domingo, 27 de outubro de 2013

O Deus da Máquina, capítulo XIII

No capítulo XIII de O Deus da Máquina (Escravidão, o Defeito na Estrutura), Isabel Paterson aponta o grave defeito que corrompeu os planos dos Founding Fathers dos Estados Unidos, a escravidão.
Como não tiveram a coragem de abolir a escravidão desde o início do país, perderam a chance de declarar a liberdade como o direito universal do qual se origina a autoridade. Permitindo que, por sua autonomia, um estado pudesse tirar a liberdade de um homem, estava aberta a possibilidade de tirar a liberdade de qualquer homem. Além disso, a Constituição incluiu uma cláusula de extradição, escrita com eufemismos para não usar as palavras "escravo" ou "escravidão", que obrigava os estados livres a devolverem aos estados escravagistas os escravos que fugissem e cruzassem suas fronteiras.
Como resultado da Guerra Civil, os Atos de Reconstrução eliminaram completa e definitivamente a figura autônoma dos estados. Embora os Atos tenham sido concebidos para punir e sujeitar os estados do sul, na prática, todos os estados se sujeitaram a uma extensão inaudita do poder federal sobre eles.

Escravidão, o Defeito na Estrutura

O Deus da Máquina, capítulo XIII
Escravidão, o Defeito na Estrutura
Isabel Paterson

As três grandes ideias foram reunidas afinal sem obstáculos; a alma individual e imortal, exercendo o autogoverno pela lei e livre para buscar o conhecimento por meio da razão. Depois de dois mil anos, os recursos da ciência foram liberados para a aplicação produtiva. A Declaração da Independência e a Constituição foram os instrumentos temporais desse evento. Mas, em seu projeto original, a Constituição teve de admitir um defeito primordial, uma contradição irreconciliável. A escravidão era uma instituição existente. Qualquer que fosse a forma de governo adotada pela União, ela devia extinguir a escravidão ab initio (como um fato oposto à ordem moral do universo) ou tolerá-la, desviando-se dessa declaração axiomática. Aqui, a forma federal, que é indispensável para a estabilidade, infelizmente admitiu um expediente ambíguo. Foi possível, temporariamente, deixar a escravidão para a jurisdição estadual. Sem dúvida, a opinião dos donos de escravos estava lastreada em sua posse iníqua; mas havia também um pretexto plausível para o adiamento. Havia um temor sincero de que os negros, muitos recém-trazidos da África, pudessem constituir um ônus e um perigo se libertados imediatamente. Não havia então a questão do voto, resolvida pela qualificação de propriedade. Apenas a dificuldade de assimilar à vida moderna, fora de uma relação servil, pessoas trazidas das selvas. Ninguém sabia exatamente como isso poderia ser feito, se por educação gradual dos negros ou se eles deveriam ser mandados de volta para a África. Enquanto isso, como o governo federal deve controlar as fronteiras externas, tinha autoridade para proibir a importação de escravos do exterior, e essa intenção foi indicada indiretamente. O sentimento implícito era contrário à escravidão. Por outro lado, a escravidão fez com que fosse incluída uma cláusula na Constituição provendo a extradição de escravos que fugissem cruzando fronteiras estaduais. Que o assunto era embaraçoso, observa-se pela linguagem; as palavras escravo e escravidão não são usadas. A expressão é uma “pessoa mantida em serviço ou trabalho”. (Na época, a descrição incluiria aprendizes brancos livres durante o período de aprendizado.) Escravos então eram pessoas, pelo menos; e também eram contados como pessoas na distribuição proporcional para a Câmara dos Deputados. Mas permanecia o fato inegável de que eram escravos; e a Constituição não os declarava livres por direito. O dano permanente infligido pela inclusão da escravidão é que ela corrompeu o princípio sobre qual a nova nação se criou. A emancipação pelos senhores de escravos como um ato de generosidade ou pelos estados como um ato de autoridade não poderia jamais equivaler a iniciar com a liberdade como o direito universal do qual a autoridade se origina. Além disso, a continuidade da escravidão tornava impossível que o Bill of Rights limitasse os governos estaduais como fazia com o governo federal. A existência da escravidão necessariamente prejudica o exercício dos direitos dos homens livres. Se o poder do estado faz de um homem um escravo, evidentemente ele o priva de sua liberdade de expressão e reunião, de segurança pessoal e do direito à propriedade; portanto, fica difícil proibir que esses abusos sejam cometidos contra qualquer pessoa. A suposta diferença entre “direitos humanos” e “direitos de propriedade” é uma confusão verbal; direitos de propriedade são direitos humanos. A questão verdadeira é entre o individual e o coletivo. Os únicos argumentos apresentados para defender a escravidão apelam para o coletivo, seja raça ou estado, para autoridade e coação; ao passo que, se os direitos são inerentes ao indivíduo, nenhum homem pode ser propriedade e todos os homens devem ter o direito de ter propriedade. Esse defeito moral causou um defeito estrutural, como não poderia deixar de acontecer. A lógica foi invalidada, de maneira que qualquer discussão era menos que uma futilidade. Os estados escravagistas alegavam que sua soberania de estados era suficiente para fazer de um homem um escravo. Então, a mesma soberania num estado livre deveria libertar qualquer pessoa que cruzasse a fronteira. Mas a cláusula de extradição negava esse atributo; porque a extradição de um escravo como tal é completamente diferente da extradição de um criminoso. O criminoso não se torna menos culpado depois que cruza a fronteira, ao passo que se presume que o escravo se torna livre; ao devolvê-lo, o estado livre é obrigado a violar sua própria lei básica.[1] É verdade que os estados livres aceitaram a condição injusta, para começo de conversa; a união parecia tão desejável que eles capitularam sobre esse ponto. Os estados escravagistas podiam dizer que os estados livres poderiam ter e poderiam extraditar escravos se quisessem. Porém, todos os estados tinham lutado por liberdade. Ambos os lados comprometeram irreversivelmente sua posição moral. Se os estados livres diziam que a escravidão era errada, continuariam a encorajá-la ou denunciariam a Constituição? Mas os estados escravagistas deviam amparar seu pleito na Constituição e a Constituição estava aberta para revisões. Se uma revisão chegasse a acontecer, eles aceitariam a mudança? O conflito ficou suspenso, enquanto permanecia a esperança de que a escravidão fosse gradualmente extinta. Mesmo assim, desde o início havia uma apreensão sobre a permanência da União. Isso ficou evidente no processo contra a nebulosa conspiração Burr-Blennerhasset[2], que foi uma energia tão forte na direção oeste que ninguém sabia exatamente qual era a intenção, nem mesmo os supostos conspiradores. O impulso continuaria até alcançar o Rio Grande e a Costa do Pacífico, chegar a Puget Sound e saltar para o Alasca. E a premonição estava certa; rasgou a nação no meio. Mas onde estava o verdadeiro ponto fraco? A menos que a questão seja colocada nos termos relevantes, não pode existir resposta. Embora a Guerra Civil tenha ocorrido há mais de setenta anos, a controvérsia continua aberta; o rompimento se deu por causa da escravidão, dos direitos dos estados ou da clivagem entre uma economia agrária e outra industrial? Os estados exigiram soberania em excesso? Se exigiriam, foi por causa da escravidão? A divisão dos poderes soberanos entre um governo federal e seus estados componentes não é uma questão simples; o passado está cheio dos destroços de ligas e federações. A questão completa da soberania é complexa demais. Na prática, sempre existe uma margem de discussão. A soberania territorial é delimitada por fronteiras. Essa é a virtude do nacionalismo; é uma restrição espacial do poder político, uma última salvaguarda para o indivíduo, uma chance de fugir da tirania local. O avanço do “internacionalismo” sempre implica num correspondente prejuízo à liberdade pessoal; mas isso é feito tirando-se a soberania de toda parte. A soberania se sustenta na nação; seus poderes são exercidos pelo governo. De ordinário, todos os poderes estipulados são considerados força num governo; e a ausência de qualquer poder no governo é considerada um grau de fraqueza. A verdade é que poderes que são essencialmente impróprios, porque contrários à ordem moral do universo, são fraquezas; e, da mesma forma, poderes concedidos a uma agência inapropriada. Impõem peso, estresse ou pressão de maneira que nenhuma estrutura consegue suportar. Quando está em questão um governo “fraco” ou “forte”, a conotação habitual dos termos se relaciona apenas à superestrutura; e o procedimento comum é mais centralização de poderes, que é o mesmo que um aumento no volume da superestrutura e um maior desvio de energia para ela. Além das forças e proporções corretas, isso é fatal; a menos que a resistência da base seja maior que o peso ou esforço da superestrutura, o conjunto vai desmoronar. Governos fracos são aqueles que não possuem uma oposição adequada e com instrumentos legítimos a partir das bases regionais e do veto de massa. A incompetência absoluta do governo é finalmente alcançada por aquilo que se chama de poder político absoluto, seja sob o nome de democracia ou de sincero despotismo.[3] Então, tanto os estados como o governo federal eram fracos demais, por exigirem poderes impróprios ou a distribuição imprópria de um poder legítimo. O último erro anulou um atributo vital da soberania, sua dimensão espacial. A menos que essa diferença entre poderes estipulados e força intrínseca seja entendida, não é possível uma discussão relevante sobre o assunto. A função dos estados numa federação é fornecer bases e estrutura vertical; essa função é estática. Espera-se que eles resistam contra pressões de cima, que tendem a separá-los, curvá-los para fora. De maneira estrita, não é possível que uma parte de uma fundação ou das estruturas verticais sobre ela tenha força estática em excesso, verdadeira autonomia local. Uma estrutura desmorona por sua fraqueza, não por sua força. Se ela se rompe violentamente, deve ser por pressões e estresses desbalanceados. Isso pode ocorrer por bases desiguais, conexões cruzadas defeituosas, ou uma superestrutura excessiva distribuída desigualmente. Se a escravidão não tivesse sido admitida na Constituição por tolerância, seu projeto original seria maravilhosamente sólido; mas sua inclusão introduziu os três tipos de defeito. Primeiro, tornou as bases desiguais. Com isso, causou pressões cruzadas desbalanceadas, já que a cláusula de extradição de escravos dava aos estados escravagistas um ponto de pressão sobre os estados livres. E, no longo prazo, a escravidão tornou-se uma desculpa para acrescentar peso excessivo à superestrutura e distribuí-lo desigualmente. Assim, todas as três causas alegadas da Guerra Civil fazem parte dessa única causa. E, como coroação dos males, mais uma vez o problema aparente mascarou o problema real. O problema aparente era a preservação da União. Mas a condição antecedente da união federal é a existência de estados. O problema real era a preservação dos estados. Se isso não fosse possível, a União deveria ou se desintegrar ou se solidificar numa massa. Se a estrutura é defeituosa, o fato de que ela é o melhor que os construtores puderam fazer, ou pensaram que poderiam fazer, não vai evitar as consequências físicas. Mas, como os assuntos humanos pertencem ao reino da lei moral, que é de uma ordem mais elevada que a lei mecânica, o resultado pode confundir todas as probabilidades mensuráveis. Uma vez que uma máquina foi concebida, é possível calcular seu desempenho. Mas não é possível estimar previamente quais máquinas o homem pode inventar. As máquinas não possuem existência ativa independente e, sendo criações da mente humana, o sistema em que operam deve corresponder à natureza do movedor primordial. É um clichê popular hoje em dia que o motor de combustão interna produziu ou exigiu de alguma maneira um novo princípio de organização política. Isso é ridículo. O próprio homem é um motor de combustão interna; ele é o determinante e seus dispositivos são apenas múltiplos de suas próprias capacidades e poderes. O motor de combustão interna aumentou o volume de produção e de energia num longo circuito que já existia, isso é tudo. As relações não se alteram. A linha de transmissão necessária é a mesma: a propriedade privada. A condição necessária dos seres humanos é a mesma: a liberdade. A única mudança é de grau, que pode envolver apenas um requisito de mais do mesmo, segurança absoluta da propriedade privada, liberdade pessoal plena e bases regionais firmemente autônomas para uma estrutura federal. Por essa razão, o potencial de uma nação não pode ser avaliado quantitativamente. Consiste em ideias abstratas, nos axiomas de relações humanas expressos na organização, não na riqueza material computada em uma determinada data. A Guerra Civil exemplifica esse princípio. Nos primeiros anos da República, todos os fatores mensuráveis eram preponderantemente favoráveis aos estados escravagistas do sul. Eles tinham amplos e variados recursos naturais. Seus principais produtos agrícolas, algodão e tabaco, tinham forte demanda no mercado mundial, gerando dinheiro e crédito. O prestígio legado por seus grandes estadistas era um patrimônio político. Praticamente, tinham o governo federal, a riqueza e a alavancagem legal. O norte tinha o empreendedorismo pessoal de uma população livre. Conforme a indústria do norte prosperava, parecia contribuir para a dominância do sul, pelo comércio e invenções que aumentavam os lucros dos donos de escravos e permitiam que eles estendessem o território escravagista. Essa aparência era ilusória. Subitamente, a economia livre se expandiu e começou a ocupar um território maior que a área reservada para a escravidão. A riqueza e o poder dos estados livres aumentavam em progressão geométrica, dobrando e redobrando. Logo antes da Guerra Civil, William Tecumseh Sherman[4] advertiu seus amigos sulistas a não provocarem a guerra, dizendo que uma economia agrária não pode competir com uma economia industrial num conflito armado. Mas a verdade é que o sul também não era uma verdadeira economia agrária; não tinha economia própria de nenhum tipo, não possuindo um gerador para o circuito local. Olhando além dos acasos de uma guerra específica, era incapaz de se tornar uma nação independente naquelas condições. O sul perdeu a Guerra Civil, como era fatal que acontecesse; e a questão da soberania dos estados foi descartada como uma tecnicalidade, deixada de lado pelo veredito sobre a escravidão. Ao recorrerem a guerra, os estados escravagistas cometeram o erro moral de repudiar um contrato depois de obter vantagens especiais por meio dele. O governo federal estava claramente obrigado a se defender da agressão e do separatismo. Tendo recebido sua autoridade por delegação, não teria o direito de abandonar suas funções delegadas, a menos que fosse legitimamente dissolvido pelos mesmos meios que o instituíram. O benefício da união para todos os estados é tão avassaladoramente evidente que sua dissolução, então ou agora, assume o aspecto de insânia violenta; mas se os eventos fossem descritos como puros fenômenos, um observador inteligente perceberia que deve ter havido algum defeito na estrutura, como numa casa que desmorona. Assim, a operação e as consequências do Ato de Reconstrução[5] devem levantar sérias dúvidas de que pudesse haver autoridade moral para perpetuar pela força uma união de origem voluntária. Também não é justificável alterar os termos de um contrato quando uma das partes está sendo coagida. Sendo feita à força, a estrutura reconstruída ainda continha um defeito físico correspondente ao defeito moral. O Ato de Reconstrução era a evidência imediata; varreu os estados como entidades políticas. Embora o Ato fosse transitório e tenha deixado de existir no tempo, o dano estava feito. Na organização política, o ato específico implicou num poder continuado. Mesmo que seja denominado como exceção, como expediente temporário, foi estabelecida a regra de que tais expedientes podem ser usados. Os estados do norte não poderiam consentir com qualquer extensão do poder federal sobre os estados do sul sem se sujeitarem à imposição do mesmo poder sobre eles no futuro. Não foi a libertação dos escravos que extinguiu a soberania dos estados. A liberdade é uma pré-condição, um universal, que a Constituição deveria ter reconhecido como primária. A destruição foi feita pela usurpação dos poderes dos estados pelo governo federal como que por direito de conquista. Se o governo federal lutou e venceu uma guerra de conquista, então os estados do norte e do sul perderam essa guerra. No lugar de genuínas bases regionais, a Guerra Civil resultou numa divisão artificial com interesses faccionários que iriam inevitavelmente tentar usar o poder federal para ganhar vantagens partidárias. E, nessa lição, os estados do oeste tiveram seu primeiro treinamento político.


[1] Nações civilizadas não permitem a extradição de criminosos políticos, porque o delito é estritamente local; um estado que entrega um refugiado político está assim atuando como agente do outro estado, em detrimento de sua própria soberania; ao passo que, ao extraditar um criminoso, atua como agente da justiça. (N. da A.)

[2] Em 1807, o ex-vice-presidente dos Estados Unidos, Aaron Burr, foi acusado de traição pelo presidente Thomas Jefferson. Ele havia reunido uma expedição de cerca 80 homens, baseada na ilha particular de um rico anglo-irlandês chamado Harman Blennerhasset. O objetivo declarado da expedição era colonizar uma área na Louisiana. A acusação contra ele nunca foi muito clara, e ele foi absolvido. (N. do T.)
[3] Exemplificados no colapso do velho regime na França, na Rússia czarista, na Turquia, etc. (N. da A.)
[4] General do exército da União na Guerra Civil Americana. (N. do T.)
[5] Os Atos de Reconstrução foram as condições impostas aos estados confederados para que fossem readmitidos na União. (N. do T.)

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

O Deus da Máquina, capítulo XII

O capítulo 12 de O Deus da Máquina (A Estrutura dos Estados Unidos) é uma análise sobre a Constituição dos Estados Unidos. Isabel Paterson defende que existem dois aspectos fundamentais em uma estrutura política: as bases regionais e o poder de veto da massa da população. Segundo ela, a Constituição estabeleceu essas duas instituições de uma maneira que superou tanto as dificuldades que acabaram por derrubar Roma como a visão de mundo atrasada do feudalismo. Os Estados, representados no Senado, são as bases regionais e a Câmara dos Deputados, eleita proporcionalmente à população, tem o poder de veto que, na República Romana, pertencia aos Tribunos da Plebe.

Isabel Paterson se deliciaria em assistir ao impasse que fechou o governo americano. Para ela, essa é exatamente a função do Congresso; a possibilidade de paralisar o governo é uma das mais importantes características de um sistema político funcional.

O Bill of Rights, que complementa a Constituição, garante que a criatividade e a iniciativa dos indivíduos sejam protegidas contra o poder do Estado. É proibido aprovar leis que limitem a liberdade de pensamento, de expressão ou de associação. A inviolabilidade de domicílio, o direito de portar armas, o direito à propriedade privada são consagrados, assim como o direito a julgamento público, com aconselhamento legal e testemunhas, e somente por delito tipificado.

Um ponto absolutamente inovador da Constituição dos Estados Unidos é a "cláusula de traição". Diferentemente das leis e das práticas da Europa do século 18, o Artigo Terceiro define que "Traição contra os Estados Unidos consistirá apenas em mobilizar para a guerra contra eles, ou aderir a seus inimigos, dando-lhes auxílio ou conforto". Além disso: "Nenhuma condenação por traição causará corrupção de sangue ou confisco exceto durante a vida da pessoa condenada".

Na Europa, qualquer atentado contra a pessoa do Rei era considerado traição, mesmo que cometido por uma pessoa isolada sem motivação política. Nos Estados Unidos, é necessário "mobilizar para a guerra". Nenhum tipo de oposição pacífica é traição. A oposição armada de uma única pessoa também não constitui traição. E uma nação estrangeira só pode ser inimiga em tempo de guerra.

O termo corrupção de sangue não faz sentido para nós, no século 21. No século 18, significava que os familiares de um acusado por traição não poderiam ser condenados por um crime que não foi cometido por eles. Essa era a realidade do restante do mundo na época. Essa é a realidade dos países totalitários nos séculos 20 e 21. As leis da Europa permitiam a punição de todos os membros de uma família pelo crime de qualquer um de seus membros.

Da mesma maneira, a propriedade da família era sujeita ao confisco total por um delito do chefe da família, mesmo que ele fugisse da jurisdição ou morresse antes de ser julgado. Nos Estados Unidos, se uma pessoa condenada por traição fugisse, suas propriedades poderiam ser sequestradas. Mas, no momento de sua morte, o título passaria desimpedido para seu herdeiro legal.

A cláusula de traição afirma e enfatiza que a culpa por um crime, por mais grave que seja, é pessoal, individual. E define também que a propriedade privada pertence a indivíduos.

Finalmente, a Constituição proíbe expressamente que os Estados emitam papel-moeda. Mas não autoriza, em nenhum ponto, que o governo federal o faça. Segundo Isabel Paterson, o Federal Reserve é inconstitucional, já que o governo federal não teria o poder de fazer nada que a Constituição não autorizasse expressamente.

A Estrutura dos Estados Unidos

O Deus da Máquina, capítulo XII
A Estrutura dos Estados Unidos
Isabel Paterson

O problema que os fundadores dos Estados Unidos enfrentavam era como, sem uma aristocracia, manter bases regionais para a estrutura política. Não era assim que o problema era enunciado na época, porque esta é uma descrição da solução. Eles só conheciam o problema. De maneira semelhante, não poderia ser dito que uma pedra angular deveria ser projetada para completar a forma do arco, ou que um símbolo zero deveria ser criado para ocupar uma posição nos números, até que esses dispositivos fossem encontrados; tais enunciados são impossíveis até que o problema tenha sido resolvido. Os revolucionários americanos enunciaram o axioma dos direitos do indivíduo, a Sociedade de Contrato, como fundamento racional e justificação de sua independência. Uma aristocracia nativa anularia essa intenção. Um vestígio remanescente, na forma de morgadio (que é a raiz da sociedade de status), foi abolido em conformidade. Os estados separados já existiam, e não haviam cedido suas várias soberanias à frouxa federação original. Sua resistência natural como entidades políticas existentes era suficiente para derrubar propostas de extinguir sua autonomia, e disfarçou os perigos futuros nessa direção. A questão apresentada de imediato era como juntá-los em “uma união mais perfeita” — sem escorregar para uma democracia. O que eles queriam era uma República.

A objeção à democracia era clara e fundamentada; mas por razões opostas às do Velho Mundo. Era óbvio que a democracia dissolveria a ordem europeia de sociedade, que era hierárquica, estruturada em classificações hereditárias. A premissa da democracia é a igualdade natural. A Sociedade de Status afirmava que a origem de sua ordem moral era a família, estendida por analogia para a organização política; mas essa hipótese ignora o fato primordial de que todas as pessoas, no devido tempo, se tornam adultas. Ao fazer essa extensão, o padrão feudal se torna fictício; fora dos assuntos domésticos, não correspondia nem poderia corresponder aos fatos, fosse nas relações de sangue ou na simples superioridade em idade. Essa ideia justificava o domínio de poucos sobre muitos, pela convenção arbitrária de descendência de famílias “antigas”. Na natureza, uma família não pode ser “mais antiga” que outra. A idade é pessoal. Mas a maturidade, a condição de ser adulto, é a igualdade por definição. Por essa conclusão, os poucos não podem ter o direito hereditário de comandar os muitos.

Por outro lado, essa é uma ordem matemática aplicada apenas à cronologia. Descreve os homens como iguais quando atingem um dado lapso de anos, o período presumido do amadurecimento. Fora dessa única classificação, não tem significado positivo ou intrínseco.1 Os gregos nunca foram capazes de validar sua hipótese para a democracia, porque é um conceito materialista e o materialismo não admite a igualdade humana, nem qualquer outro princípio de associação humana. O materialismo considera a humanidade simplesmente como uma espécie animal cujo comportamento é baseado e determinado pelo instinto e pela oportunidade. Nessas bases, não existem direitos nem questões morais; o que quer que aconteça deve acontecer, e o que quer que deva acontecer acontece. Mas, mesmo que esse beco sem saída no determinismo materialista seja ignorado e a igualdade seja buscada com relação aos fenômenos, não a encontraremos nos seres humanos, considerando-os como animais “superiores” ou como objetos da natureza. O materialismo estrito acaba por negar que o ser humano seja uma entidade; o decompõe em uma massa informe de material plásmico “condicionado” a várias “respostas” ou “reações”. Em termos materialísticos, a psicologia se torna um ramo da fisiologia: o behaviorismo. Então, se as respostas (atributos ou qualidades) são comparadas, podemos demonstrar que um homem é mais forte que outro, ou dotado de alguma capacidade (música, arte, o que for) que outro não possui, ou possui em menor grau num dado momento; mas não há uma equação geral para os diferentes dons, mesmo que fosse possível descobri-los plenamente. A única definição de igualdade por medida é aquela de Euclides: coisas que são iguais à mesma coisa são iguais entre si. Isso pede um padrão objetivo fixo, um homem perfeitamente típico, que encarne quantitativamente todos os atributos humanos em escala e proporção absolutas como norma, e com um inimaginável denominador comum pelo qual tais qualidades fossem traduzíveis em números de pontos que pudessem ser somados. Assim, os homens como são poderiam ser avaliados por comparação e receber cada um uma “nota”. (A teoria platônica de arquétipos, ou o Ideal, foi uma tentativa fracassada de contornar essa dificuldade.)

Mas o axioma americano declarava a igualdade política como um corolário do direito inalienável de todos os homens à liberdade. A democracia era inadmissível porque ela precisa negar esse direito e transformar-se em despotismo, como sempre aconteceu. Isso é feito de maneira abstrata, por sua própria contradição lógica; e, na prática, porque a lógica é uma afirmação de sequência. Não são a liberdade e a igualdade que são incompatíveis, mas a liberdade e a democracia.

A diferença é aquela que existe entre um princípio e um processo; a confusão surge de uma identificação imprópria entre uma proposição negativa e uma positiva. Admite-se erroneamente que, quando a reivindicação de poucos comandarem muitos é refutada, a reivindicação oposta de muitos comandarem o indivíduo é comprovada. Isso é totalmente indefensável, exceto em termos estritamente materialistas; e, nesses termos, o direito é completamente descartado. O direito como um conceito é necessariamente oposto à força; se não for, a palavra não significa nada.

A liberdade é uma condição verdadeiramente natural; a própria vida só é possível para um ser humano em virtude de sua capacidade de ação independente. Se uma criatura viva for submetida à restrição absoluta, ela morre. A vida humana é de uma ordem que transcende a necessidade determinística da física; o homem existe por vontade racional, livre arbítrio. Por isso, os termos racionais e naturais da associação humana são de acordo voluntário, não de comando.

Portanto, a organização adequada da sociedade tem de ser formada por indivíduos livres. E sua igualdade é postulada sobre o simples fato de que as qualidades e atributos de um ser humano, afinal, não estão sujeitos a nenhum tipo de medida; um homem equivale a uma entidade espiritual.

Mas a democracia é um termo coletivo; descreve o agregado como um todo, e assume que o direito e a autoridade residem no todo, embora derivados da condição adulta dos indivíduos que o compõem. Então, é necessário supor que, em um momento desconhecido, por uma sanção desconhecida e absolutamente sem nenhuma razão, tal direito e autoridade foram irrevogavelmente transferidos dos indivíduos para um grupo que não é nada além de uma soma numérica, ou partículas fundidas numa massa. A autoridade então não está em parte nenhuma. Nenhuma parte dela está em nenhuma parte da massa. Assim, a democracia se dissolve em puro processo, e mesmo o processo é fictício, porque os indivíduos não podem se fundir realmente, embora um grupo possa exercer a função de massa para um dado propósito num dado momento, por inação: um negativo. O processo fictício que se imagina que funcione na democracia pertence a uma ordem física e matemática e não-moral, começando com um número arbitrário delimitado pelo acaso do local de residência ou ascendência.

Mas, se a autoridade reside num todo coletivo, é evidente que, com a discordância de uma única pessoa, esse todo não existe ou não funciona mais; nesse caso, nenhuma ação geral poderia ser tomada legitimamente. A premissa básica desapareceu. Na prática, a democracia deve então abandonar sua própria suposta entidade de todo coletivo e contar apenas com a maioria. Mas a maioria é somente uma parte; assim, o governo da maioria implica, de maneira inconcebível, que a parte é maior que o todo. Além disso, às vezes não é possível se obter nem mesmo a maioria; existe uma pluralidade de cursos de ação; nesse caso, uma minoria deve comandar diversas outras minorias que, se somadas, são maiores que ela em número ou peso. Essa é a contradição inerente da teoria da democracia. Em qualquer situação, a liberdade pessoal é varrida logo no início, com a transição teórica das partículas para a massa ou da unidade para a soma. A escravidão de uma minoria, ou de “estrangeiros”, é bastante consistente com o governo da maioria.2

Mas, por justiça, se um homem não tem o direito de comandar todos os outros — o recurso do despotismo — também não tem qualquer direito de comandar nem mesmo um outro homem; e dez homens, ou um milhão, também não tem o direito de comandar nem mesmo um único outro homem. Dez vezes nada é nada e um milhão de vezes nada é nada.

A objeção material à democracia é que ela não tem estrutura. Esse defeito prático corresponde ao defeito moral. A gravidade determina os movimentos de uma agregação de partículas separadas sobre uma dada superfície; com cada perturbação, cada partícula é sujeita ao acaso descontínuo das probabilidades; se uma quantidade delas se move em conjunto pelo mesmo impulso, é uma massa deslocada. A diferença ativa de opinião na democracia ou é o descolamento de uma partícula ou é uma massa deslocada. Como disse Madison3: “não há remédio para os males da facção”. Uma facção é massa fragmentária, com os diversos fragmentos sendo jogados uns contra os outros pela força que ocasionou a divisão.

Em muitas situações, nações diversas apresentaram certas aptidões em um grau incomum. Diferentes períodos e lugares ficaram marcados pelo florescimento esplêndido de talentos especiais. Tais manifestações são creditadas de maneira vaga ao espírito da raça, mas essa frase não resiste a uma análise. Os elementos são normalmente misturados na origem, de maneira que uma cultura de certa maneira eclética tornou-se homogênea pelo desenvolvimento, embora tenha permanecido aberta a ideias novas. (Mesmo uma sociedade rigorosamente fechada como o Japão recebeu uma inspiração estética da China.) Mas o pré-requisito deve ser a existência de condições, ou de um modo de associação, que não impeçam esse desenvolvimento de faculdades inatas.

Se examinamos as obras e pensamentos dos homens que fundaram os Estados Unidos, fica evidente que eles tinham um senso estrutural altamente desenvolvido, um notável sentimento e entendimento de forma, proporção, perspectiva. Eram uma nação de arquitetos e pensavam em matemática tão “naturalmente” como em palavras. São indicações do contexto intelectual do período, de forma alguma acidentais, que George Washington fosse agrimensor (embora de família nobre); que Thomas Jefferson, advogado por profissão, fosse apaixonadamente interessado em arquitetura; ou que Benjamin Franklin, comerciante e artesão sem experiência náutica, fosse dado à experimentação científica e não visse nenhum problema em se propor a desenvolver sozinho uma fórmula para encontrar uma posição no mar. De fato, o livro-texto padrão sobre navegação foi composto por um cidadão da Nova Inglaterra, Nathaniel Bowditch, que não teve educação formal avançada e não era navegador. Essa predisposição não era de modo algum excepcional. Roger Sherman, formado na humilde profissão de sapateiro, estudou matemática por conta própria a tal ponto que conseguiu calcular um eclipse lunar. Uma ocasião, foi convidado a discursar na inauguração de uma ponte.4 Caminhou cuidadosamente por sobre a estrutura e disse uma única frase: “Não vejo, mas a ponte está firme.” Quando os habitantes da Nova Inglaterra usavam habitualmente a expressão “eu calculo”, é o que queriam dizer. Eles calculavam. Roger Sherman foi responsável pelo método dual de representação nas casas do Congresso — pelo voto popular na Câmara, com deputados distribuídos proporcionalmente à população, e por igualdade entre os Estados no Senado. Seu senso estrutural era sólido; conseguiu as bases regionais e a função de massa-veto de uma vez. Ele sabia o que ficaria firme.

Para entender porque as bases não podem ser estabelecidas por sufrágio popular sem qualificação de propriedade, é necessário apenas tentar um equivalente com qualquer outro material físico. Seja a substância em que a estrutura deve se apoiar composta de partículas separadas de igual tamanho e peso, cada uma com possibilidade de se mover. Obviamente, nada pode se firmar sobre ela. Um pilar ou alicerce não pode ser fixado num amontoado de munição ou num monte de areia. Deve haver algo sólido, auto contido e imóvel. Uma área regional corresponde a essa descrição e sustentará uma base permanente de representação política. A área deve estar claramente circunscrita e a representação deve pertencer a ela e não aos móveis habitantes, que podem vagar por aí e cruzar as fronteiras quando quiserem.

O não entendimento de que uma organização política é composta de estrutura e mecanismo, ou seja, uma base fixa sobre a qual agências de ação são acopladas, causou inúmeros desastres ao longo dos tempos. Esses componentes foram lamentavelmente confundidos na teoria feudal, na qual as áreas regionais eram a base estrutural real, mas se acreditava que a família cumpriria essa função. Quando se chegou ao ponto em que não havia herdeiros para uma família territorial, outra sucessão foi estabelecida; mas ainda assim os homens não entenderam a questão. Precisando de uma base imóvel, sua solução incrivelmente irracional foi prender os homens à terra, esmagando corpos vivos sob o peso dos pilares. Mas tudo o que deveria ter sido feito é distribuir a representação conforme a área. Para fazer isso, entretanto, a área precisa ser estabelecida como uma entidade política, e ser assim representada; isso só pode ser feito nomeando-se o representante pela organização política local, e não pelo voto popular. Deve haver soberania local delimitada na área.

Por outro lado, a representação direta dos votantes numa agência definida de governo é necessária para utilizar a função da massa, ou seja, da população agregada. A representação da massa pode ser efetivada apenas por delegados em proporção à quantidade de pessoas, independentemente das diversas áreas que formam as bases.

Assim, usando os materiais disponíveis, de acordo com princípios arquitetônicos e mecânicos, os fundadores dos Estados Unidos resolveram o problema pelo qual o Império Romano fracassou. A Constituição dos Estados Unidos é um croqui arquitetônico e mecânico, no qual o projeto é traçado em seus princípios mais gerais. São tão simples como o projeto de uma fundação, de um arco, de um cilindro de pistão ou de uma transmissão excêntrica; e, como esses fundamentos, encarnam relações; e são portanto capazes de aplicações de infinita complexidade. Mas o projeto intrínseco deve ser mantido sempre. Se as fundações forem removidas, ou a pedra angular retirada, o arco cairá; se a cabeça do cilindro do pistão for queimada, a ação cessará; se for solta uma ponta da haste excêntrica, ela só poderá sair batendo em tudo e esmagar o mecanismo inteiro. Um maior volume de energia não altera, nem pode alterar, as relações necessárias envolvidas. A crença de que alteraria é a ilusão fatal da atualidade. Um maior volume de energia tornou-se o pretexto para destruir as bases regionais, quando elas deveriam ter sido fortalecidas.

Examinemos a Constituição como ela foi originalmente criada, incluindo o Bill of Rights, estritamente de acordo com seus méritos e à luz de seus resultados, como um plano arquitetônico e um aparato mecânico de outros tempos pode ser estudado hoje por arquitetos e engenheiros modernos. Descobriremos que ela é fantástica em sua correção, no respeito à relação entre massa e movimento, que funciona por meio da associação entre seres humanos; e com relação à liberação e à aplicação de energia.

O Bill of Rights e a cláusula de traição tomados juntos estabelecem o indivíduo como o fator dinâmico. O Bill of Rights protege completamente do controle político as faculdades e os instrumentos da iniciativa e do empreendedorismo. Nenhuma lei pode ser aprovada contra a liberdade da mente, seja na religião, no discurso ou na imprensa; nem para restringir o intercâmbio de ideias em reunião pacífica; nem para impedir a expressão da opinião particular de indivíduos ao governo, por petição. Nenhuma lei pode privar o indivíduo do direito de portar armas. Soldados não podem ser aquartelados entre os cidadãos em tempo de paz; nem mesmo em tempo de guerra, exceto sob regulação civil. Não se pode entrar na casa de nenhum homem, exceto com um mandato formal, por causa de uma acusação específica autorizada por lei e restrita ao propósito expresso. Ninguém pode ser julgado a menos que tenha sido indiciado por um crime, nem condenado por julgamento secreto ou sem testemunhas e advogado. E o mais importante para a manutenção desses direitos, a propriedade privada não pode ser tomada para uso público sem justa compensação. Finalmente, tentativas da parte do governo de anular essas salvaguardas por meios indiretos, fiança excessiva, multas excessivas e tortura (punições cruéis e incomuns) foram proibidas. (Fiança excessiva só pode significar fiança fixada em uma soma que estaria além dos meios de uma pessoa média conseguir. Uma multa excessiva seria uma soma maior do que o delito poderia envolver; se isso não fosse proibido, uma multa seria uma maneira fácil de confiscar a propriedade de qualquer um ao menor pretexto.)5

A cláusula de traição permanece singular entre todo o longo registro de instituições políticas. Em primeiro lugar, ela declara que não existe o crime de traição em tempos de paz. “Traição contra os Estados Unidos consistirá apenas em mobilizar para a guerra contra eles, ou aderir a seus inimigos, dando-lhes auxílio ou conforto.” Nada, exceto rebelião armada ou unir-se a uma nação inimiga — e nações, por definição, só são inimigas quando em guerra —, pode ser traição. Nenhum tipo de oposição pacífica ou pessoal ao governo ou a membros do governo pode ser classificado como traição. Mesmo o ataque forçado ou resistência de uma única pessoa como tal (não tendo conexão ou acordo com outras pessoas ou com um governo estrangeiro para o mesmo fim), dificilmente poderia ser interpretada como “traição”, uma vez que não constituiria “mobilizar para a guerra”. A traição também deve ser “um ato manifesto”, não uma mera expressão de opinião; e a condenação não pode ser baseada em evidências circunstanciais; são necessárias duas testemunhas do ato. Na teoria europeia, era traição atacar a pessoa do rei, mesmo por um motivo não político. O homem e o cargo eram considerados inseparáveis. Um atentado semelhante contra um membro de um governo republicano verdadeiro é um delito criminal estritamente pessoal. Por essa inédita limitação da traição, o governo ou a administração são impedidos de impor silêncio quando cometem transgressões. Os meios de represália contra críticas ou exposição não são permitidos a seus membros.

Mas a cláusula de traição também contém uma provisão significativa e singular. “Nenhuma condenação por traição causará corrupção de sangue; nem confisco, exceto durante a vida da pessoa condenada”. É duvidoso se um americano médio de hoje entenderia prontamente o significado da expressão “corrupção de sangue”, ou a limitação do confisco ao tempo de vida da pessoa indiciada por traição. Mas a primeira restrição definiu a culpa como pessoal; e a segunda definiu a propriedade privada como pertencente a indivíduos. Ambas contradizem a teoria coletivista do grupo como superior ou antecedente ao indivíduo. É evidente, pelos comentários espantados de nossa imprensa contemporânea, que os americanos se esqueceram completamente do fato de que, antes de os Estados Unidos virem a existir, as leis da Europa permitiam a punição de todos os membros de uma família pelo crime de qualquer um de seus membros. Uma vez que a família era a unidade política, as honras eram herdadas e o privilégio pertencia em algum grau a todos os membros da família, parecia justo e lógico que toda a família sofresse proporcionalmente pela delinquência de qualquer membro. A pena capital raramente era aplicada a todos, mesmo nos tempos mais remotos. Mas penas menos extremas, como o exílio, o aprisionamento ou o rebaixamento de status, não eram incomuns por mero parentesco; da mesma maneira, a propriedade da família era sujeita ao confisco total por um delito do seu chefe, mesmo que ele fugisse da jurisdição ou morresse antes de ser julgado. Tudo fazia parte do mesmo pacote, honras familiares, propriedade familiar, culpa familiar e confisco familiar. Era naturalmente difícil manter a doutrina eclesiástica de propriedade privada contra a ameaça do estado, embora a Igreja nunca tenha abdicado dessa posição. A propriedade familiar é evidentemente propriedade privada, diferenciada da propriedade estatal ou comunal como norma; também segundo a doutrina cristã, a culpa é pessoal. Mas, com uma acusação de traição, o governante secular podia usar a unidade familiar como pretexto para confiscar toda a propriedade da família; e, sob a cobertura desse procedimento, recuar ao sistema político do feudalismo e alegar que a propriedade não era realmente privada, mas mantida sob posse com usufruto da coroa ou do chefe supremo, e que a posse deixaria de existir se a lealdade do possuidor não se mantivesse. Títulos de terra vinham de tanto tempo atrás e foram usados tão frequentemente e por tanto tempo dessa maneira, emitidos por senhores locais ou conquistadores, que a questão era extremamente complexa.

Por outro lado, durante o período de estabelecimento da colônias americanas, a prática de punir severamente famílias pela culpa de um membro foi caindo em desuso, especialmente na Inglaterra, de onde foi desaparecendo junto com a servidão. Mas, mesmo na Inglaterra, a traição podia ser imputada por uma ampla gama de ações, ou por meras palavras; e o confisco podia ser feito após a morte.

Mas a Constituição Americana dizia, por meio de sua cláusula de traição, que a propriedade privada pertence aos indivíduos por título irrevogável. Se uma pessoa indiciada ou condenada por traição fugisse, suas propriedades poderiam ser sequestradas (em confisco) enquanto ela estivesse viva como fugitiva da justiça; mas, no momento de sua morte, o título passaria desimpedido para seu herdeiro legal. Nenhum membro de sua família poderia ser punido por mero parentesco; ninguém pode ser considerado culpado pelo feito de outra pessoa. Esse é o significado da proibição da “corrupção de sangue”. Antes do ressurgimento do comunismo, até a Rússia havia em grande medida adotado a prática americana; mas foi a América quem primeiro declarou o princípio como absoluto.

Esse dispositivo também impedia o Estado de possuir um poder invisível e inespecífico sobre um acusado por meio de ameaças contra sua família. Um homem íntegro pode enfrentar sua própria morte com serenidade, mas ceder ante o prospecto de tortura ou mesmo de penúria para sua mulher, seus filhos, seus pais ou irmãos. É vergonhoso para nossas instituições educacionais e para a inteligência política dos americanos que, durante a discussão dos famigerados “processos de Moscou”, não tenha havido um comentário indicando conhecimento da salvaguarda constitucional americana contra julgamentos daquele tipo, e da base daquela salvaguarda na propriedade privada individual; nem mesmo da teoria política coletivista que admitia o procedimento russo até que o exemplo dos Estados Unidos fizesse com que este caísse em desuso, por vergonha.

Para os americanos e pelo axioma moral do seu sistema político, julgamentos como os de Moscou são uma perversão abominável da justiça. Mas, com o retorno do coletivismo, a imputação legal de culpa coletiva também retorna inevitavelmente.

Todas essas provisões do Bill of Rights e da Constituição são de extrema importância para o fluxo de energia; o fato que elas expressam é a causa da expansão sem precedentes dos Estados Unidos em extensão territorial no tempo dado, por ter provocado a ainda mais extraordinária extensão do campo da ciência física e da invenção mecânica. Em cento e cinquenta anos, os homens subitamente ampliaram e corrigiram seu conhecimento de princípios científicos que tinham levado muitos milhares de anos para serem apenas descobertos; e desenvolveram meios de aplicação que possibilitaram um simultâneo crescimento populacional e uma elevação do padrão de bem-estar além dos sonhos da humanidade no passado. Nada desse tipo jamais havia ocorrido no mundo antes; a história não revela nada comparável aos Estados Unidos como nação. Pode-se argumentar que as contribuições ao conhecimento científico e à invenção prática não se originaram apenas nos Estados Unidos. Mas foi a existência dos Estados Unidos e a consequente demonstração e difusão da liberdade que possibilitaram as conquistas da ciência na Europa.

O que aconteceu foi que o dínamo da energia usado na associação humana foi encontrado. Está no indivíduo. E foi protegido da interferência política por uma reserva formal, junto com os meios e materiais pelos quais pode organizar o grande circuito mundial de energia. O dínamo é a mente, a inteligência criativa, que nosso Bill of Rights e nossa a cláusula de traição declararam livres de controle político. Os meios materiais sobre os quais a inteligência se lança pela iniciativa é a propriedade privada. Nada mais serve.

Da mesma maneira, a estrutura de governo foi estabelecida sobre uma base duradoura, sem prender os homens embaixo da fundação. Áreas regionais foram delimitadas e os instrumentos de ação política foram vinculados a elas, sem que a lei confinasse ninguém em uma dada área; sem que o poder de governar tais instrumentos fosse confiado a pessoas por direito hereditário; e sem que tal poder fosse tornado ilimitado. Os instrumentos foram devidamente definidos como agências. Pertenciam aos diversos estados como tais. Esse efeito foi garantido pelo método de nomeação ao Senado. Os senadores eram escolhidos pelos corpos legislativos dos estados; ou seja, seu cargo era vinculado ao estado, sendo derivado do estado; diferentemente dos governadores provinciais romanos que eram nomeados pela autoridade central. O impulso era contra o centro, em vez de ser a partir do centro; portanto, se opunha ao peso da superestrutura. Por outro lado, o senador não tinha nenhuma função política dentro do estado que representava. Assim, o cargo não teria nenhuma tendência intrínseca de separatismo. Tinha efeito apenas no centro. As pressões eram duplamente equalizadas. Os diversos estados também preservavam sua integridade política ao manterem a autoridade primária de qualificar eleitores para as eleições federais.6 Em todo caso, a cidadania, como condição geral, era um atributo federal; ou seja, um cidadão de qualquer estado tinha direitos de cidadania em todos os outros estados. Isso dava coesão às partículas para formar uma nação, sem prejuízo às bases regionais. Os estados eram limitados a uma “forma republicana de governo” pela autoridade federal.

Os cidadãos, pela instituição da propriedade privada, tinham resistência contra todas as agências de governo. A propriedade privada é a base permanente do cidadão; não existe outra. O estado tinha de ser uma área regional com representantes. Para preservar sua função básica, também era necessário que os cidadãos tivessem voto direto para o veto de massa inercial; por isso as duas casas legislativas, o Senado para os Estados e a Câmara dos Deputados para os cidadãos como indivíduos. A possibilidade de legisladores usarem seus cargos para uma tomada direta de fundos públicos era evitada ao proibi-los dessa ação com respeito ao mandato corrente.

O Senado, tendo o mais longo dos mandatos e representando os estados como entidades permanentes, tinha o controle das relações exteriores pela ratificação, com as negociações atribuídas ao executivo. O executivo não tinha nenhum meio específico de propor legislação doméstica e apenas um veto provisório ou protelatório.

A Câmara dos Deputados, eleita por voto direto dos cidadãos, tinha o poder de expressar a propriedade e a função da massa, o veto final pela negação, tendo a atribuição da iniciativa de estabelecer tributos e conceder suprimentos. Todos os suprimentos deveriam ser concedidos apenas em quantias determinadas para objetivos designados; qualquer concessão deveria, portanto, ser usada no tempo especificado e teria de ser concedida novamente. Se essa concessão não é dada, o veto da inércia está em vigor. É necessário apenas não fazer nada.

Para impedir que os estados maiores, mais ricos ou mais populosos jogassem seu peso contra os estados menores, sua representação como estados era igual. Para impedir que os estados menores ou mais pobres se alinhassem e espoliassem os estados mais opulentos — jogando seu peso conjunto — a representação popular era proporcional ao número de cidadãos. Para impedir que a autoridade central extorquisse os estados mais ricos para comprar os mais pobres, determinava-se que o imposto federal sobre as pessoas podia ser arrecadado apenas em proporção à população; enquanto tributos sobre bens (tarifas alfandegárias, impostos sobre o consumo, taxas) deveriam ser uniformes em todo o país. Ou seja, não poderia haver favorecimento de nenhum estado com respeito a manufaturas, taxas portuárias, etc. Isso impedia os monopólios políticos que eram a ruína da Europa. E os estados não podiam, de maneira nenhuma, estabelecer tarifas de fronteira ou portuárias.

Os diversos estados foram proibidos de cunhar moeda ou emitir papel-moeda (“bills of credit”), ou de fazer qualquer coisa, exceto ouro ou prata, moeda corrente. Portanto, a linha de transmissão de energia não poderia ser cortada ou desviada pela agência política de nenhum estado. E o governo federal não foi autorizado a emitir papel-moeda. Embora ele tenha feito e faça isso, a autoridade não está na Constituição. É expressamente estabelecido pela Constituição que os poderes que não foram delegados à autoridade federal não podem ser exercidos por ela. Também não foi concedido ao governo federal o poder de cancelar contratos, embora ele tenha feito isso recentemente; mas os estados foram proibidos expressamente.

O Judiciário federal deveria ser nomeado vitaliciamente (sujeito a impeachment por abuso do cargo) para ser um freio aos ramos Legislativo e Executivo. A questão infindavelmente debatida de “revisão judicial” é mera estultificação; a jurisdição da Suprema Corte é especificada apenas sobre casos “levantados sob esta Constituição, as leis dos Estados Unidos e os tratados feitos sob a autoridade delas”, enquanto “esta Constituição, e as leis dos Estados Unidos que devem ser criadas em consequência dela, serão a lei suprema da terra”. Nenhum sofisma pode fugir da proposição de que a lei suprema deve governar o veredito; é isso que supremo significa. Mas, depois de discutir por cem anos contra essa função adequada e indispensável da revisão judicial, os pseudo liberais inventaram uma perversão hipotética particularmente viciosa dela. O juiz Frankfurter a expressou, escrevendo sobre “os perigos e dificuldades inerentes no poder de rever a legislação. Porque é uma tarefa sutil decidir, não se a legislação é sábia, mas se os legisladores estavam certos em acreditar que ela era sábia.” A tarefa da revisão judicial não é decidir se a legislação é sábia ou se os legisladores estavam certos em acreditar que ela é sábia. A revisão judicial limita-se a determinar se uma dada lei contraria a Constituição, a lei suprema; e ela o faz se uma legislatura ultrapassa seu poder constitucional ao aprovar a lei em questão — a legislatura não tem nenhuma autoridade fora da Constituição.

A determinação constitucional para a defesa armada era coerente com a estrutura política. A autoridade original do governo federal era suficiente para alistar e fornecer um exército permanente, sem referência direta aos diversos estados; mas os suprimentos só poderiam ser apropriados por um período de dois anos. Isso tenderia a manter o exército profissional num tamanho razoável. Como o método original era o alistamento voluntário, obviamente a intenção era essa. Por outro lado, o direito primário de portar armas e formar companhias milicianas era reservado aos cidadãos; mas, se tais corpos milicianos devessem servir numa guerra declarada, seus oficiais deveriam ser nomeados pelos estados; depois disso eles estaria sujeitos à convocação pelo governo federal. Por toda parte, a iniciativa permanecia com o indivíduo, como homem livre; mas a ação formal repousava sobre as autoridades políticas, que possuíam o poder inibitório formal. Embora uma guerra defensiva seja justa e necessária, a guerra envolve destruição; por isso, o poder inibitório deve regulá-la. Mas a ação criativa deve ser livre.

Por sua percepção dessas relações morais e por encarná-las estruturalmente, a Constituição dos Estados Unidos foi descrita, de maneira justa, como o mais notável documento político criado de uma vez pela mente do homem.

1 A igualdade em si mesma não significa nada, não implica em valor algum; dois zeros são iguais. A liberdade associa um valor a ela. Existe um argumento que diz que o serviço militar obrigatório é correto porque se aplica igualitariamente. Isso justificaria a tortura, se ela fosse aplicada igualitariamente. Esse argumento foi levado mais longe por um pseudo liberal: “O sistema voluntário parece bom. Na prática, é um horror moral… uma vez que ninguém é capaz de dizer, apenas olhando para um jovem, se ele está fazendo seu trabalho básico de guerra, ou é casado ou tem filhos ou, talvez, não possui boa saúde. O sistema voluntário não é voluntário. Na prática, é a pior forma de compulsão… excelentemente projetado para tornar os jovens infelizes.” Então, a escravidão não é escravidão, porque o mundo está povoado de imbecis morais, todos igualmente apavorados com o olhar casual de um estranho. (N. da A.)

2 O clichê moderno: “Isto é uma democracia, eu sou o governo” não faz sentido. Mesmo como uma agência, o governo é uma organização formal com pessoal autorizado, da qual o cidadão privado não é membro. Quando várias pessoas contratam um árbitro, elas evidentemente não são o árbitro, embora este ocupe a função pelo acordo delas. (N. da A.)

3 James Madison, quarto presidente dos Estados Unidos. (N. do T.)

4 BULWARK OF THE REPUBLIC. Burton J. Hendrick. Little, Brown & Co. (N. da A.)

5 A proibição constitucional a multas excessivas foi completamente ignorada pela legislação recente, sem uma palavra de protesto dos cidadãos e sem nenhuma tentativa de apelar aos tribunais. (N. da A.)

6 A proposta de abolir, por lei federal, o imposto de capitação (em inglês, poll tax) determinado por alguns estados do sul como qualificação do direito de voto é absolutamente inconstitucional. (N. da A.)