quinta-feira, 26 de julho de 2012

Albert Einstein - Pensamento Político e Últimas Conclusões

Estou lendo "Albert Einstein - Pensamento Político e Últimas Conclusões", com seleção e prefácio de Mário Schenberg, publicado em 1983.

Comprei num sebo por R$1,00!!!

É interessante como um dos maiores cérebros que já existiu, vivendo numa época trágica (a maioria dos textos é das décadas de 30 e 40), tem tantas opiniões políticas simplistas. Alguns dos textos poderiam ter sido escritos pelo Gilberto Dimenstein...

sábado, 14 de julho de 2012

Per vivere tranquilli occorrono cinque cose

A Sonata de Vinteuil - III

Neste trecho de "Em Busca do Tempo Perdido", de Marcel Proust, já no segundo volume, "À Sombra das Moças em Flor", o protagonista ouve o trecho da Sonata de Vinteuil pela primeira vez, tocado por Odette.

Mas em geral, na maioria das vezes, não ficávamos em casa e íamos passear. Às vezes, antes de ir se vestir, a Sra. Swann sentava-se ao piano. Suas belas mãos, saindo das mangas róseas ou brancas, muitas vezes de cores bastante vivas, do seu chambre de crepe da China, alongavam as falanges sobre o piano com a mesma melancolia que estava em seus olhos, mas não no coração. Foi num desses dias que lhe ocorreu tocar para mim o trecho da Sonata de Vinteuil onde se acha a pequena frase que Swann amara tanto. Mas, as mais das vezes não se entendia nada, pois é uma música meio complicada para quem a ouve pela primeira vez. Entretanto, quando mais tarde me foi tocada duas ou três vezes esta sonata, achei que a conhecia perfeitamente. Assim, não é errado dizer "ouvir pela primeira vez". Se a gente, de fato, como julga, não entendeu nada na primeira audição, a segunda e a terceira seriam outras tantas primeiras e não haveria razão para que se compreenda algo a mais na décima. Provavelmente, o que falta na primeira vez não é a compreensão, e sim a memória. Pois a nossa, relativamente à complexidade das impressões com que se defronta enquanto ouvimos, é ínfima, tão breve quanto a memória de um homem que, ao dormir, pensa mil coisas que logo esquece, ou de um homem meio reduzido à infância, que não se recorda no minuto seguinte daquilo que acabamos de lhe dizer. A memória não é capaz de nos fornecer imediatamente a lembrança dessas impressões múltiplas. Mas esta lembrança se forma pouco a pouco na memória e, no tocante às obras que ouvimos duas ou três vezes, estamos como o colegial que releu diversas vezes antes de dormir um ponto que achava não saber e o recita de cor na manhã seguinte. Apenas, eu ainda não ouvira aquela sonata até esse dia, e onde Swann e sua mulher viam uma frase distinta, esta se achava tão longe de minha percepção nítida quanto um nome que a gente procura recordar e em cujo lugar só se encontra o vazio absoluto, vazio do qual, uma hora mais tarde, sem que se pense nelas, brotam por si mesmas, de um só golpe, as sílabas antes solicitadas em vão. E não apenas a gente não retém de imediato as obras verdadeiramente raras, porém até no íntimo de cada uma delas -- isto me aconteceu no caso da Sonata de Vinteuil -- são as partes menos preciosas que percebemos em primeiro lugar. De modo que eu não me enganava apenas ao pensar que a obra não me reservava mais nada (o que fez com que eu ficasse muito tempo sem procurar ouvi-la) tão logo a Sra. Swann executou a frase mais famosa (eu era tão estúpido a esse respeito como aqueles que já não esperam ter surpresas diante da igreja de São Marcos, em Veneza, porque a fotografia lhes fez saber a forma de seus domos). Muito mais, porém; mesmo quando ouvi a sonata do princípio ao fim, ela me permaneceu quase totalmente invisível, como um monumento do qual a bruma ou a distância não deixam perceber senão partes diminutas. Daí a melancolia que se liga ao conhecimento de tais obras, como a tudo que se realiza no tempo. Quando o que era o mais oculto na Sonata de Vinteuil se desvelou pra mim, então, arrastado pelo hábito para fora da minha sensibilidade, começava a escapar-me, a fugir-me, o que eu distinguira e preferira da primeira vez. Por só ter podido amar em tempos sucessivos tudo aquilo que a sonata me trazia, nunca a possuí completamente: ela assemelhava-se à vida. Porém, menos enganosas que a vida, estas grandes obras-primas não começam por doar o que possuem de melhor. Na Sonata de Vinteuil, as belezas que se descobrem mais rapidamente são também as que cansam mais cedo e sem dúvida pela mesma razão, ou seja, que elas diferem menos daquilo que já se conhece. Mas, quando estas são afastadas, resta-nos amar a tal frase, cuja ordenação, por demais nova para oferecer ao nosso espírito nada além de confusão, a mantivera indiscernível e conservara intacta; e aí então, ela, diante da qual passávamos todos os dias sem o saber e que se reservara, que pelo poder de sua exclusiva beleza se tornara invisível e permanecera desconhecida, ela nos chega por último. Mas também a deixaremos por último. E iremos amá-la durante muito mais tempo que às outras, pois teremos levado muito mais tempo até a amar. Ademais, esse tempo de que precisa um indivíduo -- como me foi preciso a respeito dessa Sonata -- para penetrar numa obra um pouco profunda, é a súmula e como que o símbolo dos anos, por vezes dos séculos, que se escoam antes que o público possa amar uma obra-prima verdadeiramente nova. Talvez por isso o homem de gênio, para evitar as incompreensões da turba, considere que, visto faltar aos contemporâneos a necessária distância, as obras escritas para a posteridade só deveriam ser lidas por ela, como certas pinturas que avaliamos incorretamente de muito perto. Mas na realidade, toda precaução desprezível para evitar os falsos julgamentos é inútil, eles não podem ser evitados. O que faz com que uma obra de gênio dificilmente seja admirada de imediato é que aquele que a escreveu é extraordinário, poucas pessoas se lhe assemelham. Sua própria obra é que, fecundando os raros espíritos capazes de compreendê-la, os fará crescer e se multiplicar. Foram os próprios quartetos de Beethoven (os de número XII, XIII, XIV e XV) que levaram cinqüenta anos para fazer nascer e crescer o público dos quartetos de Beethoven, realizando assim, como todas as obras-primas, um progresso senão do valor dos artistas, pelo menos na sociedade dos espíritos, hoje largamente composta daquilo que era impensável quando a obra-prima apareceu, ou seja, criaturas capazes de amá-la. O que denominamos posteridade é a posteridade da obra. É necessário que a obra (não levando em conta, para simplificar, os gênios que na mesma época podem, paralelamente, preparar para o futuro um melhor o público do qual os outros gênios se beneficiarão) crie ela mesma a sua posteridade. Se, no entanto, a obra era mantida em segredo, e se fosse apenas conhecida pela posteridade, esta, quanto a tal obra, não seria a posteridade e sim uma assembléia de contemporâneos que simplesmente tivessem vivido cinqüenta anos mais tarde. Assim, é preciso que o artista -- e era o que havia feito Vinteuil --, se deseja que sua obra possa seguir seu caminho, lance-a, onde houver bastante profundidade, em pleno e longínquo futuro. E, no entanto, esse tempo a vir, verdadeira perspectiva das obras-primas, se não levá-lo em conta é o erro dos maus juízes, levá-lo em conta é por vezes o perigoso escrúpulo dos bons. Sem dúvida, é fácil imaginar, numa ilusão análoga à que uniformiza todas as coisas no horizonte, que todas as revoluções havidas até agora na pintura ou na música respeitavam todavia certas regras, e o que está imediatamente diante de nós, impressionismo, procura da dissonância, emprego exclusivo da gama chinesa, cubismo, futurismo, difere de modo ultrajante daquilo que o precedeu. É que aquilo que o precedeu é considerado sem levar em conta que uma longa assimilação o converteu para nós numa matéria variada, sem dúvida, mas afinal de contas homogênea, onde Victor Hugo se avizinha de Molière. Imaginemos apenas os disparates chocantes que nos apresentariam, se não levássemos em conta o tempo vindouro e as mudanças que ele acarreta, determinado horóscopo de nossa própria idade madura feito diante de nós durante a nossa adolescência. Apenas, nenhum horóscopo é verdadeiro e sermos obrigados, no caso de uma obra de arte, a computar em sua beleza o fator tempo mescla ao nosso julgamento algo tão casual e, por isso, tão desprovido de interesse verdadeiro como toda profecia cuja não-realização não implicará de forma alguma a mediocridade de espírito do profeta, pois o que chama à existência as possibilidades, ou dela as exclui, não é forçosamente da competência do gênio; pode-se ter tido gênio e não haver acreditado nas estradas de ferro nem nos aviões, ou, sendo grande psicólogo, na falsidade de uma amante ou de um amigo, cujas traições os mais medíocres conseguiram prever.

A Sonata de Vinteuil - II

Mais um trecho de "Em Busca do Tempo Perdido", de Marcel Proust. Swann ouve a Sonata de Vinteuil inteira.

Mas o concerto recomeçou e Swann compreendeu que não mais poderia sair antes do final desse novo número do programa. Sofria por estar encerrado no meio dessas pessoas, cuja estupidez e ridicularias o magoavam tanto mais dolorosamente que, ignorando o seu amor, incapazes, se o tivessem conhecido, de se interessar por ele e proceder de outra forma que não dar um sorriso, como se se tratasse de algo pueril, ou de lastimá-lo, como se fosse uma loucura, faziam-no aparecer sob o aspecto de um estado subjetivo que para ele não existia, do qual coisa alguma exterior lhe afirmasse a sua realidade; sofria principalmente, e a ponto de que até o som dos instrumentos lhe dava vontade de chorar, por prolongar seu exílio naquele lugar aonde Odette jamais viria, onde ninguém nem nada a conhecia, de onde ela estava inteiramente ausente.


Mas, de súbito, foi como se ela tivesse entrado, e tal aparição foi para ele um sofrimento tão dilacerante que teve de levar a mão ao peito. É que o violino se erguera a notas altas onde permanecia, como que à espera, espera que se prolongava sem que ele deixasse de sustentá-las, na exaltação em que estava de já perceber o objeto de sua espera, que se aproximava, e com um esforço desesperado para tentar durar até a sua chegada, de acolhê-lo antes de morrer, de lhe manter, ainda por um momento, com todas as suas últimas forças, o caminho aberto para que ele pudesse passar, como a gente sustém uma porta, que sem isso cairia. E antes que Swann tivesse tempo de compreender e dizer a si próprio: "É a pequena frase da sonata de Vinteuil, não ouçamos!" -- todas as lembranças do tempo em que Odette o amava, e que até esse dia ele conseguira manter invisíveis nas profundezas de seu ser, iludidas por esse brusco luzeiro do tempo de amor que julgaram estar de volta, tinham despertado e, em vôo rápido, subiram para lhe cantar perdidamente, sem piedade pela sua desgraça atual, os refrões esquecidos da felicidade.


Em vez das expressões abstratas "tempo em que eu era feliz", "tempo que eu era amado", que ele muitas vezes pronunciara até então e sem muito sofrimento, pois sua inteligência só encerrara, do passado, pretensos extratos que não conservavam nada dele, Swann reencontrou tudo aquilo, que dessa felicidade perdida, fixara para sempre a essência volátil e específica; reviu tudo, as pétalas nivosas e frisadas do crisântemo que ela lhe lançara no carro, e que ele conservara entre os lábios -- o endereço, em relevo, da Maison Dorée na carta em que ele havia lido: "Minha mão treme tanto enquanto escrevo" -- a aproximação das sobrancelhas dela quando lhe dissera com ar súplice: "Não levará muito tempo para me fazer sinal?"; sentiu o cheiro do ferro do cabeleireiro, com o qual mandava alisar a escovinha enquanto Lorédan ia buscar a pequena operária, as chuvas tempestuosas que tinham caído com tanta freqüência naquela primavera; o retorno glacial na sua vitória, ao luar, todas as malhas de hábitos mentais, de impressões sazonais, de reações cutâneas, que haviam estendido numa série de semanas uma rede uniforme na qual seu corpo se achava preso. Naquele momento, Swann satisfazia uma curiosidade voluptuosa ao conhecer os prazeres das pessoas que vivem pelo amor. Achara que poderia parar por aí, que não mais seria obrigado a lhe conhecer os sofrimentos; e como agora o encanto de Odette representava pouco para ele, diante desse terror tremendo que o prolongava como um halo perturbador, essa angústia imensa de não saber o que ela havia feito em todos os momentos, de não possuí-la sempre e em toda parte! Infelizmente, ele se recordava do tom em que ela exclamara: "Mas poderei vê-lo sempre, estou sempre livre!", ela que já não o seria nunca mais! O interesse, a curiosidade que ela tivera pela vida dele, o desejo apaixonado de que ele lhe fizesse o favor -- aliás temido por ele, naquele tempo, como causa de transtornos aborrecidos -- de deixá-la penetrar em sua vida; como ela fora obrigada a lhe implorar para que ele se deixasse conduzir à casa dos Verdurin; e quando ele a fazia vir a sua casa uma vez por mês, como fora necessário, antes que se deixasse vencer, que ela lhe repetisse que delícia seria aquele costume de se verem todos os dias, coisa com que ela sonhava então, ao passo que para ele só lhe parecia uma preocupação fastidiosa, costume que depois a desgostara e com o qual rompera em definitivo, ao passo que ela se lhe tornara uma necessidade tão invencível e dolorosa. Não saberia dizer o quanto fora sincero quando, na terceira vez em que a vira, como ela lhe repetisse: "Mas por que não me deixa vir mais vezes seguidas?", dissera-lhe rindo, com um galanteio: "Por medo de sofrer." Agora, infelizmente, acontecia ainda que ela lhe escrevesse de um restaurante ou de um hotel, num papel timbrado; mas era como letras de fogo que o queimavam. "Este escrito do Hotel Vouillemont? Que é que ela pode ter ido fazer ali? Com quem? Que aconteceu?" Lembrou-se dos bicos de gás que eram apagados no bulevar dos Italianos quando a encontrara, contra toda expectativa, em meio às sombras errantes, naquela noite que lhe parecera quase sobrenatural e que, de fato -- noite de um tempo em que nem precisava se indagar se não a teria contrariado ao procurá-la, ao encontrá-la, de tanta certeza que tinha de que ela não teria maior alegria do que vê-lo e voltar para casa com ele -- pertencia a um mundo misterioso ao qual não se pode regressar jamais depois que suas portas se fecharam. E Swann percebeu, imóvel diante dessa felicidade revivida, um desgraçado que lhe causou piedade porque o não reconheceu de imediato, se bem que teve de baixar os olhos para que não vissem que estavam cheios de lágrimas. Era ele próprio.


Quando compreendeu aquilo, sua piedade cessou, mas teve ciúmes do outro eu que Odette havia amado, teve ciúmes daqueles de quem dissera muitas vezes, sem muito sofrer, "ela ama-os talvez", agora que havia mudado a vaga idéia de amar, na qual não existe amor, pelas pétalas do crisântemo e o "reservado" da Maison d'Or, que estavam cheios de amor. Depois, como seu sofrimento se tornasse muito acerbo, passou a mão pela testa, deixou cair o monóculo, enxugou as lentes. E, sem dúvida, se se visse naquele momento, o teria ajuntado à coleção daqueles cujos monóculos examinara, o monóculo que afastava como a um pensamento importuno e sobre cuja superfície embaciada experimentava apagar as preocupações com um lenço.
Existem no violino -- se, sem ver o instrumento, não podemos ligar o que ouvimos à sua imagem, a qual modifica a sonoridade -- acentos que lhe são tão comuns a certas vozes de contralto, que temos a ilusão de que uma cantora foi acrescentada ao concerto. Erguemos os olhos, vemos somente os estojos, preciosos como caixas chinesas, mas, por instantes, ainda somos enganados pelo chamado ilusório das sereias; às vezes, também, julgamos ouvir um gênio cativo que se debate no fundo da sábia caixa, feiticeira e fremente, como um demônio numa pia de água benta; às vezes, enfim, é no ar que o sentimos, como um ser sobrenatural e puro que passa desenrolando sua mensagem invisível.

Como se os instrumentistas muito menos tocassem a pequena frase que executavam os ritos exigidos por ela para que aparecesse, e procediam aos sortilégios necessários para obter e prolongar alguns instantes o prodígio de sua evocação, Swann, que não podia mais vê-la, como se ela pertencesse a um mundo ultravioleta, e como que desfrutava do frescor de uma metamorfose na cegueira temporária que o atingia ao se aproximar dela, Swann a sentia presente, como uma divindade protetora e confidente de seu amor, e que, para poder chegar até ele no meio da multidão e tomá-lo à parte para lhe falar, adotara aquele disfarce de uma aparência sonora. E enquanto ela passava, leve, calmante e murmurada como um perfume, dizendo-lhe o que tinha para dizer, e de quem ele escrutava todas as palavras, lamentando vê-las se evolarem tão depressa, Swann fazia involuntariamente com os lábios o movimento de beijar na passagem o corpo harmonioso e fugidio. Já não se sentia sozinho e exilado, visto que ela, que a ele se dirigia, lhe falara a meia voz de Odette. Pois, Swann já não tinha, como outrora, impressão de que Odette e ele eram ignorados da pequena frase. E ela fora tantas vezes testemunha de suas alegrias! É verdade que também muitas vezes o havia advertido da fragilidade dessas alegrias. E embora naquele tempo ele adivinhasse o sofrimento no sorriso, na sua entonação límpida e desencantada, hoje achava-lhe antes a graça de uma resignação quase alegre. Desses desgostos de que ela falava antigamente e que ele a via arrastar sorrindo em sua trajetória sinuosa e veloz, sem ser atingida por eles, desses desgostos que agora se haviam tornado os seus, sem que tivesse a esperança de jamais se livrar deles, ela parecia lhe dizer como outrora de felicidade: "Que é isto? Tudo isto não é nada." E o pensamento Swann dirigiu-se, pela primeira vez, a um impulso de piedade e ternura, para aquele Vinteuil, aquele irmão desconhecido e sublime que também devia ter sofrido tanto; como teria sido a sua vida? Do fundo de que mágoas pudera extrair essa força de um deus, essa potência ilimitada de criação? Quando era a pequena frase que lhe falava da vaidade de seus sofrimentos, Swann achava doce essa mesma sabedoria que, no entanto, há pouco lhe parecera intolerável quando acreditava lê-la nos rostos dos indiferentes que consideravam o seu amor como uma divagação sem importância. É que, ao contrário, a pequena frase, fosse qual fosse a opinião que pudesse ter sobre a brevidade desses estados de alma, via ali algo, não como o faziam todas essas pessoas, menos sério que a vida positiva, mas, opostamente, tão superior a ela que somente isso valia a pena ser expresso. Tais encantos de uma tristeza íntima era o que ela tentava imitar, recriar, e até mesmo a essência deles que, no entanto, é a de serem incomunicáveis e de parecerem frívolos a todo aquele que não os sente, a frase a captara e tornara visível. De modo que ela fazia confessar seu preço e desfrutar sua doçura divina por todos esses mesmos assistentes -- bastando que tivessem um mínimo de inclinação para a música -- que a seguir os desconheceriam na vida, em cada amor particular que vissem nascer perto deles. Sem dúvida, a forma sob a qual os codificara não podia se resolver em raciocínios. Porém, fazia mais de um ano que, revelando a si mesmo tantas riquezas de sua alma, o amor à música nascera-lhe, ao menos por algum tempo, e Swann considerava os temas musicais como verdadeiras idéias, de um mundo diverso, de uma outra ordem, idéias envoltas em trevas, desconhecidas, impenetráveis à inteligência, mas que nem por isso são menos distintas umas das outras, desiguais de valor e de significado entre si. Quando, depois do sarau dos Verdurin, mandara tocar de novo a pequena frase, procurava descobrir como, à maneira de um perfume ou de uma carícia, ela o aliciava e envolvia, e percebera que aquela impressão de doçura retraída e friorenta era devida à leve separação entre as cinco notas que a compunham e à evocação constante de duas delas; mas, na realidade, sabia que raciocinava assim não sobre a própria frase; porém, sobre simples valores, que substituíam, para comodidade de sua inteligência, a entidade misteriosa que ele havia percebido, antes de conhecer os Verdurin, naquela recepção onde ouvira a sonata pela primeira vez. Sabia que a própria lembrança do piano falseava ainda o plano em que via as coisas relativas à música, que o campo aberto ao músico não é um teclado mesquinho de sete notas, mas um teclado incomensurável, ainda quase totalmente desconhecido, em que apenas aqui e ali, separados por espessas trevas inexploradas, alguns dos milhões de toques de ternura, de paixão, de coragem, de serenidade que o compõem, cada um tão diferente dos outros como um universo de outro universo, foram descobertos por alguns grandes artistas que nos prestam o serviço, despertando em nós o correspondente do tema que encontraram, de nos mostrar quanta riqueza, quanta variedade, sem que saibamos, oculta essa grande noite impenetrada e desencorajadora da nossa alma que tomamos por vazio e nada. Vinteuil fora um desses músicos. Em sua pequena frase, conquanto apresentasse à razão uma superfície obscura, sentia-se um conteúdo tão consistente, tão explícito, ao qual dava uma força tão nova, tão original, que aqueles que a tivessem ouvido a conservariam em si no mesmo nível das idéias da inteligência. Swann se reportava a ela como a uma concepção do amor e da felicidade, cuja particularidade ele sabia logo, e muito bem, de que se tratava, assim como o sabia quanto à "Princesa de Cieves" ou ao "René", quando o seu nome se lhe apresentava à memória. Mesmo quando não pensava na pequena frase, ela existia latente em seu espírito, na mesma condição de certas outras noções sem equivalente, como as noções de luz, de som, de relevo, de volúpia física, que são as ricas posses com que se diversifica e ganha expressão o nosso domínio interior. Talvez as percamos, talvez elas se apaguem, se volvermos ao nada. Mas enquanto vivermos, e assim como ocorre quanto a qualquer objeto real, não podemos fazer de conta que não as conhecemos, como não podemos, por exemplo, duvidar da luz da lâmpada que acendemos diante dos objetos metamorfoseados de nosso quarto, de onde se escapou até a lembrança da escuridão. Por esse fato, a frase de Vinteuil, como determinado tema do "Tristão", por exemplo, que também nos representa uma certa aquisição sentimental, havia esposado nossa condição mortal, adquirido algo de humano que era bem tocante. Sua sorte estava ligada ao futuro, à realidade da nossa alma, de que ela era um dos ornatos mais particulares, mais bem diferenciados. Talvez esse nada é que seja verdadeiro, e todo o nosso sonho é inexistente, mas então sentimos que é necessário que semelhantes frases musicais, essas noções que existem, relativas a elas, também não sejam coisa alguma. Morreremos, mas temos como reféns essas prisioneiras divinas, que seguirão nosso destino. E, com elas, a morte possui algo de menos amargo, de menos inglório, talvez até de menos provável.

Portanto, Swann não estava errado em acreditar que a frase da sonata existisse realmente. Certo, humana sob este ponto de vista, ela no entanto, pertencia a uma ordem de criaturas sobrenaturais e que nunca vimos, mas que, apesar disso, reconhecemos deslumbrados quando algum explorador do invisível consegue captar uma, trazê-la do mundo divino a que teve acesso para brilhar por poucos momentos sobre o nosso. Fora o que Vinteuil fizera quanto à pequena frase. Swann sentia que o compositor se contentara, com seus instrumentos musicais, em revelá-la, torná-la visível, seguir e respeitar o desenho com mão tão macia, tão prudente, tão delicada e tão segura que o som se alterava a todo instante, esfumando-se para indicar uma sombra, revivendo quando lhe fosse necessário andar no encalço de um contorno mais arrojado. E uma prova de que Swann não se enganava ao crer na existência real dessa pequena frase, era que todo amador um tanto perspicaz perceberia de imediato a impostura, caso Vinteuil, tendo menos força para ver e reproduzir suas formas, tivesse procurado dissimular, acrescentando aqui e ali traços de sua lavra, as lacunas de sua visão ou a incapacidade de suas mãos.

Ela havia desaparecido. Swann sabia que retornaria no fim do primeiro movimento, depois de um longo trecho que o pianista da Sra. Verdurin sempre saltava. Ali havia idéias admiráveis que Swann não distinguira na primeira audição e que agora percebia, como se elas, no vestíbulo de sua memória, se tivessem desembaraçado do disfarce uniforme da novidade. Swann escutava todos os temas esparsos que entravam na composição da frase, como as premissas na conclusão necessária, assistia à sua gênese. "Oh, audácia tão genial, talvez", dizia consigo, "como a de um Lavoisier ou de um Ampère, audácia de um Vinteuil movimentando, descobrindo as leis secretas de uma força desconhecida, conduzindo através do inexplorado, rumo ao único fim possível, a aparelhagem invisível em que confia e que não verá jamais!" Que belo diálogo Swann ouviu entre o piano e o violino no princípio do último trecho! A supressão das palavras humanas, longe de deixar reinar ali a fantasia, como se poderia crer, eliminara-a; nunca a linguagem falada foi tão inflexivelmente fatal, não conheceu a esse ponto a pertinência das perguntas, a evidência das respostas. Primeiro o piano solitário se queixava, como um pássaro abandonado pela companheira; o violino o ouviu, respondeu-lhe como de uma árvore vizinha. Era como no começo do mundo, como se só existissem eles dois sobre a terra, ou melhor, naquele mundo fechado a tudo o mais, construído pela lógica de um criador, e onde só os dois existiriam para todo o sempre: aquela sonata. Era um pássaro, era a alma incompleta ainda da pequena frase, era uma fada aquele ser invisível e lastimoso cuja queixa o piano a seguir repetia com ternura? Seus gemidos eram tão repentinos que o violinista deveria se precipitar sobre seu arco para recolhê-los. Maravilhoso pássaro! O violinista parecia querer encantá-lo, aprisioná-lo, captá-lo. Já havia passado para sua alma, já a pequena frase evocada agitava, como a de um médium, o corpo verdadeiramente possuído do violinista. Swann sabia que ela ia falar uma vez mais. E tão bem se duplicara a personalidade dele que a espera do instante iminente em que iria se reencontrar diante dela sacudiu-o com um desses soluços que um belo verso, ou uma notícia triste nos provocam, não quando estamos sozinhos, mas quando a comunicamos a amigos nos quais nos sentimos refletidos como uma outra pessoa cuja provável emoção os enternece. Ela reapareceu, mas desta vez para suspender-se no ar e tocar por um momento sozinha, como que imóvel, e expirar depois. Portanto, Swann não perdia nada desse tempo tão curto em que ela se prolongava. Ela ainda estava ali como uma bolha irisada que se mantém. Assim como um arco-íris, cujo brilho se enfraquece, diminui, depois aumenta e, antes de se extinguir, se exalta por um instante como ainda não o fizera: às duas cores que até então deixara transparecer, acrescentou outras cordas matizadas, todas as do prisma, fazendo-as cantarem. Swann não ousava se mexer e gostaria de manter tranqüilas também as outras pessoas, como se o menor movimento houvesse podido comprometer o prestígio sobrenatural, delicioso e frágil que estava prestes a se desvanecer. Para dizer a verdade, ninguém sonhava em falar. A palavra inefável de um único ausente, talvez de um morto (Swann não sabia se Vinteuil ainda era vivo), evocando-se acima dos ritos daqueles oficiantes, bastava para manter em xeque a atenção de trezentas pessoas e transformava o estrado em que uma alma era daquele modo evocada num dos mais nobres altares em que se pudesse realizar uma cerimônia sobrenatural. De forma que, quando por fim a frase se desfez, flutuando em farrapos nos motivos seguintes que já tinham ocupado o seu posto, se Swann, no primeiro momento, se irritou por ver a condessa de Monteriender, célebre por sua ingenuidade, se inclinar para ele a fim de confiar-lhe suas impressões antes mesmo que a sonata estivesse concluída não pôde evitar um sorriso e talvez também achar um sentido profundo, que ela não percebia, nas palavras que empregara. Maravilhada com o virtuosismo dos instrumentistas, a condessa exclamou, dirigindo-se a Swann:

-- É prodigioso, nunca vi nada tão impressionante... -- Mas um escrúpulo de exatidão fê-la corrigir a primeira assertiva e acrescentou com reserva: -- Nada tão impressionante... desde as mesas giratórias!

Audiobooks sobre política e economia na Livraria Cultura

Vou manter o post abaixo pelo histórico, mas a Livraria Cultura não vende mais audiobooks. Mas eles podem ser encontrados no Waterstones.com.


Vejam só o que eu achei na Livraria Cultura...

Depois de ter baixado e ouvido o conteúdo do curso do Cato Institute, fiquei procurando mais material relacionado. Tinha achado este site, com um catálogo maravilhoso. Só que parece que a empresa não existe mais, o site anuncia os produtos em fita cassete (!!!) e você não consegue comprar nada.

Procurei mais um pouco e achei os audiobooks na Amazon e na Barnes & Noble. A B&N tem em MP3, mas não vende para o Brasil. A Amazon vende, mas em formato .aax.

Não é que Livraria Cultura tem todos os audiobooks em MP3? Excelente para atravessar a cidade em dias de trânsito.


Exemplo: Reflections on the Revolution in France e Rights of Man.

A Sonata de Vinteuil - I

Estou lendo "Em Busca do Tempo Perdido", de Marcel Proust, pela segunda vez. A primeira foi há dez anos. Aqui vai um trecho do volume 1, "No Caminho de Swann", sobre a primeira vez que Swann ouve a frase da Sonata de Vinteuil.


Depois que o pianista tocou, Swann foi ainda mais amável com ele do que com as outras pessoas que ali se achavam. Eis a razão: no ano anterior, em uma recepção, ele ouvira uma peça musical tocada ao piano e violino. A princípio admirara a qualidade material dos sons secretos tirados pelos instrumentos, aquilo já fora uma grande satisfação; eis senão quando, por baixo da linha menor do violino, tênue, resistente, densa e dominadora, ele vira de súbito elevar-se, num marulho líqüido, a massa da parte do piano, multiforme, indivisa, plana, entrechocada como a malva agitação das vagas que o luar encanta e memoriza em um dado momento, sem poder distinguir com nitidez um contorno, dar nome ao que lhe agradava, subitamente arrebatado, buscara recolher a frase ou a harmonia -- ele mesmo não o sabia -- que passava e que lhe abria a alma mais largamente, como certos aromas de rosas que circulam no ar úmido da noite têm a propriedade dilatar nossas narinas. Talvez porque não conhecia a música, pudera experimentar uma impressão tão confusa, uma dessas impressões que, no entanto, talvez sejam as únicas puramente musicais, não-extensas, inteiramente originais, irredutíveis a todo gênero diverso de impressões. Uma impressão desse tipo, durante um momento, é por assim dizer "sine materia". E claro que as notas que então ouvimos já se inclinam, segundo a altura e a quantidade, a cobrir diante de nossos olhos superfícies de dimensões variadas, a traçar arabescos, sensações de largura, tenuidade, estabilidade e capricho. Mas as notas desaparecem antes que essas sensações estejam bem formadas em nós para não se submergirem diante daquelas que as notas seguintes ou simultâneas já despertam. E essa impressão continuaria a envolver com sua liqüidez e o seu "fundo" os motivos e por instantes emergem, mal discerníveis, para logo mergulhar e desaparecer, conhecidos apenas pelo prazer particular que proporcionam, impossíveis de descrever, de serem lembrados, denominados, inefáveis -- se a memória, como um operário que trabalha para estabelecer fundações duradouras em meio às ondas, fabricando para nós fac-símiles dessas frases fugitivas, não nos permitisse compará-las às que as sucedem e diferenciá-las. Assim, mal havia expirado a sensação deliciosa que Swann sentira, a sua memória lhe fornecera, de imediato, uma transcrição sumária e provisória, mas sobre a qual já lançara ele os olhos enquanto o trecho continuava a ser tocado, se bem que, quando a mesma impressão voltara de súbito, ela já não era inatingível. Ele lhe concebia a extensão, os grupamentos simétricos, a grafia, o valor expressivo; tinha diante de si essa coisa que já não é mais música pura, que faz parte do desenho, da arquitetura, do pensamento, e que permite recordar a música. Desta vez havia distinguido nitidamente um trecho que se elevava por alguns instantes acima das ondas sonoras. Esse trecho lhe propusera logo volúpias especiais, que nunca imaginara antes de ouvi-lo, e percebia que somente ele lhe podia fazer conhecê-las, e sentiu por aquela frase como que um amor desconhecido.

Num ritmo lento, ela o dirigia primeiro para um lado, depois para outro, depois mais adiante, para uma felicidade nobre, precisa e ininteligível. E de repente, no ponto em que ela chegara e de onde ele se preparava para segui-la, depois de uma pausa de um segundo, mudava de direção bruscamente e, com um novo movimento, mais rápido, miúdo, permanente, melancólico e suave, ela o arrastava consigo para perspectivas desconhecidas. Depois, desapareceu. Ele desejou apaixonadamente revê-la uma terceira vez. E ela reapareceu, de fato, mas sem lhe falar mais claramente, causando-lhe mesmo uma volúpia menos profunda. Mas, chegando em casa, teve necessidade dela, era como um homem em cuja vida uma mulher, mal entrevista por um momento, acaba de fazer entrar a imagem de uma beleza nova, que dá à sua sensibilidade um valor maior, sem que ele saiba sequer se poderá rever algum dia aquela que ele já ama e da qual ignora até o nome.

Mesmo esse amor por uma frase musical pareceu, por um instante, trazer a Swann a possibilidade de uma espécie de renovação. Decorrera tanto tempo que havia desistido de aplicar sua vida a um objetivo ideal e limitava-a a perseguir satisfações do dia-a-dia, que julgava, sem nunca o afirmar formalmente, que aquilo não se modificaria até sua morte; ainda mais, já não sentindo idéias elevadas no espírito, deixara de crer na realidade delas, sem todavia não poder negá-las de todo. Assim, adquirira o hábito de se refugiar em pensamentos desimportantes que lhe permitissem deixar de lado o fundo das coisas. Assim como não cuidava de indagar de si mesmo se não seria melhor freqüentar a sociedade, mas, em compensação, sabia com certeza que se aceitasse um convite devia comparecer e que, se não fizesse visitas, deveria deixar um cartão, assim também, na conversação, esforçava-se para nunca exprimir sinceramente uma opinião íntima sobre as coisas, e sim de fornecer detalhes materiais que de certa forma valessem por si mesmos, evitando que os avaliasse em toda a medida. Era extremamente preciso quanto a uma receita culinária, quanto à data de nascimento ou morte de um pintor, quanto à nomenclatura de suas obras. Às vezes, apesar de tudo, permitia-se emitir uma opinião sobre uma obra, sobre uma forma de compreender a vida, mas então dava a suas palavras tom irônico, como se não aceitasse inteiramente o que dizia. Ora, como certos valetudinários a quem, de súbito, uma região aonde chegam, um regime diverso, às vezes uma evolução orgânica, espontânea e misteriosa,parecem trazer uma regressão do mal de que sofrem, e começam a admitir a possibilidade inesperada de principiar, ainda que tarde, uma vida completamente diferente, Swann encontrava em si, na lembrança da frase que ouvira, em certas sonatas que mandava tocar ver se a descobria, a presença de uma dessas realidades invisíveis em que deixara de acreditar e às quais, como se a música tivesse tido, sobre a secura moral de que ele sofria, uma espécie de influência eletiva, sentia de novo o desejo e quase a força de consagrar a vida. Porém, não tendo conseguido saber quem era o compositor da melodia que ouvira, não pudera procurá-la e a acabara esquecendo. Encontrara naquela semana algumas pessoas que, como ele, se achavam nessa recepção e as interrogara; mas vários tinham chegado após a música, e outros saíram antes; no entanto, alguns lá estavam durante a execução da peça, mas tinham ido conversar em outro salão, e outros, que ficaram para ouvir, só tinham escutado as primeiras notas. Quanto aos donos da casa, sabiam que se tratava de uma obra nova que os artistas contratados tinham pedido para tocar; tendo estes partido para uma turnê, Swann não pôde saber mais nada. Contava com muitos amigos músicos mas, embora recordasse o prazer especial e intraduzível que lhe dera a frase, vendo diante dos olhos as formas que ela desenhava, era todavia incapaz de cantá-la para eles. Depois, deixou de pensar naquilo.

Ora, somente alguns minutos depois que o jovem pianista começara a tocar na casa da Sra. Verdurin, eis que de repente, depois de uma nota alta longamente sustentada durante dois compassos, Swann viu se aproximar, escapando-se debaixo dessa sonoridade prolongada e tensa, como uma cortina sonora para ocultar o mistério de sua incubação, reconhecendo, secreta, sussurrante e fragmentária, a frase aérea e perfumada que amava. E ela era tão particular, tinha um charme tão individual e que nenhuma outra poderia substituir, que aquilo foi para Swann como se houvesse encontrado num salão amigo, uma pessoa que admirara na rua e desesperava de encontrar de novo. Por fim, a frase se afastou, indicadora, cuidadosa, por entre as ramificações de seu perfume, deixando no rosto de Swann o reflexo de seu sorriso. Mas, agora, ele podia perguntar o nome de sua desconhecida (disseram-lhe que se tratava do andante da "Sonata para piano e violino", de Vinteuil), tinha-a segura, podia tê-la consigo o quanto quisesse e tentar apreender a sua linguagem e o seu segredo.

Liberty Classroom

Já tinha gostado muito do curso do Cato Institute sobre ideias liberais (de graça). Agora estes cursos de história parecem muito legais. Mais de 150 aulas de meia hora cada! Custa cem dólares.

Citação de "Common Sense", de Thomas Paine


Ouvindo o curso do Cato Institute, encontrei este trecho de "Common Sense", de Thomas Paine, dirigido aos americanos que queriam se reconciliar com o governo britânico. Vai em inglês mesmo:

"Hath your house been burnt? Hath your property been destroyed before your face? Are your wife and children destitute of a bed to lie on, or bread to live on? Have you lost a par...ent or a child by their hands, and yourself the ruined and wretched survivor? If you have not, then are you not a judge of those who have. But if you have, and still can shake hands with the murderers, then you are unworthy of the name of husband, father, friend, or lover, and whatever may be your rank or title in life, you have the heart of a coward, and the spirit of a sycophant."

Lembrei-me imediatamente de Luís Carlos Prestes apoiando Getúlio Vargas depois que Olga foi entregue aos nazistas.

The Mind and the Market, de Jerry Z. Muller

Mais um livro fantástico recomendado pelo João Pereira Coutinho: The Mind and the Market - Capitalism in Western Thought, de Jerry Z. Muller.

O livro trata das ideias de diversos pensadores ocidentais sobre a atividade comercial e financeira, o livre mercado, o capitalismo e, quando pertinente, os judeus.

Os pensadores analisados são: Voltaire, Adam Smith, Justus Möser, Edmund Burke, Hegel, Marx, Matthew Arnold, Max Weber, Georg Simmel, Werner Sombart, Georg Lukács, Hans Freyer, Schumpeter, Keynes, Herbert Marcuse e Hayek.

Os principais livros analisados são: “Cartas Filosóficas”, de Voltaire, “A Riqueza das Nações”, de Smith, vários de Burke, especialmente “Reflexões sobre a Revolução na França”, “A Filosofia do Direito”, de Hegel, o “Manifesto Comunista” e “O Capital”, de Marx, “A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo”, de Weber, “A Filosofia do Dinheiro”, de Simmel, “História e Consciência de Classe”, de Lukács, “Capitalismo, Socialismo e Democracia”, de Schumpeter, “Eros e Civilização”, de Marcuse, e “A Constituição da Liberdade” e “O Caminho da Servidão”, de Hayek.

Dá muita vontade de ler os de Voltaire, Adam Smith, Simmel, Schumpeter e Hayek.

No primeiro capítulo, Muller explica que a tradição cristã e a tradição civil republicana condenam o egoísmo, a ganância, e a usura e, portanto, veem com desconfiança o comércio, o lucro, a atividade financeira e a prosperidade material.

No segundo, ele nos conta que Voltaire via com simpatia o mercado e as atividades financeiras. Porém, ele tinha considerava os judeus desonestos e, ele próprio, esteve envolvido em mais de uma ocasião em negócios suspeitos ou escusos.

Sobre Voltaire, Adam Smith disse que estava entre os homens de “esplêndido talento e virtudes”, que “se destacam, com frequência, pelo mais impróprio e até insolente desprezo por todo o decoro comum da vida e da conversação. Eles, portanto, estabelecem o exemplo mais pernicioso para aqueles que desejam imitá-los, e que normalmente se contentam em copiar suas besteiras, sem nunca tentar alcançar suas perfeições”.

No terceiro capítulo, sobre Adam Smith, o que chama a atenção é que Smith acreditava na necessidade de um Estado forte para proteger o livre mercado. “Porque Smith argumentou de maneira tão persuasiva contra o envolvimento direto do governo na economia, a importância crucial do estado em seu pensamento é normalmente negligenciada. [...] Para Smith, o estado era a instituição mais importante da qual a sociedade comercial dependia; a autoridade e segurança do governo civil, ele escreveu, é uma condição necessária para o florescimento da liberdade, razão e felicidade da humanidade.”

O quarto capítulo, sobre Justus Möser, me intrigou bastante. Möser é completamente conservador, defensor do governo local e descentralizado, e das tradições de sua província, de seu país e de sua cultura, e é completamente anticapitalista. Ele vê o livre mercado como uma grave ameaça a essa cultura. Ele é de direita? É de esquerda?

É interessante que ele é completamente conservador, não é fascista absolutamente. Eu posso concordar com parte significativa de seu pensamento político. E discordo completamente de seu pensamento econômico.

Depois de Möser, vem um longo e agradável capítulo sobre Edmund Burke. Burke é o principal expoente do pensamento conservador. Mas, enquanto Möser queria conservar uma sociedade pré-capitalista, a sociedade que Burke quer conservar é altamente comercial. Há um longo relato da disputa entre Burke e a Companhia Britânica das Índias Orientais e uma longa análise da principal obra dele, “Reflexões sobre a Revolução na França”.

O livro foi publicado em novembro de 1790, ainda no início do processo revolucionário. Previu que o que estava em curso resultaria em instabilidade continuada e ameaça de anarquia, que seria controlada apenas com o uso massivo da força e, finalmente, com um governo militar. Ele escreveu tudo isso muito antes da execução de Luís XVI, do Terror, do massacre de milhares de civis em Vendée e da ascensão de Napoleão.

Encontro, então, um surpreendente capítulo sobre Hegel. Ele afirma que a Dialética não é o mais importante na obra de Hegel. Na verdade, seria algo que Hegel escreveu jovem, e que não reflete seu pensamento mais maduro. Diz também que Hegel dava tanta importância ao Estado porque, na situação social e política em que ele viveu, o Estado era uma força progressista, que tentou modernizar um país atrasado e feudal, tendo como oposição as pequenas autoridades locais. E o ponto mais importante é que, para Hegel, o mercado era a característica mais importante do mundo moderno, um mundo que ele defendia e tentou explicar a seus contemporâneos. 

Sobre Marx, há a informação de que seus pais abandonaram o judaísmo antes dele nascer. Marx foi batizado na Igreja Luterana e, segundo Muller, não saberia dizer qual o lado de cima de uma página do Talmude. Sua filosofia se baseia em algumas falácias, especialmente a Teoria do valor-trabalho. Marx simplesmente não levou em consideração as grandes melhorias no padrão de vida dos operários na Inglaterra ou na Alemanha, ocorridas durante o período em que ele viveu. E escreveu ataques violentos aos judeus, que foram usados depois por antissemitas.

Há um filósofo muito interessante, que eu não conhecia, chamado Georg Simmel. Ele publicou “A Filosofia do Dinheiro” em 1900. Nessa obra, ele explica como o desenvolvimento da economia de mercado criou novas possibilidades para a individualidade. Chama a atenção para os efeitos psicológicos de se viver numa economia em que mais e mais áreas da vida podem ser medidas em dinheiro. Essa economia criaria um estado de espírito mais abstrato, porque os meios de troca se tornariam cada vez mais abstratos. As pessoas ficariam mais habituadas a pensar sobre o mundo de maneira mais abstrata. Também ficariam mais acostumadas a calcular e pesar os diversos fatores para tomar uma decisão. Simmel é muito mais moderno que Sombart, Lukács e Freyer, que vieram depois dele.

O capítulo sobre Schumpeter também é muito agradável. Seus livros adotam um tom irônico, afirmando que o socialismo é inevitável, que as decisões que os políticos estavam tomando na época levariam a desastres, mas o fato de Schumpeter alertar para os desastres não impediria que eles acontecessem.

Achei fraco o capítulo sobre Keynes. Gostaria de ter entendido suas motivações e raciocínios, como senti que entendi os outros pensadores analisados, mas Keynes continua nebuloso para mim. E o último capítulo, sobre Hayek, vem como um alívio depois de ler sobre as baboseiras de Marcuse. No final, o autor questiona alguns posicionamentos de Hayek e, principalmente, seu radicalismo.

Recomendo muito o livro, para quem tenha paciência de ler sobre esse assunto tão árido.

Citação de "A Riqueza das Nações", de Adam Smith, in The Mind and the Market, de Jerry Z. Muller

“Não é pela benevolência do açougueiro, do cervejeiro ou do padeiro que esperamos nosso jantar, mas de sua preocupação com seu próprio interesse. Dirigimo-nos não à sua humanidade, mas ao seu amor-próprio, e nunca falamos a eles de nossas próprias necessidades, mas sim das vantagens para eles. Ninguém, exceto um mendigo, escolhe depender primordialmente da benevolência de seus companheiros cidadãos.”

Citação das "Cartas Filosóficas" de Voltaire, in The Mind and the Market, de Jerry Z. Muller


“Venha à Bolsa de Londres, um lugar mais respeitável que muitas cortes. Você verá reunidos representantes de todas as nações pelo benefício da humanidade. Aqui o judeu, o maometano e o cristão negociam entre si como se fossem da mesma religião, e reservam o termo 'infiel' para aqueles que vão à falência. Aqui, o presbiteriano confia no anabatista e o anglicano aceita a nota promissória do quacre. Depois de saírem dessas reuniões pacíficas e livres, um vai para a sinagoga, outro vai beber, outro vai ser batizado numa grande banheira, em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, outro vai à circuncisão de seu filho e, sobre o menino, murmura algumas palavras em hebraico que ele não faz ideia do que significam. Outros vão à igreja buscar inspiração divina, sem tirar o chapéu. E todos estão contentes.”

sexta-feira, 13 de julho de 2012

Samba-enredo Casseta e Planeta (c. 1992)

Há muito tempo (oh, há muito tempo)
Num outrora antigamente
Num remoto passado
Há muitos anos atrás
Numa época distante, num tempo antigo,
Que não volta mais (oh, há muito tempo)

O Rei Nagô (ô, ô ,ô)
Iansã, Oxossi e Xangô
É Ganga-Zumba, é Zumbi, é Zulu,
Iemanjá e Exu (oh, há muito tempo)

Não lembro do título, começava com "Apogeu e Glória de um Rei Nagô e sua Corte". Não achei na Internet. Alguém mais lembra?

Liberdade x Igualdade v. 1


Também li no ano passado "Liberdade x Igualdade v. 1", de Demétrio Magnoli e Elaine Senise Barbosa.

O livro é muito bem escrito e instrutivo. Discordo de grande parte das opiniões dos autores, mas fiquei sabendo de vários fatos que para mim foram novidade.

Por exemplo, da grande divisão na sociedade e no governo japoneses antes do ataque a Pearl Harbour. A Marinha e o Imperador eram contra o expansionismo militar japonês. O Exército era a favor, e acabou impondo sua visão ao país.

Semprei achei que o Viatcheslav Molotov tinha inventado/usado o coquetel Molotov durante a Revolução Russa. Na verdade, o nome foi dado pelos finlandeses lutando contra o exército russo que invadiu a Finlândia no início da Segunda Guerra. Molotov havia dito que os aviões russos que bombardeavam a Finlândia estavam levando alimentos. Os finlandeses chamaram essas bombas de cestas de pão de Molotov. E as armas incendiárias feitas com garrafas cheias de gasolina foram chamadas de coquetéis Molotov, a bebida para acompanhar a cesta de pão de Molotov.

Também fiquei surpreso em saber que a data do Dia Internacional da Mulher não é por causa do incêndio da fábrica Triangle Shirtwaist Co., ocorrido na verdade em 25/03/1911. É por causa da Revolução Russa, iniciada em 08/03/1917 no calendário gregoriano (23/02/1917 no calendário juliano), com uma greve de operárias têxteis.

Vou precisar ler mais sobre a Grande Depressão, porque a visão do livro sobre esse ponto me parece particularmente equivocada.

The Fall of Rome and the End of Civilization

Li “The Fall of Rome and the End of Civilization”, de Brian Ward-Perkins, no ano passado. Foi mais uma excelente recomendação do João Pereira Coutinho.

O livro contesta uma visão relativamente popular entre historiadores, de que a transição do Império Romano para o domínio germânico foi relativamente pacífica, no contexto de um período de evolução cultural positiva. Ele afirma que o Império Romano realmente caiu diante de uma violenta invasão e que o padrão de vida no Ocidente passou por um colapso catastrófico.

Exemplos: nos sítios arqueológicos dos séculos III e IV, há abundância de potes e telhados de cerâmica da melhor qualidade, moedas de vários tipos e inscrições por toda a parte. Mesmo nas casas mais pobres, encontram-se potes e telhas, às vezes fabricados em lugares muito distantes. Nos séculos VI e VII, esses objetos não se encontram em quase nenhum lugar. No túmulo de um rei na Ânglia Oriental, em meio a ricos tesouros, foi encontrada uma garrafa de barro de pior qualidade que as que podem ser encontradas nas casas de camponeses de três séculos antes. As moedas e as inscrições desaparecem, o que indica que o comércio definhou e o analfabetismo se tornou quase universal.

Em determinados lugares, as condições de vida voltaram ao que eram na pré-história. Foram necessários pelo menos 600 anos para a Europa retomar o nível de desenvolvimento do final do Império Romano.

O que mais me intriga é a ideia de que, da mesma maneira que a civilização greco-romana caiu diante dos bárbaros, a nossa também corre riscos e precisa ser defendida.