sexta-feira, 28 de março de 2014

Não tem Cavalo de Troia na Ilíada

Terminei de ler a Ilíada. Será que só eu não sabia que a Ilíada acaba ainda muito antes do fim da Guerra de Troia?

Não constam do texto nem o Cavalo de Troia, nem a morte de Ájax ou de Páris, nem a flecha no calcanhar de Aquiles. Até quase o final do texto, Cassandra não é mencionada. Ela aparece, por fim, numa ponta, sendo a primeira a ver Príamo retornando. O fato de Cassandra ter o poder da profecia, mas ninguém acreditar nela, também não está na Ilíada.

É fascinante pensar no poder do livro, da escrita. Acabei de ler um texto literário produzido há cerca de três mil anos, e que ocupou a mente de pessoas como Platão, Alexandre da Macedônia, Dante, Thomas Hobbes, Shakespeare, John Stuart Mill. Pude rir das mesmas coisas que possivelmente fizeram rir leitores tão diferentes, de tantas épocas e lugares. É o melhor meio que conheço para, de alguma maneira, viajarmos no tempo. Homero está presente entre nós em 2014. Podemos visitar, por intermédio dele, a Grécia do século VIII AC, quando a Ilíada foi composta.

Aquiles conversa com seus cavalos
O escudo de Aquiles
A morte de Pátroclo

terça-feira, 25 de março de 2014

Aquiles conversa com seus cavalos

Automedonte com os Cavalos de Aquiles
Henri Regnault, 1868
Óleo sobre tela

No canto XIX da Ilíada, Aquiles conversa com seus cavalos. Segue o texto de Homero:

«Automedonte e Alcimo ocupavam-se em atrelar os cavalos, atirando-lhes em torno formosas coelheiras, colocando-lhes o freio na boca e puxando as rédeas para trás, para a caixa bem ajustada do carro. Com o chicote brilhante e cômodo na mão, saltou para o carro Automedonte; atrás dele, de armadura, subiu Aquiles, resplandescente sob as armas como o luminoso Hipérion; e, com voz terrível, gritou para os cavalos de seu pai:

— Xanto e Bálio, célebres filhos de Podargo, pensai, com o coração inteiramente diverso, em trazer outra vez são e salvo seu condutor para o meio dos gregos, quando nos cansarmos de matança; não o deixeis lá, morto, como deixastes Pátroclo.

Então, debaixo do jugo, um cavalo de fúlgidos pés respondeu-lhe — era Xanto — inclinando a cabeça, enquanto a crina, escapando à coelheira ao longo do jugo, chegava até o chão; e quem lhe deu o dom da palavra foi Hera, a deusa dos alvos braços:

— Certo é que ainda hoje te salvaremos, esmagador Aquiles. Mas próximo está o dia de tua perda; e não seremos nós os responsáveis, mas um grande deus e o poderoso Destino. Pois não foi por nossa desídia nem por nossa indolência que os troianos, dos ombros de Pátroclo lhe arrancaram as armas; mas o poderoso deus, gerado por Leto de belos cabelos, matou-o na vanguarda dos troianos e deu a glória a Heitor. Acompanharíamos ambos o sopro de Zéfiro na corrida, embora seja, como dizem, o mais rápido dos seres. Mas tu, teu destino é ser vencido, à força, por um deus e por um homem.

Depois que assim falou, as Eríneas restauraram a ordem da natureza e lhe tiraram a fala. Com um profundo suspiro, respondeu Aquiles dos pés ligeiros:

— Xanto, por que predizes minha morte? Não precisavas. Bem sei que meu destino é perecer aqui, longe de meu pai e de minha mãe. Contudo, não deixarei de lutar enquanto não tiver rechaçado os troianos.»

Não tem Cavalo de Troia na Ilíada
O escudo de Aquiles
A morte de Pátroclo

sábado, 22 de março de 2014

O escudo de Aquiles


No Canto XVIII da Ilíada, Tétis pede a Hefesto que faça uma armadura para seu filho Aquiles. A que ele tinha antes foi emprestada a Pátroclo e tomada por Heitor. Hefesto, por ser manco, havia sido jogado do Olimpo por sua mãe, Hera, e foi então  criado por Tétis durante nove anos. O deus ferreiro aceitou a incumbência. Fez a armadura e um escudo em uma noite. Homero descreve assim o escudo de Aquiles:

«Fez primeiro um escudo, grande, robusto, bem trabalhado em todos os sentidos. Adaptou-lhe em torno uma orla tripla, brilhante, ofuscante, e nela prendeu uma correia de prata. Havia cinco placas no escudo propriamente dito; e Hefesto nelas entalhou, com arte sábia, primorosos ornatos.

Nele representou a terra, e o céu, e o mar, o sol infatigável e a lua cheia, e todos os astros que coroam o céu, as Plêiades, as Híades, o poderoso Órion e a Ursa, também chamada o Carro, que gira sobre si mesma espiando Órion, e é a única que não se banha no Oceano.

Nele cinzelou duas cidades humanas, belas. Em uma, havia bodas e festins. Os noivos, de seus aposentos, sob as tochas brilhantes, eram levados para a cidade, e em toda parte se erguia o hino nupcial. Giravam jovens dançarinos, em cujo meio se ouviam liras e flautas. As mulheres, em pé, admiravam, cada qual defronte de sua porta. Na praça pública, reunira-se a multidão. Ali surgira uma briga. Dois homens altercavam-se sobre o resgate de sangue de um homem assassinado. Um afirmava haver dado tudo e declarava-o diante do povo, o outro dizia nada haver recebido. Os dois invocavam uma testemunha, para por fim à disputa. A multidão gritava, em parte favorável a um, em parte a outro, ora apoiando um, ora apoiando outro; arautos continham a plebe. Os anciãos estavam sentados em pedras polidas, no círculo sagrado. Empunhavam-lhes os cetros arautos cuja voz faz tremer o ar. Depois, tomando-os dos arautos, eles adiantavam-se e emitiam sua opinião, cada qual por sua vez. No meio estavam depositados dois talentos de ouro, para aquele que, entre eles, pronunciasse o julgamento mais reto.

Em torno da outra cidade acampavam dois exércitos, brilhantes sob as armas. As alternativas discutidas pelos sitiantes eram destruí-la ou tomar a metade dos bens encerrados na belíssima cidade. Mas os sitiados não cediam e, preparando uma emboscada, armavam-se em segredo. A muralha era defendida pelas mulheres, pelas crianças e pelos velhos. Os outros marchavam, capitaneados por Ares e Palas Atena, ambos de ouro e vestidos de ouro, belos e grandes com as armas, como deuses, e perfeitamente reconhecíveis: os soldados, abaixo, eram menores. Chegados ao lugar apropriado para a emboscada, no leito do rio que servia de bebedouro a todos os rebanhos, lá se postaram, cobertos de bronze chamejante. À distância da tropa havia dois vigias, esperando ver os carneiros e bois de chifres recurvos, que não tardaram em surgir diante deles, seguidos de dois pastores, entretidos em tocar flauta, inteiramente alheios à cilada. Vendo-os, correram sobre eles os homens escondidos. Rápidos, afastaram as manadas de bois e os belos rebanhos de alvos carneiros, e mataram os pastores.

Ouvindo o grande alarido feito em torno dos bois, à frente do local em que estavam reunidos, os sitiantes montaram imediatamente nos carros de cavalos campeadores, para lá se dirigiram e lá chegaram num abrir e fechar de olhos. Tomando posição, travavam batalha nas margens do rio; e os combatentes golpeavam-se uns aos outros com as lanças de pontas de bronze. A eles se misturavam a Discórdia, o Tumulto e o lamentável Destino, que segurava um homem vivo apesar de ferido, outro ileso e outro morto, que, através da luta, arrastava pelos pés. O morto tinha as vestes, nos ombros, vermelhas do sangue dos homens. Esses personagens agitavam-se como homens vivos; combatiam, arrastavam para si os cadáveres uns dos outros.

No escudo, Hefesto gravou a macia terra de cultivo, uma terra rica, vasta e três vezes arada. Muitos lavradores faziam girar as parelhas de bois e as levavam para cá e para lá. Quando, tendo feito meia volta, voltavam ao limite do campo, tomavam uma taça de vinho doce como mel, oferecida por um homem que se adiantava. E retornavam ao sulco, ansiosos por chegar a orla da terra arada, que escurecia atrás deles, semelhando terra lavrada, embora fosse ouro. E esse trabalho era um maravilhoso primor.

Hefesto esculpiu ali também um campo real, onde ceifeiros trabalhavam, empunhando afiadas foices. Uma parte do trigo ceifado caía na terra e a outra os enfeixadores amarravam com cordas de palha. Havia três enfeixadores; atrás deles, apanhando o trigo e carregando-o nos braços, crianças forneciam-lhes sem cessar. Entre eles, empunhando o cetro, estava o rei em pé, num sulco, com o coração alegre. Arautos, mais adiante, debaixo de um carvalho, ocupavam-se da refeição. Tendo sacrificado um grande touro, preparavam-no; e as mulheres despejavam muita aveia branca sobre a carne, para o jantar dos ceifadores.

Hefesto tracejou também no escudo, todo carregado de uvas, um belo vinhedo dourado; uvas negras campeavam no alto das cepas, em toda parte sustentadas por tanchões de prata. Em torno, traçou um fosso de esmalte azul-escuro e, em toda a extensão, uma cerca de estanho. Somente um caminho a atravessava, à qual se chegava por um atalho único, pelo qual seguiam os vindimadores no tempo da colheita. Moças e rapazes, cheios de ternos sentimentos, carregavam nas cestas trançadas o fruto doce como mel. No meio deles, uma criança, dedilhando a cítara de som claro, tocava com muita graça e, acompanhando-se da melodia, entoava, com voz meiga, uma linda canção de Lino. Os outros, tocando o solo ao mesmo tempo, seguiam o ritmo do canto e da meiga voz com os pés dançarinos.

Hefesto lavrou no escudo um rebanho de vacas de chifres retos. Essas vacas eram de ouro e de estanho; mugindo, seguiam do curral ao pasto, ao pé de ressoante rio, margeado por juncos ondulantes. Pastores de ouro acompanhavam-nas; eram quatro, seguidos de nove cães velozes. Terríveis, dois leões, no meio das primeiras vacas, agarravam um touro que mugia. Este, com longos bramidos, era arrastado; os cães e os rapazes perseguiam os dois leões, que, tendo rasgado a pele do grande animal, lhe devoravam as entranhas e o sangue negro. Os pastores em vão os perseguiam, atiçando os cães velozes. Estes se recusavam a morder os leões, latindo perto deles e evitando-os.

Hefesto, o ilustre manco, desenhou ainda um pasto em formoso vale, extenso pasto de alvas ovelhas, com estábulos, tendas cobertas e redis.

Nele colocou o ilustre manco um coro variado, semelhante àquele que, outrora, na vasta Cnossos, Dédalo executou para Ariadne de belas tranças. No coro, moças e rapazes que valiam muitos bois dançavam de mãos dadas. Elas trajavam vestidos de fino linho e eles vestiam bem tecidas túnicas, que brilhavam com o suave brilho do óleo; elas traziam belas coroas, e eles, punhais de ouro suspensos em cintos de prata. Às vezes, corriam agilmente formando uma roda, com os hábeis pés, com extrema facilidade, como um oleiro experimenta sua roda; outra vezes, ao contrário, corriam alinhados uns para os outros. Uma multidão cercava, fascinada, o coro encantador. Entre os bailarinos, cantava um divino poeta, que dedilhava a cítara, e dois acrobatas, cujo ritmo era marcado pelo canto, rodopiavam no meio.

Hefesto colocou ainda o grande poder do rio Oceano na borda extrema do escudo solidamente construído.»

Não tem Cavalo de Troia na Ilíada
Aquiles conversa com seus cavalos
A morte de Pátroclo

sexta-feira, 21 de março de 2014

A morte de Pátroclo

Pátroclo veste a armadura de Aquiles e parte
 para a batalha, apenas para ser morto por Heitor

Impressão gicleé por Henry Singleton
Estou lendo a Ilíada. Achei interessante o trecho a seguir. Pátroclo está liderando os aqueus num ataque contra os troianos. Apolo o envolve em escuridão, tira sua armadura e o golpeia. Euforbo o fere nas costas com a lança. Segue o texto de Homero:

«Quando Heitor viu o magnânimo Pátroclo recuar, ferido pelo bronze agudo, aproximou-se dele, atravessando as fileiras; e feriu-o, com a lança, no flanco, embaixo, empurrando o bronze através da carne. Com estrondo, caiu Pátroclo e grande foi a aflição nas tropas aqueias. Assim como o infatigável javali sucumbe ao ardoroso ataque de um leão: ambos, no pico de uma montanha, batem-se furiosos por uma magra fonte em que querem beber os dois; e o javali, arquejante, é vencido, à força, pelo leão; assim Heitor, filho de Príamo, tirou a vida do valente filho de Menoécio, que muitos homens matara, e, triunfante, proferiu estas palavras aladas:

“Pátroclo, pretendias saquear nossa cidade, roubar das mulheres troianas o dia da liberdade e levá-las, em teus navios, à tua pátria. Insensato! Diante delas, os velozes cavalos de Heitor se lançaram à batalha. E com meu pique, entre os bravos troianos, me distingo, afastando o dia fatal. Entretanto, aqui, hão de os abutres te devorar. Desgraçado! Apesar de todo o seu valor, não te ajudou Aquiles e, sem dúvida, quedando-se à parte, mil vezes te recomendou, a ti que marchavas: ‘Não voltes para mim, Pátroclo que os cavalos conduzem, para perto dos ocos navios, enquanto não houveres ensanguentado a túnica e rasgado o peito do mortífero Heitor.’ Assim, sem dúvida, falou ele, e persuadiu-te o espírito, insensato.”

Em tua fraqueza, tu lhe respondeste, cavaleiro Pátroclo:

“Agora, Heitor, triunfa bem. Eis que Zeus, filho de Cronos, e Apolo deram-te a vitória, eles que facilmente me mataram. Eles próprios arrancaram a armadura de meus ombros! Se vinte homens como tu me tivessem enfrentado, todos, de golpe, teriam perecido, suplantados por minha lança. Mas a mim, foram o destino funesto e o filho de Leto que me mataram e, entre os homens, Euforbo. Chegaste em terceiro lugar, e agora me despojas!

Entretanto, mais uma palavra ainda, e guarda-a bem guardada em tua alma: tu mesmo já não viverás por muito tempo. Perto de ti já se erguem a morte e o destino pujante. E serás vencido pela mão de Aquiles, o admirável Eácida.”

Disse, e foi o fim; envolveu-o a morte. Desligando-se-lhe dos membros, voou-lhe a alma para junto de Hades, lastimando sua sorte, deixando a virilidade e a juventude.

Embora ele estivesse morto, respondeu-lhe o glorioso Heitor:

“Pátroclo, por que me predizes o abismo fatal? Quem sabe se Aquiles, filho de Tétis de belos cabelos louros, não morrerá antes de mim, ferido por minha lança?”

Tendo falado, arrancou da ferida a lança de bronze, com o pé sobre o cadáver, que atirou, de costas, para longe do pique. E, sem demora, marchou contra Automedonte, semelhante a um deus, escudeiro do Eácida de pés ligeiros, desejando feri-lo. Este, porém , era levado pelos rápidos cavalos imortais, magnífico presente que os deuses haviam dado a Peleu.»

P.S.: É interessante como alguém que está morrendo consegue dizer tudo isso. E como é possível parar a batalha para conversar assim.

Não tem Cavalo de Troia na Ilíada
Aquiles conversa com seus cavalos
O escudo de Aquiles

domingo, 16 de março de 2014

Como Vencer um Debate sem Precisar Ter Razão, de Arthur Schopenhauer

Acabei de ler Como Vencer um Debate sem Precisar Ter Razão Em 38 Estratagemas (Dialética Erística), de Arthur Schopenhauer, com comentários de Olavo de Carvalho. Schopenhauer deixou essa curta obra inacabada. Foi publicada depois de sua morte. A edição brasileira traz longos comentários de Olavo de Carvalho. A quantidade de texto de Olavo e de Schopenhauer na edição é praticamente a mesma.

Esse catálogo de trapaças em debates é bastante útil e interessante. A ideia não é ensinar o leitor a trapacear, mas prepará-lo para se defender das argumentações desonestas de seus adversários em debates. Cito alguns Estratagemas de que gostei mais. O Estratagema 38 é o Argumentum ad Personam, ou seja, xingar o adversário quando não se tem mais o que dizer. O Estratagema 36 é o Discurso Incompreensível, muito popular. O Estratagema 32, Rótulo Odioso, é aquele que chama de “fascistas” (ou “racistas”, ou “homofóbicos”, ou “elite”, dependendo do caso) todas as pessoas que discordam do debatedor. O 14, a Falsa Proclamação de Vitória, também é bastante usado quando os argumentos acabam. Outro Estratagema curioso é o 2, a Homonímia Sutil, em que se usa a mesma palavra que o adversário usou, mas com um sentido diferente do pretendido por ele, para contestar algo que ele não disse.

Comprei o livro em 2006 e comecei a ler pela parte que mais interessava, os estratagemas. Enrosquei no Estratagema 4 e larguei. Resolvi ler de novo recentemente e, para não enroscar novamente, comecei pelo Estratagema 38 e vim voltando até o Estratagema 1. Quando terminei essa parte, li os comentários finais do Olavo e depois os do Schopenhauer, para depois ler a introdução do Olavo e a do Schopenhauer.

Segundo Olavo, Schopenhauer pretendia fazer uma crítica a Hegel. Com a morte de Hegel, o filósofo deve ter perdido a motivação para concluir o livro e abandonou o texto.

Embora Olavo reconheça o valor do texto em si e das teorias de Schopenhauer sobre debates, ele curiosamente o critica o tempo todo. Segundo Olavo, Schopenhauer não entendeu o que Aristóteles quis dizer com Dialética, que não é o mesmo que Schopenhauer chama por esse nome. Também sobram críticas à filosofia de Schopenhauer em geral, que é, segundo Olavo, um desdobramento levado às últimas consequências das ideias de Kant.

Recomendo o livro a qualquer pessoa que goste de discutir ideias.

Segue uma lista de todos os estratagemas. Os nomes foram dados pelo Olavo de Carvalho. O que está entre aspas são citações do texto de Schopenhauer, exceto quando indicada outra fonte.

1) Ampliação indevida
“Levar a afirmação do adversário para além de seus limites naturais, interpretá-la do modo mais geral possível, tomá-la no sentido mais amplo possível e exagerá-la. Restringir, em contrapartida, a própria afirmação ao sentido mais estrito e ao limite mais estreito possíveis. Pois quanto mais geral uma afirmação se torna, tanto mais ataques se podem dirigir a ela.”
2) Homonímia sutil
“Usar a homonímia para tornar a afirmação apresentada extensiva também àquilo que, fora a identidade de nome, pouco ou nada tem em comum com a coisa de que se trata; depois refutar com ênfase esta afirmação e dar a impressão de ter refutado a primeira.”
3) Mudança de modo
“A afirmação que foi apresentada em modo relativo […] é tomada como se tivesse sido apresentada em modo absoluto, universalmente […], ou pelo menos é compreendida em um sentido totalmente diferente, e assim refutada com base neste segundo contexto.” Nesses três primeiros estratagemas, “o adversário, na realidade, fala de uma coisa distinta daquela que se havia colocado. Quando nos deixamos levar por este estratagema, cometemos, então, uma ignoratio elenchi (ignorância do contra-argumento).” “O que o adversário diz é verdadeiro, mas não está em contradição real com nossa tese.”
4) Pré-silogismos
“Se queremos chegar a uma certa conclusão, devemos evitar que esta seja prevista, e atuar de modo que o adversário, sem percebê-lo, admita as premissas uma de cada vez e dispersas sem ordem na conversação”. Segundo Olavo de Carvalho: “Esta técnica, das mais requintadas e complexas, pode ser usada não só no debate face a face, mas em todo o processo de manipulação da opinião pública. Aceitando premissas parciais espalhadas aqui e ali pela propaganda, pelos espetáculos de teatro, pelos indivíduos famosos, aparentemente desconectadas entre si e sem qualquer intenção unitária subjacente, o público é levado, sem perceber, à conclusão desejada pelo manipulador. Se a conclusão não for declarada explicitamente em parte alguma, ela terá ainda mais força persuasiva, por que a vítima, ao tirá-la, acreditará que está raciocinando livremente e assumirá responsabilidade pela crença que lhe foi incutida, passando mesmo a defendê-la como expressão pura de sua opinião espontânea. Esse processo é usado sistematicamente pela "revolução cultural" gramsciana, que descrevo em A Nova Era e a Revolução Cultural: Fritjof Capra & Antonio Gramsci. A maioria das técnicas de manipulação de opinião em uso hoje em dia se constitui de adaptações e formidáveis ampliações de técnicas retórico-dialéticas.”
5) Uso intencional de premissas falsas
“Podemos também, para comprovar nossas proposições, fazer antes uso de proposições falsas, se o adversário não quiser aceitar as verdadeiras, seja porque percebe que delas a tese será deduzida como consequência imediata. Então adotaremos proposições que são falsas em si mesmas mas verdadeiras ad hominem, e argumentaremos ex concessis, a partir do modo de pensar do adversário.”
6) Petição de princípio oculta
“Ocultamos uma petitio principii, ao postular o que desejamos provar: 1) usando um nome distinto […] ou ainda usando conceitos intercambiáveis […]; 2) fazendo com que se aceite de um modo geral aquilo que é controvertido num caso particular […]; 3) se, em contrapartida, duas coisas são consequência uma da outra, demonstraremos uma postulando a outra; 4) se precisamos demonstrar uma verdade geral e fazemos que se admitam todas as particulares (o contrário do número 2).”
7) Perguntas em desordem
“Quando a disputa é conduzida de modo rigoroso e formal e queremos fazer com que nos entendam com perfeita clareza, então aquele que apresentou a afirmação e deve prová-la procede contra o adversário fazendo perguntas para concluir a verdade a partir das próprias concessões do adversário.” E: “Fazer de uma só vez muitas perguntas pormenorizadas, e assim ocultar o que, na realidade, queremos que seja admitido”.
8) Encolerizar o adversário
“Provoca-se a cólera do adversário, para que, em sua fúria, ele não seja capaz de raciocinar corretamente e perceber sua própria vantagem.”
9) Perguntas em ordem alterada
“Fazer as perguntas numa ordem distinta da exigida pela conclusão que dela pretendemos, com mudanças de todo gênero; assim, o adversário não conseguirá saber aonde queremos chegar e não poderá prevenir-se.”
10) Pista falsa
“Se percebemos que o adversário, intencionalmente, responde pela negativa às perguntas cuja resposta afirmativa poderia confirmar nossas proposições, então devemos perguntar o contrário da proposição que queremos usar, como se quiséssemos que fosse aprovada, ou então, pelo menos, por as duas à escolha, de modo que não se perceba qual delas queremos afirmar.”
11) Salto indutivo
Se o adversário já aceitar casos particulares, não “perguntar-lhe se admite também a verdade geral” derivada dos casos particulares; introduzi-la “como se estivesse estabelecida e aceita”.
12) Manipulação semântica
Chamar as coisas por um nome que já contenha o juízo de valor que queremos que seja aceito. “O nome protestantes foi escolhido por eles mesmos, assim como o de evangélicos. O nome hereges, em contrapartida, foi escolhido pelos católicos.” Segundo Olavo de Carvalho: “A manipulação semântica e o mais seguro indício de que o debatedor tem o intuito de vencer a qualquer preço, com solene desprezo pela verdade. Em épocas de radicalização política, ela se torna uso corrente. Nos regimes totalitários — uma invenção do século XX que Schopenhauer não poderia prever —, a manipulação semântica passou a ser usada já não no confronto polêmico, mas como instrumento de um discurso monológico destinado a bloquear, primeiro, a expressão de ideias antagônicas e, depois, a mera possibilidade de pensá-las. […] George Orwell satirizou esse fenômeno no romance 1984, onde o totalitarismo perfeito implanta oficialmente a "Novilíngua" (Newspeak), toda composta de conotações alteradas. Na vida real, as coisas são piores: a Novílingua é imposta de facto, sem declaração oficial. Isto torna muito mais difícil combatê-la e sobretudo identificar seus responsáveis: eles permanecem anônimos por trás de um abstrato sujeito coletivo, até que este acabe por se identificar com a própria natureza impessoal das coisas, com a "História", com Deus ou com o povo inteiro, de modo a que enfim a vítima venha a assumir a responsabilidade pelo crime. No Brasil, porém, o emprego da manipulação semântica adquiriu, nas últimas duas décadas, contornos peculiares, talvez jamais observados no mundo: o domínio totalitário da linguagem monológica por uma casta de manipuladores convive pacificamente com a democracia formal, defendida, paradoxalmente, pela mesma casta. O emprego do termo conservador enquanto oposto a progressista (e não a radical, por exemplo), foi originariamente um truque semântico da esquerda, compensado pelo giro oposto empregado pela direita (autodenominada, por exemplo, democrática em oposição a bolchevista, ou cristã em oposição a materialista). No Brasil, a acepção esquerdista dos dois termos se tornou unânime e institucional, sem que uma única voz de direita procure bani-la ou neutralizá-la. […] No Brasil, a identificação do nazismo com a direita tornou-se um dado do vocabulário corrente, que ninguém pensa em contestar. […] O domínio esquerdista do vocabulário é total e irrestrito, o que faz com que cada cidadão brasileiro, ao discordar da esquerda, se veja desprovido de meios de expressão que não estejam sobrecarregados de um temível potencial de mal-entendidos; aos poucos, a dificuldade de falar se torna dificuldade de pensar.”
13) Alternativa forçada
“Para que o adversário aceite uma tese, devemos apresentar-lhe também a contrária e deixar que ele escolha, ressaltando essa oposição com estridência, de modo que ele, se não quiser ser contraditório, tenha de se decidir pela nossa tese que, em comparação à outra, se mostra muito mais provável.”
14) Falsa proclamação de vitória
“Declaramos e proclamamos triunfalmente demonstrada a conclusão que pretendíamos, ainda que de fato não se siga das respostas do adversário.” Segundo Olavo de Carvalho: “Aproveitar-se da confusão do leitor (ou ouvinte, ou espectador) para proclamar que está provado o que não foi provado de maneira alguma é o procedimento mais regular e constante da retórica política e dos meios de comunicação no Brasil.”
15) Anulação do paradoxo
“Se apresentamos uma proposição paradoxal e temos dificuldade para prová-la, proporemos ao adversário, para que a aceite ou recuse, uma proposição correta, mas cuja exatidão não seja totalmente evidente, como se dela quiséssemos construir a demonstração.” Se ele a recusar, provaremos que é verdade. Se aceitar, teremos dito alguma coisa razoável e adiaremos a conclusão. Segundo Olavo de Carvalho, nos dois casos, apenas mudamos de assunto, desviando a atenção do ouvinte do rumo desastroso que nossa argumentação tinha tomado.
16) Várias modalidades do argumentum ad hominem
“Perguntar se a afirmação do adversário não está em contradição com algo que ele disse ou aceitou anteriormente, ou com os princípios de uma escola ou seita que ele elogie ou aprove, ou com o comportamento de membros dessa seita, ou com a conduta do adversário mesmo.”
17) Distinção de emergência
Salvar-se “mediante alguma distinção sutil, na qual não havíamos pensado anteriormente, caso a questão admita algum tipo de dupla interpretação ou dois casos diferentes.”
18) Uso intencional da mutatio controversiae
Estratagema que consiste em “interromper o debate a tempo” quando se está ameaçado de ser abatido, sair do debate “ou desviá-lo e levá-lo para outra questão”.
19) Fuga do específico para o universal
“Se o adversário solicita expressamente que apresentemos alguma objeção contra um ponto concreto de sua tese, mas não encontramos nada de apropriado, devemos enfocar o aspecto geral do tema e atacá-lo assim.”
20) Uso da premissa falsa previamente aceita pelo adversário
Se o adversário concordou com algumas de nossas premissas, saltamos para a conclusão, como se estivesse provada, mesmo que não esteja.
21) Preferir o argumento sofístico
Muitas vezes, é mais fácil e rápido vencer com um argumento falso que com um verdadeiro.
22) Falsa alegação de petitio principii
Alegar que o adversário está fazendo uma petitio principii quando ele quer que admitamos algo que leve à formulação do problema.
23) Impelir o adversário ao exagero
No calor do debate, levar o adversário a exagerar suas posições. Como o exagero costuma levar a contradições, podemos refutar essas contradições como se estivéssemos refutando o argumento original.
24) Falsa reductio ad absurdum
Tirar falsas conclusões absurdas dos argumentos do adversário. Com isso, refutam-se essas conclusões, fazendo parecer que a tese foi refutada.
25) Falsa instância
Apresentar um suposto contraexemplo da tese do adversário que não seja de fato classificável como uma instância dessa tese.
26) Retorsio argumenti
Usar o argumento do adversário contra ele próprio, quando isso for possível. Este é um dos poucos estratagemas que não é desonesto em si.
27) Usar a raiva
Quando o adversário fica irritado com algum argumento nosso, devemos insistir nesse ponto, porque provavelmente ali há uma inconsistência.
28) Argumentum ad auditores
Argumento aos ouvintes. “Formulamos uma objeção inválida, mas cuja invalidade só um conhecedor do assunto pode captar. E, ainda que o adversário seja um conhecedor do assunto, não o são os ouvintes.”
29) Desvio
Mudar de assunto fingindo que ainda se está rebatendo a questão do adversário. Ou mesmo, de modo insolente, atacar o adversário pessoalmente.
30) Argumentum ad verecundiam
Argumento dirigido ao sentimento de honra. Citar autoridades no assunto para refutar uma tese. Este estratagema funciona tanto melhor quanto menores forem os conhecimentos do adversário a respeito do que disse a autoridade invocada e quanto maior for a veneração dele diante de tal autoridade.
31) Incompetência irônica
Fingir que não entendeu o que o adversário disse e declarar isso ironicamente. Nas circunstâncias certas, isso faz o adversário parecer um idiota que não sabe organizar o raciocínio ou que está simplesmente declarando algo patentemente falso.
32) Rótulo odioso
“Um modo rápido de eliminar ou, ao menos, de tornar suspeita uma afirmação do adversário é reduzi-la a uma categoria geralmente detestada, ainda que a relação seja pouco rigorosa e tão só de vaga semelhança.”
33) Negação da teoria na prática
Aceitar os fundamentos de um argumento, mas negar suas consequências.
34) Resposta ao meneio de esquiva
“Se o adversário não dá uma informação ou resposta direta a uma questão ou a um argumento, e se esquiva com uma contrapergunta ou uma resposta indireta, refugiando-se numa proposição que não tem a ver com o tema e indo para qualquer outro lugar, isto é um sinal claro de que nós encontramos um ponto fraco. Devemos portanto persistir no ponto e não deixar o adversário sair do lugar.” Este estratagema também não é desonesto em si.
35) Persuasão pela vontade
“Em vez de fornecer razões ao entendimento, influi-se com motivações na vontade, e o adversário, do mesmo modo que os ouvintes quando têm um interesse em comum com ele, são subitamente ganhos para nossa opinião, mesmo que esta tenha sido tomada de empréstimo num manicômio.”
36) Discurso incompreensível
“Desconcertar, aturdir o adversário com um caudal de palavras sem sentido. Isto baseia-se em que, ‘normalmente o homem, ao escutar apenas palavras, acredita que também deve haver nelas algo para pensar’ (Goethe, Fausto).”
37) Tomar a prova pela tese
“Se o adversário tem de fato razão e felizmente escolheu, para defender-se, uma prova ruim, será fácil refutarmos essa prova, e daremos isto como uma refutação da tese mesma.”
38) Último estratagema: Argumentum ad Personam
“Quando percebemos que o adversário é superior e que acabará por não nos dar razão, então nos tornamos pessoalmente ofensivos, insultuosos, grosseiros. […] O objeto é deixado completamente de lado e concentramos o ataque na pessoa do adversário, e a objeção se torna insolente, maldosa, ultrajante, grosseira. Essa regra é muito popular, pois todo mundo é capaz de aplicá-la e, por isto, é usada com frequência.”

sábado, 8 de março de 2014

Trecho de “Sodoma e Gomorra”

Trecho de Sodoma e Gomorra, quarto volume de Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust.

O Narrador está em uma recepção na casa do Príncipe de Guermantes, procurando algum convidado que o apresente ao anfitrião. Uma mulher vem cumprimentá-lo, chama-o pelo nome, mas ele não consegue se lembrar do nome dela por algum tempo. De repente, o nome surge: Sra. de Arpajon. O Narrador divaga sobre o funcionamento da memória e o processo de tentarmos nos lembrar de algo. Do texto de Proust:

«“Tudo isto”, dirá o leitor, “nada me informa da falta de solicitude dessa dama; mas, já que demorou tanto tempo, deixe-me, senhor autor, fazê-lo perder mais um minuto para dizer que é lamentável que, jovem como o sr. era (ou como era o seu herói, caso não seja o sr.) já tivesse tão pouca memória a ponto de não poder se lembrar do nome de uma dama que conhecia tão bem.” De fato é lamentável, senhor leitor. E, mais triste do que o sr. pensa, quando se sente aí o anúncio do tempo em que os nomes e as palavras desaparecerão da zona clara do pensamento, e onde será preciso renunciar para sempre a dizer para nós mesmos os nomes daqueles a quem melhor conhecemos. É lamentável, de fato, que desde a juventude se necessite desse trabalho para reencontrar nomes que se conhecem bem. Mas, se essa deficiência só ocorresse quanto aos nomes mal conhecidos, muito naturalmente esquecidos, e de que ninguém se dá ao trabalho de tentar recordar, tal deficiência não deixaria de ter suas vantagens. “E quais são, se me faz o favor?” Bem, meu senhor, é que só o mal faz a gente reparar e aprender, permitindo decompor os mecanismos que, sem isso, não conheceríamos. Um homem que todas as noites tomba como uma massa no seu leito e não vive mais até o momento de acordar e se erguer, por acaso esse homem pensará alguma vez em fazer, se não grandes descobertas, ao menos pequeninas observações sobre o sono? Mal sabe ele se dorme. Um pouco de insônia não é inútil para dar valor ao sono, projetar alguma luz sobre essa noite. Uma memória sem falhas não é um excitante muito poderoso para estudar os fenômenos da memória. “Enfim, a Sra. de Arpajon o apresentará ao príncipe?” Não, mas cale-se e deixe-me retomar minha narrativa.»

Leituras recentes

Não estou tendo tempo para escrever sobre os livros que li ultimamente. Terminei O Caminho de Guermantes, terceiro volume de Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust. Quero fazer um post com trechos do final do livro, mas não sei quando vou conseguir.

Li Como Vencer um Debate sem Precisar Ter Razão em 38 Estratagemas (Dialética Erística), de Arthur Schopenhauer, comentado por Olavo de Carvalho. Também merece um bom post.

E o melhor livro que li no ano passado, Less Than One, de Joseph Brodsky, merece alguns posts.

Enquanto nada disso sai, vou publicar um trecho de Sodoma e Gomorra, quarto volume de Em Busca do Tempo Perdido.


sábado, 1 de março de 2014

Para a Anistia Internacional, lei antiterror "criminaliza a liberdade de expressão"

A Anistia Internacional emitiu uma Ação Urgente em 24/02/2014 (AU 41/14), pedindo que seus membros escrevam a autoridades brasileiras para solicitar modificações no Projeto de Lei 499/2013, que tipifica o crime de terrorismo. Aqui, em inglês, e aqui, em português.

A Constituição brasileira menciona a palavra "terrorismo" em dois lugares, nos Artigos 4º e 5º. O Artigo 4º diz:

“Art. 4º A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios:
(…)
VIII – repúdio ao terrorismo e ao racismo;”

E o Artigo 5º:

“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(…)
XLIII – a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem;”

Isso é tudo o que a legislação brasileira tem sobre o assunto. O crime de terrorismo nunca foi tipificado e, portanto, não pode ser punido. Casos como os incêndios de ônibus ou os crimes do PCC têm de ser tratados como homicídios, danos ao patrimônio público ou outras figuras do Código Penal, mas não como o que realmente são: terrorismo.

Depois das manifestações de junho e, principalmente, depois do assassinato do cinegrafista Santiago Andrade, o Congresso Nacional retomou essa discussão, com a apresentação do PL 499/2013 do Senado. O texto está aqui. Destaco a definição de terrorismo:

“Terrorismo
Art. 2º Provocar ou infundir terror ou pânico generalizado mediante ofensa ou tentativa de ofensa à vida, à integridade física ou à saúde ou à privação da liberdade de pessoa.”

(…)

“Terrorismo contra coisa
Art. 4º Provocar ou infundir terror ou pânico generalizado mediante dano a bem ou serviço essencial.”

Pois bem, para a Anistia Internacional, esses dois artigos “podem ser usados para restringir ilegalmente os direitos humanos” e “criminalizam a liberdade de expressão”. Para a organização, desde junho, no Brasil, “protestos foram duramente reprimidos pela polícia, que se utilizou excessiva e desnecessariamente da força em muitos casos, assim como algumas vezes deteve manifestantes ilegalmente. Isso levou ao aumento da violência e dos confrontos com a polícia, durante os quais diversas pessoas foram feridas. As leis já existentes que têm sido utilizadas para imputar crimes a participantes de protestos, como a Lei de Organizações Criminosas e a Lei de Segurança Nacional, têm resultado em diversas pessoas sendo criminalmente acusadas por nada mais do que o exercício legal do direito humano a participação pacífica em protestos.”

No texto em inglês, eles têm a coragem de duvidar da versão oficial para a morte de Santiago Andrade. O texto diz que o cinegrafista “died on 13 February after being injured allegedly by a sort of firework launched by two protesters” (morreu em 13 de fevereiro, depois de ser ferido supostamente por um tipo de fogos de artifício disparado por dois manifestantes). Na versão em português, foi retirada a palavra “supostamente”.

Gostaria de saber qual dos direitos humanos permite “ofensa ou tentativa de ofensa à vida, à integridade física ou à saúde ou à privação da liberdade de pessoa”, ou “dano a bem ou serviço essencial”

É doloroso para mim escrever isso. Fui membro da Anistia Internacional e coordenei a Rede de Ação Urgente no Brasil entre 2000 e 2001. Parte dessa história está contada aqui. Acho que a Anistia Internacional perdeu o rumo e se esqueceu de seus objetivos originais de defender os direitos humanos. O que ela defende hoje é uma agenda que, de direitos humanos, só tem o vocabulário. Ainda recebia e-mails da organização. Pedi para cancelarem o envio. Não quero ser membro de uma entidade que considera o terrorismo um direito humano.