O Deus da Máquina, capítulo XII
A Estrutura dos Estados Unidos
Isabel Paterson
O problema
que os fundadores dos Estados Unidos enfrentavam era como, sem uma
aristocracia, manter bases regionais para a estrutura política. Não
era assim que o problema era enunciado na época, porque esta é uma
descrição da solução. Eles só conheciam o problema. De maneira
semelhante, não poderia ser dito que uma pedra angular deveria ser
projetada para completar a forma do arco, ou que um símbolo zero
deveria ser criado para ocupar uma posição nos números, até que
esses dispositivos fossem encontrados; tais enunciados são
impossíveis até que o problema tenha sido resolvido. Os
revolucionários americanos enunciaram o axioma dos direitos do
indivíduo, a Sociedade de Contrato, como fundamento racional e
justificação de sua independência. Uma aristocracia nativa
anularia essa intenção. Um vestígio remanescente, na forma de
morgadio (que é a raiz da sociedade de status), foi abolido em
conformidade. Os estados separados já existiam, e não haviam cedido
suas várias soberanias à frouxa federação original. Sua
resistência natural como entidades políticas existentes era
suficiente para derrubar propostas de extinguir sua autonomia, e
disfarçou os perigos futuros nessa direção. A questão apresentada
de imediato era como juntá-los em “uma união mais perfeita” —
sem escorregar para uma democracia. O que eles queriam era uma
República.
A objeção
à democracia era clara e fundamentada; mas por razões opostas às
do Velho Mundo. Era óbvio que a democracia dissolveria a ordem
europeia de sociedade, que era hierárquica, estruturada em
classificações hereditárias. A premissa da democracia é a
igualdade natural. A Sociedade de Status afirmava que a origem de sua
ordem moral era a família, estendida por analogia para a organização
política; mas essa hipótese ignora o fato primordial de que todas
as pessoas, no devido tempo, se tornam adultas. Ao fazer essa
extensão, o padrão feudal se torna fictício; fora dos assuntos
domésticos, não correspondia nem poderia corresponder aos fatos,
fosse nas relações de sangue ou na simples superioridade em idade.
Essa ideia justificava o domínio de poucos sobre muitos, pela
convenção arbitrária de descendência de famílias “antigas”.
Na natureza, uma família não pode ser “mais antiga” que outra.
A idade é pessoal. Mas a maturidade, a condição de ser adulto, é
a igualdade por definição. Por essa conclusão, os poucos não
podem ter o direito hereditário de comandar os muitos.
Por outro
lado, essa é uma ordem matemática aplicada apenas à cronologia.
Descreve os homens como iguais quando atingem um dado lapso de anos,
o período presumido do amadurecimento. Fora dessa única
classificação, não tem significado positivo ou intrínseco.1
Os gregos nunca foram capazes de validar sua hipótese para a
democracia, porque é um conceito materialista e o materialismo não
admite a igualdade humana, nem qualquer outro princípio de
associação humana. O materialismo considera a humanidade
simplesmente como uma espécie animal cujo comportamento é baseado e
determinado pelo instinto e pela oportunidade. Nessas bases, não
existem direitos nem questões morais; o que quer que aconteça deve
acontecer, e o que quer que deva acontecer acontece. Mas, mesmo que
esse beco sem saída no determinismo materialista seja ignorado e a
igualdade seja buscada com relação aos fenômenos, não a
encontraremos nos seres humanos, considerando-os como animais
“superiores” ou como objetos da natureza. O materialismo estrito
acaba por negar que o ser humano seja uma entidade; o decompõe em
uma massa informe de material plásmico “condicionado” a várias
“respostas” ou “reações”. Em termos materialísticos, a
psicologia se torna um ramo da fisiologia: o behaviorismo. Então, se
as respostas (atributos ou qualidades) são comparadas, podemos
demonstrar que um homem é mais forte que outro, ou dotado de alguma
capacidade (música, arte, o que for) que outro não possui, ou
possui em menor grau num dado momento; mas não há uma equação
geral para os diferentes dons, mesmo que fosse possível descobri-los
plenamente. A única definição de igualdade por medida é aquela de
Euclides: coisas que são iguais à mesma coisa são iguais entre si.
Isso pede um padrão objetivo fixo, um homem perfeitamente típico,
que encarne quantitativamente todos os atributos humanos em escala e
proporção absolutas como norma, e com um inimaginável denominador
comum pelo qual tais qualidades fossem traduzíveis em números de
pontos que pudessem ser somados. Assim, os homens como são poderiam
ser avaliados por comparação e receber cada um uma “nota”. (A
teoria platônica de arquétipos, ou o Ideal, foi uma tentativa
fracassada de contornar essa dificuldade.)
Mas o axioma
americano declarava a igualdade política como um corolário do
direito inalienável de todos os homens à liberdade. A democracia
era inadmissível porque ela precisa negar esse direito e
transformar-se em despotismo, como sempre aconteceu. Isso é feito de
maneira abstrata, por sua própria contradição lógica; e, na
prática, porque a lógica é uma afirmação de sequência. Não
são a liberdade e a igualdade que são incompatíveis, mas a
liberdade e a democracia.
A diferença
é aquela que existe entre um princípio e um processo; a confusão
surge de uma identificação imprópria entre uma proposição
negativa e uma positiva. Admite-se erroneamente que, quando a
reivindicação de poucos comandarem muitos é refutada, a
reivindicação oposta de muitos comandarem o indivíduo é
comprovada. Isso é totalmente indefensável, exceto em termos
estritamente materialistas; e, nesses termos, o direito é
completamente descartado. O direito como um conceito é
necessariamente oposto à força; se não for, a palavra não
significa nada.
A liberdade
é uma condição verdadeiramente natural; a própria vida só é
possível para um ser humano em virtude de sua capacidade de ação
independente. Se uma criatura viva for submetida à restrição
absoluta, ela morre. A vida humana é de uma ordem que transcende a
necessidade determinística da física; o homem existe por vontade
racional, livre arbítrio. Por isso, os termos racionais e naturais
da associação humana são de acordo voluntário, não de comando.
Portanto, a
organização adequada da sociedade tem de ser formada por indivíduos
livres. E sua igualdade é postulada sobre o simples fato de que as
qualidades e atributos de um ser humano, afinal, não estão sujeitos
a nenhum tipo de medida; um homem equivale a uma entidade espiritual.
Mas a
democracia é um termo coletivo; descreve o agregado como um todo, e
assume que o direito e a autoridade residem no todo, embora derivados
da condição adulta dos indivíduos que o compõem. Então, é
necessário supor que, em um momento desconhecido, por uma sanção
desconhecida e absolutamente sem nenhuma razão, tal direito e
autoridade foram irrevogavelmente transferidos dos indivíduos para
um grupo que não é nada além de uma soma numérica, ou partículas
fundidas numa massa. A autoridade então não está em parte nenhuma.
Nenhuma parte dela está em nenhuma parte da massa. Assim, a
democracia se dissolve em puro processo, e mesmo o processo é
fictício, porque os indivíduos não podem se fundir realmente,
embora um grupo possa exercer a função de massa para um dado
propósito num dado momento, por inação: um negativo. O processo
fictício que se imagina que funcione na democracia pertence a uma
ordem física e matemática e não-moral, começando com um número
arbitrário delimitado pelo acaso do local de residência ou
ascendência.
Mas, se a
autoridade reside num todo coletivo, é evidente que, com a
discordância de uma única pessoa, esse todo não existe ou não
funciona mais; nesse caso, nenhuma ação geral poderia ser tomada
legitimamente. A premissa básica desapareceu. Na prática, a
democracia deve então abandonar sua própria suposta entidade de
todo coletivo e contar apenas com a maioria. Mas a maioria é somente
uma parte; assim, o governo da maioria implica, de maneira
inconcebível, que a parte é maior que o todo. Além disso, às
vezes não é possível se obter nem mesmo a maioria; existe uma
pluralidade de cursos de ação; nesse caso, uma minoria deve
comandar diversas outras minorias que, se somadas, são maiores que
ela em número ou peso. Essa é a contradição inerente da teoria da
democracia. Em qualquer situação, a liberdade pessoal é varrida
logo no início, com a transição teórica das partículas para a
massa ou da unidade para a soma. A escravidão de uma minoria, ou de
“estrangeiros”, é bastante consistente com o governo da
maioria.2
Mas, por
justiça, se um homem não tem o direito de comandar todos os outros
— o recurso do despotismo — também não tem qualquer direito de
comandar nem mesmo um outro homem; e dez homens, ou um milhão,
também não tem o direito de comandar nem mesmo um único outro
homem. Dez vezes nada é nada e um milhão de vezes nada é nada.
A objeção
material à democracia é que ela não tem estrutura. Esse defeito
prático corresponde ao defeito moral. A gravidade determina os
movimentos de uma agregação de partículas separadas sobre uma dada
superfície; com cada perturbação, cada partícula é sujeita ao
acaso descontínuo das probabilidades; se uma quantidade delas se
move em conjunto pelo mesmo impulso, é uma massa deslocada. A
diferença ativa de opinião na democracia ou é o descolamento de
uma partícula ou é uma massa deslocada. Como disse Madison3:
“não há remédio para os males da facção”. Uma facção é
massa fragmentária, com os diversos fragmentos sendo jogados uns
contra os outros pela força que ocasionou a divisão.
Em muitas
situações, nações diversas apresentaram certas aptidões em um
grau incomum. Diferentes períodos e lugares ficaram marcados pelo
florescimento esplêndido de talentos especiais. Tais manifestações
são creditadas de maneira vaga ao espírito da raça, mas essa frase
não resiste a uma análise. Os elementos são normalmente misturados
na origem, de maneira que uma cultura de certa maneira eclética
tornou-se homogênea pelo desenvolvimento, embora tenha permanecido
aberta a ideias novas. (Mesmo uma sociedade rigorosamente fechada
como o Japão recebeu uma inspiração estética da China.) Mas o
pré-requisito deve ser a existência de condições, ou de um modo
de associação, que não impeçam
esse desenvolvimento de faculdades inatas.
Se
examinamos as obras e pensamentos dos homens que fundaram os Estados
Unidos, fica evidente que eles tinham um senso estrutural altamente
desenvolvido, um notável sentimento e entendimento de forma,
proporção, perspectiva. Eram uma nação de arquitetos e pensavam
em matemática tão “naturalmente” como em palavras. São
indicações do contexto intelectual do período, de forma alguma
acidentais, que George Washington fosse agrimensor (embora de família
nobre); que Thomas Jefferson, advogado por profissão, fosse
apaixonadamente interessado em arquitetura; ou que Benjamin Franklin,
comerciante e artesão sem experiência náutica, fosse dado à
experimentação científica e não visse nenhum problema em se
propor a desenvolver sozinho uma fórmula para encontrar uma posição
no mar. De fato, o livro-texto padrão sobre navegação foi composto
por um cidadão da Nova Inglaterra, Nathaniel Bowditch, que não teve
educação formal avançada e não era navegador. Essa predisposição
não era de modo algum excepcional. Roger Sherman, formado na humilde
profissão de sapateiro, estudou matemática por conta própria a tal
ponto que conseguiu calcular um eclipse lunar. Uma ocasião, foi
convidado a discursar na inauguração de uma ponte.4
Caminhou cuidadosamente por sobre a estrutura e disse uma única
frase: “Não vejo, mas a ponte está firme.” Quando os habitantes
da Nova Inglaterra usavam habitualmente a expressão “eu calculo”,
é o que queriam dizer. Eles calculavam. Roger Sherman foi
responsável pelo método dual de representação nas casas do
Congresso — pelo voto popular na Câmara, com deputados
distribuídos proporcionalmente à população, e por igualdade entre
os Estados no Senado. Seu senso estrutural era sólido; conseguiu as
bases regionais e a função de massa-veto de uma vez. Ele sabia o
que ficaria firme.
Para
entender porque as bases não podem ser estabelecidas por sufrágio
popular sem qualificação de propriedade, é necessário apenas
tentar um equivalente com qualquer outro material físico. Seja a
substância em que a estrutura deve se apoiar composta de partículas
separadas de igual tamanho e peso, cada uma com possibilidade de se
mover. Obviamente, nada pode se firmar sobre ela. Um pilar ou
alicerce não pode ser fixado num amontoado de munição ou num monte
de areia. Deve haver algo sólido, auto contido e imóvel. Uma área
regional corresponde a essa descrição e sustentará uma base
permanente de representação política. A área deve estar
claramente circunscrita e a representação deve pertencer a ela e
não aos móveis habitantes, que podem vagar por aí e cruzar as
fronteiras quando quiserem.
O não
entendimento de que uma organização política é composta de
estrutura e mecanismo, ou seja, uma base fixa sobre a qual agências
de ação são acopladas, causou inúmeros desastres ao longo dos
tempos. Esses componentes foram lamentavelmente confundidos na teoria
feudal, na qual as áreas regionais eram a base estrutural real, mas
se acreditava que a família cumpriria essa função. Quando se
chegou ao ponto em que não havia herdeiros para uma família
territorial, outra sucessão foi estabelecida; mas ainda assim os
homens não entenderam a questão. Precisando de uma base imóvel,
sua solução incrivelmente irracional foi prender os homens à
terra, esmagando corpos vivos sob o peso dos pilares. Mas tudo o que
deveria ter sido feito é distribuir a representação conforme a
área. Para fazer isso, entretanto, a área precisa ser estabelecida
como uma entidade política, e ser assim representada; isso só pode
ser feito nomeando-se o representante pela organização política
local, e não pelo voto popular. Deve haver soberania local
delimitada na área.
Por outro
lado, a representação direta dos votantes numa agência definida de
governo é necessária para utilizar a função da massa, ou seja, da
população agregada. A representação da massa pode ser efetivada
apenas por delegados em proporção à quantidade de pessoas,
independentemente das diversas áreas que formam as bases.
Assim,
usando os materiais disponíveis, de acordo com princípios
arquitetônicos e mecânicos, os fundadores dos Estados Unidos
resolveram o problema pelo qual o Império Romano fracassou. A
Constituição dos Estados Unidos é um croqui arquitetônico e
mecânico, no qual o projeto é traçado em seus princípios mais
gerais. São tão simples como o projeto de uma fundação, de um
arco, de um cilindro de pistão ou de uma transmissão excêntrica;
e, como esses fundamentos, encarnam relações;
e são portanto capazes de aplicações de infinita complexidade. Mas
o projeto intrínseco deve ser mantido sempre.
Se as fundações forem removidas, ou a pedra angular retirada, o
arco cairá; se a cabeça do cilindro do pistão for queimada, a ação
cessará; se for solta uma ponta da haste excêntrica, ela só poderá
sair batendo em tudo e esmagar o mecanismo inteiro. Um maior volume
de energia não altera, nem pode alterar, as relações
necessárias envolvidas. A crença de que alteraria é a ilusão
fatal da atualidade. Um maior volume de energia tornou-se o pretexto
para destruir as bases regionais, quando elas deveriam ter sido
fortalecidas.
Examinemos a
Constituição como ela foi originalmente criada, incluindo o Bill of
Rights, estritamente de acordo com seus méritos e à luz de seus
resultados, como um plano arquitetônico e um aparato mecânico de
outros tempos pode ser estudado hoje por arquitetos e engenheiros
modernos. Descobriremos que ela é fantástica em sua correção, no
respeito à relação entre massa e movimento, que funciona por meio
da associação entre seres humanos; e com relação à liberação e
à aplicação de energia.
O Bill of
Rights e a cláusula de traição tomados juntos estabelecem o
indivíduo como o fator dinâmico. O Bill of Rights protege
completamente do controle político as faculdades e os instrumentos
da iniciativa e do empreendedorismo. Nenhuma lei pode ser aprovada
contra a liberdade da mente, seja na religião, no discurso ou na
imprensa; nem para restringir o intercâmbio de ideias em reunião
pacífica; nem para impedir a expressão da opinião particular de
indivíduos ao governo, por petição. Nenhuma lei pode privar o
indivíduo do direito de portar armas. Soldados não podem ser
aquartelados entre os cidadãos em tempo de paz; nem mesmo em tempo
de guerra, exceto sob regulação civil. Não se pode entrar na casa
de nenhum homem, exceto com um mandato formal, por causa de uma
acusação específica autorizada por lei e restrita ao propósito
expresso. Ninguém pode ser julgado a menos que tenha sido indiciado
por um crime, nem condenado por julgamento secreto ou sem testemunhas
e advogado. E o mais importante para a manutenção desses direitos,
a propriedade privada não pode ser tomada para uso público sem
justa compensação. Finalmente, tentativas da parte do governo de
anular essas salvaguardas por meios indiretos, fiança excessiva,
multas excessivas e tortura (punições cruéis e incomuns) foram
proibidas. (Fiança excessiva só pode significar fiança fixada em
uma soma que estaria além dos meios de uma pessoa média conseguir.
Uma multa excessiva seria uma soma maior do que o delito poderia
envolver; se isso não fosse proibido, uma multa seria uma maneira
fácil de confiscar a propriedade de qualquer um ao menor pretexto.)5
A cláusula
de traição permanece singular entre todo o longo registro de
instituições políticas. Em primeiro lugar, ela declara que não
existe o crime de traição em tempos de paz. “Traição contra os
Estados Unidos consistirá apenas em mobilizar para a guerra contra
eles, ou aderir a seus inimigos, dando-lhes auxílio ou conforto.”
Nada, exceto rebelião armada ou unir-se a uma nação inimiga — e
nações, por definição, só são inimigas quando em guerra —,
pode ser traição. Nenhum tipo de oposição pacífica ou pessoal ao
governo ou a membros do governo pode ser classificado como traição.
Mesmo o ataque forçado ou resistência de uma única
pessoa como tal (não tendo conexão ou
acordo com outras pessoas ou com um governo estrangeiro para o mesmo
fim), dificilmente poderia ser interpretada como “traição”, uma
vez que não constituiria “mobilizar para a guerra”. A traição
também deve ser “um ato manifesto”, não uma mera expressão de
opinião; e a condenação não pode ser baseada em evidências
circunstanciais; são necessárias duas testemunhas do ato. Na teoria
europeia, era traição atacar a pessoa do rei, mesmo por um motivo
não político. O homem e o cargo eram considerados inseparáveis. Um
atentado semelhante contra um membro de um governo republicano
verdadeiro é um delito criminal estritamente pessoal. Por essa
inédita limitação da traição, o governo ou a administração são
impedidos de impor silêncio quando cometem transgressões. Os meios
de represália contra críticas ou exposição não são permitidos a
seus membros.
Mas a
cláusula de traição também contém uma provisão significativa e
singular. “Nenhuma condenação por traição causará corrupção
de sangue; nem confisco, exceto durante a vida da pessoa condenada”.
É duvidoso se um americano médio de hoje entenderia prontamente o
significado da expressão “corrupção de sangue”, ou a limitação
do confisco ao tempo de vida da pessoa indiciada por traição. Mas a
primeira restrição definiu a culpa como pessoal; e a segunda
definiu a propriedade privada como pertencente a indivíduos. Ambas
contradizem a teoria coletivista do grupo como superior ou
antecedente ao indivíduo. É evidente, pelos comentários espantados
de nossa imprensa contemporânea, que os americanos se esqueceram
completamente do fato de que, antes de os Estados Unidos virem a
existir, as leis da Europa permitiam a punição de todos os membros
de uma família pelo crime de qualquer um de seus membros. Uma vez
que a família era a unidade política, as honras eram herdadas e o
privilégio pertencia em algum grau a todos os membros da família,
parecia justo e lógico que toda a família sofresse
proporcionalmente pela delinquência de qualquer membro. A pena
capital raramente era aplicada a todos, mesmo nos tempos mais
remotos. Mas penas menos extremas, como o exílio, o aprisionamento
ou o rebaixamento de status, não eram incomuns por mero parentesco;
da mesma maneira, a propriedade da família era sujeita ao confisco
total por um delito do seu chefe, mesmo que ele fugisse da jurisdição
ou morresse antes de ser julgado. Tudo fazia parte do mesmo pacote,
honras familiares, propriedade familiar, culpa familiar e confisco
familiar. Era naturalmente difícil manter a doutrina eclesiástica
de propriedade privada contra a ameaça do estado, embora a Igreja
nunca tenha abdicado dessa posição. A propriedade familiar é
evidentemente propriedade privada, diferenciada da propriedade
estatal ou comunal como norma; também segundo a doutrina cristã, a
culpa é pessoal. Mas, com uma acusação de traição, o governante
secular podia usar a unidade familiar como pretexto para confiscar
toda a propriedade da família; e, sob a cobertura desse
procedimento, recuar ao sistema político do feudalismo e alegar que
a propriedade não era realmente privada, mas mantida sob posse com
usufruto da coroa ou do chefe supremo, e que a posse deixaria de
existir se a lealdade do possuidor não se mantivesse. Títulos de
terra vinham de tanto tempo atrás e foram usados tão frequentemente
e por tanto tempo dessa maneira, emitidos por senhores locais ou
conquistadores, que a questão era extremamente complexa.
Por outro
lado, durante o período de estabelecimento da colônias americanas,
a prática de punir severamente famílias pela culpa de um membro foi
caindo em desuso, especialmente na Inglaterra, de onde foi
desaparecendo junto com a servidão. Mas, mesmo na Inglaterra, a
traição podia ser imputada por uma ampla gama de ações, ou por
meras palavras; e o confisco podia ser feito após a morte.
Mas a
Constituição Americana dizia, por meio de sua cláusula de traição,
que a propriedade privada pertence aos indivíduos por título
irrevogável. Se uma pessoa indiciada ou condenada por traição
fugisse, suas propriedades poderiam ser sequestradas (em confisco)
enquanto ela estivesse viva como fugitiva da justiça; mas, no
momento de sua morte, o título passaria desimpedido para seu
herdeiro legal. Nenhum membro de sua família poderia ser punido por
mero parentesco; ninguém pode ser considerado culpado pelo feito de
outra pessoa. Esse é o significado da proibição da “corrupção
de sangue”. Antes do ressurgimento do comunismo, até a Rússia
havia em grande medida adotado a prática americana; mas foi a
América quem primeiro declarou o princípio como absoluto.
Esse
dispositivo também impedia o Estado de possuir um poder invisível e
inespecífico sobre um acusado por meio de ameaças contra sua
família. Um homem íntegro pode enfrentar sua própria morte com
serenidade, mas ceder ante o prospecto de tortura ou mesmo de penúria
para sua mulher, seus filhos, seus pais ou irmãos. É vergonhoso
para nossas instituições educacionais e para a inteligência
política dos americanos que, durante a discussão dos famigerados
“processos de Moscou”, não tenha havido um comentário indicando
conhecimento da salvaguarda constitucional americana contra
julgamentos daquele tipo, e da base daquela salvaguarda na
propriedade privada individual; nem mesmo da teoria política
coletivista que admitia o procedimento russo até que o exemplo dos
Estados Unidos fizesse com que este caísse em desuso, por vergonha.
Para os
americanos e pelo axioma moral do seu sistema político, julgamentos
como os de Moscou são uma perversão abominável da justiça. Mas,
com o retorno do coletivismo, a imputação legal de culpa coletiva
também retorna inevitavelmente.
Todas essas
provisões do Bill of Rights e da Constituição são de extrema
importância para o fluxo de energia; o fato que elas expressam é a
causa da expansão sem precedentes dos Estados Unidos em extensão
territorial no tempo dado, por ter provocado a ainda mais
extraordinária extensão do campo da ciência física e da invenção
mecânica. Em cento e cinquenta anos, os homens subitamente ampliaram
e corrigiram seu conhecimento de princípios científicos que tinham
levado muitos milhares de anos para serem apenas descobertos; e
desenvolveram meios de aplicação que possibilitaram um simultâneo
crescimento populacional e uma elevação do padrão de bem-estar
além dos sonhos da humanidade no passado. Nada desse tipo jamais
havia ocorrido no mundo antes; a história não revela nada
comparável aos Estados Unidos como nação. Pode-se argumentar que
as contribuições ao conhecimento científico e à invenção
prática não se originaram apenas nos Estados Unidos. Mas foi a
existência dos
Estados Unidos e a consequente demonstração e difusão da liberdade
que possibilitaram as conquistas da ciência na Europa.
O que
aconteceu foi que o dínamo da energia usado na associação humana
foi encontrado. Está no indivíduo. E foi protegido da interferência
política por uma reserva formal, junto com os meios e materiais
pelos quais pode organizar o grande circuito mundial de energia. O
dínamo é a mente, a inteligência criativa, que nosso Bill of
Rights e nossa a cláusula de traição declararam livres de controle
político. Os meios materiais sobre os quais a inteligência se lança
pela iniciativa é a propriedade privada. Nada mais serve.
Da mesma
maneira, a estrutura de governo foi estabelecida sobre uma base
duradoura, sem prender os homens embaixo da fundação. Áreas
regionais foram delimitadas e os instrumentos de ação política
foram vinculados a elas, sem que a lei confinasse ninguém em uma
dada área; sem que o poder de governar tais instrumentos fosse
confiado a pessoas por direito hereditário; e sem que tal poder
fosse tornado ilimitado. Os instrumentos foram devidamente definidos
como agências. Pertenciam aos diversos estados como tais. Esse
efeito foi garantido pelo método de nomeação ao Senado. Os
senadores eram escolhidos pelos corpos legislativos dos estados; ou
seja, seu cargo era vinculado ao estado,
sendo derivado do estado; diferentemente dos governadores provinciais
romanos que eram nomeados pela autoridade central. O impulso era
contra o centro, em vez de ser a partir do centro; portanto, se
opunha ao peso da superestrutura. Por outro lado, o senador não
tinha nenhuma função política dentro do estado que representava.
Assim, o cargo não teria nenhuma tendência intrínseca de
separatismo. Tinha efeito apenas no centro. As pressões eram
duplamente equalizadas. Os diversos estados também preservavam sua
integridade política ao manterem a autoridade primária de
qualificar eleitores para as eleições federais.6
Em todo caso, a cidadania, como condição geral, era um atributo
federal; ou seja, um cidadão de qualquer estado tinha direitos de
cidadania em todos os outros estados. Isso dava coesão às
partículas para formar uma nação, sem prejuízo às bases
regionais. Os estados eram limitados a uma “forma republicana de
governo” pela autoridade federal.
Os cidadãos,
pela instituição da propriedade privada, tinham resistência contra
todas as agências de governo. A propriedade privada é a base
permanente do cidadão; não existe outra. O estado tinha de ser uma
área regional com representantes. Para preservar sua função
básica, também era necessário que os cidadãos tivessem voto
direto para o veto de massa inercial; por isso as duas casas
legislativas, o Senado para os Estados e a Câmara dos Deputados para
os cidadãos como indivíduos. A possibilidade de legisladores usarem
seus cargos para uma tomada direta de fundos públicos era evitada ao
proibi-los dessa ação com respeito ao mandato corrente.
O Senado,
tendo o mais longo dos mandatos e representando os estados como
entidades permanentes, tinha o controle das relações exteriores
pela ratificação, com as negociações atribuídas ao executivo. O
executivo não tinha nenhum meio específico de propor legislação
doméstica e apenas um veto provisório ou protelatório.
A Câmara
dos Deputados, eleita por voto direto dos cidadãos, tinha o poder de
expressar a propriedade e a função da massa, o veto final pela
negação, tendo a atribuição da iniciativa de estabelecer tributos
e conceder suprimentos. Todos os suprimentos deveriam ser concedidos
apenas em quantias determinadas para objetivos designados; qualquer
concessão deveria, portanto, ser usada no tempo especificado e teria
de ser concedida novamente. Se essa concessão não é dada, o veto
da inércia está em vigor. É necessário apenas não fazer nada.
Para impedir
que os estados maiores, mais ricos ou mais populosos jogassem seu
peso contra os estados menores, sua representação como estados era
igual. Para impedir que os estados menores ou mais pobres se
alinhassem e espoliassem os estados mais opulentos — jogando seu
peso conjunto — a representação popular era proporcional ao
número de cidadãos. Para impedir que a autoridade central
extorquisse os estados mais ricos para comprar os mais pobres,
determinava-se que o imposto federal sobre as pessoas podia ser
arrecadado apenas em proporção à população; enquanto tributos
sobre bens (tarifas alfandegárias, impostos sobre o consumo, taxas)
deveriam ser uniformes em todo o país. Ou seja, não poderia haver
favorecimento de nenhum estado com respeito a manufaturas, taxas
portuárias, etc. Isso impedia os monopólios políticos que eram a
ruína da Europa. E os estados não podiam, de maneira nenhuma,
estabelecer tarifas de fronteira ou portuárias.
Os diversos
estados foram proibidos de cunhar moeda ou emitir papel-moeda (“bills
of credit”), ou de fazer qualquer coisa, exceto ouro ou prata,
moeda corrente. Portanto, a linha de transmissão de energia não
poderia ser cortada ou desviada pela agência política de nenhum
estado. E o governo federal não foi
autorizado a emitir papel-moeda. Embora ele
tenha feito e faça isso, a autoridade não está na Constituição.
É expressamente estabelecido pela Constituição que os poderes que
não foram delegados à autoridade federal não podem ser exercidos
por ela. Também não foi concedido ao governo federal o poder de
cancelar contratos, embora ele tenha feito isso recentemente; mas os
estados foram proibidos expressamente.
O Judiciário
federal deveria ser nomeado vitaliciamente (sujeito a impeachment por
abuso do cargo) para ser um freio aos ramos Legislativo e Executivo.
A questão infindavelmente debatida de “revisão judicial” é
mera estultificação; a jurisdição da Suprema Corte é
especificada apenas sobre casos “levantados sob esta Constituição,
as leis dos Estados Unidos e os tratados feitos sob a autoridade
delas”, enquanto “esta Constituição, e as leis dos Estados
Unidos que devem ser criadas em consequência
dela, serão a lei
suprema da terra”. Nenhum sofisma pode
fugir da proposição de que a lei suprema
deve governar o veredito; é isso que supremo significa. Mas, depois
de discutir por cem anos contra essa função adequada e
indispensável da revisão judicial, os pseudo liberais inventaram
uma perversão hipotética particularmente viciosa dela. O juiz
Frankfurter a expressou, escrevendo sobre “os perigos e
dificuldades inerentes no poder de rever a legislação. Porque é
uma tarefa sutil decidir, não se a legislação é sábia, mas se os
legisladores estavam certos em acreditar que ela era sábia.” A
tarefa da revisão judicial não é
decidir se a legislação é sábia ou se os legisladores estavam
certos em acreditar que ela é sábia. A revisão judicial limita-se
a determinar se uma dada lei contraria a Constituição, a lei
suprema; e ela o faz se uma legislatura ultrapassa seu poder
constitucional ao aprovar a lei em questão — a legislatura não
tem nenhuma autoridade fora da Constituição.
A
determinação constitucional para a defesa armada era coerente com a
estrutura política. A autoridade original do governo federal era
suficiente para alistar e fornecer um exército permanente, sem
referência direta aos diversos estados; mas os suprimentos só
poderiam ser apropriados por um período de dois anos. Isso tenderia
a manter o exército profissional num tamanho razoável. Como o
método original era o alistamento voluntário, obviamente a intenção
era essa. Por outro lado, o direito primário de portar armas e
formar companhias milicianas era reservado aos cidadãos; mas, se
tais corpos milicianos devessem servir numa guerra declarada, seus
oficiais deveriam ser nomeados pelos estados; depois disso eles
estaria sujeitos à convocação pelo governo federal. Por toda
parte, a iniciativa permanecia com o indivíduo, como homem livre;
mas a ação formal repousava sobre as autoridades políticas, que
possuíam o poder inibitório formal. Embora uma guerra defensiva
seja justa e necessária, a guerra envolve destruição; por isso, o
poder inibitório deve regulá-la. Mas a ação criativa deve ser
livre.
Por sua
percepção dessas relações morais e por encarná-las
estruturalmente, a Constituição dos Estados Unidos foi descrita, de
maneira justa, como o mais notável documento político criado de uma
vez pela mente do homem.
1 A
igualdade em si mesma não significa nada, não implica em valor
algum; dois zeros são iguais. A liberdade associa um valor a ela.
Existe um argumento que diz que o serviço militar obrigatório é
correto porque se aplica igualitariamente. Isso justificaria a
tortura, se ela fosse aplicada igualitariamente. Esse argumento foi
levado mais longe por um pseudo liberal: “O sistema voluntário
parece bom. Na prática, é um horror moral… uma vez que ninguém
é capaz de dizer, apenas olhando para um jovem, se ele está
fazendo seu trabalho básico de guerra, ou é casado ou tem filhos
ou, talvez, não possui boa saúde. O sistema voluntário não é
voluntário. Na prática, é a pior forma de compulsão…
excelentemente projetado para tornar os jovens infelizes.” Então,
a escravidão não é escravidão, porque o mundo está povoado de
imbecis morais, todos igualmente apavorados com o olhar casual de um
estranho. (N. da A.)
2 O
clichê moderno: “Isto é uma democracia, eu sou o governo” não
faz sentido. Mesmo como uma agência, o governo é uma organização
formal com pessoal autorizado, da qual o cidadão privado não é
membro. Quando várias pessoas contratam um árbitro, elas
evidentemente não são o árbitro, embora este ocupe a função
pelo acordo delas. (N. da A.)
3 James
Madison, quarto presidente dos Estados Unidos. (N. do T.)
4 BULWARK
OF THE REPUBLIC. Burton J. Hendrick. Little, Brown & Co. (N. da
A.)
5 A
proibição constitucional a multas excessivas foi completamente
ignorada pela legislação recente, sem uma palavra de protesto dos
cidadãos e sem nenhuma tentativa de apelar aos tribunais. (N. da
A.)
6 A
proposta de abolir, por lei federal, o imposto de capitação (em
inglês, poll tax) determinado por alguns estados do sul como
qualificação do direito de voto é absolutamente inconstitucional.
(N. da A.)
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