Vamos respirar um pouco de ar puro. Vamos falar de assuntos mais elevados: literatura e o trabalho admirável de Rodrigo Gurgel como crítico.
Foi com grande prazer que li o livro mais recente dele, Esquecidos & Superestimados, publicado pela Vide Editorial. Como em Muita Retórica — Pouca Literatura, obras brasileiras são analisadas, cada uma de um autor diferente. Percorremos assim as primeiras três décadas da nossa literatura do século 20.
Confesso que, desta vez, não li nenhum dos textos que ele aborda. Não importa. Aumentou minha lista de autores a conhecer, com a inclusão de, pelo menos, Simões Lopes Neto, Hugo de Carvalho Ramos e Valdomiro Silveira. Dependendo da minha disposição, gostaria também de ler Júlia Lopes de Almeida, Coelho Neto e Amadeu Amaral.
Gostei muito do capítulo sobre Monteiro Lobato, autor que marcou a minha infância e a de muita gente. Fico incomodado com a patrulha tacanha que ele sofre hoje dos analfabetos politicamente corretos, que querem colocar em suas edições infantis advertências sobre Tia Nastácia. É verdade que olhei novamente a História do Mundo para Crianças e não gostei tanto assim do que li. E fiquei de fato chocado quando li O Presidente Negro. Não acho que a obra infantil de Monteiro Lobato seja racista, mas este livro é sim. As pessoas criticam o racismo que não existe e ignoram o racismo real, porque não lêem nem os livros para crianças nem os para adultos.
Monteiro Lobato é estigmatizado por causa do artigo Paranóia ou mistificação?, de 1917, em que criticou a exposição de Anita Malfatti. Embora acusado de prepotente e de inimigo de qualquer avanço cultural, Lobato publicou inúmeros escritores jovens e desconhecidos, incluindo Guilherme de Almeida, Amadeu Amaral, Gilberto Amado, Lima Barreto, Oswald de Andrade e Menotti del Picchia. Teve a competência de montar uma rede de distribuição de livros com bancas de jornal, papelarias, farmácias e armazéns. Em 1923, tinha quase 200 títulos no catálogo. Sem a efervescência cultural que sua editora criou, a Semana de 22 não teria sido possível.
Os outros autores mais conhecidos de quem Rodrigo Gurgel trata são Lima Barreto, Euclides da Cunha e Olavo Bilac. Gurgel diz que Lima Barreto defendeu uma literatura militante, que deveria mostrar as qualidades de seus personagens e afirmar que o entendimento e o amor entre pessoas muito diferentes era possível. Mas sua obra é marcada pelo sentimento de derrota, seu e de seus personagens.
Os Sertões, de Euclides da Cunha, é um livro que exige uma disposição especial do leitor para enfrentar um vocabulário rebuscado e descrições topográficas e geológicas intermináveis. Gurgel nos convence de que o esforço vale a pena. Aponta as semelhanças entre um trecho de Os Sertões e um poema de Rimbaud e especula se Euclides da Cunha teria tomado contato com esse autor na biblioteca de Francisco Escobar.
Olavo Bilac é analisado por suas crônicas, consideradas datadas, nas quais abundam hipérboles vazias e falta conteúdo. Podemos ver vários exemplos de sua estilística piegas, cheia de adjetivos extremados e completamente inadequados.
Rodrigo Gurgel elogia três contistas que se situam acima do que se costuma chamar de regionalismo. O gaúcho Simões Lopes Neto é autor de Lendas do Sul, uma coletânea de contos folclóricos narrados com grande habilidade. Hugo de Carvalho Ramos, goiano, escreveu Tropas e Boiadas, narrando histórias de tropeiros do Centro-Oeste. Seus contos cheios de espontaneidade e tensão épica fogem dos lugares-comuns com inteligência, sensibilidade e apuro lingüístico. Valdomiro Silveira, paulista, é autor de Os Caboclos. Os 24 contos desse livro são histórias singelas ou dramáticas, que costumam começar de maneira que a atenção do leitor é imediatamente capturada. Seus narradores se expressam com desembaraço, suas frases se encadeiam sem adereços desnecessários, seu ritmo é leve. É o avesso do beletrismo balofo de Afonso Arinos.
Há muito mais autores esquecidos que superestimados, mas vamos mencionar dois destes últimos. Antônio Sales, autor de Aves de Arribação, tem, segundo Gurgel, o mérito de concentrar em duzentas páginas todos os defeitos da literatura brasileira: ornamentação piegas, retórica afetada, uso desmedido de adjetivos e de lugares-comuns, falta de interação entre os personagens, estilo e técnica narrativa deficientes. João do Rio escreveu A correspondência de uma estação de cura, uma narrativa epistolar frouxamente composta, em que os personagens se expressam invariavelmente de maneira frívola, mesquinha e afetada.
Aprendi muito com Esquecidos & Superestimados, que vai me fazer ler mais.
1. À espera de justiça
— Júlia Lopes de Almeida e A falência
2. Escondido e desprezado
— Emanuel Guimarães e A todo transe!
3. Combate interminável
— Euclides da Cunha e Os Sertões
4. Perseguido, mas brilhante
— Coelho Neto e Turbilhão
5. Perfumaria bilaquiana
— Olavo Bilac e suas crônicas
6. A salvação pelo duplo
— Lindolfo Rocha e Maria Dusá
7. Retorno à querência
— Simões Lopes Neto e Lendas do Sul
8. Manual de literatice
— Antônio Sales e Aves de arribação
9. Salvo da banalidade
— Hugo de Carvalho Ramos e Tropas e boiadas
10. Canalhice e afetação
— João do Rio e A correspondência de uma estação de cura
11. Salvo pela ironia
— Carlos de Laet e suas crônicas
12. Ideologia e azedume
— Lima Barreto e Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá
13. Psicopatia e racismo
— Afrânio Peixoto e Fruta do mato
14. Injustamente esquecido
— Valdomiro Silveira e Os caboclos
15. Corrosivo e sempre contemporâneo
— Monteiro Lobato, Urupês e Negrinha
16. O filho tardio de Alencar
— Alcydes Maya e Alma bárbara
17. Sobriedade e sutileza
— Amadeu Amaral e A pulseira de ferro
18. Equívocos e retórica
— Jackson de Figueiredo e Literatura reacionária
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