domingo, 27 de outubro de 2013

Escravidão, o Defeito na Estrutura

O Deus da Máquina, capítulo XIII
Escravidão, o Defeito na Estrutura
Isabel Paterson

As três grandes ideias foram reunidas afinal sem obstáculos; a alma individual e imortal, exercendo o autogoverno pela lei e livre para buscar o conhecimento por meio da razão. Depois de dois mil anos, os recursos da ciência foram liberados para a aplicação produtiva. A Declaração da Independência e a Constituição foram os instrumentos temporais desse evento. Mas, em seu projeto original, a Constituição teve de admitir um defeito primordial, uma contradição irreconciliável. A escravidão era uma instituição existente. Qualquer que fosse a forma de governo adotada pela União, ela devia extinguir a escravidão ab initio (como um fato oposto à ordem moral do universo) ou tolerá-la, desviando-se dessa declaração axiomática. Aqui, a forma federal, que é indispensável para a estabilidade, infelizmente admitiu um expediente ambíguo. Foi possível, temporariamente, deixar a escravidão para a jurisdição estadual. Sem dúvida, a opinião dos donos de escravos estava lastreada em sua posse iníqua; mas havia também um pretexto plausível para o adiamento. Havia um temor sincero de que os negros, muitos recém-trazidos da África, pudessem constituir um ônus e um perigo se libertados imediatamente. Não havia então a questão do voto, resolvida pela qualificação de propriedade. Apenas a dificuldade de assimilar à vida moderna, fora de uma relação servil, pessoas trazidas das selvas. Ninguém sabia exatamente como isso poderia ser feito, se por educação gradual dos negros ou se eles deveriam ser mandados de volta para a África. Enquanto isso, como o governo federal deve controlar as fronteiras externas, tinha autoridade para proibir a importação de escravos do exterior, e essa intenção foi indicada indiretamente. O sentimento implícito era contrário à escravidão. Por outro lado, a escravidão fez com que fosse incluída uma cláusula na Constituição provendo a extradição de escravos que fugissem cruzando fronteiras estaduais. Que o assunto era embaraçoso, observa-se pela linguagem; as palavras escravo e escravidão não são usadas. A expressão é uma “pessoa mantida em serviço ou trabalho”. (Na época, a descrição incluiria aprendizes brancos livres durante o período de aprendizado.) Escravos então eram pessoas, pelo menos; e também eram contados como pessoas na distribuição proporcional para a Câmara dos Deputados. Mas permanecia o fato inegável de que eram escravos; e a Constituição não os declarava livres por direito. O dano permanente infligido pela inclusão da escravidão é que ela corrompeu o princípio sobre qual a nova nação se criou. A emancipação pelos senhores de escravos como um ato de generosidade ou pelos estados como um ato de autoridade não poderia jamais equivaler a iniciar com a liberdade como o direito universal do qual a autoridade se origina. Além disso, a continuidade da escravidão tornava impossível que o Bill of Rights limitasse os governos estaduais como fazia com o governo federal. A existência da escravidão necessariamente prejudica o exercício dos direitos dos homens livres. Se o poder do estado faz de um homem um escravo, evidentemente ele o priva de sua liberdade de expressão e reunião, de segurança pessoal e do direito à propriedade; portanto, fica difícil proibir que esses abusos sejam cometidos contra qualquer pessoa. A suposta diferença entre “direitos humanos” e “direitos de propriedade” é uma confusão verbal; direitos de propriedade são direitos humanos. A questão verdadeira é entre o individual e o coletivo. Os únicos argumentos apresentados para defender a escravidão apelam para o coletivo, seja raça ou estado, para autoridade e coação; ao passo que, se os direitos são inerentes ao indivíduo, nenhum homem pode ser propriedade e todos os homens devem ter o direito de ter propriedade. Esse defeito moral causou um defeito estrutural, como não poderia deixar de acontecer. A lógica foi invalidada, de maneira que qualquer discussão era menos que uma futilidade. Os estados escravagistas alegavam que sua soberania de estados era suficiente para fazer de um homem um escravo. Então, a mesma soberania num estado livre deveria libertar qualquer pessoa que cruzasse a fronteira. Mas a cláusula de extradição negava esse atributo; porque a extradição de um escravo como tal é completamente diferente da extradição de um criminoso. O criminoso não se torna menos culpado depois que cruza a fronteira, ao passo que se presume que o escravo se torna livre; ao devolvê-lo, o estado livre é obrigado a violar sua própria lei básica.[1] É verdade que os estados livres aceitaram a condição injusta, para começo de conversa; a união parecia tão desejável que eles capitularam sobre esse ponto. Os estados escravagistas podiam dizer que os estados livres poderiam ter e poderiam extraditar escravos se quisessem. Porém, todos os estados tinham lutado por liberdade. Ambos os lados comprometeram irreversivelmente sua posição moral. Se os estados livres diziam que a escravidão era errada, continuariam a encorajá-la ou denunciariam a Constituição? Mas os estados escravagistas deviam amparar seu pleito na Constituição e a Constituição estava aberta para revisões. Se uma revisão chegasse a acontecer, eles aceitariam a mudança? O conflito ficou suspenso, enquanto permanecia a esperança de que a escravidão fosse gradualmente extinta. Mesmo assim, desde o início havia uma apreensão sobre a permanência da União. Isso ficou evidente no processo contra a nebulosa conspiração Burr-Blennerhasset[2], que foi uma energia tão forte na direção oeste que ninguém sabia exatamente qual era a intenção, nem mesmo os supostos conspiradores. O impulso continuaria até alcançar o Rio Grande e a Costa do Pacífico, chegar a Puget Sound e saltar para o Alasca. E a premonição estava certa; rasgou a nação no meio. Mas onde estava o verdadeiro ponto fraco? A menos que a questão seja colocada nos termos relevantes, não pode existir resposta. Embora a Guerra Civil tenha ocorrido há mais de setenta anos, a controvérsia continua aberta; o rompimento se deu por causa da escravidão, dos direitos dos estados ou da clivagem entre uma economia agrária e outra industrial? Os estados exigiram soberania em excesso? Se exigiriam, foi por causa da escravidão? A divisão dos poderes soberanos entre um governo federal e seus estados componentes não é uma questão simples; o passado está cheio dos destroços de ligas e federações. A questão completa da soberania é complexa demais. Na prática, sempre existe uma margem de discussão. A soberania territorial é delimitada por fronteiras. Essa é a virtude do nacionalismo; é uma restrição espacial do poder político, uma última salvaguarda para o indivíduo, uma chance de fugir da tirania local. O avanço do “internacionalismo” sempre implica num correspondente prejuízo à liberdade pessoal; mas isso é feito tirando-se a soberania de toda parte. A soberania se sustenta na nação; seus poderes são exercidos pelo governo. De ordinário, todos os poderes estipulados são considerados força num governo; e a ausência de qualquer poder no governo é considerada um grau de fraqueza. A verdade é que poderes que são essencialmente impróprios, porque contrários à ordem moral do universo, são fraquezas; e, da mesma forma, poderes concedidos a uma agência inapropriada. Impõem peso, estresse ou pressão de maneira que nenhuma estrutura consegue suportar. Quando está em questão um governo “fraco” ou “forte”, a conotação habitual dos termos se relaciona apenas à superestrutura; e o procedimento comum é mais centralização de poderes, que é o mesmo que um aumento no volume da superestrutura e um maior desvio de energia para ela. Além das forças e proporções corretas, isso é fatal; a menos que a resistência da base seja maior que o peso ou esforço da superestrutura, o conjunto vai desmoronar. Governos fracos são aqueles que não possuem uma oposição adequada e com instrumentos legítimos a partir das bases regionais e do veto de massa. A incompetência absoluta do governo é finalmente alcançada por aquilo que se chama de poder político absoluto, seja sob o nome de democracia ou de sincero despotismo.[3] Então, tanto os estados como o governo federal eram fracos demais, por exigirem poderes impróprios ou a distribuição imprópria de um poder legítimo. O último erro anulou um atributo vital da soberania, sua dimensão espacial. A menos que essa diferença entre poderes estipulados e força intrínseca seja entendida, não é possível uma discussão relevante sobre o assunto. A função dos estados numa federação é fornecer bases e estrutura vertical; essa função é estática. Espera-se que eles resistam contra pressões de cima, que tendem a separá-los, curvá-los para fora. De maneira estrita, não é possível que uma parte de uma fundação ou das estruturas verticais sobre ela tenha força estática em excesso, verdadeira autonomia local. Uma estrutura desmorona por sua fraqueza, não por sua força. Se ela se rompe violentamente, deve ser por pressões e estresses desbalanceados. Isso pode ocorrer por bases desiguais, conexões cruzadas defeituosas, ou uma superestrutura excessiva distribuída desigualmente. Se a escravidão não tivesse sido admitida na Constituição por tolerância, seu projeto original seria maravilhosamente sólido; mas sua inclusão introduziu os três tipos de defeito. Primeiro, tornou as bases desiguais. Com isso, causou pressões cruzadas desbalanceadas, já que a cláusula de extradição de escravos dava aos estados escravagistas um ponto de pressão sobre os estados livres. E, no longo prazo, a escravidão tornou-se uma desculpa para acrescentar peso excessivo à superestrutura e distribuí-lo desigualmente. Assim, todas as três causas alegadas da Guerra Civil fazem parte dessa única causa. E, como coroação dos males, mais uma vez o problema aparente mascarou o problema real. O problema aparente era a preservação da União. Mas a condição antecedente da união federal é a existência de estados. O problema real era a preservação dos estados. Se isso não fosse possível, a União deveria ou se desintegrar ou se solidificar numa massa. Se a estrutura é defeituosa, o fato de que ela é o melhor que os construtores puderam fazer, ou pensaram que poderiam fazer, não vai evitar as consequências físicas. Mas, como os assuntos humanos pertencem ao reino da lei moral, que é de uma ordem mais elevada que a lei mecânica, o resultado pode confundir todas as probabilidades mensuráveis. Uma vez que uma máquina foi concebida, é possível calcular seu desempenho. Mas não é possível estimar previamente quais máquinas o homem pode inventar. As máquinas não possuem existência ativa independente e, sendo criações da mente humana, o sistema em que operam deve corresponder à natureza do movedor primordial. É um clichê popular hoje em dia que o motor de combustão interna produziu ou exigiu de alguma maneira um novo princípio de organização política. Isso é ridículo. O próprio homem é um motor de combustão interna; ele é o determinante e seus dispositivos são apenas múltiplos de suas próprias capacidades e poderes. O motor de combustão interna aumentou o volume de produção e de energia num longo circuito que já existia, isso é tudo. As relações não se alteram. A linha de transmissão necessária é a mesma: a propriedade privada. A condição necessária dos seres humanos é a mesma: a liberdade. A única mudança é de grau, que pode envolver apenas um requisito de mais do mesmo, segurança absoluta da propriedade privada, liberdade pessoal plena e bases regionais firmemente autônomas para uma estrutura federal. Por essa razão, o potencial de uma nação não pode ser avaliado quantitativamente. Consiste em ideias abstratas, nos axiomas de relações humanas expressos na organização, não na riqueza material computada em uma determinada data. A Guerra Civil exemplifica esse princípio. Nos primeiros anos da República, todos os fatores mensuráveis eram preponderantemente favoráveis aos estados escravagistas do sul. Eles tinham amplos e variados recursos naturais. Seus principais produtos agrícolas, algodão e tabaco, tinham forte demanda no mercado mundial, gerando dinheiro e crédito. O prestígio legado por seus grandes estadistas era um patrimônio político. Praticamente, tinham o governo federal, a riqueza e a alavancagem legal. O norte tinha o empreendedorismo pessoal de uma população livre. Conforme a indústria do norte prosperava, parecia contribuir para a dominância do sul, pelo comércio e invenções que aumentavam os lucros dos donos de escravos e permitiam que eles estendessem o território escravagista. Essa aparência era ilusória. Subitamente, a economia livre se expandiu e começou a ocupar um território maior que a área reservada para a escravidão. A riqueza e o poder dos estados livres aumentavam em progressão geométrica, dobrando e redobrando. Logo antes da Guerra Civil, William Tecumseh Sherman[4] advertiu seus amigos sulistas a não provocarem a guerra, dizendo que uma economia agrária não pode competir com uma economia industrial num conflito armado. Mas a verdade é que o sul também não era uma verdadeira economia agrária; não tinha economia própria de nenhum tipo, não possuindo um gerador para o circuito local. Olhando além dos acasos de uma guerra específica, era incapaz de se tornar uma nação independente naquelas condições. O sul perdeu a Guerra Civil, como era fatal que acontecesse; e a questão da soberania dos estados foi descartada como uma tecnicalidade, deixada de lado pelo veredito sobre a escravidão. Ao recorrerem a guerra, os estados escravagistas cometeram o erro moral de repudiar um contrato depois de obter vantagens especiais por meio dele. O governo federal estava claramente obrigado a se defender da agressão e do separatismo. Tendo recebido sua autoridade por delegação, não teria o direito de abandonar suas funções delegadas, a menos que fosse legitimamente dissolvido pelos mesmos meios que o instituíram. O benefício da união para todos os estados é tão avassaladoramente evidente que sua dissolução, então ou agora, assume o aspecto de insânia violenta; mas se os eventos fossem descritos como puros fenômenos, um observador inteligente perceberia que deve ter havido algum defeito na estrutura, como numa casa que desmorona. Assim, a operação e as consequências do Ato de Reconstrução[5] devem levantar sérias dúvidas de que pudesse haver autoridade moral para perpetuar pela força uma união de origem voluntária. Também não é justificável alterar os termos de um contrato quando uma das partes está sendo coagida. Sendo feita à força, a estrutura reconstruída ainda continha um defeito físico correspondente ao defeito moral. O Ato de Reconstrução era a evidência imediata; varreu os estados como entidades políticas. Embora o Ato fosse transitório e tenha deixado de existir no tempo, o dano estava feito. Na organização política, o ato específico implicou num poder continuado. Mesmo que seja denominado como exceção, como expediente temporário, foi estabelecida a regra de que tais expedientes podem ser usados. Os estados do norte não poderiam consentir com qualquer extensão do poder federal sobre os estados do sul sem se sujeitarem à imposição do mesmo poder sobre eles no futuro. Não foi a libertação dos escravos que extinguiu a soberania dos estados. A liberdade é uma pré-condição, um universal, que a Constituição deveria ter reconhecido como primária. A destruição foi feita pela usurpação dos poderes dos estados pelo governo federal como que por direito de conquista. Se o governo federal lutou e venceu uma guerra de conquista, então os estados do norte e do sul perderam essa guerra. No lugar de genuínas bases regionais, a Guerra Civil resultou numa divisão artificial com interesses faccionários que iriam inevitavelmente tentar usar o poder federal para ganhar vantagens partidárias. E, nessa lição, os estados do oeste tiveram seu primeiro treinamento político.


[1] Nações civilizadas não permitem a extradição de criminosos políticos, porque o delito é estritamente local; um estado que entrega um refugiado político está assim atuando como agente do outro estado, em detrimento de sua própria soberania; ao passo que, ao extraditar um criminoso, atua como agente da justiça. (N. da A.)

[2] Em 1807, o ex-vice-presidente dos Estados Unidos, Aaron Burr, foi acusado de traição pelo presidente Thomas Jefferson. Ele havia reunido uma expedição de cerca 80 homens, baseada na ilha particular de um rico anglo-irlandês chamado Harman Blennerhasset. O objetivo declarado da expedição era colonizar uma área na Louisiana. A acusação contra ele nunca foi muito clara, e ele foi absolvido. (N. do T.)
[3] Exemplificados no colapso do velho regime na França, na Rússia czarista, na Turquia, etc. (N. da A.)
[4] General do exército da União na Guerra Civil Americana. (N. do T.)
[5] Os Atos de Reconstrução foram as condições impostas aos estados confederados para que fossem readmitidos na União. (N. do T.)

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