sábado, 27 de junho de 2015

Lord Munodi e a Academia de Lagado

As Viagens de Gulliver é uma das maiores sátiras políticas e filosóficas de todos os tempos. O conservador Jonathan Swift compôs uma história de aventura, lida por muitos como se fosse literatura infanto-juvenil, que é na verdade é uma crítica cáustica ao governo da Inglaterra de seu tempo. A força e a atualidade dessa obra se mantêm intactas.

Gosto muito do trecho em que Gulliver se encontra com Lord Munodi e conhece a Academia de Lagado. Embora tenha sido escrita em 1726, a história de Lord Munodi é uma descrição precisa do comunismo. Retrata a angústia de alguém que é criticado e perseguido por trabalhar e produzir.

A Academia de Lagado poderia ter produzido o Construtivismo, as pesquisas sobre o aquecimento global, as propostas de parto humanizado, a Hipótese Gaia, o nosso Estatuto da Criança e do Adolescente. Poderiam também ter saído de lá todos os especialistas que a GloboNews entrevista.

Publico abaixo os capítulos 4, 5 e 6 do Livro Três de As Viagens de Gulliver. A tradução é minha.

Leiam Jonathan Swift!

Jonathan Swift



Capítulo 4


[O autor sai de Laputa; é levado a Balnibarbi; chega à metrópole. Descrição da metrópole e do campo ao redor. O autor é hospitaleiramente recebido por um grão-senhor. Sua conversa com esse senhor.]
Embora não possa dizer que tenha sido maltratado nessa ilha, devo confessar que me senti negligenciado, não sem algum grau de desprezo; nenhum príncipe nem o povo pareciam ter curiosidade sobre qualquer área do conhecimento, exceto matemática e música, nas quais eu era muito inferior a eles e, por causa disso, muito pouco considerado.

Por outro lado, depois de ter visto todas as curiosidades da ilha, tinha um grande desejo de sair dela, estando muito entediado daquelas pessoas. Eram realmente excelentes em duas ciências às quais dou grande valor e nas quais não sou inexperiente; mas, ao mesmo tempo, tão abstraídos e envolvidos em especulação que nunca conheci companhias tão desagradáveis. Durante meus dois meses de estadia, conversei apenas com mulheres, comerciantes, abanadores e pajens; assim, afinal, fiz-me extremamente desprezível; porém, eram as únicas pessoas de quem conseguia receber respostas razoáveis.

Com muito estudo, consegui um bom conhecimento de sua língua: estava cansado de ficar preso a uma ilha onde recebia tão pouca atenção e decidi deixá-la na primeira oportunidade.

Havia um grão-senhor na corte, parente próximo do rei e, só por isso, tratado com respeito. Era universalmente considerado a pessoa mais ignorante e burra entre eles. Havia prestado muitos serviços eminentes à coroa, possuía grandes dons naturais e adquiridos, realçados por sua integridade e honra; mas tinha um ouvido tão ruim para a música que seus detratores diziam que “era comum ele atravessar o ritmo”. Seus professores, mesmo com extremo esforço, também não conseguiam que ele demonstrasse as mais fáceis proposições da matemática. Ele gostava de demonstrar sua graça para comigo, me honrando com visitas freqüentes, perguntando sobre os assuntos da Europa e sobre as leis e costumes dos diversos países em que estive. Ouvia-me com grande atenção e fazia observações muito sensatas sobre tudo o que eu dizia. Dois abanadores ficavam à sua disposição, mas ele nunca usava seus serviços, exceto na corte e em visitas de cerimônia, e sempre mandava que se retirassem quando estávamos a sós.

Supliquei a essa ilustre pessoa que intercedesse perante Sua Majestade em meu favor, para que me autorizasse a partir; o que ele fez com tristeza, como me contou. Havia feito a mim diversas ofertas muito vantajosas. Recusei-as, entretanto, expressando meu mais elevado reconhecimento.

Em 16 de fevereiro, despedi-me de Sua Majestade e da corte. O rei me concedeu um presente no valor de cerca de duzentas libras inglesas e meu protetor, seu parente, um presente equivalente, junto com uma carta de recomendação a um amigo seu em Lagado, a metrópole. A ilha estando então suspensa sobre uma montanha, a cerca de duas milhas dela, fui baixado da galeria mais baixa da mesma maneira que havia sido içado.

O continente, na parte que é submetida ao monarca da ilha voadora, é designado pelo nome genérico de BALNIBARBI; e a metrópole, como disse antes, chama-se LAGADO. Senti certa satisfação por me achar em terra firme. Caminhei até a cidade sem preocupações, estando trajado como um nativo, e suficientemente instruído para conseguir conversar com eles. Logo encontrei a casa da pessoa a quem havia sido recomendado, apresentei minha carta de seu amigo, o nobre da ilha, e fui recebido com muita gentileza. O grão-senhor, cujo nome era Munodi, me hospedou em um apartamento em sua própria casa, onde permaneci durante minha estada. Fui tratado de maneira muito hospitaleira.

Na manhã seguinte à minha chegada, Lord Munodi levou-me em sua carruagem para ver a cidade, que tem aproximadamente metade do tamanho de Londres; mas as casas eram construídas de maneira muito estranha e a maioria delas estava em más condições. As pessoas nas ruas andavam rápido, pareciam frenéticas, com os olhos fixos e em geral estavam esfarrapadas. Passamos por um dos portões da cidade e seguimos por cerca de três milhas para dentro do campo, onde vi muitos agricultores trabalhando com vários tipos de ferramenta no solo, mas não fui capaz de supor o que estavam fazendo. Tampouco observei qualquer perspectiva de produção de grãos ou pasto, embora o solo parecesse ser excelente. Não pude deixar de me admirar com essas estranhas aparências, tanto na cidade quanto no campo. Tomei a liberdade de perguntar a meu condutor se ele se dignaria a me explicar qual poderia ser o objetivo de tantas cabeças, mãos e rostos ocupados, tanto nas ruas como no campo, porque não descobri nenhum efeito positivo que produzissem. Ao contrário, nunca havia visto um solo tão tristemente cultivado, casas tão mal projetadas e ruinosas ou um povo cujo semblante e trajes expressassem tamanha miséria e escassez.

Este Lord Munodi era uma pessoa da mais alta posição e havia sido governador de Lagado por alguns anos. Mas, por uma conspiração de ministros, foi exonerado por incompetência. Entretanto, o rei o tratava com brandura, como um homem bem-intencionado, mas de inteligência ridiculamente limitada.

Quando apresentei aquela censura aberta ao país e a seus habitantes, não deu outra resposta além de me dizer que eu não tinha passado tempo suficiente entre eles para formar um juízo e que diferentes nações do mundo possuem diferentes costumes. Mas, quando voltamos a seu palácio, perguntou o que achei da edificação, que absurdos observei e o que tinha a reclamar sobre os trajes e a aparência de seus criados. Isso ele podia fazer com segurança, porque tudo relacionado a ele era magnífico, ordenado e refinado. Respondi que a prudência, qualidade e fortuna de Sua Excelência o havia livrado daqueles defeitos, que a tolice e a miséria haviam gerado em outros. Perguntou se o acompanharia à sua casa de campo, a cerca de vinte milhas de distância, onde ficava sua propriedade rural. Lá, haveria mais tranqüilidade para esse tipo de conversa. Disse a Sua Excelência que estava inteiramente ao seu dispor e, assim, partimos na manhã seguinte.

Durante nossa jornada, fez-me observar os diversos métodos usados pelos agricultores para administrar as terras deles, que eram para mim completamente incompreensíveis. Especialmente porque, com raríssimas exceções, não pude encontrar uma espiga de trigo ou folha de pasto. Mas, depois de três horas de viagem, o cenário se alterou inteiramente. Chegamos a um belíssimo campo; casas de agricultores a pequenas distâncias umas das outras, habilmente construídas; campos cercados, contendo vinhas, trigais e prados. Não me lembro de ter visto uma paisagem mais encantadora. Sua Excelência observou meu semblante se desanuviar; disse-me com um suspiro, que ali começava sua propriedade, que continuava da mesma maneira até chegarmos à sua casa. Seus compatriotas o ridicularizavam e desprezavam, por gerenciar tão mal seus negócios e por ser um exemplo tão negativo para o reino. Esse exemplo, entretanto, era seguido por muito poucos, todos velhos, teimosos e fracos como ele.

Chegamos finalmente à casa, que era verdadeiramente uma nobre estrutura, construída de acordo com as melhores normas da arquitetura antiga. As fontes, jardins, caminhos, avenidas e pomares eram todos dispostos com bom gosto e inteligência. Elogiei devidamente tudo o que vi, mas Sua Excelência não tomou conhecimento do que eu disse até depois da ceia; então, não havendo mais ninguém além de nós dois, disse com um ar muito melancólico que receava ter de demolir suas casas na cidade e no campo e reconstruí-las conforme o modo atual; de destruir suas plantações e fazer outras na forma exigida pelo costume moderno; e dar as mesmas ordens a todos os seus arrendatários, sob pena de se expor à censura por orgulho, singularidade, presunção, ignorância, capricho e, talvez, de aumentar o descontentamento de Sua Majestade; que a admiração que eu parecia sentir cessaria ou declinaria, quando me informasse de alguns detalhes que, provavelmente, eu nunca havia ouvido na corte, estando o povo de lá por demais absorto em suas próprias especulações para dar atenção ao que acontecia ali embaixo.

O teor do seu discurso foi este: cerca de quarenta anos atrás, algumas pessoas apareceram em Laputa, ou por negócios ou por diversão. Depois de cinco meses de permanência, voltaram com noções mínimas de matemática, mas cheias de uma embriaguez adquirida naquela região rarefeita. Essas pessoas, ao voltarem, começaram a criticar o gerenciamento de todas as coisas aqui embaixo e se propuseram a colocar em um novo patamar todas as artes, ciências, línguas e ofícios. Com essa finalidade, conseguiram autorização real para erigir uma Academia de pesquisadores em Lagado. A brincadeira se estendeu de tal maneira entre o povo que não existe cidade de alguma importância no reino sem uma dessas Academias. Nessas instituições, os professores inventam novas regras e métodos de agricultura e construção e novos instrumentos e ferramentas para todos os trabalhos e manufaturas. Garantem que, com eles, um homem fará o trabalho de dez. Um palácio será construído em uma semana, com materiais tão duráveis que permanecerão para sempre, sem manutenção. Todos os frutos da terra amadurecerão na estação do ano que quisermos escolher, produzindo cem vezes mais que hoje. São incontáveis outras propostas felizes. O único inconveniente é que nenhum desses projetos chegou ainda à perfeição. Enquanto isso, o país inteiro prostra-se, miseravelmente devastado, com as casas em ruínas e o povo sem comida e sem roupas. Tudo isso, ao invés de desencorajá-los, faz com que sejam cinqüenta vezes mais violentamente inclinados a seguir seus planos, guiados tanto pela esperança quanto pelo desespero. Por sua parte, não sendo de um espírito empreendedor, Lord Munodi estava contente em permanecer com as formas antigas, morar nas casas que seus antepassados construíram e agir como eles, em todos os aspectos de sua vida, sem inovação. Algumas outras pessoas de qualidade e nobreza fizeram o mesmo, mas eram vistos com olhos de desprezo e malevolência, como inimigos da arte, ignorantes e maus cidadãos, preferindo seu próprio conforto e indolência ao progresso geral do país.

Sua Senhoria acrescentou que não daria mais detalhes para não me privar do prazer que eu certamente teria em ver a Grande Academia, que havia decidido que eu deveria visitar. Apenas pediu que observasse um prédio em ruínas, na encosta de uma montanha a cerca de três milhas de distância, sobre o qual me deu esta explicação: tinha um moinho muito bom, a meia milha de sua casa, movido pela água de um grande rio e suficiente para sua família e para um grande número de arrendatários. Sete anos antes, um grupo daqueles pesquisadores o procurou com a proposta de destruir seu moinho e construir outro na encosta daquela montanha, em cujo longo cume deveria ser aberto um grande canal para um reservatório de água, que seria levada morro acima por tubos e máquinas para depois mover o moinho, porque o vento e o ar da altitude agitariam a água e assim a tornariam mais apropriada para o movimento e porque a água, descendo um declive, moveria o moinho com metade do fluxo de um rio cujo curso é mais plano. Disse que, não estando em tão boas relações com a corte e pressionado por muitos de seus amigos, concordou com a proposta e, depois de empregar cem homens por dois anos, o trabalho foi abortado e os pesquisadores foram embora, colocando toda a culpa nele, insultando-o desde então e fazendo com que outros se submetessem à mesma experiência, com igual garantia de sucesso, assim como igual desapontamento.

Em poucos dias, voltamos à cidade. Sua Excelência, considerando a má fama que tinha na Academia, não iria comigo, mas me recomendaria a um amigo seu, para que me acompanhasse na visita. Meu senhor me apresentou como um grande admirador de projetos e como uma pessoa de muita curiosidade e grande credulidade. Isso, de fato, não era inverídico, porque também fui um pouco pesquisador em meus dias de juventude.



Capítulo 5



[É permitido ao autor visitar a Grande Academia de Lagado. A Academia é extensamente descrita. As artes a que se dedicam os professores.]

Esta Academia não é formada por um único edifício, mas por uma série de várias casas em ambos os lados de uma rua que, estando inutilizada, foi comprada e dedicada a essa finalidade.

Fui recebido de maneira muito amável pelo Diretor e permaneci por muitos dias na Academia. Em cada sala havia um ou mais pesquisadores. Não acredito que tenha estado em menos de quinhentas salas.

O primeiro homem que vi tinha um aspecto consumido, com mãos e rosto denegridos, cabelo e barba longos, maltrapilho e chamuscado em vários lugares. Suas roupas, camisa e pele eram todas da mesma cor. Estava trabalhando havia oito anos em um projeto para extrair raios de sol de pepinos, que eram colocados em frascos hermeticamente fechados e deixados aquecendo o ar em verões brutalmente inclementes. Disse-me que tinha certeza de que, em mais oito anos, seria capaz de fornecer luz solar aos jardins do governador por um custo razoável, mas reclamou que seu estoque estava baixo e implorou para que eu lhe desse alguma coisa como estímulo à genialidade, especialmente porque aquela tinha sido uma estação muito dispendiosa para os pepinos. Dei-lhe um pequeno presente, já que meu senhor havia me proporcionado dinheiro para esse fim, porque sabia do costume dos pesquisadores de mendigar a todos os que vão visitá-los.

Entrei em outra câmara, mas tive de recuar rapidamente, sendo quase dominado por um terrível fedor. Meu condutor me fez avançar, conjurando-me em um sussurro a não ser ofensivo, o que seria considerado um comportamento muito reprovável. Portanto, não ousei tapar meu nariz. O pesquisador dessa célula era o aluno mais antigo da Academia; seu rosto e sua barba eram de um amarelo pálido; suas mãos e roupas estavam emplastradas de sujeira. Quando fui apresentado a ele, deu-me um forte abraço, cumprimento que eu poderia bem ter evitado. Sua pesquisa, desde sua primeira vinda à Academia, buscava uma operação para reduzir o excremento humano ao seu alimento original, separando as diversas partes, removendo a tintura que recebe da bílis, fazendo o odor exalar e escumando a saliva. Recebia um subsídio semanal, da sociedade, de um recipiente cheio de esterco humano, do tamanho de um barril de Bristol.

Vi outro pesquisador trabalhando para transformar gelo em pólvora por calcinação. Também me mostrou um tratado que havia escrito e pretendia publicar, sobre a maleabilidade do fogo.

Havia um arquiteto muito engenhoso, que inventou um novo método para construir casas, começando pelo telhado, e trabalhando para baixo até a fundação. Justificou para mim sua proposta, pela prática similar destes dois prudentes insetos, a abelha e a aranha.

Encontrei um homem cego de nascença, que tinha vários aprendizes na mesma condição que ele. O trabalho deles era misturar as cores para os pintores, que seu mestre ensinava a diferenciar pelo tato e pelo olfato. Foi realmente azar meu tê-los encontrado em um momento não muito perfeito em suas aulas e acontecer de o próprio professor estar geralmente equivocado. Esse artista é muito estimulado e estimado por toda a irmandade.

Em outro apartamento, tive o grande prazer de conhecer um pesquisador que descobriu um dispositivo para arar a terra com porcos, para economizar os gastos com arados, gado e trabalho. O método é este: em um acre de solo, enterra-se, com seis polegadas de distância e oito de profundidade, uma quantidade de bolotas, tâmaras, castanhas e outras nozes ou hortaliças que esses animais preferem. Então, colocam-se pelo menos seiscentos porcos no campo, onde, em poucos dias, vão revirar todo o solo a procura de comida, e torná-lo adequado para semear, ao mesmo tempo fertilizando-o com seu esterco. É verdade que, durante as experiências, o custo e o trabalho foram muito elevados, e foi obtida muito pouca ou nenhuma colheita. Entretanto, não há dúvida de que esta invenção é capaz de grande aprimoramento.

Fui para outra sala, de cujas paredes e teto pendiam grandes teias de aranha, exceto por uma estreita passagem para o artista entrar e sair. Quando entrei, ele gritou alto para que eu não perturbasse suas teias. Lamentou o erro fatal em que o mundo se encontrava há tanto tempo, de usar o bicho-da-seda, enquanto possuíamos tal riqueza de insetos domésticos infinitamente melhores que os primeiros, porque sabiam tecer, tanto quanto fiar. Além disso, propôs que, pelo emprego de aranhas, o custo de tingir a seda seria totalmente economizado. Fiquei plenamente convencido disso quando me mostrou um grande número de moscas lindamente coloridas, com as quais alimentava suas aranhas, garantindo-nos que as teias pegariam a tintura delas. Como tinha moscas de todos os matizes, esperava suprir os gostos de todo mundo, assim que encontrasse o alimento adequado para as moscas, com certas gomas, óleos e outras matérias glutinosas, para dar força e consistência aos fios.

Havia um astrônomo, que havia se incumbido de colocar um relógio de sol sobre o grande cata-vento em forma de galo sobre a prefeitura, ajustando os movimentos anuais e diurnos da terra e do sol, para responderem e coincidirem com todas as viradas acidentais do vento.

Reclamei de um pequeno ataque de cólica, o que fez com que meu condutor me levasse a uma sala onde residia um grande médico, famoso por curar aquela doença, por operações contrárias com o mesmo instrumento. Tinha um grande par de foles, com uma longa boca fina de marfim. Ele a levava até oito polegadas dentro do ânus e, puxando o ar, afirmava poder deixar os intestinos tão lisos como uma bexiga seca. Mas, quando a doença era mais resistente e violenta, introduzia a boca de marfim quando os foles estavam cheios de ar e o descarregava no corpo do paciente. Então, retirava o instrumento para reabastecê-lo, colocando seu polegar com força contra o orifício anal. Isso se repetindo três ou quatro vezes, o vento introduzido sairia precipitadamente, levando com ele a doença (como água em uma bomba) e o paciente se recuperaria. Vi o pesquisador tentar ambos os procedimentos em um cachorro, mas não pude observar nenhum efeito no primeiro. Depois do segundo, o animal estava pronto para explodir e defecou de maneira tão violenta que foi muito desagradável para mim e para meu companheiro.

O cão morreu em seguida e deixamos o médico tentando recuperá-lo com a mesma operação.

Visitei muitos outros apartamentos, mas não perturbarei meu leitor com todas as curiosidades que observei, sendo zeloso da concisão.

Havia até então visto apenas um lado da Academia. O outro era dedicado aos pesquisadores da educação especulativa, sobre os quais devo dizer alguma coisa, depois de mencionar mais uma ilustre pessoa, chamada entre eles de “artista universal”. Disse-nos que havia trinta anos que dedicava seus pensamentos à melhoria da vida humana. Tinha duas grandes salas cheias de curiosidades maravilhosas e cinqüenta homens a seu serviço. Alguns condensavam o ar em uma substância seca tangível, extraindo o nitrogênio e deixando as partículas aquosas ou fluidas serem filtradas. Outros amaciavam o mármore, para travesseiros e almofadas. Outros petrificavam os cascos de um cavalo vivo, para protegê-los do aguamento. O próprio artista estava na ocasião ocupado com dois grandes projetos. O primeiro, de semear a terra com joio, no qual afirmava que estava contida a verdadeira virtude seminal, como provava por várias experiências que eu não tinha competência suficiente para compreender. O outro era, por uma determinada composição de gomas, minerais e vegetais aplicada externamente, impedir o crescimento de lã em dois jovens carneiros. Esperava, em um prazo razoável, propagar a raça de carneiros nus por todo o reino.

Atravessamos um caminho e chegamos à outra parte da Academia onde, como eu disse, residiam os pesquisadores de aprendizagem especulativa.

O primeiro professor que vi estava em uma sala muito ampla, cercado por quarenta alunos. Depois da saudação, observando que eu examinava atentamente uma armação que ocupava a maior parte da largura e do comprimento da sala, disse que eu talvez me surpreendesse em vê-lo engajado em um projeto para fazer progredir o conhecimento especulativo por meio de operações práticas e mecânicas. Mas o mundo logo perceberia sua utilidade. Gabou-se de que um pensamento mais nobre e elevado jamais havia brotado da cabeça de outro homem. Todos sabem o quanto é trabalhoso o método convencional de alcançar as artes e as ciências. Ao passo que, com sua invenção, a mais ignorante das pessoas, por um custo razoável, e com um pequeno esforço corporal, poderia escrever livros sobre filosofia, poesia, política, direito, matemática e teologia, sem o menor auxílio da genialidade ou do estudo. Então, levou-me até um dos lados da armação, na qual todos os seus alunos estavam em pé, em filas. Tinha vinte pés quadrados e ficava no meio da sala. As superfícies eram compostas de vários pedacinhos de madeira, do tamanho aproximado de um dado, mas alguns maiores que outros. Estavam todos unidos por fios finos. Esses pedacinhos de madeira estavam cobertos, em cada face, por papel colado neles. Nesses papéis estavam escritas todas as palavras do idioma deles, em seus diversos modos, tempos e declinações, mas sem nenhuma ordem. O professor pediu que eu observasse, porque ele colocaria seu engenho para funcionar. Os alunos, a seu comando, pegaram uma manivela de ferro cada um, das quais havia quarenta presas em volta das bordas da armação. Girando subitamente as manivelas, toda a disposição das palavras se alterou completamente. Então, ele ordenou que trinta e seis dos garotos lessem as diversas linhas suavemente, como apareciam na armação. Quando encontrassem juntas três ou quatro palavras que poderiam fazer parte de uma frase, que as ditassem aos quatro meninos restantes, que eram os escribas. Esse trabalho foi repetido por três ou quatro vezes e, a cada vez, conforme o engenho foi projetado, as palavras se deslocavam para lugares novos, conforme os pedaços de madeira se moviam para cima e para baixo.

Os jovens estudantes executavam essa tarefa por seis horas por dia. O professor mostrou diversos volumes em folhas grandes, já reunidos, de frases quebradas, que ele pretendia juntar e, a partir daquele rico material, dar ao mundo uma enciclopédia completa de todas as artes e ciências. Porém, o trabalho seria muito aprimorado e acelerado se o poder público arrecadasse um fundo para construir e utilizar quinhentas dessas máquinas em Lagado e obrigasse os administradores delas a contribuir em comum com seus diversos resultados.

Garantiu-me que sua invenção ocupou todo o seu pensamento desde a juventude, que despejou todo o vocabulário nesse engenho e executou o cálculo mais preciso da proporção geral que há nos livros entre o número de partículas, substantivos, verbos e outras partes do discurso.

Expressei meu mais humilde reconhecimento a essa ilustre pessoa, por sua especial comunicabilidade e prometi que se, algum dia, tivesse a ventura de retornar ao meu país natal, lhe faria justiça como o único inventor dessa máquina maravilhosa, cuja forma e projeto pedi permissão para delinear no papel, conforme a figura anexa. Disse-lhe que, embora fosse um hábito de nossos estudiosos europeus roubar invenções uns dos outros, de maneira que se tornava controverso quem era o autor original, eu teria a precaução de que ele tivesse toda a honra, sem rival.

Seguimos para a escola de línguas, onde três professores estavam incumbidos de trabalhar na melhoria do idioma de seu próprio país.

O primeiro projeto era encurtar o discurso, cortando os polissílabos em monossílabos e eliminando os verbos e particípios porque, na realidade, todas as coisas imagináveis são substantivos.

O outro projeto era um plano para abolir inteiramente todas as palavras que existem. Considerava-se que isso seria uma grande vantagem com relação à saúde e à concisão. É evidente que, a cada palavra que dizemos, estamos reduzindo em algum grau nossa capacidade pulmonar por corrosão e, conseqüentemente, contribuindo para o encurtamento de nossas vidas. Um expediente foi proposto, então. Se as palavras são apenas nomes para coisas, seria mais conveniente que todos os homens carregassem consigo as coisas necessárias para expressar um assunto em particular sobre o qual discursariam. E essa invenção certamente teria se concretizado, para grande conforto e saúde dos súditos, se as mulheres, em coalizão com os plebeus e analfabetos, não tivessem ameaçado uma rebelião, a menos que pudessem ter a liberdade de falar com a língua, da mesma maneira que seus antepassados. Como são constantes e irreconciliáveis inimigas da ciência as pessoas comuns!

Entretanto, muitos dos mais educados e sábios aderiram ao novo projeto de se expressar por coisas. Havia apenas o inconveniente de que, se as ocupações de um homem fossem muitas e de vários tipos, ele seria obrigado a carregar um grande fardo de objetos nas costas, a menos que pudesse contratar dois fortes auxiliares para ajudá-lo. Muitas vezes, observei dois desses sábios, quase afundando sob o peso de suas bolsas, como mascates entre nós e, ao se encontrarem na rua, colocarem no chão sua carga, abrirem as sacolas e manterem uma conversação por uma hora. Então, guardavam seus utensílios, ajudavam um ao outro a retomar seus fardos e iam embora.

Mas, para conversas curtas, um homem poderia carregar instrumentos suficientes nos bolsos e sob os braços. Estando em casa, não teria problemas. Portanto, a sala em que as pessoas se encontravam para praticar essa arte era cheia de todas as coisas, ao alcance das mãos, necessárias para dar assunto a esse tipo de conversação artificial.

Outra grande vantagem oferecida por essa invenção era que serviria como idioma universal, entendido por todas as nações civilizadas, cujos bens e utensílios são geralmente do mesmo tipo, ou aproximadamente semelhantes, de maneira que seu uso seria facilmente compreendido. Assim, embaixadores estariam qualificados a se apresentar a príncipes estrangeiros ou Ministros de Estado, cujas línguas desconhecessem completamente.

Estive na escola de matemática, onde o mestre ensinava seus alunos um método difícil de imaginar para nós europeus. A proposição e a demonstração eram inteiramente escritas em uma fina hóstia, com uma tinta composta de um extrato cerebral. O estudante deveria engoli-la em jejum e, nos três dias seguintes, não comer nada exceto pão e água. Conforme digerisse a hóstia, a tinta seria absorvida por seu cérebro, levando com ela a proposição matemática. Mas ainda não foi possível observar o sucesso desse método, em parte por algum erro na composição da hóstia e em parte pela perversidade dos jovens, que acham essa massa tão nauseante que geralmente a vomitam escondidos antes que funcione. Também não se consegue convencê-los a praticar o período de abstinência que a receita exige.



Capítulo 6



[Mais relatos da Academia. O autor propõe algumas melhorias, que são recebidas de maneira honrosa.]

Na escola de pesquisadores políticos, passei maus momentos. Os professores pareciam, a meu juízo, totalmente fora de si, cena que nunca deixa de me tornar melancólico. Aqueles infelizes propunham planos de convencer os monarcas a escolher seus favoritos com base em sua sabedoria, capacidade e virtude; de ensinar ministros a consultar o interesse público; de recompensar o mérito, as grandes competências e os serviços eminentes; de instruir os príncipes a conhecer seu verdadeiro interesse, colocando-o nas mesmas bases do interesse de seu povo; de escolher para os cargos públicos pessoas qualificadas a exercê-los; e várias outras quimeras loucas e impossíveis, que jamais puderam ser concebidas pelos corações humanos, e confirmaram minha antiga observação de que “nada é tão extravagante e irracional que algum filósofo não tenha sustentado como verdadeiro”.

Mas, entretanto, devo fazer justiça a essa parte da Academia, reconhecendo que nem todos os pesquisadores eram tão visionários. Havia um médico muito engenhoso, que parecia perfeitamente versado em na natureza e no inteiro sistema de governo. Essa ilustre pessoa empregou seus estudos de maneira muito proveitosa, descobrindo soluções efetivas para todas as doenças e corrupções a que os vários tipos de administração pública estão sujeitos, tanto pelos vícios ou enfermidades daqueles que governam como pela licenciosidade daqueles que devem obedecer. Por exemplo, considerando que todos os escritores e pensadores concordam que há uma universal semelhança estrita entre o corpo natural e o corpo político, pode haver algo mais evidente que a proposição de que a saúde de ambos deve ser preservada e as doenças de ambos curadas pelas mesmas prescrições? É sabido que Senados e Assembléias são freqüentemente perturbados por humores redundantes, efervescentes e insalubres, por muitas doenças da cabeça e outras mais de coração, por fortes convulsões, por melancolia, flatulências, vertigens e delírios, por tumores escrofulosos, cheios de fétida matéria purulenta, por ácidas eructações espumantes, por apetites caninos e dificuldades de digestão, além de muitos outros males, que não é necessário mencionar.

Portanto, o doutor propôs que, nas reuniões do Senado, alguns médicos deveriam participar dos três primeiros dias e, ao final de cada dia de debates, medir o pulso de cada senador. Depois disso, tendo avaliado serenamente e pesquisado a natureza das diversas moléstias e seus métodos de cura, deveriam, no quarto dia, voltar à Casa Senatorial acompanhados de seus farmacêuticos abastecidos de medicamentos apropriados e, antes que os membros abrissem a sessão, administrar a cada um deles lenitivos, aperitivos, abstergentes, corrosivos, restringentes, paliativos, laxantes, cefalágicos, ictéricos, apofleumáticos, acústicos, conforme seus diversos casos exigissem. E, conforme o efeito desses medicamentos, repeti-los, alterá-los ou omiti-los na sessão seguinte.

Esse projeto não consistiria numa grande despesa para o público e poderia, em minha humilde opinião, ser muito útil para dar celeridade aos trabalhos nos países em que o Senado tem participação no Poder Legislativo. Serviriam para produzir unanimidade, encurtar debates, abrir algumas bocas que estão fechadas e fechar muitas mais que estão abertas, restringir a petulância dos jovens e corrigir as certezas dos velhos, despertar os idiotas e desanimar os ousados.

Novamente, porque é uma queixa generalizada de que os favoritos dos príncipes são acometidos de memórias curtas e débeis, o mesmo doutor propôs que qualquer um que estivesse a serviço de primeiro-ministro, depois de lhe apresentar seus assuntos de trabalho com a maior brevidade e usando as palavras mais claras possíveis, deveria, ao sair, dar ao dito ministro um beliscão no nariz, ou um chute na barriga ou pisar em seus calos, puxar três vezes ambas as suas orelhas, ou alfinetar suas nádegas, ou beliscar seguidamente seu braço, para não deixar que ele se esquecesse. E, a cada dia de reunião, repetir a operação até que o assunto estivesse resolvido ou recusado de maneira absoluta.

Da mesma maneira, o doutor orientou que cada senador no grande conselho de uma nação, depois de expressar sua opinião e argumentar em defesa dela, deveria ser obrigado a votar na proposta contrária porque, se isso fosse feito, o resultado infalivelmente resultaria no bem do povo.

Quando partidos de um Estado são violentos, propunha uma maravilhosa invenção para reconciliá-los. O método é este: tomar cem líderes de cada partido; juntá-los em duplas nas quais os dois membros tivessem a cabeça de tamanho mais próximo possível. Então, deixar que dois hábeis cirurgiões serrassem o occipício de cada dupla ao mesmo tempo de maneira que o cérebro fosse dividido em duas partes iguais. Fazer com que os occipícios assim cortados, fossem trocados, aplicando cada um à cabeça de seu opositor. Parece, de fato, ser um trabalho que requer alguma exatidão, mas o professor nos assegurou que, se fosse feita de maneira habilidosa, a cura seria infalível. Se as duas metades de cérebro pudessem debater a questão entre si dentro do espaço de um crânio, logo chegariam a bom entendimento e produziriam a moderação e a regularidade de pensamento que se deseja para a cabeça daqueles que imaginam que vieram ao mundo apenas para observar e governar seu movimento. E, sobre a diferença de cérebros, em quantidade e qualidade, entre aqueles que dirigem facções, o doutor nos garantiu, baseado em seu conhecimento, que isso era uma total insignificância.

Ouvi um debate muito acalorado entre dois professores sobre as maneiras e meios mais cômodos e efetivos para arrecadar dinheiro sem angustiar o súdito. O primeiro afirmou que o método mais justo seria criar um imposto sobre os vícios e a tolice. O valor a ser pago seria determinado para cada homem, da maneira mais legítima, por um júri de seus vizinhos. O outro tinha uma opinião diretamente oposta: taxar aquelas qualidades do corpo e da mente pelas quais os homens se valorizam. O valor seria maior ou menor, de acordo com os graus de excelência. A decisão seria deixada inteiramente à consciência de cada um. Os impostos mais altos seriam pagos pelos homens que fossem os maiores favoritos do outro sexo. As avaliações seriam de acordo com o número e a natureza dos favores recebidos, pelos quais seria permitido que os cidadãos fossem suas próprias testemunhas. Inteligência, coragem e polidez também seriam grandemente taxadas e esse imposto seria calculado da mesma maneira, com cada pessoa dando sua própria palavra sobre as qualidades que possuía. Mas a honra, justiça, sabedoria e erudição não seriam taxadas de forma alguma, porque são qualificações de um tipo tão singular que nenhum homem as reconheceria em seu semelhante nem as valorizaria em si mesmo.

Pela proposta, as mulheres seriam taxadas por sua beleza e habilidade em se vestir bem. Teriam o mesmo privilégio que os homens, de determinar essas qualidades por seu próprio julgamento. Mas a constância, a castidade, o bom senso e a bondade não seriam taxados, porque não compensariam o custo da arrecadação.

Para que os senadores não se afastassem do interesse da Coroa, propunha-se que se sorteassem as vagas do senado. Cada homem primeiramente faria o juramento e daria sua palavra de que votaria a favor da corte, ganhando ou perdendo. Depois disso, os perdedores teriam o direito de participar dos sorteios seguintes quando houvesse novas vagas. Assim, a esperança e a expectativa seriam mantidas, ninguém reclamaria de promessas quebradas, mas imputaria seu desapontamento unicamente à sorte, cujos ombros são mais largos e mais fortes que os de um ministro.

Outro professor me mostrou um grande papel com instruções para descobrir intrigas e conspirações contra o governo. Aconselhou os grandes estadistas a examinar a dieta de todas as pessoas suspeitas, a hora em que comiam, de que lado dormiam na cama, com que mão limpavam o traseiro, fazer um exame cuidadoso de seus excrementos e, por sua cor, odor, sabor, consistência, crueza ou maturidade da digestão, formar um julgamento de seus pensamentos e projetos. Porque os homens nunca são tão sérios, pensativos e concentrados como quando estão na privada, o que ele descobriu por repetidas experiências. Nessas conjunturas, quando, simplesmente como teste, considerou qual a melhor maneira de assassinar um rei, seus excrementos tiveram uma coloração esverdeada. Mas tornaram-se totalmente diferentes quando pensou apenas em liderar uma insurreição ou em queimar a metrópole.

Todo o discurso foi escrito com grande sagacidade, contendo muitas observações curiosas e úteis para os políticos. Mas, em minha opinião, era incompleto. Arrisquei-me a dizê-lo ao autor e me ofereci, se ele assim desejasse, a dar minha contribuição. Recebeu minha proposta com mais complacência do que é comum entre escritores, especialmente se são pesquisadores, declarando que ficaria feliz em ouvir mais informações.

Disse a ele que, no reino de Tribnia, chamado de Langdon pelos nativos, onde permaneci por pouco tempo durante minhas viagens, a maioria da população consistia, até certo ponto, em investigadores, testemunhas, espiões, delatores, acusadores, alcagüetes, juradores, com seus vários instrumentos subservientes e subalternos. E todos eles agindo sob as bandeiras, a conduta e o pagamento de ministros de estado e seus representantes. As conspirações naquele reino são normalmente obra daquelas pessoas que desejam realçar sua capacidade de políticos profundos, dar novo vigor a uma administração enlouquecida, extinguir ou distrair o descontentamento geral, encher o bolso com confiscos, elevar ou afundar o conceito de crédito público, da maneira que atenda melhor à sua vantagem privada. Primeiro, chegam a um acordo sobre quais pessoas suspeitas serão acusadas de uma conspiração. Então, toma-se o cuidado especial de se apoderar de todas as suas cartas e papéis e acorrentar os proprietários. Esses papéis são entregues a um grupo de artistas, muito hábeis em descobrir os significados misteriosos de palavras, sílabas e letras. Por exemplo, podem descobrir que uma privada fechada significa um Conselho Privado; um bando de gansos, o Senado; um cachorro manco, um invasor; uma praga, o Exército; uma ave de rapina, o Primeiro-Ministro; a doença gota, um prelado; uma forca, um Secretário de Estado; um penico, um Comitê de Nobres; uma peneira, uma dama da corte; uma vassoura, uma revolução; uma ratoeira, um emprego; um poço sem fundo, um tesouro; uma pia, a corte; um chapéu de bobo-da-corte, um favorito; um traidor, um tribunal; um tonel vazio, um general; uma chaga supurando, a administração.

Quando esse método falha, existem outros dois mais efetivos, que os mais eruditos entre eles chamam de acrósticos e anagramas. Primeiro, podem decifrar todas as letras iniciais em significados políticos. Assim, N significa uma conspiração; B, um regimento de cavalaria; L, uma frota no mar; ou, em segundo lugar, transpondo as letras do alfabeto em qualquer papel suspeito, podem deslindar os mais ocultos projetos de um partido descontente. Assim, por exemplo, se eu dissesse em uma carta a um amigo “Nosso irmão Tom está com hemorróidas” [no original, 'Our brother Tom has just got the piles'], um hábil decifrador descobriria que as mesmas letras que compõem a frase podem formar as seguintes palavras: “Resistam — uma conspiração está chegando em casa — A viagem”. [No original, 'Resist—, a plot is brought home—The tour.'] Este é o método anagramático.

O professor me agradeceu imensamente por ter comunicado essas observações e prometeu fazer uma menção honrosa a mim em seu tratado.

Não vi mais nada nesse país que pudesse me persuadir a permanecer por mais tempo e comecei a pensar em voltar para casa na Inglaterra.

quinta-feira, 11 de junho de 2015

Esquecidos & Superestimados, de Rodrigo Gurgel

Vamos respirar um pouco de ar puro. Vamos falar de assuntos mais elevados: literatura e o trabalho admirável de Rodrigo Gurgel como crítico.

Foi com grande prazer que li o livro mais recente dele, Esquecidos & Superestimados, publicado pela Vide Editorial. Como em Muita Retórica — Pouca Literatura, obras brasileiras são analisadas, cada uma de um autor diferente. Percorremos assim as primeiras três décadas da nossa literatura do século 20.

Confesso que, desta vez, não li nenhum dos textos que ele aborda. Não importa. Aumentou minha lista de autores a conhecer, com a inclusão de, pelo menos, Simões Lopes Neto, Hugo de Carvalho Ramos e Valdomiro Silveira. Dependendo da minha disposição, gostaria também de ler Júlia Lopes de Almeida, Coelho Neto e Amadeu Amaral.

Gostei muito do capítulo sobre Monteiro Lobato, autor que marcou a minha infância e a de muita gente. Fico incomodado com a patrulha tacanha que ele sofre hoje dos analfabetos politicamente corretos, que querem colocar em suas edições infantis advertências sobre Tia Nastácia. É verdade que olhei novamente a História do Mundo para Crianças e não gostei tanto assim do que li. E fiquei de fato chocado quando li O Presidente Negro. Não acho que a obra infantil de Monteiro Lobato seja racista, mas este livro é sim. As pessoas criticam o racismo que não existe e ignoram o racismo real, porque não lêem nem os livros para crianças nem os para adultos.

Monteiro Lobato é estigmatizado por causa do artigo Paranóia ou mistificação?, de 1917, em que criticou a exposição de Anita Malfatti. Embora acusado de prepotente e de inimigo de qualquer avanço cultural, Lobato publicou inúmeros escritores jovens e desconhecidos, incluindo Guilherme de Almeida, Amadeu Amaral, Gilberto Amado, Lima Barreto, Oswald de Andrade e Menotti del Picchia. Teve a competência de montar uma rede de distribuição de livros com bancas de jornal, papelarias, farmácias e armazéns. Em 1923, tinha quase 200 títulos no catálogo. Sem a efervescência cultural que sua editora criou, a Semana de 22 não teria sido possível.

Os outros autores mais conhecidos de quem Rodrigo Gurgel trata são Lima Barreto, Euclides da Cunha e Olavo Bilac. Gurgel diz que Lima Barreto defendeu uma literatura militante, que deveria mostrar as qualidades de seus personagens e afirmar que o entendimento e o amor entre pessoas muito diferentes era possível. Mas sua obra é marcada pelo sentimento de derrota, seu e de seus personagens.

Os Sertões, de Euclides da Cunha, é um livro que exige uma disposição especial do leitor para enfrentar um vocabulário rebuscado e descrições topográficas e geológicas intermináveis. Gurgel nos convence de que o esforço vale a pena. Aponta as semelhanças entre um trecho de Os Sertões e um poema de Rimbaud e especula se Euclides da Cunha teria tomado contato com esse autor na biblioteca de Francisco Escobar.

Olavo Bilac é analisado por suas crônicas, consideradas datadas, nas quais abundam hipérboles vazias e falta conteúdo. Podemos ver vários exemplos de sua estilística piegas, cheia de adjetivos extremados e completamente inadequados.

Rodrigo Gurgel elogia três contistas que se situam acima do que se costuma chamar de regionalismo. O gaúcho Simões Lopes Neto é autor de Lendas do Sul, uma coletânea de contos folclóricos narrados com grande habilidade. Hugo de Carvalho Ramos, goiano, escreveu Tropas e Boiadas, narrando histórias de tropeiros do Centro-Oeste. Seus contos cheios de espontaneidade e tensão épica fogem dos lugares-comuns com inteligência, sensibilidade e apuro lingüístico. Valdomiro Silveira, paulista, é autor de Os Caboclos. Os 24 contos desse livro são histórias singelas ou dramáticas, que costumam começar de maneira que a atenção do leitor é imediatamente capturada. Seus narradores se expressam com desembaraço, suas frases se encadeiam sem adereços desnecessários, seu ritmo é leve. É o avesso do beletrismo balofo de Afonso Arinos.

Há muito mais autores esquecidos que superestimados, mas vamos mencionar dois destes últimos. Antônio Sales, autor de Aves de Arribação, tem, segundo Gurgel, o mérito de concentrar em duzentas páginas todos os defeitos da literatura brasileira: ornamentação piegas, retórica afetada, uso desmedido de adjetivos e de lugares-comuns, falta de interação entre os personagens, estilo e técnica narrativa deficientes. João do Rio escreveu A correspondência de uma estação de cura, uma narrativa epistolar frouxamente composta, em que os personagens se expressam invariavelmente de maneira frívola, mesquinha e afetada.

Aprendi muito com Esquecidos & Superestimados, que vai me fazer ler mais.

1. À espera de justiça
— Júlia Lopes de Almeida e A falência

2. Escondido e desprezado
— Emanuel Guimarães e A todo transe!

3. Combate interminável
— Euclides da Cunha e Os Sertões

4. Perseguido, mas brilhante
— Coelho Neto e Turbilhão

5. Perfumaria bilaquiana
— Olavo Bilac e suas crônicas

6. A salvação pelo duplo
— Lindolfo Rocha e Maria Dusá

7. Retorno à querência
— Simões Lopes Neto e Lendas do Sul

8. Manual de literatice
— Antônio Sales e Aves de arribação

9. Salvo da banalidade
— Hugo de Carvalho Ramos e Tropas e boiadas

10. Canalhice e afetação
— João do Rio e A correspondência de uma estação de cura

11. Salvo pela ironia
— Carlos de Laet e suas crônicas

12. Ideologia e azedume
— Lima Barreto e Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá

13. Psicopatia e racismo
— Afrânio Peixoto e Fruta do mato

14. Injustamente esquecido
— Valdomiro Silveira e Os caboclos

15. Corrosivo e sempre contemporâneo
— Monteiro Lobato, Urupês e Negrinha

16. O filho tardio de Alencar
— Alcydes Maya e Alma bárbara

17. Sobriedade e sutileza
— Amadeu Amaral e A pulseira de ferro

18. Equívocos e retórica
— Jackson de Figueiredo e Literatura reacionária

sábado, 6 de junho de 2015

Lendo A Queda, de Diogo Mainardi, com minha filha

Neste aniversário do Dia D, terminei de ler com minha filha A Queda — As memórias de um pai em 424 passos, de Diogo Mainardi. É o nono livro não infantil que lemos juntos. Claro que o livro não é para a idade dela. Claro que dá para explicar a ela tudo que está no livro.

Em janeiro, estivemos em Bertioga, para tripudiar sobre o cadáver de Joseph Mengele, como Diogo fez com seus filhos. Não estávamos lendo nada no momento e achei que seria um bom momento para encararmos A Queda. Contemplamos o amor paterno incondicional, a doença, o humor, a esperança, o mal absoluto da solução final nazista, a irresponsabilidade de quem comete um erro médico e a coragem de quem enfrenta suas limitações. Ela teve algum contato com Dante, Proust, Rembrandt, Joyce, os Evangelhos, Hitchcock, John Ruskin, Abbott e Costello, U2, Neil Young. Demoramos uns cinco meses para vencer essas cento e cinqüenta páginas. Parávamos a cada minicapítulo para explicar as citações, o contexto, o vocabulário, as letras de música em inglês. Ela tem paciência de ouvir minhas explicações e disse que gostou de ter lido. Não sou merecedor do privilégio que é poder dividir esses momentos com ela.

Minha filha, uma amiga dela e eu, pulando na areia da praia da Enseada, em Bertioga, para tripudiar sobre o cadáver de Joseph Mengele, em janeiro de 2015.