quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

O Compasso de Schwencke

O “Compasso de Schwencke”
Acredito que na trilha sonora do Céu toque muito Bach. Meu filho nasceu ao som do Concerto nº III de Brandemburgo. Considero o Cravo Bem Temperado uma obra monumental, sobre-humana, com seus dois Prelúdios e duas Fugas para cada um 24 tons da escala (os 12 maiores e os 12 menores).

Assim como muita gente, sou fascinado pelo Prelúdio nº 1 em Dó Maior. Por causa da estrutura fixa dos compassos, não é tão difícil de aprender. Sou um aluno medíocre de teclado e estou tentando tocá-lo sem errar muito. Peguei a partitura na Internet e alguns vídeos no YouTube, como este.

Para minha surpresa, entre os compassos 22 e 23, a pianista toca um compasso que não está na partitura. Algumas pessoas reclamaram desse compasso extra nos comentários e a pianista respondeu que essa era a versão mais aceita da peça. Pesquisei um pouco e descobri que esse é o “Compasso de Schwencke”.

Christian Friedrich
Gottlieb Schwencke
Christian Friedrich Gottlieb Schwencke (1767 - 1822) foi um compositor, pianista e editor de obras musicais. Sucedeu Carl Philipp Emanuel Bach, filho de Johann Sebastian Bach, como diretor musical em Hamburgo. Schwencke publicou uma edição de O Cravo Bem-Temperado por volta de 1800. É a aparição mais antiga que se conhece desse compasso a mais. Diversas edições posteriores tiveram a de Schwencke como fonte. A mais famosa é a de Carl Czerny, de 1837. Não temos certeza se quem introduziu o compasso foi mesmo Schwencke ou se ele também copiou de outra fonte. O curioso é que a edição de Czerny foi usada pelo compositor francês Charles Gounod para criar sua Ave Maria, uma melodia tocada por cima do Prelúdio em Dó Maior, com o “Compasso de Schwencke”.

É claro que prefiro o Prelúdio original, como foi escrito por Bach. A passagem do compasso 22 ao 23 é de fato abrupta e audaciosa. E o compasso extra quebra essa tensão, que é talvez o momento mais bonito da obra. Mas existe quem prefira a versão suavizada. O Prelúdio possui 35 compassos, que podem ser divididos em 9 grupos, 8 com 4 e esse trecho do 21 ao 23 com 3. Talvez isso incomode músicos com TOC.

É curioso que alguém tenha achado que poderia corrigir, melhorar o trabalho de um gênio da grandeza de Bach. E que o tenha feito de maneira sub-reptícia, anônima, levando muita gente boa a acreditar que a obra alterada era o que o Bach pretendia. Fico pensando que Schwencke passou à imortalidade de uma maneira muito peculiar. Se não fosse pelo compasso, ele talvez estivesse esquecido. Mas é lembrado por um ato infamante, do qual nem temos certeza de quem foi o autor.

Prelúdio nº 1 em Dó Maior,
tocado em um cravo flamengo,
por Martha Goldstein. 




segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

Khomeini, o crítico musical

Khomeini: A música entorpece a mente, porque envolve prazer e êxtase, de maneira semelhante às drogas. A sua música, eu quero dizer. Normalmente, a sua música não exalta o espírito, ela o coloca para dormir. E destrói nossos jovens que se envenenam com ela, e então não se importam mais com seu país.

Pergunta: Mesmo a música de Bach, Beethoven, Verdi?

Khomeini: Não conheço esses nomes.

Khomeini admitia a possibilidade de que, se “nossa”música não entorpecesse a mente, não precisaria ser proibida: “Algum tipo de música sua é permitida. Por exemplo, marchas militares e hinos para marchar. […] Sim, mas suas marchas são permitidas.” Então, talvez o falecido Aiatolá e o Grand Mufti al-Husseyni, apoiador do nazismo, achassem ambos Die Fahne Hoch adequado ao seu gosto musical.


Trecho de The Sword of the Prophet, de Serge Trifkovic, citando uma entrevista dada pelo Aiatolá Ruhollah Khomeini a Oriana Fallaci, publicada em The New York Times Magazine, de 7 de outubro de 1979.

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

Os países mais capitalistas da África

Anoitecer em Port Louis
Poucas pessoas saberiam dizer quais são os dois países mais capitalistas da África, onde há menos dificuldades legais em acumular patrimônio, menos impostos, menos gastos governamentais, legislação trabalhista mais livre, menos corrupção.

Um primo meu me mandou este vídeo da Fair Labor Association - FLA, em que seu ex-presidente, Auret van Heerden, apresenta situações de pessoas trabalhando em condições sub-humanas em alguns países e atribui o problema ao capitalismo e à falta de regulamentação trabalhista. Os países citados são Zimbábue, China, Congo, Uzbequistão. Fui pesquisar o índice de liberdade ecônomica deles. A Heritage Foundation faz um trabalho fantástico de avaliação da liberdade econômica no mundo, que pode ser consultada neste site. Não é surpreendente que os países citados por van Heerden tenham índices muito ruins. O que me surpreendeu foi encontrar dois países com excelente performance ecônomica na África: Maurício e Botsuana.

Maurício é um país insular no Oceano Índico, a 2000 km da costa continental africana. Sua área é pouco maior que a do município de São Paulo. Não possui recursos minerais. Era desabitado até o século 16. A população é formada principalmente por descendentes de indianos, árabes e europeus. Desde a descolonização, em 1968, tem um regime democrático estável, com um sistema legal funcional e a mais ampla liberdade econômica da África. De produtor de açúcar, o país passou a exportador de têxteis, pólo turístico e hoje é também um centro de desenvolvimento de software. Tem a quinta renda per capita mais alta da África em paridade de poder de compra.

Botsuana é fica no interior da África, em uma região semi-árida, entre a Namíbia, a África do Sul, o Zimbábue, Angola e Zâmbia. 70% do território pertence ao deserto de Kalahari. Com uma área comparável à da França, possui 2 milhões de habitantes, que vivem dispersos pelo país. A capital, Gaborone, tem apenas 230 mil habitantes. A renda per capita por paridade de poder de compra saltou de 70 dólares anuais na época da independência, em 1966, para 16.400 dólares anuais em 2013, a sexta maior da África. Sua principal fonte de renda é a mineração de diamantes. Porém, ao contrário de outros grandes produtores de diamantes como Angola e a República Democrática do Congo, Botsuana conseguiu transformar essa riqueza mineral em crescimento econômico e benefícios para seu povo. O grande desafio hoje é diversificar a produção e diminuir a dependência da atividade mineradora. Botsuana foi muito afetado pela epidemia de AIDS, o que freou seu crescimento na década passada. Aparentemente, esse problema está sendo superado.

Comparar esses países com o Brasil dá desânimo e tristeza. O gráfico de liberdade econômica dos três países mostra que quase conseguimos alcançá-los entre 1998 e 2002 e que perdemos o bonde a partir daí.


O gráfico de renda per capita do Banco Mundial nos dá a conseqüência disso.


Maurício e Botsuana não têm CLT, não têm Bolsa-Família, não têm uma carga tributária de de 40% do PIB, não têm Petrobras, não têm PT.

Uma palavra final sobre Auret van Heerden. Depois que a FLA passou a receber doações da Apple, parou de criticar e passou a elogiar a Foxconn, fornecedora chinesa da Apple. Várias organizações denunciaram que as condições de trabalho na Foxconn continuavam muito ruins e acusaram van Heerden de ter se vendido. Ele teve de renunciar à presidência da associação em 2013.

Voltando a Maurício e Botsuana, o fato de os países mais capitalistas da África terem um desempenho econômico superior não é coincidência. É o resultado da liberdade e do respeito às leis. Em qualquer parte do mundo, se o capitalismo e a liberdade forem aplicados, a população enriquece.

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

Muita Retórica — Pouca Literatura, de Rodrigo Gurgel

Um dos melhores livros que li no ano passado é Muita Retórica — Pouca Literatura, de Rodrigo Gurgel. É um painel da prosa brasileira da segunda metade do século 19. Em cada capítulo, Rodrigo analisa uma obra de um autor diferente. O único escritor que aparece em dois capítulos é o Visconde de Taunay, com Inocência e A Retirada da Laguna.

Confesso que só li quatro dos livros analisados: Memórias de um Sargento de Milícias, O Cortiço, O Ateneu e Dom Casmurro. Quase todos quando estava no colegial, há mais de 25 anos. Encontrei muitos reflexos da impressão que me ficou dessas obras na crítica de Rodrigo Gurgel.

Memórias de um Sargento de Milícias é um livro muito bom. Despretensioso, leve, bem-escrito, narra o cotidiano de pessoas comuns. Suas personagens são verossímeis e perfeitamente humanas com suas pequenas mesquinharias e seus pequenos gestos de heroísmo. O Cortiço é uma obra forte, com momentos marcantes. Porém, sua visão naturalista, totalmente pessimista sobre a capacidade moral do ser humano, o faz um romance mediano. O Ateneu é um livro muito ruim, tanto pelo excesso de retórica como pelo sarcasmo destrutivo que o narrador dirige contra tudo e contra todos.

E fiquei muito satisfeito por Rodrigo Gurgel não gostar de Dom Casmurro. Ele ressalta o quanto Machado de Assis deve ao autor de Memórias de um Sargento de Milícias, dívida nunca reconhecida por Machado. Rodrigo diz que Bentinho constrói uma narrativa que só conduz o leitor a becos sem saída. Não é possível dizer se Capitu traiu Bentinho ou não. E não é possível dizer mais quase nada. Bentinho simplesmente nos confunde e para nada.

Muita Retórica — Pouca Literatura
resgata diversos escritores esquecidos, como João Francisco Lisboa, Joaquim Felício dos Santos, Inglês de Souza e Xavier Marques. Dá umas boas pauladas em autores incensados como Adolfo Caminha, Afonso Arinos e Graça Aranha, além das unanimidades José de Alencar, Machado de Assis e Raul Pompéia. Fiquei com muita vontade de ler A Retirada da Laguna e os livros de Joaquim Nabuco e Eduardo Prado. E estou ansioso para começar o próximo do Rodrigo, Esquecidos e Superestimados, que continua analisando a prosa brasileira, agora no início do século 20.

A crítica de Rodrigo Gurgel é muito bem fundamentada. É divertida e equilibrada. Os pontos fortes de uma obra ruim ou os defeitos de um livro excelente não são deixados de lado, mas explicados pacientemente ao leitor.

Para dar uma noção do que é o livro, publico o nome dos capítulos e o autor e a obra a que se referem. Boas leituras!

1. Romantismo autodestrutivo
José de Alencar e Lucíola

2. Talento para recriar a vida
Manuel Antônio de Almeida e Memórias de um Sargento de Milícias

3. O ironista macambúzio
João Francisco Lisboa e Jornal de Timon

4. O contestador liberal
Joaquim Felício dos Santos e Memórias do Distrito Diamantino

5. Valioso, mas desigual
Visconde de Taunay e Inocência

6. Ecos do ultra-romantismo
Bernardo Guimarães e O Seminarista

7. Épico às avessas
Visconde de Taunay e A Retirada da Laguna

8. Lenga-lenga maçante
Franklin Távora e Um casamento no arrabalde

9. O preço do naturalismo
Aluísio Azevedo e O Cortiço

10. Acima do naturalismo
Inglês de Souza e Contos amazônicos

11. Subliteratura e vingança
Adolfo Caminha e Bom Crioulo

12. Encoberto pela retórica
Domingos Olímpio e Luzia-Homem

13. Em busca do realismo
Manuel de Oliveira Paiva e Dona Guidinha do Poço

14. Enfermo de retórica
Raul Pompéia e O Ateneu

15. A pior das respostas
Machado de Assis e Dom Casmurro

16. O antifilisteu
Joaquim Nabuco e Minha formação

17. O anti-revolucionário
Eduardo Prado e Fastos da ditadura militar no Brasil

18. Arenga sertanista
Afonso Arinos e Pelo sertão

19. Retorno ao paraíso
Xavier Marques e Jana e Joel

20. Puro pedantismo

Graça Aranha e Canaã