terça-feira, 24 de setembro de 2013

Mais Médicos: Carta renúncia do presidente do CRM-PR

Curitiba, 23 de setembro de 2013.

A covardia coloca a questão: É seguro?
O comodismo coloca a questão: É popular?
A etiqueta coloca a questão: É elegante?
Mas a consciência coloca a questão: É correto?
E chega uma altura em que temos de tomar uma posição que não
é segura, não é elegante, não é popular, mas o temos de fazer
porque a nossa consciência nos diz que é essa a atitude correta.

Martin Luther King



Caros colegas Conselheiros,

Há 10 anos iniciei minha vida dentro do Conselho Regional de Medicina do Paraná. Confesso que foi nesse ambiente que aprendi o real significado da palavra ÉTICA. Um conceito que possibilita o convívio entre as pessoas e traduz o conjunto de valores morais e princípios de uma sociedade. Portanto é plural, mas auxilia cada um nas decisões cotidianas do que queremos, podemos e/ou devemos fazer. Da mesma forma as leis norteiam o cidadão no caminho da justiça, o que a princípio seria eticamente aceito. O grande problema é quando a lei se dissocia da ética.

No momento em que o governo federal emitiu a Medida Provisória 621/13, que instituiu o Programa Mais Médicos, criou-se um “arcabouço legal” para que o programa existisse, inclusive passando por cima de leis já consagradas. Já se passaram 70 dias, após a exposição de inúmeras incongruências da medida, modificações foram propostas e dois decretos foram emitidos na tentativa de legitimar a ação do governo. Portanto as “leis” estão postas, mas será que todo esse processo é ético? Aos meus olhos não.

O diagnóstico feito pelo governo de que o Brasil necessita de um maior número de médicos no sistema público é correto, para não dizer óbvio, mas desde o início os Conselhos de Medicina, criados legalmente para proteção da sociedade, tem alertado que a causa apontada e o tratamento instituído são absolutamente incorretos. A MP 621/13 passa ao largo da solução definitiva de um acesso à saúde tanto em quantidade, quanto em qualidade, condizentes com as demandas do povo. Já de muito tempo se denuncia o subfinanciamento da saúde e a má gestão, porém, como de praxe, o governo federal varre para baixo do tapete sua própria sujeira, tentando se eximir da responsabilidade que lhe cabe e colocando a culpa em toda a classe médica.

A vinda de profissionais formados no exterior rende manchetes diariamente, seja pela nacionalidade ou agora pelos documentos de inscrição. O vergonhoso envio de dinheiro público para a ilha de Cuba, através da contratação de profissionais subjugados expõe a moral deste governo. Na mesma linha a forma autoritária e açodada com que os registros provisórios nos conselhos estão sendo tratados, demonstra a falta de zelo com a segurança da saúde do povo. Inúmeros problemas foram encontrados e já noticiados, como documentos trocados, falta de autenticações, falta de diplomas, falta do local de trabalho, nome do supervisor responsável, entre outros. Após ampla celeuma, a advocacia geral da união admitiu em ação civil pública proposta pelo Cremers, que os requisitos dispostos na MP 621/13 podem e devem ser observados, porém o governo não tem como atendê-los agora. Tal situação ensejou o CFM a “liberar” os CRMs da exigência de ter o nome dos supervisores, tutores e locais de trabalho, concedendo o registro e dando um prazo de 15 dias para regularização. Penso que é uma atitude no mínimo temerária, pois uma vez liberado o registro, como voltar atrás? Aguardar esses poucos dias para, de posse de todos os documentos, proceder o registro seria o mais sensato, como noticiamos abertamente para toda a nação durante vários dias. Lembro que há exatos 56 anos os Conselhos de Medicina foram criados e se tornaram responsáveis pela inscrição dos médicos, habilitando o exercício profissional seja definitivo ou provisório, o que possibilita a fiscalização e o julgamento dos possíveis desvios éticos cometidos. A mesma medida é tomada para qualquer médico que vem se inscrever, seja brasileiro ou estrangeiro, formado no exterior ou não. Tudo isso com o intuito de levar segurança à população, logo penso que não podemos e não temos o direito de abrir mão do nosso dever legal.

Entretanto a pressão do governo sobre os Conselhos, já passou o campo da argumentação e de forma clara passou à intimidação, colocando em risco a existência destas instituições, bem como a moral dos conselheiros que procuram contribuir para a representação de nossa instituição. Por isso entendo que a medida tomada na plenária, de inscrever esses profissionais e aguardar o restante dos documentos, conforme orientação do CFM, pode ter sido a forma mais sensata para se evitar um mal maior. Não tenho dúvida de que sem a presença do Conselho a sociedade ficará mais desprotegida. Entretanto essa obrigatoriedade de inscrição, ao arrepio da lei, do próprio contexto da MP 621 e da ética me incomoda e me faz tomar uma atitude. A luta é árdua, pois a força governamental é infinitamente superior e a preservação da instituição tem que ser priorizada. As pessoas passam, mas as instituições devem ficar.


Todos sabem que ao longo de minha gestão primei pela retidão de conduta e me expus demasiadamente na defesa do que entendemos ser o correto para a saúde. Devido a grande visibilidade não me sinto nenhum pouco confortável em assinar uma carteira de habilitação sem que TUDO esteja na mais absoluta correção, conforme o zelo e a isenção que sempre norteou as ações do CRM. Caros colegas, não se trata de intransigência de minha parte, mas sim de coerência. O governo de forma unilateral me diz que eu devo fazer, porém não posso, pois minha consciência e minha história não permitem.

A decisão que estou tomando está sendo muito dolorosa, pois sei das implicações que traz. Pensei e pesei a minha atitude, abri mão da vaidade e me despi de qualquer apego a cargo ou status. Gostaria de pedir desculpas a vocês, meus colegas de conselho, aos funcionários, a classe médica e ao povo do Paraná, mas a situação está insustentável para a minha pessoa.

Diante do exposto, renuncio ao posto de presidente do CRM-PR, mas não da luta pela definição de políticas de estado para que o acesso à saúde saia do patamar vexatório em que se encontra e faça jus ao que a Constituição Brasileira traz em seu texto, qual seja um real direito de cada cidadão. Saio da representação e retorno para junto dos milhares de médicos que jamais se furtaram de participar desse debate, pois somos forjados nos bancos da escola para, acima de tudo, salvaguardar a vida das pessoas.

Confesso a todos que prefiro a vergonha da renúncia a ter que conviver com a vergonha de ter traído a minha consciência, pois quando um indivíduo abre mão de suas convicções, perde sua identidade e o significado de sua existência.

Atenciosamente e com profundo respeito,

Alexandre Gustavo Bley

Notícia do CRM-PR sobre a renúncia
Documento original

sábado, 21 de setembro de 2013

O Deus da Máquina, capítulo XI

No capítulo XI de O Deus da Máquina (O Significado da Magna Carta), Isabel Paterson analisa esse documento fundador da estrutura política moderna. Segundo ela, os grandes artífices desse acordo político foram os bispos ingleses, não os barões. Porém, esses bispos foram traídos pelo Papa, que aceitou um acordo com o Rei João. O acordo não chegou a ser posto em prática, mas a posição da Igreja na Inglaterra ficou tremendamente enfraquecida.

Isabel discorre sobre as principais provisões da Magna Carta, explicando as causas e as consequências dessas disposições. E a grande falha da Carta, que teve de ser corrigida posteriormente, foi não ter criado um dispositivo efetivo de veto, que tivesse o mesmo efeito dos Tribunos da Plebe na República Romana. Esse instrumento acabou por ser materializado na Câmara dos Comuns.

O Significado da Magna Carta

O Deus da Máquina, capítulo XI
O Significado da Magna Carta
Isabel Paterson

A Inglaterra acabou por fazer os ajustes mais bem-sucedidos no Velho Mundo, mas não sem uma luta contínua e crises recorrentes de violência, durante cinco séculos. O primeiro e crucial esforço dos ingleses para estabelecer as fundações de uma estrutura duradoura culminou com a Magna Carta, que o Rei João foi obrigado a assinar, por seus súditos rebeldes. As provisões desse documento extraordinário quase nunca são mencionadas atualmente, com exceção da frase: “A ninguém venderemos, a ninguém negaremos, a ninguém protelaremos o direito ou a justiça.” Certamente, isso é admirável. Define de maneira abstrata o propósito essencial para o qual o governo é instituído. Mas, dada simplesmente como uma promessa do chefe do executivo, o rei, seria improvável que fosse cumprida, a menos que toda a organização fosse projetada para poder funcionar contra a vontade do rei. Mas mesmo sem conhecermos bem o contexto da época, as características práticas da Carta ainda nos revelam quais eram as bases existentes e as forças em movimento. A estrutura política estática era feudal. As cidades maiores, tendo obtido suas “liberdades”, contribuíam com o tesouro nacional por meio de diversos impostos, diretos ou indiretos, e cobrados de maneira um tanto irregular, portanto sujeitos a contestações. A Igreja estava numa perigosa posição intermediária, comprometida com o feudalismo pelo sistema de arrendamento de terras em suas imensas propriedades, enquanto, pela doutrina, afirmava e protegia o princípio primário de contrato pelo qual o comércio era realizado. O longo circuito de energia da Igreja, sua ligação com Roma, era mantido por dinheiro, fundos enviados a Roma; isso não poderia ter sido feito de nenhuma outra maneira.

A autoridade original da monarquia inglesa derivava completamente da ordem feudal, que contém seus próprios freios e contrapesos, regulados automaticamente pelo circuito limitado de energia; o excedente podia apenas ser entregue ao rei em homens-em-armas e seus suprimentos. Mas, na época do Rei João, muitas das obrigações de serviço feudal consuetudinário haviam sido substituídas por pagamentos em dinheiro. Essas obrigações, somadas às receitas de comércio da coroa, davam ao rei uma receita sobre a qual os produtores não tinham controle. Não podiam impedir o fornecimento na fonte, exceto por resistência à força, nem exercer nenhum tipo de controle legal sobre as despesas do rei depois que o dinheiro fosse colocado nas mãos dele. Assim, o rei podia estabelecer e manter um exército composto de homens desvinculados de bases regionais, ou seja, fragmentos de uma massa deslocada. A energia cinética da nação era desviada para colocar essa massa em movimento. Esta é a fórmula para guerras iniciadas aparentemente pela vontade de um rei, executivo ou ditador; a conexão produz o resultado, e não tem como funcionar para nenhuma outra finalidade. O Rei João possuía tal exército mercenário, parcialmente recrutado no exterior, como indicado pela cláusula da Carta que exige que ele “remova do reino todos os cavaleiros, besteiros e soldados assalariados estrangeiros, que vieram com cavalos e armas molestar o reino”.

Nas referências históricas, a conquista da Carta é normalmente creditada aos “Barões”. Mas, na verdade, o documento foi escrito ou rascunhado pelo Arcebispo da Cantuária, Stephen Langton; e os nomes no preâmbulo que encabeçam todo o restante são de dignitários da Igreja: os Arcebispos da Cantuária e de Dublin, sete bispos, o Senhor dos Templários e o núncio apostólico. A primeira cláusula determina que “a Igreja da Inglaterra será livre”, incluindo “liberdade de eleições” para os cargos clericais. O objetivo era impedir que o rei fizesse nomeações para abadias e prebendas, por meio dos quais poderia sugar as receitas da Igreja. Evidentemente, ele vinha fazendo isso.

A seguir, o interesse da aristocracia feudal tinha de ser protegido do poder real ou central, fixando-se as obrigações dos feudos militares pela taxa tradicional; e atribuindo-se o estabelecimento de contribuições em dinheiro e “ajudas” extraordinárias ao “conselho comum do reino”. Obrigações ou ajudas similares tomadas pelos lordes de “seus próprios homens livres” também foram limitadas. O objetivo geral era impedir a expropriação gradual dos pequenos arrendatários pelos senhores das terras, e dos lordes pelo rei. Ou seja, para fortalecer as bases regionais contra a autoridade central e as bases individuais contra as autoridades regionais. Uma vez que essas bases constituem a estrutura estática da organização política, o problema foi pelo menos corretamente entendido, embora não fosse expresso em nossos termos.

Mas a tributação não é o único meio pelo qual a energia cinética pode demolir a estrutura estática. Como o único meio imaginado para manter bases regionais era a sucessão hereditária de terras, uma cláusula da Carta impedia que as terras mudassem de dono pela execução de uma hipoteca. As terras podiam ser oferecidas como garantia de um empréstimo. Mas, no caso de inadimplência, apenas as receitas da terra podiam ser sequestradas para pagamento da dívida. Além disso, se o devedor morresse e seu herdeiro fosse menor de idade, os juros da hipoteca cessavam enquanto ele não atingisse a maioridade. Obrigações feudais, direitos de dote e provisões para os filhos do devedor falecido tinham precedência no pagamento de uma dívida financeira, que só podia ser liquidada “com o resíduo”. Provavelmente, essa limitação de dívida tinha um efeito duplo, parcialmente contrário à intenção, especialmente com a baixa expectativa de vida daqueles tempos; tendia a manter baixo o principal dos empréstimos e, igualmente, a elevar a taxa de juros. A grande usura do período deve ser entendida nesse contexto.

Temos então uma cláusula curiosa, que indica o efeito centrípeto da energia cinética jogada no canal político. A Carta contém uma promessa do rei de que, se algum homem morrer devendo “aos judeus”, ou emprestadores de dinheiro, “e se essa dívida cair em nossas mãos, não tomaremos nada exceto o gado contido no contrato”. É óbvio que donos de propriedades eram capazes de fazer empréstimos maiores do que poderiam pagar convenientemente; e que os emprestadores de dinheiro, tendo dificuldades em executar dívidas, especialmente contra o patrimônio de menores, estavam descontando suas promissórias com o rei, que podia então usar a prerrogativa real de execução. A perseguição e expulsão dos judeus de diversas nações europeias e o prolongado ressentimento expresso pelo antissemitismo têm origem principalmente nessa combinação infeliz do poder do executivo e da ação da energia cinética (dinheiro), minando a estrutura estática. Como era fácil focalizar a raiva popular contra “os judeus” como não-cidadãos, o rei invariável e prontamente se voltava contra eles quando era conveniente, para se eximir de culpa e saquear sua fortuna. Mas o processo não tinha nenhuma relação com a nacionalidade ou raça das pessoas envolvidas; ocorreu outras vezes em outros países onde os financistas eram da população nativa, e a fúria pública foi, da mesma maneira, facilmente levantada contra as finanças, ou contra os financistas como grupo, pela mesma razão intrínseca. O verdadeiro remédio para essa condição prejudicial é fortalecer as bases regionais e limitar o controle e a absorção das finanças nacionais pelo executivo central. É isso que a Carta procurou fazer. Com uma sabedoria à frente do seu tempo, não propôs a penalização ou expulsão dos “judeus” ou financistas, mas a restrição da autoridade da coroa. Podemos dizer que, em qualquer tempo em que as finanças estão sob ataque pela autoridade política, isso é um sinal infalível de que a autoridade política já está exercendo um poder excessivo sobre a vida econômica da nação por meio da manipulação das finanças. Isso pode ocorrer por taxação exorbitante, gastos descontrolados, empréstimos ilimitados ou depreciação da moeda.

A última e não menos vital restrição à autoridade executiva (o rei) é de peculiar significância, porque mostra que o grupo industrial-comercial deve ter tido forte influência na montagem da Magna Carta, embora não tenha sido citado como parte do ato formal. Havia um terceiro método pelo qual o rei podia encontrar um pretexto para a expropriação de seus súditos de qualquer grau; pela cobrança de multas exorbitantes por acusações forjadas. Para impedir isso, foi estipulado que as multas poderiam ser estabelecidas apenas proporcionalmente ao delito; com a ainda mais vital exceção de preservar para o homem livre sua posse de terra; para o mercador sua mercadoria; e para o servo suas carroças e outros equipamentos. O que significa que nenhum homem podia ser privado de seu capital, e assim de seu meio de vida, por uma multa imposta por causa de um suposto delito político. Como uma precaução sólida, declarou-se que o valor de tais multas não poderia ser fixado pelo rei e nem mesmo pelos juízes; mas deveria ser avaliado por um júri de pares do acusado, nobres para nobres e “homens honestos da vizinhança” para mercadores, homens livres e servos. Além disso, o interesse da indústria e do comércio era resguardado por uma cláusula tão avançada em relação aos costumes atuais que causa um choque de surpresa. “Todos os mercadores terão sua segurança garantida ao entrarem na Inglaterra e saírem da Inglaterra e ao permanecerem e viajarem pela Inglaterra, por terra ou por água, para comprarem e venderem, sem cobranças injustas.” Em tempo de guerra, mercadores estrangeiros de nacionalidade inimiga poderiam ser “apreendidos, sem danos a seu corpo e a seus bens”, e deveriam ser mantidos em segurança se os mercadores ingleses nos países inimigos estivessem “em segurança lá”. Finalmente, “será legal para qualquer pessoa, no futuro, sair do reino e retornar a ele, em completa segurança, a menos que seja tempo de guerra, por um curto espaço”, excetuando-se apenas “prisioneiros e criminosos” e inimigos nacionais. Permitia-se que a energia cinética percorresse o longo circuito; e a Inglaterra estava no caminho de se tornar uma potência mundial.

No conjunto, é impossível imaginar uma compreensão mais sólida da ciência de governar do que aquela que a Magna Carta revela, dado o contexto da época. Por cinco séculos, ela foi corretamente vista como um guia e um marco da liberdade inglesa. Seus princípios e algumas de suas medidas práticas permaneceram em vigor em algum grau de maneira permanente, apesar de abusos e das interrupções de tirania temporária. Porém, como ela não encerrou realmente a guerra civil que fez com que fosse escrita, nem impediu desordens semelhantes e prolongadas subsequentemente, deve ser instrutivo descobrir quais eram os aspectos defeituosos. Pode-se dizer que, provavelmente, dadas as circunstâncias, nada melhor poderia ter sido criado; se a Magna Carta não chegou a ser totalmente colocada em prática na época, enunciou alguns axiomas indispensáveis para referência futura. O defeito é a ausência do veto de massa-inércia, como uma função nacional, tanto de fato como de direito. A aplicação da Carta contra o rei foi atribuída a um comitê eletivo de vinte e cinco barões que, “com a comunidade de toda a terra”, deveria apreender a pessoa, a família, os castelos e as terras do rei, porém sem feri-lo (essa última condição seria naturalmente bastante difícil em qualquer tempo e poderia ser impossível). Deveriam detê-lo até que ele reparasse as injustiças e, então, a aliança seria retomada — outra possibilidade duvidosa. Em termos de organização material, o que estava errado com esse esquema é que, na ordem feudal estrita, os servos e outros trabalhadores da terra constituíam o fator de massa, e a função da massa era exercida passivamente, por inércia, por meio da limitação inerente que o feudalismo impôs à produção, e que restringia o esforço militar feudal aos recursos dos circuitos locais. O freio ao rei era um efeito secundário.

Em resumo, se os barões eram os “pilares do estado” apoiados em bases regionais, sua resistência deveria ser estática, para corresponder a sua relação com a coroa. Mas isso era impossível quando o rei tinha as grandes receitas dos juros mercantis; e uma resistência ativa por parte dos nobres seria simplesmente guerra civil. (Pelo mesmo motivo, falta de controle legítimo sobre os recursos que forneciam, os comerciantes foram à guerra civil contra o rei no século 17.) De toda forma, não se pode pensar em nenhuma medida viável na época em que a Magna Carta foi concebida, pela qual o fator geral de massa pudesse ter sido levado em conta para toda a nação e sua função representada legitimamente no governo nacional. Infelizmente, mesmo a emancipação imediata dos servos não teria suprido essa deficiência do veto-massa e garantido a estabilidade; ao contrário, se eles tivessem simplesmente sido libertados da terra, mais homens seriam jogados no exército assalariado do rei, para esmagar a nação. Todo o sistema de títulos de terra teria de ser alterado, para se instituir a propriedade individual; e uma coisa assim não pode ser feita da noite para o dia. O procedimento seria impossível, porque teria de ser feito por um decreto político. Portanto, mesmo que fosse tentado nominalmente, o resultado seria conferir o título das terras ao poder político, não aos indivíduos a quem a transferência deveria ser feita. Ou seja, qualquer que fosse o poder capaz de tomar a terra de uma pessoa e dá-la para outra, esse poder sempre poderia tomar de volta segundo sua vontade e, portanto, teria o real arbítrio sobre a terra.

Assim, os servos não ganharam com a Carta praticamente nada além da proteção de suas ferramentas agrícolas contra multas. Mas a situação dos nobres, comerciantes e pequenos proprietários rurais foi protegida, conforme validado pelos costumes e leis anteriores, e os meios para que eles oferecessem resistência foram suficientemente assegurados. Dessa maneira, puderam persistir na oposição ao poder do rei, até que forjassem o instrumento necessário do veto-massa. Esse instrumento viria a ser a Câmara dos Comuns, com seu controle sobre impostos e a concessão periódica de suprimentos. No decorrer dessa longa luta, a servidão foi abolida gradativamente, até desaparecer por completo. O dinheiro, energia cinética, acabou com ela.

Houve um desvio não previsto, um redemoinho lateral da corrente de energia, como resultado quase imediato da assinatura da Carta. O Rei João havia estado sucessivamente em desacordo com os nobres, a Igreja e os comerciantes, até que todos se uniram contra ele com a Carta. Então, o rei negociou um acordo com o Papa, pelo qual seria absolvido de seu juramento assinado; em troca, fez um voto de fidelidade temporal com o Papa como seu senhor feudal, por meio do qual pretendeu submeter todo o reino, como se o reino fosse um feudo. Mas não havia lei nem princípio do direito, canônico ou civil, que pudesse autorizar tal transação. É verdade que dignitários eclesiásticos poderiam ser senhores de terras, fosse por suas propriedades ou em virtude de terras da Igreja; e havia príncipes-bispos na Europa, a quem os senhores temporais deviam fidelidade feudal. E o homem que era Rei da Inglaterra, se também fosse senhor de terras na Inglaterra, não tendo um superior feudal, poderia teoricamente declarar-se vassalo do Papa. Mas essa submissão só seria válida com relação ao seu próprio feudo. O reino era de outra natureza; era composto por um grande número de feudos, cujos senhores tinham jurado fidelidade ao rei. Esse juramento não poderia ser transferido pelo rei para outra pessoa. A natureza de um voto cristão exige que seja feito voluntariamente; e a pessoa que o faz deve estar plenamente informada de sua extensão e consequências; isso decorre da doutrina de livre-arbítrio para a salvação. Na hierarquia feudal, entendia-se que a fidelidade de um arrendatário a seu senhor seguia a fidelidade de seu senhor ao rei; mas nenhum dos súditos de João, nobres ou não, havia concordado nem entendido que o rei poderia fazê-los súditos de outro superior temporal. Em síntese, João prometeu ceder algo que era intransferível. O acordo era tentador não em seus termos nominais feudais, mas por causa das receitas em dinheiro. A corrente cinética era tão forte que quase destruiu completamente a estrutura da nação, ameaçando levantá-la e carregá-la para uma nova situação, como uma enxurrada pode carregar uma casa.

Lamentavelmente, o papa aceitou o acordo e deixou na mão o corajoso Arcebispo Langton e todos os outros eminentes clérigos que haviam obtido a Carta de João. Eles haviam exercido a função histórica e própria da Igreja de resistir ao Estado; e o chefe terreno da Igreja repudiou sua ação. Mas nem o rei nem o papa puderam colocar o acordo para funcionar; o resultado imediato foi a retomada da guerra civil. É no mínimo defensável que a consequência tardia foi o cisma, três séculos depois, da Inglaterra da comunhão católica. Sequências históricas sempre podem ser rastreadas até causas remotas no tempo; e uma traição assim nunca é esquecida. Material e moralmente, esse acordo deixou a Igreja inglesa numa posição perigosa. Na luta continuada entre o rei, os nobres e os comerciantes, qualquer que fosse a parte que vencesse temporariamente, a Igreja acabava sempre perdendo um pouco mais a cada vez, já que não tinha mais o prestígio de ser a agência mediadora. A servidão obteve algumas terras da Igreja, o que fazia com que a Igreja parecesse opressiva aos camponeses e não fosse mais identificada com a liberdade. O rei ainda tinha receitas financeiras para sustentar seu exército particular. Os comerciantes estavam fortes o bastante para lutar por si mesmos, e assim representar a sociedade de contrato. O tamanho das posses territoriais da Igreja enfraquecia os nobres, porque eximiam os ocupantes do serviço militar feudal. Mas, como riqueza, as terras e receitas eclesiásticas eram uma tentação óbvia à pilhagem; enquanto qualquer partido que se aliasse à Igreja não podia ter certeza de que não seria traído. A energia cinética fluindo para o executivo, o rei, primeiro destruiu o feudalismo, o poder dos nobres sobre o rei; então, levou o rei (Henrique VII) a uma aliança com os comerciantes, identificando seus interesses; então se voltou diretamente contra a Igreja como instituição detentora de terras, e acabou com as grandes terras das abadias, para reconstituir uma nova aristocracia em conjunto com a nova agência de controle que passou a funcionar, a Câmara dos Comuns. Finalmente, a energia cinética, sob esse controle, voltou-se contra o executivo, o rei, e acabou com a prerrogativa real. Mas, nesse processo, uma quantidade excessiva de pessoas perdeu sua base na terra.

Ensinados pela adversidade na guerra civil do século 17 (que foi o auge do processo que reduziu por atrito a pesadíssima carga da aristocracia com a Guerra das Rosas, e a destruiu com a tirania centralizada de Henrique VIII), os nobres ingleses aceitaram grande parte do mesmo compromisso que havia sido feito pela ordem aristocrática na República Romana. A característica hereditária foi mantida na câmara alta pelas bases regionais; mas o veto efetivo estava nos Comuns; e a lei estava acima da coroa. Nesse último avanço, o governo secular aprendeu com a Igreja como estabelecer um centro, um problema que era insolúvel no Império Romano.1 A autoridade (assim definida como infalibilidade) do Papa existia apenas no concílio ecumênico e dentro de uma esfera prescrita (da fé e da moral). Assim, na forma inglesa de governo secular, a autoridade do rei existia apenas em conjunto com o Parlamento e dentro do âmbito da lei. Quando Carlos I não percebeu essa distinção, foi informado dela pela lâmina do machado.

Num mecanismo, isso é o centro fixo, que é necessário numa ação recíproca. O rei não faz nada; é para isso que ele serve, sendo o ponto no qual as forças se encontram. A coroa era indispensável, dado o arranjo histórico, para a agregação de domínios, colônias e dependências dos tipos mais diversos que formavam o Império Britânico, porque impedia arranjos políticos entre dois deles, ou ação primária fora do centro. Uma vez que não haviam chegado a acordos específicos, não tinham oportunidade de discordar. No início do século 19, a estrutura interna da Inglaterra era essencialmente a mesma da República Romana, com uma aristocracia modificada ajustada a um sistema eletivo; e como as colônias anglófonas foram instituídas com uma grande dose de autogoverno, o exército não era um fator político direto e ativo no mecanismo administrativo.

Como ocorreu antes com Roma, o mundo aceitava o Império Britânico porque ele abria canais mundiais de energia para o comércio em geral. Embora o governo repressivo (de status) tenha sido imposto num grau considerável na Irlanda, com resultados muito negativos, no conjunto as exportações invisíveis da Inglaterra eram o direito e o livre comércio. Na prática, enquanto a Inglaterra governava os mares, qualquer homem de qualquer nação podia ir a qualquer lugar, levando consigo seus bens e dinheiro, em segurança.

Mas uma estrutura tradicional adaptada para acomodar um alto potencial de energia está o tempo todo sob uma pressão enorme. A condição do trabalhador sem terra constitui um problema que ainda não foi resolvido.

Ele é uma partícula jogada no circuito de energia que vai aderir a uma corrente magnética, como se fosse limalha de ferro. Então, sempre que a indústria diminui a produção, o que significa dizer que a corrente está mais fraca, muitas dessas partículas se desgarram. Trabalhadores desempregados, agregados apenas pela inércia, tornam-se assim um fragmento de massa deslocada dentro da economia. Como tais, são jogados contra a estrutura e, naturalmente, a percebem apenas como uma obstrução. É igualmente natural, uma vez que são seres conscientes e não meros objetos físicos, que exijam que a estrutura seja abolida; ou, pelo menos, porta-vozes aparecerão em nome deles e farão essa exigência, como no movimento cartista2. Um homem preso num píer de pedra provavelmente não vai considerar se o píer é necessário para alguma finalidade ou não, ou o que poderia ser colocado em seu lugar. Ninguém espera que ele pense no píer nesses termos.

A grande desventura do trabalhador produtivo que não tem base é que, quando ele é descartado pela corrente enfraquecida, cai na mesma categoria material do habitualmente improdutivo. O peso acrescentado faz com que o grupo improdutivo se sinta inseguro. Seu desconforto encontra expressão emocional na raiva contra o elemento produtivo. Na esperança de se prender mais firmemente à linha de produção, eles exigirão então regulação restritiva à indústria e ao comércio, sob o pretexto (como Shaftesbury inocentemente admitiu) de que é pelo benefício do trabalhador.

Mas uma proposição assim requer a lei de status. A peculiaridade da lei de status é que ela interrompe e desvia a energia no início do circuito, em vez de fazer isso no fim. Faz com que o que não é produtivo seja uma carga inicial sobre a produção, antes da manutenção. Se examinarmos os vários impostos criados recentemente em economias que antes eram livres, sob o pretexto de ajudar os indigentes, sua natureza se torna evidente. Eles têm de ser pagos mesmo que o produtor vá à falência.

Esses esquemas de taxação raramente ou nunca se originam nos trabalhadores. São propostos por aqueles que retiram sua renda de cobranças fixas — de propriedades de morgadio ou de instituições mantidas por doações ou por impostos — e que, portanto, desejam ter sua relação com a produção declarada como uma regra de governo. Mas o trabalhador desempregado quer trabalhar, ser ativo, viver. As exigências de lei de status e de abolição da estrutura serão, portanto, mais ou menos simultâneas e ambas podem ser incluídas nas mesmas medidas legislativas.

Assim, é provável que ambas entrem em vigor aproximadamente ao mesmo tempo. O resultado é visível agora. A verdadeira causa do fascismo, ou do nazismo, ou do comunismo, é o estado desestruturado3, no qual toda a energia da nação, sua linha de produção, é jogada no mecanismo repressivo de governo centralizado com lei de status. É uma armadilha mortal.

Os problemas intrínsecos da ordem aristocrática são tão óbvios e inerentemente onerosos, que o fato de que ela tinha uma utilidade foi quase completamente esquecido; mas ela supria a estrutura, ao manter bases regionais. Sempre que uma aristocracia perde essa função representativa local, está à beira da dissolução.


1 A única falha grave na estrutura política do Império Romano tornava essa solução impossível. Na Igreja, a diocese era uma subdivisão regional genuína, seu representante (o bispo) era sustentado diretamente pelas receitas locais, das quais apenas uma pequena parte ia para Roma. Da mesma maneira, os nobres ingleses tiravam suas receitas diretamente de suas próprias posses territoriais locais, para sustentar funções políticas locais concomitantes. Nenhum deles dependia da redistribuição de recursos (energia) a partir do centro. Mas as autoridades provinciais do Império Romano eram dependentes dessa maneira; eram pagas pelo centro; e a corrente de energia extraída em impostos para Roma as destruiu; não tinham caráter representativo regional. Portanto, o ajuste no centro tinha de ser feito, como observado, pelo encontro de “forças brutas” — o exército e o potencial de revolta. (N. da A.)

2 Movimento cartista: Foi um movimento da classe trabalhadora que pedia reformas políticas na Grã-Bretanha, entre 1838 e 1848. Começou entre artesãos, como sapateiros, gráficos e alfaiates, mas logo atraiu homens que propunham greves, greves gerais e violência física, como Feargus O'Connor. Estes eram conhecidos como cartistas da força física. (N. do T.)

3 As antigas tiranias ou despotismos eram nações que haviam desenvolvido alguma indústria sem ter alcançado nenhum tipo de estrutura. Essa falha de sincronismo inevitavelmente causa desencontros, violência e miséria. (N. da A.)


sábado, 14 de setembro de 2013

O Deus da Máquina, capítulo X

O capítulo X de O Deus da Máquina (A Economia da Sociedade Livre), começa com uma crítica ao marxismo e à dialética de Hegel. Isabel Paterson lembra diversos casos de erros científicos involuntários, como os quatro elementos ou o flogisto, que impediram por muito tempo o avanço do conhecimento em determinadas áreas. No entender dela, o marxismo é um erro voluntário, uma manipulação da linguagem que gera conceitos vazios de significado, simplesmente para confundir o interlocutor.

Marx chama a sociedade capitalista de contrato de sociedade de classes. Isabel afirma que essa é a verdadeira sociedade sem classes. O "capital" e o "trabalho" não são classes, e não podem lutar entre si. Onde houve lutas de classe verdadeiras, como revoltas camponesas contra nobres, isso nunca produziu mudanças duradouras.

A invenção do maquinário produtivo e seu uso contínuo só são compatíveis com a liberdade política e econômica. Funcionando continuamente por um século, essas inovações elevaram o padrão de vida dos trabalhadores para um nível que seria considerado fabuloso pelos senhores medievais.

A Economia da Sociedade Livre

O Deus da Máquina, capítulo X
A Economia da Sociedade Livre
Isabel Paterson

A história dentro das nações consiste na luta do indivíduo contra o governo; e, entre as nações, da economia livre contra a economia fechada. São dois aspectos do mesmo processo. A vida primitiva da humanidade é uma fase ímpar da história natural, ocupada pelo esforço do homem em dominar seu ambiente, em vez de simplesmente adaptar-se a ele. O uso do fogo, das armas de caça e a domesticação de animais pertencem a esse tipo de esforço. Quando o homem obteve sucesso nesses contatos diretos, o próximo passo foi começar a mudar o ambiente, pelo cultivo do solo, pela construção de abrigos permanentes e locais de armazenamento e, finalmente, pela invenção de mecanismos para a conversão de energia; essas atividades exigem organização no espaço-tempo, pela delegação de autoridade. Mas como essa autoridade só pode ser proibitiva, o problema é manter essa agência repressiva subordinada à faculdade criativa. A dificuldade é enorme; é necessário um entendimento avançado dos princípios de engenharia para a solução desse problema. Pela falta de opções, desenvolveu-se o sistema de classes, uma ordem que aprisiona toda a comunidade,1 obstrui a energia na fonte e a limita a um circuito local. O pensamento original, portanto, torna-se um crime, porque liberta energia. Mesmo numa cultura elevada que possua um sistema de classes, o princípio repressivo mostra seu caráter ao impor a pena de morte contra opiniões não autorizadas, chamadas de heresia ou traição.

Vemos esse sistema retornando hoje, primeiro gradativamente e depois por ordens generalizadas que impedem o movimento de pessoas ou as tangem para campos de concentração. Antes da guerra mundial de 1914, essa condição medieval de aprisionamento geral havia sido praticamente abandonada e meio esquecida em toda a parte, exceto na Rússia Czarista, onde subsistia uma mistura de barbarismo, absolutismo e anarquia. As nações mais civilizadas não exigiam passaportes, mas os emitiam a pedido de seus cidadãos simplesmente porque poderiam ser exigidos nessas regiões atrasadas. Os ventos reacionários em direção ao governo do status também se percebem pelo persistente descrédito da razão e pela corrupção deliberada da linguagem, para impedir a comunicação.2

O mau uso da linguagem é o meio pelo qual o culto marxista do comunismo causou o dano mais grave à inteligência. Existe um obstáculo natural ao progresso no pensamento abstrato, que muitas vezes atrasou a pesquisa racional: um conceito errôneo ou uma teoria errônea podem ser expressos em termos que incorporam o erro, de maneira que o pensamento fica bloqueado até que as palavras enganosas sejam descartadas do contexto dado. A antiga classificação de terra, ar, fogo e água como “elementos” era um erro desse tipo, que teve de ser abandonado antes que os elementos pudessem ser identificados e denominados como tais. A teoria dos elementos era uma especulação correta e perspicaz; mas os fenômenos designados estavam errados. Por outro lado, a noção dos quatro “humores” corporais é uma teoria errônea que atrasou gravemente a ciência da medicina. De maneira semelhante, a teoria cartesiana dos “vórtices” e a suposição da existência de um tipo de essência do fogo ou do calor chamada “flogisto” foram obstáculos verbais à extensão do conhecimento da física. São obsessões infelizes da linguagem, que os mais agudos intelectos podem criar nas fronteiras do desconhecido. Como não podem ser refutadas até que o conhecimento se amplie e, ao mesmo tempo, tendem a impedir o avanço, essas teorias são um obstáculo muito maior do que afirmações que são simples e demonstravelmente falsas; porém, ocorrem pela própria natureza das coisas e não são imunes à razão no longo prazo.

Mas a terminologia marxista reduz a expressão verbal ao nonsense literal com base nos fatos e no uso. Não é uma linguagem obviamente inarticulada, nem o nonsense humorístico que algumas vezes elucida uma dificuldade intrínseca de expressão ou indica uma falha no conhecimento. É um arranjo de palavras de acordo com as regras da gramática, no qual cada palavra tomada em separado possui um significado habitual. Mas, na sequência dada na frase, o arranjo não significa absolutamente nada. Por exemplo, afirmemos que: “Um triângulo isósceles é verde.” As várias palavras são de uso comum e, como partes de um discurso, estão colocadas numa ordem apropriada; mas a afirmação completa é absurda. Isso já é suficientemente ruim, mas seria bem pior se alguém falasse sobre a “redondeza do triângulo”. A frase “ditadura do proletariado” é como a “redondeza do triângulo”, uma contradição em termos. Não tem significado. A teoria do “materialismo dialético” é um abuso dos termos do mesmo tipo que a afirmação de que um triângulo isósceles é verde. Ela postula uma sucessão inevitável de uma tese produzindo seu oposto ou antítese e a abstração fissípara3 tornando a uni-las numa síntese. Como nada na natureza passa realmente por tal transformação grotesca, debates sem fim e sem sentido podem ser realizados sobre quais relações sociais exibem em várias fases uma tese, antítese e síntese, cada uma supostamente “produzindo” seu “oposto” e combinando-se novamente em outra coisa, como o Squidgicum Squee4 que engole a si mesmo. Tolos podem argumentar solenemente que um triângulo isósceles não é verde, mas azul, ou que um triângulo isósceles verde produzirá um círculo azul e os dois então se sintetizarão numa vaca púrpura ou num romboide; ainda assim, essas afirmações são vazias. Essa é especificamente a linguagem dos tolos; porque a deficiência que a palavra tolo indica é a incapacidade de entender categorias e a relação das coisas e das qualidades.

Marx era um tolo com um vasto vocabulário de palavras longas. Mas ele tinha de fato uma necessidade não reconhecida de adotar a “dialética” ilógica de Hegel. Sendo um pedante parasita, inepto e desonesto, queria fazer reivindicações contra a “sociedade” apenas como consumidor. Abraçou o comunismo porque nenhuma outra teoria, nem mesmo no papel, poderia prometer “a cada um de acordo com suas necessidades”. Somente um suposto “estoque comum”, para o qual toda a produção fosse expropriada, poderia ser imaginado como disponível para o não produtor pegar dali o que quisesse. Mas isso é pura imaginação, o sonho do incompetente e do vicioso ou da mente infantil virgem de produção. Por outro lado, Marx foi confrontado com o fato histórico de que no comunismo, como regra geral, a produção nunca ultrapassa o nível da mera subsistência. Como podia imaginar produção abundante no comunismo? Apenas supunha que os “meios de produção”, levados a um alto nível de produtividade pela propriedade privada e pelo livre empreendimento individual, que é o capitalismo, poderiam ser expropriados e continuar funcionando igualmente, administrados pelo regime sucessor comunista. É fato que nada parecido jamais aconteceu; a tentativa mais próxima do comunismo como norma social sempre foi muito primitiva; mas, se ele imaginasse primeiro o “materialismo dialético”, e então arbitrariamente chamasse o capitalismo de tese; e designasse os que não têm propriedade como antítese proletária, poderia depois afirmar que os dois se “fundiriam” pelo conflito e produziriam uma “síntese”, que teria de ser o comunismo se ele assim dissesse. Já que isso nunca aconteceu, Marx podia dizer que aconteceria inevitavelmente no futuro. Podia também, com muita facilidade, chamar de “sistema de classes” a sociedade capitalista de contrato, embora ela positivamente não fosse isso.

A teoria de luta de classes de Marx é puro nonsense desde sua definição; não se refere nem a classes nem a luta, se está relacionada ao “capital” e ao “trabalho”. É fisicamente impossível o “trabalho” e o “capital” guerrearem entre si. O capital é a propriedade; o trabalho é o homem. Tudo o que pode ocorrer são tumultos esporádicos e, talvez, a destruição de propriedade, porque as próprias armas de guerra numa sociedade industrial só podem ser produzidas e mantidas pela combinação do “capital” e do “trabalho”.

Numa verdadeira sociedade de classes, as classes são as diversas camadas de uma ordem estratificada; classe não é nada mais que a posição relativa horizontal. Portanto, uma classe não pode desalojar outra, nem aboli-la por sua ação como classe. Se e quando as classes existem, as pessoas que ocupam uma dada posição relativa pertencem à classe denominada. É concebível que as partículas possam ser transpostas, mas as classes permaneceriam como antes — o que quer que esteja em cima está em cima, e o que quer que esteja embaixo está embaixo. Embora invasores possam depor os membros de uma classe originalmente mais alta e ocupar a posição, nada disso alteraria o sistema; e tal invasão não é uma luta de classes.

Mas, como o sistema de classes é imposto sobre a energia criativa para restringir seu fluxo, é inevitavelmente sujeito a distúrbios internos. A energia pode causar uma clivagem entre as camadas mais altas e mais baixas, que fará com que elas entrem em oposição violenta; essa é uma genuína luta de classes e ocorreu com frequência.

Todavia, como tal, uma luta de classes não pode produzir mudanças e nunca o fez. Mesmo a transposição de pessoas como partículas de uma classe para outra raramente ocorreu por meios violentos. As repetidas revoltas ou jacqueries na sociedade feudal eram abortivas por natureza — já que eram conflitos reais de classe.

Deduz-se — pela afirmação de que a pólvora aboliu a Idade Média — que o camponês era impotente contra o cavaleiro. Ao contrário, o cavaleiro era desesperadamente vulnerável ao camponês. Um homem em uma armadura, dependendo de um cavalo também em uma armadura para sua mobilidade, podia ser colocado fora de ação por um ou dois homens velozes com foices e forcados. O cavalo seria paralisado e o cavaleiro derrubado. O cavaleiro mal conseguia montar sem ajuda; no chão, era desajeitado; se caísse, não conseguiria se levantar de um salto. Uma tartaruga humana, o cavaleiro estava equipado apenas para encontrar outro cavaleiro. E, economicamente, não era menos dependente. Sua armadura tinha de ser forjada pelo ferreiro, sua comida e suas roupas fornecidas e seu cavalo sustentado pelo trabalho do camponês. O cavaleiro não conhecia nenhuma arte útil e era inteiramente um produto final de um sistema rígido. Se o sistema fosse interrompido por pouco mais que um tempo muito curto, o cavaleiro fatalmente pereceria.5

E, em muitos casos, as jacqueries obtiveram vitórias imediatas pela violência. Em diversas localidades, os camponeses massacraram seus senhores e tomaram seus castelos, saqueando-os e destruindo-os. Porém, não puderam ir além e foram dominados novamente; nada poderia advir dessas revoltas exceto repressão mais severa. Não era possível induzir a maioria dos camponeses a elevar uns poucos dentre eles à posição de senhores, e não era possível elevá-los todos, porque a ordem da cavalaria precisava de camponeses para sustentá-la. Agindo como uma classe, os camponeses não podiam ter outra coisa em que se basear, exceto o princípio de classes, para reinstituir a sociedade. Portanto, as jacqueries estavam destinadas a serem esmagadas, pelos mesmos princípios de classe que uniu os camponeses em rebelião.

Quando a sociedade de contrato começou a emergir novamente e a dissolver o sistema de classes, membros de todas as classes e grupos lutaram em ambos os lados, com indivíduos tomando parte contra a ordem ou a favor dela. Na Revolução Francesa, a mais obstinada defesa do antigo regime foi feita na Bretanha rural, por camponeses da Vendeia, obedecendo a um comandante camponês. Sua posição era insustentável, porque as armas de uma sociedade de classes pertencem a um modo de conversão de energia inferior ao de uma sociedade de contrato. Essa é a importância da pólvora; é o resultado de uma economia livre, que não proíbe a pesquisa e a invenção. É um instrumento, um efeito, não uma causa.

A invenção do maquinário produtivo e seu uso contínuo só são possíveis numa economia livre, sendo coerentes com seus axiomas em relação à energia. O equivalente da ordem feudal na configuração de uma máquina seria carregar o motor com peso morto, de maneira que ele não pudesse funcionar até que parte desse peso fosse removida; e ajustar o freio para que fosse aplicado sempre que o motor partisse, ou melhor, imediatamente antes da partida. Provavelmente, a noção popular atual da economia medieval seja que as pessoas comuns eram obrigadas a trabalhar exaustivamente. Sem dúvida, eram submetidas a trabalho forçado e seu trabalho era executado por métodos exaustivos, lentos e pouco produtivos; mas a maior dureza era que eles não tinham permissão para trabalhar de outra maneira. O trabalho podia ser punido como um crime. Por exemplo, era ilegal construir, possuir ou usar um moinho manual em casa. (O mesmo tipo de penalidade foi mais tarde reintroduzido com o imposto sobre quotas agrícolas e o imposto de processamento.) Mesmo o carro de boi medieval era tão mal projetado que, quando o animal o puxava, o peso de alguma maneira o sufocava. Assim era com os homens; a competência e a poupança eram penalizadas. Aquele que arava a terra não podia ter esperanças de jamais possuí-la; benfeitorias eram revertidas ao senhor e havia grande chance de causarem obrigações adicionais. Além disso, quando morria um servo, o senhor tomava parte dos bens e dos animais, como “melhor gado”6, sempre tomando o melhor, não importando quão pouco sobrasse para a viúva e os filhos. (A reintrodução das obrigações de morte, impostos sobre transmissão de bens, é um retorno à obrigação medieval do “melhor gado”. Incidindo inicialmente apenas sobre grandes patrimônios, está rapidamente avançando sobre o menor fragmento de herança. A obrigação do “melhor gado” era reconhecida como o símbolo do servo.)

Na sociedade feudal, quando os homens falavam sobre direitos ou liberdades, reivindicavam esses direitos por licença ou costume, sempre com referência a uma concessão permissiva no passado, que deviam provar não ter perdido por deixarem de cumprir com suas obrigações financeiras ou de trabalho. O princípio era de que os homens deviam pagar pela licença para trabalhar ou para ir de um lugar para outro. Por último, a restrição ao comércio limitava os materiais disponíveis; as pessoas não tinham muito com que trabalhar.

Quando o elemento produtivo finalmente reconquistou alguma liberdade natural, lançou-se como que numa orgia de trabalho, satisfazendo uma ânsia anteriormente frustrada. Homens livres exigiram de si mesmos muito mais que qualquer senhor jamais foi capaz de exigir de seus servos, e produziram três vezes mais com trabalho manual, enquanto também desenvolviam maquinário produtivo. Essa explosão inédita de energia foi benéfica pelo aumento de bens e de conhecimento. Mas ocorreu na Europa enquanto parte da estrutura aristocrática permanecia na posse de terras. Bens e trabalho estavam no mercado livre, ou seja, na sociedade de contrato; grande parte da terra não estava lá, permanecendo sob morgadio7 e arrendada por prazos longos. O trabalhador sem terra não tinha onde se amparar e foi pego, por assim dizer, entre um automóvel e uma muralha, ou jogado contra uma rocha por uma corrente impetuosa. O assalariado nunca conseguiu uma base sólida na Europa. A “economia mista” invariavelmente inclui as características onerosas tanto do status como do contrato, pioradas pela combinação. No campo da indústria, durante o início da era industrial, indivíduos excepcionalmente astutos, vigorosos e capazes estabeleceram o ritmo para os menos capazes e os mais fracos. Um empregador que começou exigindo muito de si mesmo esperava um empenho extremo dos trabalhadores que contratava. (Presumia-se que a margem de compensação estava nas chances do futuro — mas o trabalho era feito no presente e o empregador não podia dar garantias sobre o futuro.) Além disso, as horas de trabalho eram um remanescente da economia medieval e rural, em que os homens trabalhavam da aurora até a noite; mas o ritmo medieval era comparativamente lento, com períodos de inatividade e tantos feriados quanto os arrendatários e servos conseguiam por meio da Igreja. A economia livre acelerou o ritmo e cortou feriados, mas manteve o longo dia de trabalho, até mesmo estendendo-o pela iluminação artificial. Mas a aceleração e os salários baixos ocorreram em parte por pressão da aristocracia, o que restava do status. Na sociedade feudal plena, os senhores tinham de manter as forças combatentes e pagar outros custos políticos com recursos obtidos localmente; e o rei vivia às suas próprias custas, pela produção de suas propriedades rurais. No período de transição, o exército e a verba designada à família real se tornaram obrigações nacionais, mantidas pela taxação geral, enquanto a nobreza não apenas ocupava os cargos lucrativos, mas tirava recursos da indústria pelo aluguel de terras, sem liberar terra ao mercado para melhorias pela construção competitiva. Lorde Shaftesbury8, o famoso reformador, admitiu privadamente que acusou os industriais, embora soubesse que a culpa era igualmente dos donos de terra, porque precisava de um partido para aprovar suas leis. O que ele não percebeu é que também estava agindo como um aristocrata, porque as leis de “reforma” que criou, embora bem-intencionadas, eram leis de status numa nova roupagem.

A pequena nobreza também abusava de sua posição, apoderando-se das terras comuns e cercando-as. Essas terras haviam dado aos aldeões um pouco de independência, uma base física. Em geral, embora escarnecesse da busca de lucro por parte da indústria, a pequena nobreza nunca deixava escapar um centavo, viesse do aluguel de um cortiço ou da cabana de um pastor ou mesmo do subsídio de alimentação de um soldado.

Assim, a classe alta absorvia a maior parte dos benefícios materiais da emergente sociedade de contrato e, ao mesmo tempo, se livrava de suas principais obrigações. O único bem que resultou ao trabalhador médio, num primeiro momento, foi que a porta se abriu; e a América existia. (Se a América não existisse, é impossível saber se a porta seria ou não arrombada.) O trabalhador livre podia mudar de emprego, de lugar de residência e até mesmo de país, se tivesse coragem para essa aventura.

Mesmo assim, no período de um século, essa possibilidade foi suficiente para, com uma parte das pessoas aproveitando-se dela, elevar o nível dos salários e das oportunidades, da limpeza e da conveniência, para um padrão que teria parecido fabuloso ao senhor medieval. As horas de trabalho foram da mesma maneira encurtadas; o esforço foi transferido às máquinas; a liberdade produziu frutos. Agora, com o atual decréscimo de liberdade, as horas estão se alongando até na América; a produção está diminuindo; e a aceleração está sendo imposta outra vez sobre os homens, em vez das máquinas.

O impasse de classe pode ser quebrado de duas maneiras. Ou retornando-se pelo barbarismo (liderança) à selvageria ou avançando-se para a organização política apropriada à sociedade de contrato. Mas o avanço não pode ser feito até que uma estrutura seja erguida para acomodar o mecanismo, incluindo o tipo de controle que é usado na mecânica de motores por vários dispositivos de segurança, sejam freios, reguladores ou estabilizadores. A característica essencial desses mecanismos é que eles não agem (e não podem agir) até que surja a real necessidade. São projetados para funcionar apenas se o motor ou a transmissão funcionarem mal. Um freio pneumático ferroviário trava as rodas se o engate se soltar; uma válvula de segurança abre no ponto de perigo da pressão do vapor; um fusível queima com uma sobrecarga de corrente, salvando os circuitos; um giroscópio é neutro enquanto o avião está em equilíbrio. O que devemos ter em mente é que esses controles não são preventivos, mas corretivos; não são primários, mas secundários.

A lei de contrato é o mesmo tipo de mecanismo na organização política. A restrição legal não ocorre antes que indivíduos tenham feito um contrato voluntário e uma das partes tenha descumprido seus termos. A lei contratual não tem autoridade primária ou jurisdição, a menos que seja invocada pelo indivíduo; então, ela pode tomar conhecimento apenas do ponto em questão, que é determinado pelo acordo anterior entre os indivíduos. Incontestavelmente, não é nada além de uma agência; a iniciativa cabe exclusivamente ao indivíduo.

É o único método de organização que dá à faculdade criativa e aos processos produtivos resultantes sua liberdade inerente e necessária. O instrumento político deve ser de caráter secundário.

Mas qualquer tipo de organização implica em uma base permanente. Ela deve possuir uma localidade fixa para sua estrutura. Isso é verdade até para mecanismos expressamente projetados para mobilidade; um avião precisa de uma base tanto quanto um antiquado moinho. A base do avião é o campo de pouso; mas, numa visão mais ampla, o avião é parte da linha de transmissão de um sistema de energia de circuito muito longo, que se embasa na propriedade privada como instituição. A propriedade privada é necessariamente individual; nem a propriedade grupal nem o comunismo estatal podem gerar um potencial de energia tão elevado. As nações coletivistas de hoje (Rússia, Itália, Alemanha, Japão) são aviões funcionando com a energia extraída do fim de um circuito longo de energia gerado pelas economias livres no passado recente.

O problema da estrutura para a organização política atrasou a fundação de uma Sociedade de Contrato plena em milhares de anos. A primeira estrutura política que os homens foram capazes de encontrar ou desenvolver foi a da aristocracia. Embora deva ter começado como uma extensão da família (não justificada na natureza), ela foi posteriormente tratada como validada por um conceito ou teoria que tinha ainda menos relação com os fatos. O nobre passou a ser considerado, ou a se considerar, uma espécie superior, alçado à sua posição por uma diferença semimística, semifísica em relação ao camponês ou ao plebeu, uma diferença de “sangue” confirmada por ordenação divina. A biologia não conseguiu descobrir nenhuma evidência para apoiar essa teoria; embora uma família nobre possa ter sido fundada por alguma pessoa de talento excepcional, seus descendentes retornam à média. Além disso, a linha era rompida com frequência e o sangue misturado com o de pessoas saídas das classes supostamente inferiores. Finalmente, aristocracias foram despojadas de sua posição e nenhuma divindade mística interveio em favor delas. É impossível definir, em termos racionais, exatamente em que consiste a qualidade aristocrática. Aquele epítome da categoria, o Duque de Saint-Simon, que “acreditava” fanaticamente nela, descreveu muitos de seus companheiros nobres como canalhas, imbecis, lunáticos, covardes, mentirosos, bajuladores, alcoviteiros, imprestáveis e libertinos, deformados, feios, medíocres, desleais e, de outras maneiras, inúteis ou perniciosos. Mesmo assim, sua fé permaneceu inabalada.

E havia um fato além da fantasia. Embora estivesse obsoleta na França quando observada por Saint-Simon e, por tanto, duplamente corrompida, a aristocracia teve uma utilidade prática em seu tempo. Ela delimitava as bases fixas para a estrutura política, pela soberania local de subdivisões territoriais. Os títulos originais, privilégios e incumbências dos grandes nobres estavam vinculados a áreas determinadas de terra e eram inseparáveis delas.

Não foi a solidariedade de classe da aristocracia que permitiu que ela servisse de estrutura, mas a separação das unidades, um sistema de descentralização. As amargas acusações contra as aristocracias eram bem reais; a ordem era opressiva não apenas por abuso, mas em princípio. Embora os autores de romances medievais possam embelezar o quadro em retrospecto, o senhor tinha o direito de extorquir dinheiro para permitir que uma garota se casasse ou que um menino aprendesse a ler; podia tomar uma vaca da viúva enlutada; um direito costumeiro do senhor que arrendava terras era recolher o esterco dos animais do arrendatário para usar como adubo. A aristocracia bloqueava a luz e o ar. Existia para causar ódio, a expressão emocional da energia frustrada. O mecanismo de governo que ela usava (a lei de status) é o da embreagem preventiva. Sua atmosfera social é tingida pelo desespero; durante a Idade Média, quando a aristocracia predominava, os homens tinham visões de morte e do inferno e do fim do mundo, miséria aqui e no além. Mas toleravam calados porque não sabiam o que colocar em seu lugar. Se derrubassem os pilares da estrutura, o teto cairia sobre eles. Tinham de ter alguma forma local de resistir tanto aos bárbaros como à burocracia centralizada que os havia entregado aos bárbaros. A estagnação completa só era evitada pelo fluxo de energia canalizado pela sociedade modificada de contrato da Igreja e por algum comércio; e não é por acaso que o comércio era feito sob o abrigo da catedral. A Igreja também preservou o aprendizado, uma vez que a palavra escrita é indispensável para um sistema de energia de circuito longo.

Assim, as forças de energia estática e cinética produziram um arranjo incômodo, embora em constante perigo originado de dentro e de fora.




1 Tão recentemente como no reino de Luís XIV na França, era aconselhável a um nobre que estivesse na corte pedir permissão até mesmo para ir para sua propriedade, porque corria o risco ser aprisionado pela vontade do rei, por tempo indeterminado, sem acusação ou julgamento, por lettre de cachet. Ele também poderia ser proibido de deixar sua propriedade ou de retornar a Paris. (N. da A.)
2 Isto foi escrito seis anos antes de George Orwell publicar 1984, em que apresenta os termos “duplipensar” e “novilíngua”. (N. do T.)
3 Fissíparo: que se reproduz pela fragmentação do próprio organismo. (N. do T.)
4 Squidgicum Squee: criatura do folclore dos lenhadores americanos do século 19. Muito tímido, não queria jamais ser visto. Ao ouvir ou ver alguém se aproximando, respirava fundo e engolia a si mesmo. (N. do T.)
5 Em tempos recentes, tem sido dito que a revolução se torna impossível quando um governo tem tecnologia de máquinas a sua disposição, porque a população desarmada é impotente contra armas de alto poder. Ao contrário, o exército equipado tecnologicamente depende absolutamente do livre funcionamento ininterrupto da ordem civil para suas armas e suprimentos. Aviões e tanques são ainda mais imediatamente dependentes da produção fabril que o cavaleiro era do forjador. E a produção de máquinas não pode ser mantida eficientemente por trabalho forçado. (N. da A.)
6 Em inglês, heriot. Era o direito de um senhor na Europa feudal de tomar o melhor cavalo e/ou roupa de um servo, quando este morria. Surgiu da tradição do senhor emprestar um cavalo ou armadura ou armas de combate, de maneira que quando o servo morresse o senhor reivindicaria legitimamente sua propriedade. (N. do T.)
7 Em inglês, entailment. Imóvel herdado que não podia ser vendido, legado livremente ou alienado de nenhuma maneira pelo proprietário, mas que devia passar, por lei, para os seus herdeiros legais quando ele morresse. (N. do T.)
8 Anthony Ashley-Cooper (1801 – 1885), 7º Conde de Shaftesbury, foi um político e reformador social inglês. Foi parlamentar entre 1826 e 1851. Propôs leis para tornar mais humano o tratamento de doentes mentais, proibir o trabalho infantil, limitar a jornada de trabalho, proibir o trabalho de mulheres e crianças em minas de carvão e de crianças como limpadores de chaminés. (N. do T.)

sexta-feira, 13 de setembro de 2013

Dúvidas sobre o Festival Musical do Mickey



Toda vez que vejo o comercial do Festival Musical do Mickey, me faço duas perguntas, para as quais não tenho resposta.

1) Por que o Ministério da Cultura patrocina o Mickey?
2) Por que o locutor fala MINNEY?

domingo, 8 de setembro de 2013

O Deus da Máquina, capítulo IX

Mapa da Expedição de Lewis e Clark

O capítulo IX de O Deus da Máquina, A Função do Governo, traz uma das discussões mais importantes de todo o livro. Isabel Paterson demonstra que as únicas coisas que um governo faz são proibir e taxar. Na verdade, são as únicas coisas que um governo pode fazer.

Governos são necessários, porque é necessário que determinadas ações sejam proibidas. Taxar é necessário para que o governo tenha meios de agir. Mas não devemos esquecer em nenhum momento de que o governo é um mal. Um mal necessário.

A Função do Governo

O Deus da Máquina, capítulo IX
A Função do Governo
Isabel Paterson

Mapa da Expedição de Lewis e Clark

Uma vez que governo e poder sempre foram mais ou menos sinônimos, e “política da máquina” é uma expressão popular, é curioso que a agência política nunca tenha sido rigorosamente examinada a essa luz, como um problema específico de engenharia. Quando a energia é usada num mecanismo, o resultado deve estar de acordo com o tipo de máquina. A fonte da energia pode ser conhecida; a natureza do mecanismo é facilmente descoberta em sua ação; e é absurdo esperar qualquer outra ação além daquela da qual as peças combinadas são capazes. Mesmo que um dispositivo pare completamente de funcionar ou cause apenas destruição, as leis da energia e do mecanismo não se alteram nem variam; o defeito está no aparelho. Mas isso ainda não foi plenamente entendido com relação aos assuntos humanos, por diversas razões implícitas no desenvolvimento da inteligência humana.

Primeiro, a energia é um fenômeno natural. No estágio de associação humana no qual a opera apenas por meio das unidades e modos de conversão encontrados na natureza, a energia não necessita de uma definição abstrata.

Segundo, em engenharia mecânica, que trabalha com objetos inanimados, a primeira consideração é tão óbvia que não precisa ser postulada ou receber um valor separado no cálculo consciente. É o fator da base subjacente. A base de todos os mecanismos é a terra física. O engenheiro só precisa escolher um local, nivelá-lo ou solidificá-lo para permitir que o mecanismo repouse sobre ele e, evidentemente, precisa equilibrar, pesar ou fixar sua máquina para que ela não tombe. Mas ele sabe que o chão está lá; todos os seus cálculos levam esse fator em consideração como um componente distribuído; massa, peso, extensão, tensões, volume são medidas estabelecidas a partir da base.

Terceiro, na engenharia mecânica, que é confinada a condições materiais, a fonte da energia é determinada; uma unidade pode ser estabelecida e a transmissão e a carga ajustadas ao fluxo. Cada fator pode ser medido.

Por último, o ponto mais importante, porque ele obscurece a natureza do governo: a física não tem um nome para a função exata que é delegada ao governo. É algo que não existe em nenhuma manifestação de energia por meio de materiais inanimados. É peculiar às criaturas vivas. A energia é pré-existente no universo e não pode ser criada a partir do nada; mas, num circuito de energia específico, é possível determinar um ponto aproximado através do qual uma porção da energia universal é introduzida no circuito; esse é o dínamo, gerador, conversor ou motor. Na organização social, o homem é o dínamo, em sua capacidade produtiva. O governo é um aparelho-fim e um beco sem saída no que se refere à energia que usa. Em princípio, um mecanismo composto de material inanimado, que utiliza energia, é completamente calculável. Um motor de certa potência vai propelir determinada carga a um determinado gradiente; se a energia for cortada, a massa e a quantidade de movimento vão determinar seu ponto de parada, ou um obstáculo de determinada resistência vai pará-lo. Nenhuma previsão semelhante pode ser feita sobre as ações de um ser humano funcionando assim. É verdade que sua força muscular pode ser medida; mas enquanto ele se move com suas próprias forças, não é possível medir nem prever o que o fará iniciar um movimento, parar, virar ou acelerar. Tudo isso depende do que ele pensa; um fator não mensurável.

O ser humano tem uma faculdade para a qual não existe equivalente nos processos da natureza inanimada. Ele inicia a si mesmo e pode inibir a si mesmo.

A energia é o meio no qual a vida existe. Um bebê é capaz de mover seus membros e absorver alimentação (combustível) desde quando nasce; cresce em atividade espontânea instintiva e ganha o controle necessário simultaneamente. Assim, “na natureza”, a energia, o mecanismo e o controle parecem ser uma coisa só e o indivíduo pode funcionar sem defini-los separadamente ou de maneira abstrata. As relações sociais e econômicas dos selvagens também não precisam de tais distinções. Contatos externos fazem funcionar esses diversos fatores como se eles fossem um único. A necessidade é imediata; praticamente não existem consequências posteriores, até onde o selvagem pode perceber. Já que não pode guardar provisões para o futuro, é prudente se fartar quando existe abundância de comida e, assim, armazenar alguma energia em seu corpo. Se encontrar um urso pardo ou brigar com um de seus companheiros, deve tomar a decisão imediata entre lutar ou fugir. Executa sua própria justiça, se houver uma, individualmente ou por um comitê do grupo. Se tiver algum tipo de abrigo, tem de carregá-lo consigo. Nessas questões, está lidando com causa e efeito, que são fatores da engenharia; mas não incluem transações no espaço e no tempo. Por outro lado, em suas relações pessoais, mesmo um selvagem reconhecerá que intenções, até certo ponto, qualificam a resposta ou a retaliação apropriada. Uma intenção é um imponderável; pertence a uma ordem não matemática de abstrações. Assim, embora seja uma consideração adequada nas relações humanas, ela certamente retarda a formulação dos princípios da física ou da engenharia. A falta dessa distinção é a principal diferença entre o pensamento primitivo e o científico; e é uma explicação suficiente para a origem da crença em magia. Uma vez que é possível a uma pessoa dissuadir outra ou convencê-la a agir usando apenas palavras, não é totalmente irracional, embora seja um erro, imaginar que as feras, os objetos, as doenças ou o tempo possam ser influenciados por uma abordagem semelhante. Essa suposição infeliz está quase inextricavelmente embutida nos hábitos mentais da humanidade. A ciência começa por bani-la do campo em que ela é irrelevante. A ciência percebe que os objetos inanimados não ouvem o que é dito a eles, nem se importam com intenções. Ainda assim, o nome da ciência tem sido usado para levar esse erro um passo além, numa sequência em que sua falsidade é ainda mais sutil e mais difícil de erradicar, com a proposição de que o homem não é mais que um mecanismo físico; e, já que pode ser induzido a liberar sua energia por palavras ou compulsão, deve responder infalivelmente segundo uma fórmula se for previamente "condicionado", como a máquina responde aos controles. O que se negligencia é o fato de que, mesmo se considerado um mecanismo, o homem é uma máquina genuinamente automática, iniciando-se por conta própria e agindo por conta própria. Nenhum mecanismo inanimado pode ser automático dessa maneira.

O homem é assim por virtude da iniciativa e da faculdade inibitória. A iniciativa é a própria vida. A inibição completa é a morte. Porém, uma criatura viva incapaz de inibir a si mesma rapidamente se destruiria.

Como visto, as inibições requeridas pela vida selvagem funcionam diretamente, assim como o resultado da iniciativa retorna diretamente ao indivíduo. O caçador faz uma arma para usar, mantém essa arma em sua posse, come a caça que mata; sua mulher transforma a pele em roupas. Na civilização, os processos para conseguir comida e abrigo são prolongados. Leva pelo menos um ano de antevisão para cultivar o solo e colher a produção; os grãos precisam ir ao moinho, as peles ao curtidor, os têxteis ao tecelão, antes que possam ser usados. Quando um homem civilizado constrói uma casa, o projeto precisa ser criado e os materiais reunidos por um período considerável. Essas coisas são pagas com economias que envolvem a troca de trabalho com muitas outras pessoas. Ele deve, portanto, impor restrições a si mesmo por causa de objetivos distantes no tempo e que precisam ser dirigidos através do espaço. Ele vive no passado e no futuro tanto quanto no presente. Sua iniciativa será perdida, a menos que iniba a si mesmo; e, além disso, ele precisa poder contar com outras pessoas que participam da troca, e que também devem observar inibições de longo prazo. Num estágio ainda inicial do comércio, torna-se inconveniente depender do escambo de bens entre proprietários. Com objetos de valor desigual, ou numa série de trocas, ou no caso de entregas em momentos diferentes, faz-se necessário um meio de valor: o dinheiro. E, ao longo da série, uma sucessão de inibições deve ser seguida; de outra maneira, em algum ponto os bens seriam consumidos e não haveria retorno. O circuito de energia seria rompido.

É por isso que os selvagens não precisam de um governo formal, enquanto ele é necessário à civilização. Para uma economia civilizada, que consiste em produção e trocas numa sequência que se estende no tempo e no espaço, deve haver uma agência para servir de testemunha dos contratos de longo prazo. Essa agência deve garantir que os contratos sejam cumpridos na ausência de uma das partes ou impor uma penalidade previamente acordada em caso de descumprimento. A autoridade apropriada para esse propósito é, portanto, delegada ao governo.

Como a palavra indica, a faculdade inibitória é uma função do indivíduo; falando estritamente, não pode ser delegada. Nenhuma faculdade pode ser delegada. Um homem pode conceder o produto de seu trabalho e talento a outro voluntariamente; um homem pode tomar o produto de outro por força ou fraude; ou os homens podem comercializar seu trabalho e seus produtos. Mas um homem não pode transferir sua força ou inteligência para a estrutura física de outro homem. O que pode ser feito, no caso em que um indivíduo não iniba a si mesmo conforme havia concordado em fazer, ou se ele infringe a liberdade ou toma a propriedade de outro, é obrigá-lo a uma pagar uma multa ou impor restrições externas; e agentes públicos podem ser encarregados por autoridade delegada de executar a cobrança. Pelos mesmos meios, esses agentes podem tomar parte de sua produção, em impostos, para sustentá-los e pagar as despesas de sua organização. É isso o que faz o governo e é tudo o que ele pode fazer. O governo é uma agência proibitória e expropriativa. Seu tipo de mecanismo necessariamente corresponde a sua função.

Se o processo completo não for levado em consideração, é possível imaginar erroneamente exceções à afirmação acima. A citação a seguir é uma exposição clara e concisa do ponto em que ocorre o mal-entendido. “O regulador de uma máquina a vapor não é meramente um mecanismo proibitório, mas comanda mais vapor quando necessário; e os vários controles elétricos funcionam da mesma maneira; por que o governo político não pode funcionar assim? A expedição de Lewis e Clark1 e outras expedições exploratórias patrocinadas por governos no oeste não foram ações proibitórias. O papel que o governo desempenhou no desenvolvimento das terras públicas do oeste não foi meramente proibitório.”

Quando o regulador de uma máquina a vapor comanda mais vapor, obviamente o vapor (energia) precisa estar lá para ser comandado; e foi previamente confinado. A função do regulador não é obter o vapor, ou seja, produzir a energia. Como mecanismo, ele é um instrumento de liberação, o que implica em uma restrição prévia. Um mecanismo proibitório pode ser feito de tal maneira que posteriormente ele deixe de proibir; um freio pode ser desacionado depois que foi acionado, ou ter efeito apenas quando alguma força se levante contra ele, de maneira que a pressão ceda quando a força diminuir. A lei do contrato é um freio desse tipo, que se ajusta automaticamente. Mas a função do freio é, de toda maneira, proibitória. Num mecanismo simples desse tipo, não pode ser atribuída uma “função” à cessação da função. O regulador da máquina a vapor, ou o controle elétrico, são diferentes; a confusão procede do nome “regulador”2. Se esse termo for usado, a definição exata de sua função é que ele governa o governo; ele coloca uma limitação no governo. Numa organização política, essa função é realizada por uma constituição, que estabelece um limite além do qual o governo não tem poder legítimo.

Para averiguar qual a ação do governo numa sequência de ações como a da expedição de Lewis e Clark, consideremos todos os fatores e condições. A terra virgem estava lá, na ordem da natureza. Muitos indivíduos privados haviam explorado boa parte dela. O conhecimento e a habilidade dos dois exploradores citados foram desenvolvidos por eles mesmos. Por que eles foram até o governo antes de fazer sua expedição? Para obter fundos e um comissionamento oficial. O que o governo fez e que Lewis e Clark não podiam fazer? Expropriar fundos de outras pessoas privadas, pelos impostos. Os suprimentos para a expedição vieram da produção privada. A ação do governo foi meramente expropriativa. O comissionamento oficial foi o aviso preliminar de que haveria uma reivindicação proibitória do território que a expedição atravessasse. Outros indivíduos privados foram até lá depois, às suas próprias custas, e fizeram o trabalho de tornar aquela terra cultivável. O governo exerceu sua função proibitória para registrar e impor os termos pelos quais um indivíduo poderia obter títulos de propriedade de qualquer parte da terra. Foi para esse propósito que a função proibitória foi delegada ao governo em primeiro lugar, para estabelecer títulos de registro; mas é um poder proibitório e nada mais. Sua “concessão” é uma liberação carimbada. Em qualquer tempo e lugar em que o governo intervém em uma sequência de ações, ele o faz com um ato autorizado de proibição ou expropriação. Qualquer outra coisa que ele “faça” é simplesmente um ato de liberação, uma cessação de função. Essa é a sua natureza, essa é sua função, esse é seu tipo de mecanismo. Isso não é menos verdade se dizemos que “o governo constrói uma represa”, ou qualquer outra obra. O governo expropria recursos e contrata pessoas para fazer o trabalho. A ação peculiar do governo é o ato de expropriação.3 Pessoas privadas podem construir represas e de fato o fazem. Mas não podem expropriar fundos. Governos despóticos, como o do Egito de quando as pirâmides foram construídas, expropriam a energia na fonte, pela compulsão de pessoas, ou seja, pelo trabalho forçado.

Onde vários fatores operam numa sequência de ações, a função de cada um só pode ser definida por eliminação. Aquela que invariavelmente ocorre quando um dado fator está presente e não ocorre em sua falta deve ser sua função. Examinemos qualquer sequência de ações em que o governo esteja envolvido. A primeira coisa que o governo faz e deve fazer é emitir um decreto ou aprovar uma lei. Nenhum decreto ou lei pode conceder a um indivíduo uma faculdade que a natureza tenha negado a ele. Uma ordem governamental não pode consertar uma perna quebrada, mas pode comandar a mutilação de um corpo sadio. Não pode conferir inteligência a alguém, mas pode proibir o uso da inteligência. Qual a primeira provisão para pôr uma lei em vigor? Deve haver uma “cláusula habilitante”, e uma cláusula habilitante é aquela que toma posse de valores ou materiais de impostos pagos com recursos privados, em dinheiro, em gênero ou em trabalho. Uma pessoa privada que toma os bens de outra é um criminoso; essa ação é reservada ao governo. Da mesma maneira, o governo, por seu poder judiciário, pode julgar pessoas acusadas de crimes capitais e fazê-las morrer. Faz parte dos poderes físicos dos indivíduos matarem uns aos outros; mas não se considera que ninguém tenha esse direito, a menos que seja em legítima defesa (da qual se considera que a vingança seja uma extensão). Uma vez que um homem não pode ser juiz em causa própria, considera-se adequado delegar a autoridade de vingança e, na medida do possível, de ajuda na autodefesa. Esse é o poder de morte. O poder de vida não pode ser delegado. O governo, portanto, é apenas um instrumento ou mecanismo de apropriação, proibição, compulsão e extinção; na natureza das coisas, não pode ser outra coisa, e não pode funcionar para outra finalidade.

Sua exata definição em ação mostra o quanto era acurada a frase “um mal necessário”. Visto sob essa luz, o governo é tão horrível — e suas reais operações no passado foram, às vezes, tão terríveis — que é compreensível que não se perceba que ele é necessário. Mas isso também tem de ser reconhecido, para descobrirmos sua extensão. O governo certamente é necessário para relações econômicas no espaço e no tempo; essa necessidade é derivada da necessidade da faculdade inibitória no indivíduo. Mas o erro básico da premissa autoritária ou estatista consiste em fazer essas necessidades públicas e privadas coextensivas. O governo é um requisito marginal, necessário apenas quando a faculdade inibitória do indivíduo não é exercida de acordo com o consenso e o direito natural (ou seja, liberdade). Além desse mínimo infinitesimal, o governo é uma entronização da paralisia e da morte. Vem daí a perversão da lógica que afirma que o cidadão existe apenas "para o estado" e não tem o direito individual à vida. Na verdade, a vida só pode existir por seu próprio direito; ou seja, é ridiculamente fútil para o estado (ou para quem quer que seja) ordenar a um homem que viva, se suas faculdades estiverem em falência; nem pode uma vida ser criada por uma ordem. O processo criativo não funciona por meio de ordens. Mas é possível ordenar a morte. Assim, o governo é secundário, instituído por acordo; a vida, que pertence ao indivíduo, é primária. O governo é um agente, não uma entidade.

Isto tem de ser reafirmado, porque o significado da afirmação de que os direitos à vida e à liberdade são inalienáveis foi esquecido ou deliberadamente obscurecido. Pessoas que não tem o costume de vincular significados exatos às palavras dirão que o fato de que um homem pode ser injustamente executado ou aprisionado contradiz essa proposição. Não contradiz. O direito está com a vítima da mesma forma e, de maneira completamente literal, não pode ser alienado, porque alienar significa passar para a posse de outro. Um homem não pode desfrutar nem da vida nem da liberdade de outro. Se matar dez homens, não vai viver dez vidas nem dez vezes mais tempo, em consequência disso; nem será mais livre se colocar outro homem na prisão. Os direitos são por definição inalienáveis; somente privilégios podem ser transferidos. Mesmo o direito de possuir bens não pode ser alienado ou transferido, embora um dado bem possa ser. Se os direitos de um homem são desrespeitados, nenhum outro homem os obtém; ao contrário, todos os homens são, por consequência, ameaçados com a mesma injustiça.

Não existe bem coletivo. De maneira estrita, não existe nem mesmo um bem comum. Existem, na ordem natural, materiais e condições com os quais o indivíduo é capaz de experimentar o bem, usando sua vontade e suas faculdades receptivas e criativas. Perguntemos: a luz do sol não é um bem comum? Não; as pessoas não desfrutam do benefício pela comunidade, mas individualmente. Um homem cego não pode enxergar pela comunidade. O mesmo grau de exposição solar pode causar insolação a uma pessoa, enquanto é benéfico para outra; embora, para sermos precisos, não será o mesmo raio de luz solar que cairá sobre ambos. Alexandre, o Grande, com o poder do império a seu comando, perguntou a Diógenes: “Há alguma coisa que eu possa fazer por você?” Diógenes respondeu: “Você pode dar um passo para o lado e parar de me fazer sombra.” O homem, como indivíduo, é capaz de experimentar e infligir tanto o bem como o mal, desde que tenha escolha. E também terá a responsabilidade por seus erros de julgamento. Permitindo a possibilidade do erro, o bem é obtido pela recepção e domínio das forças da natureza, e por meio da associação voluntária de indivíduos por livre escolha. Mas mesmo nessas relações voluntárias entre indivíduos, é possível que uma pessoa tenha prazer enquanto outra experimenta dor; não há uma soma coletiva ou uma equação do bem. “O maior bem para o maior número” é uma frase viciosa; não existe uma unidade do bem que, por adição ou multiplicação, possa constituir uma soma de bem a ser dividida pelo número de pessoas. Jeremy Bentham, tendo adotado a frase, passou o resto de sua vida tentando extrair algum significado de suas próprias palavras. Ele vagueia por imbecilidades quase inacreditáveis, sem nunca perceber por que elas não podem significar nada. Se dez homens gostam de jogar damas e apenas um aprecia uma sinfonia, qual é o maior bem na soma? E se fosse necessária uma escolha do que seria feito e fosse possível provar que a sinfonia seria onze vezes “melhor” que as damas, o que fazer? O resultado seria ou o maior bem para o menor número ou o menor bem para o maior número. Em qualquer caso, é impossível esconder o fato de que o bem é feito apenas para indivíduos (o “número” trai essa verdade, porque é o número de pessoas); mas se admitirmos que o bem de uma pessoa compensa o sofrimento de outra, isso é monstruoso. Justificaria torturas abomináveis de uma minoria se a maioria afirmasse se beneficiar delas; se o “bem” é quantitativo e forma um total por maioria, não pode haver juiz do que é bom, exceto a maioria. Essa regra é, de fato, a justificativa alegada pelos nazistas para o extermínio dos judeus e pelos comunistas russos para o assassinato brutal dos membros mais produtivos da população. Ambos agiram segundo a mesma teoria.

O fato de que não existe bem coletivo não contraria o fato de que o homem tem relações sociais e naturais, que também são de ordem espiritual. E é a expressão dessa possibilidade espiritual que a sociedade coletivista proíbe. A sociedade cristã difere fundamentalmente das formas anteriores de associação humana, sendo organizada para o pleno desenvolvimento da personalidade. A clivagem é mais evidente na instituição do casamento. No regime cristão, um casamento válido pode ser feito pelo consentimento das duas partes e não pode ser feito sem ele; não pode ser anulado pelos pais, guardiães ou pela comunidade, contra a vontade do casal, porque cada pessoa nasce com o direito à sua própria vida. E a autoridade paterna, na sociedade cristã, não pode se estender ao poder de morte ou dano real aos filhos; é apenas coextensiva à necessidade de criação e educação, originando-se da relação natural e da obrigação moral assumida voluntariamente no casamento. Os direitos e obrigações naturais, os direitos e responsabilidades pessoais, a vontade e o senso moral são inseparáveis.

Em sociedades coletivistas primitivas, os pais tem o poder de morte sobre seus filhos. Em reversões modernas a essa regra antinatural, o mesmo poder é concedido ao estado. No Japão, a sociedade coletiva absoluta, a família tem o poder de forçar os jovens ao casamento; e, na verdade, lá não existe outra maneira. Não existe reconhecimento legal de um casamento se não for assim. Além disso, divórcios podem ser determinados e impostos pela família. Isso pode ocorrer simplesmente porque os dois jovens começaram a gostar um do outro. Sua afeição pessoal era considerada prejudicial ao interesse coletivo do clã. Significativamente, essa característica do coletivismo reapareceu espontaneamente a partir do mesmo princípio, na Comunidade Oneida4, nos Estados Unidos. Para impedir o “egoísmo”, a promiscuidade era praticada e, se dois jovens desenvolvessem uma forte afeição mútua, o que era chamado de “amor especial”, isso era denunciado como antissocial; o jovem casal era separado e convencido a mudar de parceiros frequentemente. A ideia é tão revoltante que parece difícil de acreditar, mas é o que era feito. O coletivismo sempre critica as afeições e relações naturais e sugere deslocar o objeto das obrigações pessoais para a “sociedade”. Promete divórcio fácil, apoio do Estado para cuidar das crianças e os prazeres da promiscuidade; termina em escravidão e violação da personalidade.

Então, como o homem tem a capacidade de fazer ou infligir o mal deliberadamente, um dispositivo é usado para fazer com que a ação se retraia sobre si mesma, na medida do possível. Deve ser ou uma barreira estática, ou um mecanismo reativo, ou ambos — proibição e penalidade. Esse poder se origina da coletividade e é encarnado no governo, que deve agir segundo a lei.

A confusão a respeito da ação coletiva surge do poder inicial do homem de fazer o mal e a consequente natureza da lei. Ao propor uma lei qualquer, o proponente não percebe o que está fazendo, a menos que se pergunte: “É minha intenção impor restrições ou infligir perda ou dor a alguma pessoa, na contingência especificada?” Porque é isso o que a lei fará. A pergunta que segue é: “A contingência surge da ação inicial daquela pessoa infligindo injúria ou perda sobre outra pessoa, por intenção ou negligência?” É um erro fundamental supor que uma lei possa fazer algum bem e não prejudique ninguém. Se faz algum bem ou não, uma lei imposta deve prejudicar alguém. A questão correta é se essa pessoa colocou ou não o mecanismo em movimento ao prejudicar outra pessoa anteriormente.

“A lei, em sua majestade, proíbe tanto o rico como o pobre de dormir embaixo da ponte”, escreveu Anatole France. Mas isso é tudo o que a lei pode fazer, a menos que decrete que tanto o rico como o pobre não podem dormir em nenhum outro lugar, ou devem dormir na cadeia. A pobreza pode ser causada pela lei; não pode ser proibida pela lei. O que se chama de legislação moral deve inevitavelmente aumentar o mal alegado. A única maneira de impedir a prostituição completamente seria aprisionar metade da raça humana; fora isso, a lei pode tomar uma parcela dos ganhos da prostituta, com uma multa, e assim induzi-la a ganhar mais e a pagar por “proteção”. O tráfico de drogas se torna rentável pela proibição e, portanto, cresce. Os atos proibidos são aqueles pelos quais as pessoas prejudicam somente a si mesmas; portanto, a lei pode apenas prejudicá-las mais.

Por outro lado, leis que são projetadas para atuar no caso em que uma pessoa prejudica outra voluntariamente não necessariamente conseguem dissuadir o perpetrador de prosseguir em seu curso. Se a lei proíbe o assassinato, ela pode não ser capaz de impedir completamente os assassinatos, mas é razoável supor que deve ser um meio de intimidação. A lei também pode exigir a restituição da propriedade roubada — embora também tenha de executar uma ação de expropriação, ao cobrar um imposto sobre a propriedade, para permitir que os ladrões sejam punidos. Sua limitação é que ela deve funcionar sobre uma ação exercendo uma ação semelhante, mal por mal. Esse é o poder da coletividade e seu uso.

Mas devemos ter sempre em mente que o elemento constituinte do governo não é a força; é a faculdade moral que decide e cria o mecanismo pelo qual a força deve recair sobre si mesma. E a faculdade moral está no indivíduo.

A expedição de Lewis e Clark foi a primeira expedição americana a cruzar o que é hoje a porção oeste dos Estados Unidos. Foi comissionada pelo presidente Thomas Jefferson logo após a Compra da Louisiana, ocorrida em 1803. Composta por um grupo de voluntários do Exército americano, foi comandada pelo capitão Meriwether Lewis e pelo segundo-tenente William Clark. A missão partiu de St. Louis, às margens do rio Mississipi, em maio de 1804 e retornou em setembro de 1806. O objetivo principal era explorar e mapear o território recém-adquirido, encontrar uma rota viável que cruzasse a metade oeste do continente e estabelecer a presença americana nessa área, antes que a Grã-Bretanha e outras potências europeias reivindicassem essas terras. Os objetivos secundários eram científicos e econômicos: estudar as plantas, animais e a geografia da região e estabelecer comércio com as tribos indígenas. (N. do T.)

Em inglês, governor, governador. Dispositivo que regula a velocidade de uma máquina. (N. do T.) (N. do T.)

A agência dos correios é normalmente apontada como o melhor exemplo de empreendimento governamental; mas o serviço postal depende inteiramente dos meios de transporte inventados e operados pela iniciativa privada. É a forma mais simples de negócio que se pode imaginar, pura rotina; mesmo assim, apesar do monopólio estatal, sempre opera no vermelho; e as nomeações lucrativas ocorrem por favorecimento partidário, o maior de todos os empregos sendo concedido a um homem cujo tempo é ocupado principalmente com a obtenção de votos. Boas estradas existem apenas por causa do progresso da iniciativa privada em materiais e maquinário. O abastecimento de água das cidades foi fornecido originalmente pela iniciativa privada e expropriado pelo governo. Por séculos, o governo promoveu a doença, o desconforto e a melancolia com impostos sobre janelas, impostos sobre lareiras, impostos sobre o sal. A iniciativa privada cavou o Canal de Suez e forneceu o maquinário, o conhecimento e a habilidade para cavar o Canal do Panamá. Sempre e em toda parte, o progresso aconteceu exclusivamente por invenção, iniciativa, trabalho e poupança privados, e na razão inversa da extensão do governo. (N. da A.) (N. do T.)

A Comunidade Oneida foi uma comuna religiosa fundada por John Humphrey Noyes em 1848, na cidade de Oneida, Nova York. Seus membros acreditavam que Jesus voltou no ano 70, possibilitando que eles estabelecessem seu reino milenar e estivessem livres do pecado e fossem perfeitos neste mundo, e não apenas no Céu. A Comunidade Oneida praticava a propriedade comunal, a poligamia e tentou uma espécie de programa de eugenia chamado de estirpecultura. Começando com 87 membros, chegou a ter 306 em 1878. Foi dissolvida em 1881 e se transformou na gigantesca empresa de prataria Oneida Limited. (N. do T.) (N. do T.)