quinta-feira, 11 de julho de 2013

Uma noite no hospital

Meu pai faleceu de pneumonia, depois de ter ficado internado por pouco mais de um mês. O motivo da internação foi uma queda.

Ele tinha 80 anos e tinha diabetes, mas estava bastante forte e ativo. Foi mexer numa luminária na frente de casa. Ele sempre dizia que a pessoa não cai da escada; a escada cai e derruba a pessoa. Por isso, a escada devia sempre estar bem escorada. Certamente, não seguiu sua própria recomendação. Ao perceber que a escada estava se movendo, tentou descer. Não deu tempo. Caiu de três metros de altura e quebrou a bacia.

Passei uma noite com ele no hospital. Cheguei no fim da tarde. Ficamos conversando muito tempo, principalmente sobre as crianças e sobre livros. Contei que estava lendo Less than One, de Joseph Brodsky. Fiz um resumo de Um Discurso Inaugural. Sei que ele gostaria de ter lido esse texto tão impressionante, mas fico feliz por essa conversa. Ligamos para casa e ele falou com minha esposa. Infelizmente, acabou não falando com os netos. Também tentei ligar para minha tia, irmã dele, mas não consegui completar a ligação.

Estávamos esperando uma tomografia, que acabou sendo feita por volta de onze horas. Houve uma preparação de mais de uma hora, em que ele deveria tomar sete copos de contraste. Depois do segundo, vomitou e acabou não tomando mais. Conversamos sobre o paradoxo de Russell. Como meu pai estava preocupado com o incômodo da tomografia, sugeri que ele pensasse em um poema. Ele sempre gostou do Crepúsculo Sertanejo, de Castro Alves, que aprendeu no ginásio, com o Pe. Bruno Welter. É um dos poucos professores de quem meu pai se lembrava com carinho. Procurei o texto na Internet, no celular. Meu pai recitou o poema todo, às vezes errando alguma coisa, que eu corrigia. Fez isso mais de uma vez. Não sei se ele pensou no poema durante a tomografia, que durou uns vinte minutos.

Quando saiu, não era a mesma pessoa com quem eu estava conversando antes. Entendo que fossem os sintomas da infecção se manifestando. Ele disse:
— Marcelo, aconteceu alguma coisa. Acho que alguém pulou na frente do trem. Isso sempre acontece, nosso vizinho maquinista já atropelou umas cinco pessoas. Dá muito trabalho recolher o corpo. Quando a gente passar por cima do viaduto, veja se você consegue enxergar o que aconteceu.
— Pai, a gente está no hospital. Não tem nenhum trem por aqui.
— Ah, é mesmo.

Voltamos para a enfermaria. Ele dizia:
— Eu preciso ir para a casa paroquial. Os padres estão construindo a igreja nova. Precisa cortar o mato, passar o facão. Quem vai dirigir o caminhão com o material de construção?

Passava um enfermeiro e ele perguntava:
— É você que vai dirigir o caminhão? Você vai me levar?

O enfermeiro ria. Meu pai queria trocar de roupa.

— Eu não posso ir para lá com essas roupas. Eu preciso me vestir.
— Pai, a gente não vai hoje. A gente vai amanhã. É muito tarde agora. Dorme um pouco. Deixa que eu resolvo.
— Marcelo, eu não quero passar a noite nesse galpão. Preciso ir para a casa paroquial. Os padres estão esperando. Me ajuda. Você pode me carregar?
— Pai, dorme um pouco. Fica tranquilo.

Não ficava. Tentou rasgar as roupas, começou a mexer no soro, agarrava na grade esquerda da cama com a mão direita e virava o corpo para cima da fratura. Se estivesse em sã consciência, esse movimento deveria doer muito. Ele não parecia sentir nenhuma dor.

— Pai, você vai se machucar. Você vai se machucar.

Ele foi ficando cada vez mais irritado e agressivo. Pedi ajuda aos enfermeiros. Deram um comprimido a ele. Pareceu que ele se acalmou e dormiu. Eram duas da manhã. Saí para tomar um café.

Quando voltei, ele estava acordado, sujo e com a roupa rasgada. O enfermeiro estava do lado dele, mas tinha deixado ele se rasgar. Não saí mais, até de manhã. Às vezes ele se acalmava. Às vezes tentava arrancar o soro ou virar o corpo. Eu não deixava e ele brigava comigo. Assim foi até umas cinco e meia, quando finalmente chamaram um médico. Foi prescrito um sedativo e determinado que se prendessem as mãos do meu pai, se necessário.

Dormiu por quase dois dias. Ainda consegui encontrá-lo acordado e conversando depois disso. Eu tinha dito ao meu filho que o vovô estava dormindo o tempo todo e ele tinha entendido que meu pai estava na nossa casa. Pediu para ir até o quarto ver o vovô dormindo. Expliquei que ele estava dormindo no hospital.

Contei essa história ao meu pai e ele chorou. Nesse dia, ele disse muitas coisas boas, agradeceu pelo cuidado que estávamos tendo, estava muito emotivo. A última coisa que me pediu foi que eu procurasse citações das Metamorfoses, de Ovídio.

Passaram-se mais três semanas. Por quase todo esse tempo, ele não estava consciente.

The rest is silence.

sábado, 6 de julho de 2013

Crepúsculo Sertanejo, de Castro Alves

A tarde morria! Nas águas barrentas
As sombras das margens deitavam-se longas;
Na esguia atalaia das árvores secas
Ouvia-se um triste chorar de arapongas.
A tarde morria! Dos ramos, das lascas,
Das pedras, do líquen, das heras, dos cardos,
As trevas rasteiras com o ventre por terra
Saíam, quais negros, cruéis leopardos.
A tarde morria! Mas funda nas águas
Lavava-se a galha do escuro ingazeiro…
Ao fresco arrepio dos ventos cortantes
Em músico estalo rangia o coqueiro.
Sussurro profundo! Marulho gigante!
Talvez um — silêncio!… Talvez uma — orquestra…
Da folha, do cálix, das asas, do inseto…
Do átomo — à estrela… do verme — à floresta!…
As garças metiam o bico vermelho
Por baixo das asas, — da brisa ao açoite —;
E a terra na vaga de azul do infinito
Cobria a cabeça co’as penas da noite!
Somente por vezes, dos jungles das bordas
Dos golfos enormes, daquela paragem,
Erguia a cabeça surpreso, inquieto,
Coberto de limos — um touro selvagem.
Então as marrecas, em torno boiando,
O voo encurvavam medrosas, à toa…
E o tímido bando pedindo outras praias
Passava gritando por sobre a canoa!…

Meu pai