou a aceitar qualquer Estado judeu – não importa quão pequeno – nas regiões palestinas com maioria judaica. Também procuro apresentar um quadro realista de Israel, com seus defeitos, como uma democracia multiétnica florescente, em muitos aspectos parecida com os Estados Unidos, que oferece a todos os seus cidadãos – judeus, muçulmanos e cristãos – oportunidades e condições de vida muito melhores do que as oferecidas por qualquer nação árabe ou muçulmana. Acima de tudo, afirmo que todos que escolhem Israel como único alvo de uma crítica, que não é dirigida contra países com registros muito piores de violações de direitos humanos, são eles próprios culpados de intolerância internacional. Essa é uma acusação séria e eu a comprovo. Permitam-me esclarecer que eu não estou acusando todos os críticos de Israel de anti-semitismo. Eu mesmo tenho criticado políticas específicas e ações de Israel ao longo dos anos, como fizeram quase todos os que apóiam Israel, praticamente todo cidadão israelense, e muitos judeus americanos. Mas também critico outros países, inclusive o meu, bem como nações da Europa, Ásia e Oriente Médio. Na medida em que a crítica é comparativa, contextual e justa, ela deve ser encorajada e não inibida. Mas, quando a nação judaica é a única a ser criticada por erros que são muito mais graves em outras nações, essa crítica atravessa a linha entre o certo e o errado, e vai do aceitável ao anti-semita.

Thomas Friedman, do New York Times, acertou quando disse que “criticar Israel não é anti-semitismo, e afirmar isso é mau. Mas condenar Israel por infâmia e sanção internacional – desproporcionalmente em relação a qualquer outra parte no Oriente Médio – é anti-semitismo e não admiti-lo é desonestidade”1. Uma boa definição usual de anti-semitismo é tomar uma característica ou uma ação largamente difundida, se não universal, e culpar apenas os judeus por ela. Foi isso que Hitler e Stalin fizeram e foi o que o antigo presidente da Universidade de Harvard A. Lawrence Lowell fez nos anos 1920 ao tentar limitar o número de judeus a serem admitidos em Harvard porque “os judeus trapaceiam”. Quando um aluno de destaque fez objeção a isso, argumentando que não-judeus também trapaceiam, Lowell respondeu: “Você está mudando de assunto; eu estou falando sobre judeus”. Da mesma maneira, quando aqueles que escolhem apenas a nação judaica para fazer crítica são questionados por que não criticam também os inimigos de Israel, eles respondem: “Você está mudando de assunto; estamos falando de Israel”.

Este livro prova não apenas que o Estado de Israel é inocente das acusações contra ele levantadas, mas que nenhuma nação na história que tenha enfrentado desafios semelhantes segue padrões mais elevados de direitos humanos, é mais sensível à segurança de civis inocentes, esforça-se mais para seguir as leis ou tem estado mais disposta a assumir riscos pela paz. Esta é uma reivindicação audaz e eu a apóio com fatos e números, alguns dos quais vão surpreender aqueles que recebem informações de fontes tendenciosas. Por exemplo, Israel é a única nação no mundo cujo sistema judiciário reforça ativamente a lei contra seus militares, mesmo em tempo de guerra2. É o único país na história moderna a devolver território disputado, capturado numa guerra defensiva e crucial para sua própria defesa, em troca da paz. E Israel matou menos civis inocentes, em comparação ao número dos seus civis mortos, do que qualquer país comprometido com uma guerra similar. Desafio os acusadores de Israel a apresentar dados em apoio à sua afirmação de que, como foi dito por um acusador, Israel “é o exemplo primeiro dos violadores de direitos humanos no mundo”3. Não serão capazes de fazê-lo.

Quando o melhor é acusado de ser o pior, o foco deve mudar para os acusadores que, eu afirmo, podem ser culpados de intolerância, hipocrisia ou, no mínimo, de uma ignorância abismal. São eles que devem estar no banco dos réus da história, junto com outros que também escolheram o povo judeu, sua religião, sua cultura ou a nação judaica para uma condenação sem igual e imerecida.

A premissa deste livro é que uma solução de dois Estados para as reivindicações palestinas e israelenses é, ao mesmo tempo, inevitável e desejável. A forma final precisa dessa solução é, naturalmente, objeto de muita disputa – como prova o fracasso das negociações de Camp David e Taba em 2000-2001 para alcançar uma solução aceitável por ambas as partes e pelas disputas em torno do “mapa da estrada” de 2003. Existem, na verdade, apenas quatro alternativas possíveis para um Estado judeu e um Estado palestino viverem em paz, lado a lado.

A primeira é a solução preferida dos palestinos, defendida pelo Hamas e outros, que rejeitam o direito de Israel existir (geralmente denominados de recusantes): especificamente exigem a destruição de Israel e a eliminação total de um Estado judeu em qualquer parte do Oriente Médio. A segunda alternativa é preferida por um pequeno número de fundamentalistas judeus e expansionistas: a anexação permanente da Cisjordânia e da Faixa de Gaza e a expulsão ou integração dos milhões de árabes que atualmente habitam essas áreas. A terceira alternativa já foi a preferida dos palestinos, mas eles não mais a aceitam: algum tipo de federação entre a Cisjordânia e um outro Estado árabe (isto é, a Síria ou a Jordânia). A quarta, que sempre tem sido um pretexto para tornar Israel um Estado palestino de fato, é a criação de um único Estado binacional. Nenhuma dessas alternativas é aceitável atualmente. Uma resolução que reconheça o direito de autodeterminação por israelenses e palestinos é o único caminho razoável para a paz, apesar de não estar livre de riscos.

A solução de dois Estados também parece ser um dos poucos pontos de consenso para o conflito árabe-palestino-israelense que, de outra forma, é um dilema insolúvel. Qualquer consideração razoável de como resolver pacificamente essa disputa prolongada deve começar a partir desse consenso. A maior parte do mundo atualmente advoga uma solução de dois Estados, incluindo a grande maioria dos norte-americanos. Uma maioria expressiva de israelenses, há muito, já aceitou esse compromisso. É hoje a posição oficial da Autoridade Palestina e dos governos do Egito, da Jordânia, da Arábia Saudita e do Marrocos. Apenas os extremistas entre os israelenses e palestinos, bem como os Estados recusantes da Síria, do Irã e da Líbia, desejam que todo território do que atualmente é Israel, a Cisjordânia e a Faixa de Gaza sejam permanentemente controlados apenas por Israel ou apenas pelos palestinos.

Alguns opositores acadêmicos de Israel, como Noam Chomsky e Edward Said, também rejeitam a solução de dois Estados. Chomsky afirmou: “Não creio que seja uma boa idéia”, apesar de reconhecer que possa ser “a melhor das várias idéias ruins que andam por aí”. Há muito, Chomsky tem preferido, e aparentemente ainda prefere, um Estado único binacional baseado nos modelos do Líbano e da Iugoslávia4. O fato de ambos esses modelos terem falhado lamentavelmente e terminado em sangrento fratricídio é ignorado por Chomsky, para quem a teoria é mais importante do que a experiência. Said opõe-se firmemente a qualquer solução que deixe Israel existir como um Estado judeu: “Não creio numa solução de dois Estados. Creio numa solução de um Estado”5. Como Chomsky, ele é a favor de um Estado secular binacional – uma solução elitista e impraticável que teria de ser imposta a ambos os lados, uma vez que virtualmente nenhum israelense ou palestino iria aceitá-la (exceto como trama para destruir a outra nação).

Com certeza, os resultados de pesquisas em favor de uma solução de dois Estados variam com o tempo, especialmente de acordo com as circunstâncias. Em períodos de conflito violento, mais israelenses e mais palestinos rejeitam o compromisso, mas a maioria das pessoas razoáveis percebe que, apesar do que indivíduos possam teoricamente esperar ou mesmo reivindicar como direito divino, a realidade é que nem israelenses nem palestinos sairão ou aceitarão a solução de um só Estado. Conseqüentemente, a inevitabilidade – e correção – de algum tipo de compromisso de dois Estados é um começo útil para qualquer discussão que busque uma solução construtiva desse conflito perigoso e doloroso.

Um ponto de partida concordante é essencial porque cada parte dessa longa disputa inicia a narrativa de sua reivindicação relativa ao território em um ponto diferente da história. Isso não deveria ser surpreendente, uma vez que nações e povos em conflito geralmente escolhem como início de sua narrativa nacional o ponto que melhor serve para apoiar suas reivindicações e queixas. Quando os colonizadores americanos procuraram obter a separação da Inglaterra, sua Declaração de Independência deu início à narrativa com uma história de “repetidas injustiças e usurpações” cometidas pelo “rei de então”, tais como “taxação sem a nossa concordância” e “alojamento de muitas tropas armadas entre nós”. Aqueles que se opuseram à separação começaram sua narrativa com os erros dos habitantes da colônia, como sua recusa em pagar determinados impostos e as provocações aos soldados ingleses. De modo similar, a Declaração de Independência de Israel começa sua narrativa com a terra de Israel sendo “o local de nascimento do povo judeu”, onde “eles pela primeira vez alcançaram a cidadania... e legaram ao mundo o eterno Livro dos Livros”. A genuína carta da Constituição palestina começa com a “ocupação sionista” e rejeita qualquer “reivindicação de ligações históricas ou espirituais entre os judeus e a Palestina”, a divisão da Palestina pela ONU e o “estabelecimento do Estado de Israel”.

Qualquer tentativa de desvendar as controvérsias históricas de disputas complexas e, em última análise, não comprováveis dos extremistas israelenses e árabes somente conduz a argumentos não-realistas de ambos os lados. Evidentemente é necessário ter alguma descrição da história – antiga ou moderna – dessa terra e de sua demografia em constante mutação, nem que seja para começar a entender como pessoas razoáveis podem chegar a conclusões tão opostas a partir dos mesmos fatos básicos. A realidade, é claro, é de que há concordância em apenas parte dos fatos. Muito é defendido e considerado a verdade absoluta por alguns, enquanto outros crêem exatamente no contrário.

Essa disparidade tão acentuada de percepção resulta de vários fatores. Às vezes é uma questão de interpretação de algum acontecimento. Por exemplo, quando chegarmos ao capítulo 12, veremos que ninguém nega o fato de que centenas de milhares de árabes que viviam onde hoje é Israel não vivem mais lá. Apesar de haver disputa sobre o número preciso, a maior discordância é se todos, a maioria, alguns ou nenhum desses refugiados foi expulso de Israel. Se cada um partiu porque os líderes árabes lhe deram a ordem ou se houve alguma combinação desses e de outros fatores. Também há discordância sobre quanto tempo esses refugiados realmente viveram nos lugares depois abandonados, uma vez que a ONU definiu um refugiado palestino – ao contrário de qualquer outro refugiado na história – como qualquer um que tenha vivido no território que se tornou Israel durante apenas dois anos antes de partir.

Pelo fato de ser impossível reconstruir a dinâmica precisa e as condições que acompanharam a guerra de 1948, deflagrada pelos Estados árabes contra Israel, a única conclusão sobre a qual se pode ter absoluta certeza é que jamais alguém saberá – ou convencerá seus opositores – se a maioria dos árabes que abandonou Israel foi expulsa, abandonada ou sofreu alguma combinação de fatores que a levou de um lugar para outro. Recentemente, Israel abriu muitos dos seus arquivos históricos para os estudiosos, e novas informações conduziram a compreensões e interpretações mais amplas, mas não terminaram – e jamais terminarão – com as discordâncias.6

De modo similar, a maioria dos 850 mil judeus sefardis que viviam nos países árabes antes de 1948 foram para Israel, porque foram forçados a sair, abandonados ou experimentaram algum tipo de temor, tiveram alguma oportunidade ou foram em busca de um ideal religioso. Novamente, o movimento dinâmico e preciso da história jamais será conhecido, especialmente porque os países árabes dos quais saíram não mantêm registros e arquivos históricos ou recusam-se a fornecê-los.

Cada lado faz jus à narrativa que lhe é conveniente, embora reconheça que outros possam interpretar os fatos de modo algo diferente. Algumas vezes a disputa é mais sobre a definição de termos do que sobre a interpretação dos fatos. Por exemplo, os árabes freqüentemente argumentam que Israel recebeu 54% do território da Palestina apesar de apenas 35% dos residentes serem judeus7. Os israelenses, por outro lado, argumentam que os judeus eram uma clara maioria nas regiões da terra alocada a Israel quando a ONU fez a partição do território em disputa. Como se vê, as definições precisas podem algumas vezes estreitar as disparidades.

Um outro ponto de partida deve incluir algum tipo de lei de caducidade para ressentimentos antigos. Assim como a questão a favor de Israel não pode mais basear-se exclusivamente sobre a expulsão dos judeus da terra de Israel no primeiro século, também a questão dos árabes não pode se basear com segurança em acontecimentos que supostamente ocorreram há mais de um século. Uma razão para uma lei de caducidade é o reconhecimento de que, à medida que o tempo passa, se torna cada vez mais difícil reconstruir o passado com algum grau de precisão e as memórias políticas endurecem e substituem os fatos. Como já foi dito, “há fatos e há fatos verdadeiros”.

Com relação aos acontecimentos que precederam a primeira Aliyah em 1882 (a imigração inicial de refugiados judeus europeus para a Palestina), existem mais memórias políticas e religiosas do que fatos reais. Sabemos que sempre houve uma presença judaica em Israel, principalmente nas cidades santas de Jerusalém, Hebron e Safed, e que sempre houve uma pluralidade ou maioria em Jerusalém por séculos. Sabemos que judeus europeus começaram a se mudar para onde hoje é Israel em números significativos durante a década de 1880 – só pouco depois da época em que australianos descendentes de ingleses começaram a deslocar os aborígines australianos, e americanos descendentes de europeus começaram a se mudar para alguns territórios ocidentais, originalmente habitados por americanos nativos.

Os judeus da primeira Aliyah não deslocaram os residentes locais por conquista ou por intimidação, como fizeram os americanos e australianos. Legal e abertamente compraram terras – boa parte das quais considerada não-cultivável – de proprietários ausentes. Ninguém que aceite a Austrália como sendo legitimamente uma nação cristã de língua inglesa, ou a América ocidental como parte dos Estados Unidos, pode questionar a legitimidade da presença judaica onde hoje é Israel, de 1880 até o presente. Mesmo antes da divisão feita pela ONU, em 1947, tratados e leis internacionais reconheceram que a comunidade judaica existia na Palestina como questão “de direito”, e qualquer discussão racional do conflito deve ter como premissa que o “conflito fundamental” é de “direito com direito”. Tais conflitos são freqüentemente os mais difíceis de resolver, já que cada lado deve ser persuadido a comprometer-se com o que acredita ser uma absoluta questão de direito. A tarefa torna-se ainda mais desalentadora quando há alguns de cada lado que vêem a sua reivindicação com base num mandato divino.

Inicio a questão a favor de Israel por uma breve revisão da história do conflito entre árabes, muçulmanos e judeus e depois entre árabes, palestinos, muçulmanos e israelenses, com ênfase na recusa dos líderes palestinos em aceitar uma solução de dois Estados (ou duas pátrias) em 1917, 1937, 1948 e 2000. Focalizo os esforços pragmáticos de Israel para viver em paz dentro de fronteiras seguras, apesar dos repetidos esforços dos líderes árabes para destruir o Estado judeu. Saliento os erros de Israel, mas argumento que foram geralmente cometidos num esforço bem-intencionado (apesar de algumas vezes mal orientado) de defender a sua população civil. Finalmente, argumento que Israel procurou cumprir a lei basicamente em todas as suas atividades.

Apesar da minha forte crença de que deve haver uma lei de caducidade para ressentimentos, levantar a causa a favor de Israel requer uma breve viagem ao passado relativamente recente. Isso é necessário porque a causa contra Israel, nos dias atuais sendo levantada em campi universitários, na mídia e no mundo todo, baseia-se em distorções propositais dos registros históricos, a começar com a chegada dos primeiros europeus à Palestina, no final do século XIX, e continuando com a divisão feita pela ONU, o estabelecimento do Estado judeu, as guerras entre Estados árabes e Israel, culminando no atual terrorismo e nas reações diante dele. Os registros históricos devem ser bem estabelecidos para evitar a advertência do filósofo Santayana de que aqueles que não lembram o passado estão condenados a repeti-lo.

Cada capítulo deste livro começa com a acusação apresentada contra Israel, citando fontes específicas. Respondo à acusação com fatos reais embasados em provas aceitáveis. Ao apresentar os fatos geralmente não me baseio em fontes pró-Israel, mas principalmente em fontes objetivas e, algumas vezes, para enfatizar algum ponto, em fontes anti-Israel.

Provo, sem sombra de dúvida, que as ações de Israel têm sido julgadas por um duplo padrão pernicioso: que mesmo quando Israel foi o melhor entre os melhores do mundo, tem sido muitas vezes acusado de ser o pior entre os piores. Também provo que esse duplo padrão não tem sido apenas injusto com o Estado judeu, mas tem prejudicado o código da lei, ferido a credibilidade de organizações internacionais como a ONU e encorajado terroristas palestinos a cometer atos de violência para provocar reações exageradas de Israel e assegurar a condenação unilateral de Israel pela comunidade internacional.

Na conclusão do livro, argumento que é impossível entender o conflito no Oriente Médio sem aceitar a realidade de que, desde o início, a estratégia da liderança árabe tem sido a eliminação da existência de qualquer Estado judeu e mesmo de uma substancial população judaica onde hoje se situa Israel. Mesmo o professor Edward Said, o mais destacado defensor acadêmico dos palestinos, reconhece que “o nacionalismo palestino foi integralmente baseado na expulsão dos israelenses [querendo dizer judeus]”8. Esse é um fato simples, não sujeito a um questionamento razoável. As provas verbais e escritas vindas de líderes árabes e palestinos são esmagadoras. Várias táticas têm sido usadas para esse fim, inclusive a mentirosa reescrita da história da imigração de refugiados judeus para a Palestina e a história demográfica dos árabes na região. Outras táticas têm incluído o ataque a civis judeus vulneráveis a partir da década de 1920, o suporte palestino a Hitler e ao genocídio nazista nos anos 1930 e 1940 e a oposição violenta à solução de dois Estados proposta pela Comissão Peel, em 1937, e depois pela ONU, em 1948. Ainda uma outra tática foi a criação e posterior exacerbação e exploração da crise dos refugiados.

Para alguns, a simples idéia de um Estado palestino ao lado de um Estado judeu tem sido uma tática em si – um primeiro passo – para a eliminação de Israel. Entre 1880 e 1967, na verdade, nenhum porta-voz árabe ou palestino falou a favor de um Estado palestino. Em vez disso, queriam que a área chamada pelos romanos de Palestina fosse incorporada à Síria ou à Jordânia. Como Auni Bey Abdul-Hati, um proeminente líder palestino, disse à Comissão Peel em 1937, “não existe tal país... Palestina é um termo que os sionistas inventaram... nosso país foi, durante séculos, parte da Síria”. Portanto, os palestinos rejeitaram a pátria independente proposta pela Comissão Peel porque também traria consigo uma pequena pátria judaica. O objetivo sempre permaneceu o mesmo: eliminar o Estado judeu e transferir a maioria dos judeus para fora da área.

Os realistas árabes agora reconhecem que esse objetivo é inatingível – pelo menos em um futuro previsível. A esperança é que o pragmatismo predomine sobre o fundamentalismo e que o povo palestino e seus líderes finalmente cheguem a compreender que a causa a favor de um Estado palestino é fortalecida pela aceitação de um Estado judeu. Quando os palestinos desejarem seu próprio Estado mais do que desejam a destruição do Estado judeu, a maioria dos israelenses receberá pacificamente o Estado palestino como bom vizinho. O acordo que deverá seguir o “mapa da estrada” e os apertos de mão, bem como promessas trocadas em Acaba, em 4 de junho de 2003, representam alguma esperança de que a solução de dois Estados – há tempos aceita por Israel – se torne finalmente uma realidade.

Acolho a discussão vigorosa sobre a questão a favor de Israel que defendo neste livro. De fato, espero gerar um debate honesto e contextual sobre um assunto que se tem polarizado por argumentos extremistas. Certamente haverá discordâncias sobre as conclusões a que chego e as inferências que faço dos fatos históricos. Mas não pode haver discordância razoável sobre os fatos básicos: os judeus europeus que se juntaram aos seus primos sefardis onde hoje é Israel, no final do século XIX, tinham um direito absoluto de procurar refúgio na terra de seus ancestrais; estabeleceram com o suor do rosto uma pátria judaica em partes da Palestina que justamente compraram de proprietários ausentes; deslocaram bem poucos felás (árabes que trabalhavam a terra) locais; aceitaram propostas baseadas na lei internacional para uma pátria judaica repartida em áreas com maioria judaica; e, pelo menos até recentemente, quase todos os líderes palestinos e árabes categoricamente rejeitaram qualquer solução que incluísse um Estado judeu ou a autodeterminação judaica. Esses fatos indiscutíveis estabeleceram as bases do conflito que acompanhou o estabelecimento de Israel e que continua até hoje. É importante apresentar esses fatos históricos como parte da atual questão a favor de Israel porque essa distorção ou omissão fundamental na história dolorosa é um elemento da questão muitas vezes levantada contra o Estado judeu.

Decidi escrever este livro depois de acompanhar de perto as negociações de paz de Camp David e Taba, de 2000-2001, e depois de ver como tantas pessoas no mundo se voltaram contra Israel quando as negociações falharam e os palestinos retornaram ao terrorismo. Eu estava lecionando na Universidade de Haifa, em Israel, durante o verão de 2000, e pude observar em primeira mão o entusiasmo e a expectativa com os quais tantos israelenses aguardavam o resultado do processo de paz iniciado com os acordos de Oslo em 1993 e que parecia estar a caminho da aceitação de uma resolução de dois Estados, com Israel e Palestina finalmente convivendo pacificamente depois de tantos anos de violento conflito.

À medida que o processo se encaminhava para a resolução, o primeiro-ministro israelense Ehud Barak surpreendeu o mundo ao oferecer aos palestinos praticamente tudo que demandavam, inclusive um Estado com sua capital em Jerusalém, o controle do Monte do Templo, a devolução de aproximadamente 95% da Cisjordânia e toda a Faixa de Gaza e um pacote de compensação de 30 bilhões de dólares para os refugiados de 1948. Como poderia Yasser Arafat rejeitar essa oferta histórica? O príncipe Bandar, da Arábia Saudita, que estava servindo de intermediário entre as partes, exortou Arafat a “aceitar este negócio”. Você poderia alguma vez conseguir “um negócio melhor”?, perguntou. Você preferiria negociar com Sharon? Como Arafat vacilou, Bandar advertiu-o: “Espero que o senhor se lembre do que eu lhe disse. Se perdermos esta oportunidade será um crime”9.

Observei com horror como Arafat cometeu esse crime, rejeitando a oferta de Barak e abandonando as negociações de paz sem nem mesmo fazer uma contraproposta. Mais tarde o príncipe Bandar iria caracterizar a decisão de Arafat como “um crime contra os palestinos – de fato, contra toda a região”. Considerou Arafat pessoalmente responsável por todas as mortes resultantes dos conflitos entre israelenses e palestinos.10 O presidente Clinton também colocou toda a culpa pelo fim do processo sobre Arafat, como o fizeram quase todos que participaram das negociações. Mesmo alguns europeus ficaram furiosos com Arafat por abandonar essa oferta generosa. Finalmente, parecia que a opinião pública mundial estava abandonando os palestinos, que haviam novamente rejeitado a solução de dois Estados, e voltando-se para os israelenses, que haviam feito uma proposta para a saída do impasse violento.

Mas em poucos meses a opinião pública internacional novamente mudou a favor dos palestinos e contra Israel, desta vez com uma vingança. Repentinamente Israel era o pária, o vilão, o agressor e o destruidor da paz. Em campi universitários ao redor do mundo era Israel – o país que tinha acabado de oferecer tanto – o único objeto das petições de despojamento e boicote. Como tantas pessoas inteligentes puderam esquecer tão depressa quem era culpado pelo fim do processo de paz? Como o mundo podia tão depressa transformar Arafat, o vilão de Camp David, num herói e Israel, que heroicamente tinha oferecido tanto, num vilão? O que aconteceu nesse breve período para produzir uma mudança tão dramática na opinião pública?

Fiquei sabendo que o que aconteceu foi precisamente aquilo que o príncipe Bandar havia predito a Arafat que aconteceria se rejeitasse a proposta de paz de Barak: “Você tem apenas duas alternativas. Ou você aceita esta proposta ou haverá guerra”. Arafat escolheu ir à guerra. De acordo com seu próprio ministro das Comunicações, “a Autoridade Palestina começou a preparar-se para o início da atual revolta nacionalista dos palestinos a partir do retorno das negociações de Camp David, a pedido do presidente Yasser Arafat”11.

A desculpa para a escalada das explosões suicidas foi a visita de Ariel Sharon ao Monte do Templo. Mas, como o ministro das Comunicações alardeou, “Arafat... havia previsto o início da intifada como um passo complementar à resistência palestina nas negociações, e não como um protesto específico contra a visita de Sharon ao Al-Haram Al-Sharif [o Monte do Templo]”. De fato, a escalada do terrorismo havia começado alguns dias antes da visita de Sharon, como parte “das instruções da Autoridade Palestina” às “forças políticas e facções para conduzir todos os elementos da intifada”. Em outras palavras, em vez de mostrar “firmeza nas negociações” fazendo contrapropostas à generosa oferta de Barak, Arafat decidiu fazer a sua contraproposta na forma de explosões suicidas e aumento da violência. O príncipe Bandar acusou Arafat de responsável pelo banho de sangue resultante: “Ainda não me recuperei... da magnitude da oportunidade perdida”, declarou ele a um repórter. “Mil e seiscentos palestinos mortos até agora. E setecentos israelenses mortos. No meu julgamento, nenhuma dessas mortes de israelenses e palestinos é justificada”12.

Então, de que maneira este homem, responsável por essas mortes evitáveis, que escolheu rejeitar a proposta de paz de Barak e instruiu seus subordinados a reiniciar a violenta intifada como um “estágio complementar” às negociações, conseguiu mudar a opinião pública mundial tão depressa em favor dos palestinos e contra Israel? Essa pergunta desalentadora necessitava de uma resposta, e foi a resposta assustadora que me levou a escrever este livro.

A resposta vem em duas partes. A primeira é bastante óbvia: Arafat jogou a comprovada carta do terrorismo, que funcionou para ele tantas vezes através de sua longa e tortuosa carreira como terrorista diplomata. Ao fazer de alvo civis israelenses – crianças ou ônibus escolares, mulheres grávidas em shopping centers, adolescentes numa discoteca, famílias num jantar de Pessach, estudantes universitários numa cafeteria –, Arafat sabia que podia fazer com que Israel tivesse uma reação exacerbada, primeiro elegendo um primeiro-ministro mais sagaz para substituir o manso Ehud Barak, depois instigando os militares a tomar atitudes que inevitavelmente resultariam na morte de civis palestinos. Funcionou perfeitamente, como no passado. De repente, o mundo estava vendo imagens perturbadoras de soldados israelenses atirando em multidões, parando mulheres em pontos de controle e matando civis. Arafat havia “dominado” uma “dura aritmética da dor”, como foi dito por um diplomata: “As perdas palestinas contam a seu favor e as perdas israelenses também. A não-violência não compensa”13.

Para muitos, a simples aritmética era suficiente: mais palestinos do que israelenses estavam mortos, e só esse fato já provava que Israel era o vilão. Era ignorado o fato de que, apesar de “apenas” 800 israelenses terem sido mortos (até junho de 2003), os terroristas palestinos haviam tentado matar milhares mais e não haviam conseguido só porque as autoridades israelenses haviam frustrado “aproximadamente 80% das tentativas” de ataques terroristas.14 Também foi ignorado o fato de que entre os aproximadamente dois mil palestinos mortos havia centenas de homens-bomba, fabricantes de bombas, atiradores de bombas, comandantes terroristas e mesmo supostos colaboradores mortos por outros palestinos. Quando se contam apenas os civis inocentes, morreram significativamente mais israelenses do que palestinos15. De fato, Israel matou menos civis palestinos inocentes durante as décadas que tem combatido o terrorismo do que qualquer outra nação na história diante de tal violência, e essas mortes trágicas foram conseqüências não-intencionais do combate ao terrorismo, mais do que o objeto da violência.

Por que então tantas pessoas na comunidade internacional – diplomatas, homens de mídia, estudantes, políticos, líderes religiosos – caíram na trama transparente e imoral de Arafat? Por que não culpavam Arafat pela escalada da violência, como fizeram o príncipe Bandar e outros? Por que culpavam Israel tão apressadamente? Por que líderes morais e religiosos, que geralmente traçam uma clara distinção entre aqueles que propositalmente alvejam civis inocentes e aqueles que inadvertidamente matam civis, num esforço de proteger seus próprios civis, eram incapazes de fazer essa importante distinção quando se tratava de Israel? Por que não compreenderam como a liderança palestina estava manipulando e explorando a aritmética da morte? Por que não podiam ver além da contagem de corpos e focalizar o correto cálculo moral: quantas pessoas inocentes foram deliberadamente transformadas em alvos e mortas de cada lado?

Procurando responder a essas perguntas perturbadoras, tornou-se claro para mim que forças obscuras estavam em jogo. A mudança dramática e quase total nas percepções do público num período tão curto de tempo não podia ser explicada com base exclusiva em princípios da lógica, moralidade, justiça – mesmo política. As respostas estavam, pelo menos em parte, no fato de Israel ser o Estado judeu e o “judeu” entre os Estados do mundo. Uma total compreensão das reações bizarras do mundo à generosa proposta israelense de paz e a violenta resposta palestina requer o reconhecimento da longa e difícil história mundial no julgamento do povo judeu por padrões diferentes e muito mais exigentes.

O mesmo ocorre com a nação judaica. Pouco após o seu estabelecimento como primeiro Estado judaico moderno do mundo, Israel tem sido avaliado segundo um duplo padrão de julgamento e crítica de suas ações ao defender-se contra ameaças à sua própria existência e à sua população civil. Este livro é sobre este duplo padrão – a sua injustiça em relação a Israel e, mais importante, seu pernicioso efeito ao encorajar o terrorismo palestino e outros.

Se o tom deste livro algumas vezes pode parecer contencioso, é porque as acusações atuais contra Israel freqüentemente são estridentes, intransigentes, unilaterais e exageradas: “tipo nazista”, “genocida”, “exemplo clássico de violadores de direitos humanos no mundo”, e assim por diante. Essas falsas acusações devem ser respondidas direta e verdadeiramente antes de se poder restaurar um tom de compromisso e reconhecimento mútuo de erros, e os assuntos serem debatidos nos seus méritos e deméritos freqüentemente complexos. Mas, com demasiada freqüência, o debate atual, especialmente nos campi universitários, é caracterizado por acusações contenciosas e unilaterais feitas por aqueles que desejam demonizar Israel. São freqüentemente respondidas pelo reconhecimento bastante mais franco de erros por defensores de Israel e um tom de desculpa que muitas vezes serve aos acusadores.

O avanço em direção à paz somente virá quando ambos os lados quiserem reconhecer seus próprios erros e culpas e ir além das acusações do passado para um futuro de compromisso mútuo. Uma atmosfera favorável a tal compromisso não será alcançada se o ar não for purificado das acusações falsas, exageradas e unilaterais que agora poluem a discussão em tantas colocações. A finalidade deste livro é ajudar a purificar o ar, fornecendo defesas diretas e verdadeiras a falsas acusações. O tom dessas defesas, algumas vezes, necessariamente espelha o tom das acusações. A principal característica dos meus escritos, discursos e aulas durante anos sempre foi ser direto e não criar intrigas ou preocupar-me em ofender aqueles que, com base em suas ações intolerantes e falsas acusações, merecem ser ofendidos. Procuro seguir esse caminho neste livro.

Uma vez purificado o ar dos poluentes da intolerância e da falsidade, um debate mais diferenciado pode ser iniciado sobre políticas especificamente israelenses – bem como sobre políticas especificamente palestinas. Este livro não é parte desse debate, apesar de eu ter minhas próprias opiniões sobre muitas dessas questões. Enquanto Israel for particular e falsamente acusado de ser o principal infrator, a primeira obrigação daqueles comprometidos com a verdade e a justiça é refutar essas acusações – de modo firme e inequívoco.

Freqüentemente, perguntam-me como, na qualidade de civil defensor do livre-arbítrio e liberal, posso apoiar Israel. A implicação por trás da pergunta é que devo estar comprometendo meus princípios ao apoiar um regime tão “repressivo”. A verdade é que apóio Israel precisamente porque sou um civil defensor do livre-arbítrio e liberal. Também critico Israel sempre que suas políticas violam o rigor da lei. Tampouco procuro defender ações chocantes de Israel ou de seus aliados, tais como as matanças de 1948 por tropas irregulares de civis em Deir Yassin, o massacre falangista de palestinos em 1982 no campo de refugiados de Sabra e Shatila ou os assassinatos em massa de muçulmanos orando por Baruch Goldstein em 1994. Como em qualquer outra democracia, Israel e seus líderes deveriam ser criticados sempre que suas ações deixem de atingir padrões aceitáveis, mas o criticismo deveria ser proporcional, comparativo e contextual, como deveria ser também em relação a outras nações.

Defendo a causa de Israel com base em considerações liberais e de defesa da liberdade civil, apesar de acreditar que os conservadores também deveriam apoiar o Estado judeu com base em valores conservadores. Não peço a ninguém que faça concessões a seus princípios. Antes, o meu pedido é que todas as pessoas de boa vontade simplesmente apliquem ao Estado judeu de Israel os mesmos princípios de moralidade e justiça que aplicam a outros Estados e povos. Se aplicassem um só padrão de justiça, a causa a favor de Israel se resolveria por si. Mas, como tantas pessoas insistem em ser mais exigentes em relação a Israel, eu agora defendo a causa segundo a qual, num julgamento por qualquer padrão racional, Israel merece o apoio – embora, certamente, não o apoio sem crítica – de todas as pessoas de boa vontade que atribuem valor à paz, à justiça, à honestidade e à autodeterminação.



1. Thomas Friedman, “Campus hypocrisy”, New York Times, 16 de outubro de 2002.
2. V. capítulo 28.
3. V. capítulo 28.
4. A preferência de Chomsky por um modelo federal “ao longo das linhas da Iugoslávia” é articulada em Middle east illusions (Oxford, Rowman & Littlefi eld, 2003), pp. 105-106. A sua defesa do Líbano como um modelo vem de um debate comigo em 1970.
5. Atlantic unbound (publicação on-line no Atlantic Monthly). Entrevista de Said por Harry Bloom, 22 de setembro de 1999, www.theatlantic.com/unbound/interviews/ba990922.htm.
6. V. Benny Morris, Righteous victims (Nova York: Vintage Books, 2001), p. XIV.
7. V. capítulo 9.
8. Atlantic unbound, 22 de setembro de 1999.
9. V. capítulo 17.
10. V. capítulo 17.
11. V. capítulos 16 e 17.
12. V. capítulo 17.
13. James Bennet, “Arafat’s edge: violence and time on his side”, New York Times, 18 de março de 2002.
14. Bruce Hoffman, “The logic of suicide terrorism”, Atlantic Monthly, junho de 2003, p. 45.
15. V. capítulo 18.

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Quero Liberdade (cap. I), de Rose Wilder Lane


I


Em 1919, eu era comunista. Meus amigos bolcheviques daqueles dias estão espalhados agora; alguns são burgueses, alguns estão mortos, alguns estão na China e na Rússia, e eu não conheci os últimos líderes americanos da Terceira Internacional, que hoje oficialmente aceitam a democracia. Eles me repudiariam até como uma camarada renegada, pois nunca fui membro do Partido. Mas foi só por acidente que não fui.


Naqueles dias logo após a Primeira Guerra Mundial, não era prudente defender mudanças fundamentais na América. A palavra era: “Se você não gosta deste país, volte para o lugar de onde você veio!”. Tive amigos, americanos patriotas de famílias americanas tão antigas quanto a minha, que foram julgados e condenados a vinte anos de prisão por editarem uma revista simpática à experiência russa. Navios atracavam com as caldeiras fumegando e a partida autorizada, prontos para despachar destas terras, sem processo legal ou qualquer oportunidade de defesa, grupos de supostos radicais capturados por agentes do Departamento de Justiça. Policiais arrombavam portas destrancadas, esmagavam mobília inocente e, com surpreendente falta de discernimento, atacavam de surpresa russos que haviam fugido do comunismo por não gostar dele.

Em meio a toda essa histeria e em grande perigo real, Jack Reed organizava o Partido Comunista da América.

Esqueço-me do local exato dessa cena histórica, mas eu estava lá. Em algum lugar nos becos de Nova York, uma escadaria suja subia de uma calçada imunda. Moleques famintos à porta ofereciam publicações comunistas para vender. A mulher esquelética de sempre pedia ajuda para a defesa legal de alguém: – Dez centavos, camarada? Cinco? Qualquer centavo ajuda.

Subimos através do aperto preguiçoso das escadas até a sala sombria de sempre, com cadeiras alugadas, pôsteres levemente tortos nas paredes manchadas, o cheiro de pobreza e fome, rostos iluminados.

Todas as reuniões eram iguais naquele inverno. Sua luz parecia vir não da má vontade das lâmpadas que balançavam no teto, mas dos rostos. Nossa polícia alardeava que os comunistas eram estrangeiros, e era verdade que a maioria dos rostos era de estrangeiros, e muitas das vozes. Mas essas pessoas tinham uma visão que parecia para mim o sonho americano. Eles tinham seguido essa visão até a América e continuavam seguindo; um sonho de um novo mundo de liberdade, justiça e igualdade.


Eles tinham fugido da opressão na Europa para viver em becos em Nova York, trabalhar horas intermináveis em subempregos e estudar inglês exaustivamente à noite. Estavam famintos e exaustos e explorados por seu próprio povo nesta terra estranha e, por seu sonho de um mundo melhor (o qual eles não tinham esperança de viver o suficiente para ver), doavam os tostões que tinham e de que precisavam para comer.


Lembro-me de que a sala era pequena, com talvez sessenta homens e mulheres nela. Havia um sentimento quase insuportável de expectativa e um senso de perigo. A reunião não tinha começado. Alguns homens em volta de Jack Reed falavam com seriedade e urgência. Ele avistou o homem que estava comigo e sua tensão se rompeu no sorriso de Jack Reed, mais alegre que um grito. Ele se desvencilhou dos outros, nos alcançou em meia dúzia de passos largos e exclamou: – Você está conosco?

Está? – ele repetia com expectativa. Mas a pergunta em si mesma era um desafio. A empreitada era arriscada. Jack Reed, como todo comunista sabe, não saiu de seu país depois; ele fugiu. Agentes federais ou uma batida da polícia poderiam invadir o lugar a qualquer momento. Sabíamos disso e, porque eu partilhava do sonho comunista, estava preparada para correr riscos e também para me submeter à rigorosa disciplina partidária. Mas o homem a meu lado começou uma discussão vaga sobre táticas; esquivou-se; hesitou; perguntou e objetou; finalmente, com um sorriso apaziguador, disse duvidar se deveria correr o risco de se comprometer, sua segurança era valiosa demais para a Causa. Jack Reed deu meia-volta dizendo: – Ah, vá para o inferno, seu covarde maldito.

Essa cena rápida me mostrou minha total falta de importância naquele momento; eu não representava nenhum grupo, não tinha nenhum peso naquele complexo de teóricos e líderes. Eu era apenas um indivíduo, apenas com uma simpatia entusiasmada pelas palavras de Jack Reed, e atordoada por um maldito resfriado. Voltei para casa. O resfriado se transformou em gripe. Quase morri, as despesas me atropelaram, tinha que ganhar meu sustento e, antes que minha saúde se recuperasse, estava na Europa.

Por essa margem tão pequena, não fui membro do Partido Comunista. De toda maneira, era comunista de coração. Muitos consideram o Estado coletivista uma extensão da democracia, como eu na época considerava. Segundo essa visão, o quadro é de passos progressivos para a liberdade. O primeiro passo havia sido a Reforma; conquistou a liberdade de consciência. O segundo foi a revolução política; nossa Revolução Americana contra o rei inglês foi parte dele. Esse segundo passo conquistou graus variados de liberdade política para todos os povos ocidentais. Os liberais continuavam a aumentar essa liberdade dando cada vez mais poder político ao Povo. Nos Estados Unidos, por exemplo, os liberais conseguiram sufrágio universal, eleição popular de quase todas as autoridades, iniciativa popular, referendo, recall e primárias.

Mas agora confrontamos a tirania econômica. Dito da maneira mais simples, nenhum homem é livre se sua subsistência mesma pode lhe ser negada, pela vontade de outro homem. O trabalhador é escravo de seu salário. A revolução final, então, deve capturar o controle econômico.

Hoje vejo a falácia dominante neste quadro e ainda vou apontá-la. Mas vamos deixar passar por enquanto. Há outro quadro. Este:

Uma vez que o progresso da ciência e das invenções nos permitiu produzir mais bens do que podemos consumir, não deveria faltar nenhuma coisa material para ninguém. Mesmo assim, vemos, por um lado, enorme riqueza nas mãos de uns poucos que, possuindo e controlando todos os meios de produção, são donos de todos os bens produzidos; por outro lado, multidões sempre relativamente pobres, não usufruindo dos bens que poderiam aproveitar.

Quem possui essa enorme riqueza? O Capitalista. O que cria a riqueza? O Trabalho. Como o Capitalista a obtém? Ele recolhe um lucro sobre todos os bens produzidos. O Capitalista produz alguma coisa? Não; o Trabalho produz tudo. Então, se todos os trabalhadores, organizados em sindicatos, obrigassem todos os Capitalistas a pagar em salários o pleno valor do seu trabalho, poderiam comprar todos os bens produzidos? Não, porque o Capitalista adiciona seu lucro aos bens antes de vendê-los.

Desse ponto de vista, é evidente que o Sistema de Lucro causa a injustiça e a desigualdade que vemos. Devemos eliminar o lucro; ou seja, devemos eliminar o Capitalista. Vamos tomar seus atuais lucros, distribuir sua riqueza acumulada e administrar nós mesmos seus antigos negócios. Os trabalhadores que produzem os bens vão então usufruir deles, não haverá mais desigualdade econômica e deveremos ter uma prosperidade geral tal como o mundo nunca conheceu.

Quando o Capitalista for embora, quem gerenciará a produção? O Estado. E o que é o Estado? O Estado será a massa de trabalhadores que labutam.

Foi nesse ponto que, pela primeira vez, uma dúvida fez um furo em minha fé comunista.http://www.libertarianismo.org/index.php/biblioteca/234-rose-wilder-lane/1074-quero-liberdade

domingo, 11 de novembro de 2012

Outro trecho de "À Sombra das Moças em Flor", de Proust


«Será que a julgara assim tão linda só por tê-la visto de forma tão fugaz? Talvez. Primeiro, a impossibilidade de ter parado junto de uma mulher, o risco de não encontrá-la em outra ocasião, davam-lhe subitamente o mesmo encanto que a um certo país a doença ou a pobreza que nos impedem de visitá-lo, ou, aos dias tão aborrecidos que nos restam por viver, a idéia do combate em que certamente morreríamos. De forma que, se não fosse o hábito, a vida deveria parecer deliciosa às pessoas que estivessem ameaçadas de morrer a todo instante — ou seja, a toda a humanidade.»

[…]


«Se eu pudesse ter descido do carro e falar à moça por quem passáramos, talvez ficasse decepcionado com algum defeito de sua pele, que do carro não pudera distinguir. (E então, de súbito, todo esforço para penetrar em sua vida me pareceria impossível. Pois a beleza é uma seqüência de hipóteses, e a feiúra a reduz, barrando o caminho que já víamos abrir-se para o desconhecido.) Talvez uma só palavra que ela tivesse dito, um sorriso, me houvessem fornecido uma chave ou uma cifra inesperadas para ler a expressão de seu rosto e de seu porte, que logo se tornariam banais. É possível, pois jamais encontrei na vida mulheres tão deliciosas como naqueles dias em que estava com uma pessoa muito grave, de quem não podia me separar não obstante os mil pretextos que inventava; em Paris, alguns anos depois de minha primeira viagem a Balbec, dando um passeio de carro com um amigo de meu pai, e vendo uma mulher que caminhava depressa na noite, pensei que não era razoável, por uma questão de conveniência, perder minha porção de felicidade na única vida que sem dúvida existe. E, saltando do carro sem pedir desculpas, parti em busca da desconhecida; perdi-a no cruzamento de duas ruas, voltei a encontrá-la numa terceira e me achei, todo resfolegante, debaixo de um lampião, diante da velha Sra. Verdurin, a quem evitava por toda a parte e que, surpresa e feliz, exclamou: — Oh, como foi amável em correr para me cumprimentar!»

“Em Busca do Tempo Perdido”, volume 2, “À Sombra das Moças em Flor”

sábado, 10 de novembro de 2012

Trecho de "À Sombra das Moças em Flor", de Proust


Quando Swann me dissera em Paris, um dia em que me sentia bastante mal: — Você deveria partir para aquelas deliciosas ilhas da Oceania; verá que não há de voltar mais — tive vontade de responder: — Mas então não veria mais a sua filha e viveria em meio a coisas e pessoas que ela nunca viu. — E no entanto a razão me dizia: “E que importa, visto que não sofrerás mais? Quando o Sr. Swann diz que não voltarás, quer dizer que não quererias mais voltar, e, visto não quereres voltar, é porque lá te sentirias feliz.” Pois minha razão sabia que o hábito — o hábito que ia assumir agora a tarefa de me fazer amar aquela casa desconhecida, de mudar o espelho de lugar, o colorido das cortinas e de parar o pêndulo — se encarrega também de nos tornar caros os companheiros que a princípio nos desagradavam, de dar outro formato aos rostos, de fazer simpático o som de uma voz, de modificar as inclinações do coração. É claro que essas amizades novas por lugares e pessoas são tecidas sobre o esquecimento das antigas; mas justamente a minha razão pensava que eu podia encarar sem terror a perspectiva de uma vida em que ficaria para sempre separado de pessoas cuja lembrança me fugiria; e era como uma espécie de consolo que oferecia ao meu coração a promessa de um esquecimento que, pelo contrário, me deixava louco de desespero. E não é que o nosso coração não deva também experimentar, ao consumar-se a separação, os efeitos analgésicos do hábito; mas, até que isso aconteça, continuará sofrendo. E o temor de um futuro em que não poderemos ver nem conversar com os entes queridos, e dos quais tiramos hoje a nossa mais profunda alegria, esse temor, longe de se dissipar, aumenta quando pensamos que, à dor de uma tal separação, se acrescentará o que no momento nos parece ainda mais cruel: a de a não mais sentirmos como uma dor e permanecermos indiferentes; pois então o nosso eu terá mudado: não será apenas o encanto de nossos pais, de nossa amante, de nossos amigos que deixará de estar à nossa volta; nossa afeição por eles terá sido tão bem extirpada de nosso coração da qual hoje em dia constitui parte tão importante que poderíamos nos alegrar com essa vida separada deles, cuja idéia hoje nos causa horror; será então uma verdadeira morte de nós mesmos, é verdade que morte seguida de ressurreição, mas num eu diverso e que não pode inspirar afeto às partes do antigo eu condenadas a morrer. E são elas — até as mais débeis, como o obscuro apego às dimensões, à atmosfera de um quarto — as que assustam e reprovam, com rebeliões em que se pode ver uma forma secreta, parcial, tangível e verdadeira de resistência à morte, da longa resistência desesperada e cotidiana à morte fragmentária e sucessiva tal como se insere em todos os momentos da nossa vida, destacando pedaços de nós a cada instante e fazendo que sobre a carne morta se multipliquem células novas.

“Em Busca do Tempo Perdido” volume 2, “À Sombra das Moças em Flor”, de Marcel Proust.

domingo, 4 de novembro de 2012

Crise e Utopia - O Dilema de Thomas More, de Martim Vasques da Cunha


Terminei de ler Crise e Utopia - O Dilema de Thomas More, de Martim Vasques da Cunha. Sou grato ao Martim por todos os livros que ele me indicou, incluindo The Man Who Was Thursday, The Secret Agent e La Rebelión de las Masas.

Não li "A Utopia", de Thomas More. Aprendi bastante sobre o livro de More lendo o livro do Martim. Há extensas citações de Eric Voegelin, Mario Ferreira dos Santos e outros autores de peso. Mas não tenho certeza se entendi bem o que o Martim quis dizer. Espero ter compreendido o que ele chama de crise: o fato de, a partir do Renascimento, a humanidade se voltar para os problemas humanos, afastando-se das questões religiosas ou espirituais. Acredito que consigo entender o ponto de vista dele, mas não sei se posso chamar isso de crise. Também acho que não posso concordar com as opiniões dele sobre a superbia (o orgulho) e a cupiditas (a ambição). Depois de muito tempo acreditando que eram atitudes prejudiciais, hoje acho que são benéficas e que movem o progresso (material, mas até mesmo espiritual) da civilização.

O que ele diz sobre a morte, a tendência do mundo moderno de tentar esquecer-se dela ou fingir que ela não existe, é bastante válido. O título da terceira parte do livro, em que ele analisa especificamente "A Utopia", é ET IN ARCADIA EGO (também estou na Arcádia). A morte está presente mesmo nos nossos simulacros de paraíso terreno. Isso é verdade, é claro. Talvez uma parte da humanidade precise ser lembrada disso. Porém, acho que qualquer pessoa adulta e minimamente consciente sente essa presença constante e convive com ela de alguma maneira. Não é realmente possível esquecer-se da morte.

sábado, 3 de novembro de 2012

O Mito da Revolução Industrial


A Revolução Industrial, iniciada por volta de 1750 na Inglaterra, provocou um imenso avanço tecnológico e econômico no mundo. Ninguém discute isso. Porém, existe um mito sobre seus efeitos sobre a população mais pobre.

Há uma crença generalizada de que o preço desse progresso foi a opressão das classes trabalhadoras pelos capitalistas. Sem restrições governamentais, as grandes corporações teriam tido liberdade de arrochar os salários, cortar custos negligenciando a segurança do ambiente de trabalho e multiplicar suas já imensas fortunas às custas da miséria da classe trabalhadora, que foi reduzida a uma virtual escravidão.

Friedrich Engels escreveu que o trabalhador típico do período pré-industrial vivia "uma vida justa e pacífica em toda piedade e probidade e sua posição material era muito melhor que a dos trabalhadores que o sucederam".

No início do século XX, seria clara a necessidade de salvar a classe trabalhadora da vitimização inerente ao sistema capitalista. O movimento de reforma social teria conseguido que fossem estabelecidos programas para proteger os desfavorecidos, impostas regulações mais rígidas sobre as empresas, dadas chances de que os trabalhadores se sindicalizassem e impedida a tendência natural à criação de monopólios que seria inerente ao capitalismo. A luta em defesa do homem comum continuaria até hoje, liderada pelos partidos progressistas, com o objetivo de, um dia, atingirmos a igualdade ecônomica que uma sociedade livre deseja.

É uma história convincente, que apela aos instintos humanos de proteger os oprimidos e lutar contra a injustiça. Os princípios básicos deste mito inspiraram grandes obras de literatura, desde Charles Dickens, com Um Conto de Natal e Oliver Twist. É extremamente popular em todo o mundo e é a crença política e econômica básica da maioria dos atores e jornalistas. Mais importante, esse mito norteia todas as políticas públicas no Brasil, pelo menos desde Getúlio Vargas. O problema é que nada disso é verdade.

A qualidade de vida dos trabalhadores melhorou drasticamente e continuamente com a Revolução Industrial. Durante todo o Feudalismo, da queda do Império Romano até o final do século XVI, era comum que pessoas fossem vendidas em leilões, submetidas a todo tipo de trabalho penoso e degradante, praticamente sem remuneração. Às vésperas da Revolução Industrial, entre 1730 e 1749, 75% das crianças inglesas morriam antes de completar 5 anos de idade. Entre 1750 e 1850, a população da Grã-Bretanha triplicou. A expectativa de vida aumentou tremendamente, mas houve também uma migração em massa do continente para as Ilhas Britânicas, de trabalhadores buscando condições melhores.

O advento da produção em massa fez com que, pela primeira vez na história, o alvo dos produtores de bens não fosse a camada mais rica da população, mas o homem comum. A explosão da produção provocou uma queda generalizada de preços. Uma miríade de produtos baratos se tornou disponível: sabão, roupas de baixo, chá, café, açúcar, chapéus, tecidos. As pequenas lojas se espalharam por toda parte e surgiram empregos no comércio. Os assalariados da indústria e do comércio passaram a ser consumidores. A dieta de uma família pobre deixou de ser uma tigela de farinha com batatas e passou a incluir carne fresca, bacon, pão de trigo, manteiga, chá.

Os trabalhadores trocaram péssimos empregos na agricultura por péssimos empregos na indústria. Porém, passaram a comer melhor, vestir-se melhor, ter mais saúde e produzir mais.

A inovação tecnológica era feita por pessoas que tivessem capacidade intelectual de criá-la, independentemente de sua origem. George Stephenson, criador da locomotiva a vapor, havia sido vaqueiro. O engenheiro Telford, que construiu 1200 pontes e mais de 1500 quilômetros de estradas, era filho de um pastor de ovelhas e começou como aprendiz de pedreiro. Joseph Bramah, inventor da prensa hidráulica, foi aprendiz de carpinteiro. Frederich König, imigrante alemão, inventor de uma impressora de alta velocidade, era filho de um camponês e foi aprendiz numa gráfica. Como estes, há incontáveis outros exemplos.

Friedrich Hayek disse que o Mito da Revolução Industrial sobrevive porque os historiadores estão contaminados pelo marxismo. Como acreditam que o capitalismo produz miséria, procuram e encontram supostas provas dessa crença. Antes da Revolução Industrial, a miséria dos pobres era considerada um fato imutável da vida. Com o progresso, as pessoas passaram a tolerar cada vez menos a pobreza que restou. Isso fez com que aumentassem as críticas à situação dos mais pobres e não o fato de essa situação estar piorando.

Ludwig von Mises argumentou que os donos das fábricas não tinham nenhum poder de obrigar alguém a se tornar operário contra sua vontade. Só podiam contratar quem aceitasse o emprego voluntariamente, nas condições oferecidas e pelo salário tratado. Os salários eram muito, muito baixos e as condições de vida eram muito, muito ruins. Mas eram melhores que a alternativa. Fora das fábricas, as mulheres mal tinham o que dar de comida a seus filhos. As fábricas literalmente os salvaram da fome. Portanto, é verdade que o capitalismo criou o proletariado. Não no sentido de Marx e Engels, mas no sentido de que esse enorme contingente de pessoas não teria sobrevivido se não houvesse surgido o capitalismo. Von Mises escreveu: "O que há de notável na Revolução Industrial é que ela iniciou uma era de produção em massa para atender as necessidades das massas. Os assalariados não são mais pessoas que trabalham exaustivamente apenas pelo bem-estar de outras pessoas. Eles próprios são os principais consumidores dos produtos saídos das fábricas. Não existe, nos Estados Unidos de hoje, nenhum ramo de grandes empresas que não tente satisfazer as necessidades das massas. O princípio essencial do empreendedorismo capitalista é fornecer produtos ao homem comum. [...] Não há outra maneira, numa economia de mercado, de se adquirir e preservar riqueza, exceto suprir as massas, da maneira melhor e mais barata, de todos os bens que elas pedirem."

A Revolução Industrial foi um processo evolutivo, realizado por tentativa e erro. Para haver um avanço em uma área era necessário que houvesse outro avanço paralelo em outras áreas. O processo que resultou nas grandes invenções aconteceu sem nenhum planejamento central. Aconteceu com cada pessoa buscando seus próprios interesses particulares. Aconteceu porque as pessoas eram motivadas pelo lucro. Não poderia ter ocorrido por meio de uma mente humana tentando planejá-lo. Não aconteceria se as pessoas fossem movidas por razões altruísticas. Também não aconteceria se as pessoas não vislumbrassem a perspectiva de vantagens pessoais como resultado de suas ações.

Um ponto essencial do Mito da Revolução Industrial diz respeito ao trabalho infantil. Em primeiro lugar, é necessário dizer que o trabalho infantil sempre existiu. As condições de trabalho para crianças também eram muito ruins, o trabalho era pesado, perigoso e insalubre. Um dos estímulos para os pais buscarem trabalhos em fábricas é que o trabalho para seus filhos era mais leve e menos perigoso. Com a melhoria do padrão de vida, os pais puderam prescindir da renda resultante do trabalho infantil, e as crianças passaram a ficar em casa. Não foi a Revolução Industrial que criou o trabalho infantil, ele sempre existiu antes. Foi a Revolução Industrial que acabou com o trabalho infantil.

Também é importante diferenciar o que se chamava, na Inglaterra, de "free-labour children" e "parish-apprentice children". "Free-labour children" eram crianças que tinham uma família e trabalhavam junto com seus pais em uma fábrica. Um dono de empresa não tinha como subjugar uma dessas crianças e obrigá-la a trabalhar em condições com as quais seus pais não concordassem. "Parish-apprentice children" eram crianças órfãs ou abandonadas (como Oliver Twist), submetidas à autoridade e supervisão de funcionários do Estado. Quando os historiadores narram casos de crianças submetidas aos tipos mais cruéis de trabalhos, quase sempre as situações envolvem exclusivamente essas crianças.

Sobre os monopólios, só existe uma maneira de manter um monopólio numa economia de mercado: ter um produto tão melhor que o da concorrência, a um preço tão baixo, que todos os consumidores escolham comprá-lo. Se, em virtude dessa posição de monopólio, a empresa resolver subir os preços ou descuidar da qualidade, os concorrentes vão fatalmente aparecer e ocupar uma fatia cada vez maior do mercado. Numa economia livre, a competição nunca é eliminada. Não tem como ser eliminada.

Outra coisa completamente diferente é o monopólio estatal. Se o governo impede a competição, a empresa ou as empresas monopolistas podem cobrar preços absurdos e entregar produtos e serviços ruins. Se alguém quiser trabalhar (ou continuar trabalhando) nesse específico ramo de atividade, terá de se sujeitar às condições de trabalho que essas empresas impuserem. Existem dois tipos de monopólio estatal. O monopólio clássico é aquele em que leis proíbem que existam competidores. O outro tipo, mais comum atualmente, é aquele em que o governo impede que surjam novos competidores por meio do excesso de regulação. Poucas grandes empresas dominam o mercado. Elas competem entre si, mas são protegidas de concorrentes inovadores porque o custo de adequar-se às regras é proibitivo.

O padrão de vida das pessoas só se eleva e as condições de trabalho só melhoram por meio de investimentos de capital e da produção de mais bens, de melhor qualidade. É exatamente isso que foi a Revolução Industrial. E é exatamente disso que os países mais pobres e anticapitalistas do mundo precisam para prosperarem.

Este texto é um pastiche traduzido dos artigos abaixo. Recomendo a leitura dos originais.