domingo, 29 de junho de 2014

Sócrates, sobre uma briga entre irmãos

Em outra ocasião, Sócrates soube que dois irmãos, Querofonte e Querécrates, a quem ele conhecia bem, estavam brigados. Ao ver este último, chamou-o:

Certamente, Querécrates, você não é um daqueles que acham que bens materiais valem mais que um irmão. Os bens são insensíveis e os irmãos têm sentimentos; precisamos cuidar dos bens, mas um irmão pode cuidar de nós; você possui muitos bens, mas só um irmão. Também é estranho que alguém se sinta prejudicado por seus irmãos por não possuir o que eles possuem, mas não sinta a mesma coisa em relação a seus compatriotas; neste caso, as pessoas percebem que é melhor pertencer a uma comunidade possuindo o suficiente que viver na solidão, com a posse precária da propriedade de todos. Porém, não percebem que o mesmo princípio se aplica aos irmãos. Muitos possuem meios para que seus servos façam o trabalho em seu lugar e fazem amigos porque sentem a necessidade de ajudar, mas não se preocupam com seus irmãos, como se a amizade pudesse existir entre compatriotas, mas não entre irmãos! Porém, ter o mesmo sangue e a mesma criação cria fortes laços de afeto. Até animais selvagens criados juntos sentem uma ternura natural uns pelos outros. Além disso, nossos compatriotas respeitam mais aqueles que têm irmãos que aqueles que são filhos únicos e são menos dispostos a se desentender com os primeiros.

Se a diferença entre nós não fosse importante, Sócrates, — respondeu Querécrates —talvez fosse meu dever deixá-la de lado e não permitir que uma ninharia me separasse de meu irmão. Um irmão que se comporta como irmão, da maneira que você diz, é uma bênção; mas, se sua conduta não é essa, se é o inverso do que devia ser, qual o sentido de se tentar o impossível?

Querécrates, todas as pessoas acham Querofonte tão desagradável quanto você acha, ou alguns o consideram muito agradável?

Ah, Sócrates, — respondeu ele — essa é exatamente minha razão para odiá-lo: ele é muito bom para as outras pessoas, mas sempre que está próximo a mim, invariavelmente o que diz e faz é mais para me ferir que para me ajudar.

Bem, — disse Sócrates — se você tentar montar um cavalo sem saber a maneira correta, ele vai feri-lo. É assim com seu irmão? Será que o fere porque você tenta lidar com ele sem saber a maneira correta?

Não! — exclamou Querécrates. — Como eu não sei como lidar com um irmão, se eu retribuo qualquer palavra bondosa, qualquer ato generoso? Mas não tenho como falar ou agir gentilmente com alguém que me agride com suas palavras e ações. Mais que isso, não quero tentar.

Querécrates, o que você diz é espantoso! Se você tivesse um cachorro que fosse amistoso com os rebanhos e os pastores, mas rosnasse quando você se aproximasse, você não ficaria com raiva dele, mas tentaria tratá-lo bem para amansá-lo. Você diz que, se seu irmão tratasse você como a um irmão, seria uma grande bênção, e confessa que sabe falar e agir gentilmente: porém, não se propõe a agir para que ele se torne a maior bênção possível para você.

Receio, Sócrates, que me falte sabedoria para fazer Querofonte me tratar como deveria.

Porém, — disse Sócrates — não é necessário, a meu ver, nenhum esforço sutil ou estranho da sua parte: acredito que você sabe qual é a maneira de cativá-lo e fazer com que ele tenha boa opinião sobre você.

Se você observou que conheço algum encantamento para isso, sem que esteja consciente desse conhecimento, peço que me diga agora.

Então, diga-me: se você quisesse ser convidado para jantar com um amigo quando ele oferece sacrifício, o que você faria?
É claro que eu deveria começar convidando-o quando eu oferecesse sacrifício.

E suponha que você quisesse que um amigo seu cuidasse das suas coisas enquanto você estivesse ausente, o que você faria?

É claro que eu deveria primeiro assumir a responsabilidade de cuidar das suas coisas na ausência dele.

E suponha que você quisesse que um estranho apresentasse a você a cidade dele, quando você a visitasse, o que você faria?

Obviamente, eu deveria primeiro apresentar-lhe Atenas quando ele viesse para cá. Sim, e se eu quisesse que ele me ajudasse com os negócios que me levaram à sua cidade, é evidente que eu deveria primeiro fazer o mesmo por ele.

Parece que você esconde há muito tempo o conhecimento de todos os encantamentos que já foram descobertos. Ou será que você hesita em tomar a iniciativa, por medo de se desonrar, ao ser o primeiro a demonstrar boa vontade com seu irmão? Porém, geralmente se considera digno dos maiores elogios aquele que se antecipa à malevolência do inimigo e à benevolência do amigo. Assim, se eu achasse Querofonte mais capaz que você de trilhar o caminho para essa amizade, tentaria convencê-lo a dar o primeiro passo para um entendimento. Mas, da maneira como as coisas se apresentam, acho mais provável que esse entendimento seja bem-sucedido pela sua iniciativa.

É estranho isso, Sócrates. É um fato incomum que você peça a mim, que sou o mais novo, que conduza a questão! E não é verdade que qualquer outra pessoa terá a opinião contrária, ou seja, que o mais velho sempre deveria falar e agir primeiro?

Como assim? — disse Sócrates. — Não é a opinião geral que um jovem sempre deve dar passagem para o mais velho quando se encontram, oferecer seu assento a ele, dar-lhe um leito confortável, dar-lhe a precedência da palavra? Meu bom amigo, não hesite, mas assuma a tarefa de pacificar seu irmão e, imediatamente, ele responderá às suas atitudes. Você não percebe como ele é inteligente e franco? Pessoas baixas, é verdade, reagem prontamente a presentes, mas a bondade é a arma mais eficaz para convencer um homem de valor.

Mas e se todos os meus esforços não levarem a nenhum resultado? — perguntou Querécrates.

Bem, nesse caso, presumo que você terá provado que é honesto e fraterno e que ele é egoísta e não merece sua amizade. Mas tenho confiança de que as coisas não vão terminar assim; acho que, assim que perceber que você o desafia a ser seu amigo, ele se empenhará ao máximo em superar suas boas palavras e ações. O que aconteceria se um par de mãos recusasse a tarefa de ajuda mútua para a qual Deus as fez e cada mão tentasse contrariar a outra? Ou se um par de pés desprezasse seu dever de trabalharem juntos, para o qual foram feitos, e cada pé resolvesse criar problemas para o outro? É assim que vocês estão se comportando agora. Não seria o mais desastroso contra-senso usar como obstáculos instrumentos que foram feitos para o auxílio? E, além disso, os pares de irmãos, em minha opinião, foram criados por Deus para se ajudarem de maneira mais efetiva que um par de mãos, ou de pés ou de olhos, ou de qualquer instrumento que Ele tenha criado para ser usado em conjunto. Porque as mãos não conseguem lidar ao mesmo tempo com coisas que estão a mais de dois metros de distância. Os pés não alcançam em um passo coisas que estão separadas por dois metros. E os olhos, embora pareçam ter maior alcance, não conseguem ver, no mesmo instante, coisas que estejam até mais próximas, se algumas estão na frente e outras atrás. Mas dois irmãos, quando são amigos, agem ao mesmo tempo, pelo benefício mútuo, independentemente da distância que exista entre eles.



Narrado por Xenofonte, em Memorabilia. Traduzido por Marcelo Centenaro, a partir das traduções de E. M. Marchant, do grego para o inglês, e de Ana Elias Pinheiro, do grego para o português de Portugal.

O grifo é meu.

sexta-feira, 27 de junho de 2014

Cem Anos do Assassinato do Arquiduque Francisco Fernando e da Duquesa Sofia

No dia 28 de junho de 1914, o Arquiduque Francisco Fernando (em alemão, Franz Ferdinand), herdeiro do trono do Império Austro-Húngaro, e sua esposa, a Duquesa Sofia de Hohenberg, foram assassinados em Sarajevo. Esse atentado deflagrou a Primeira Guerra Mundial.

O crime foi planejado pelo coronel sérvio Dragutin Dimitrijević, que liderava o grupo terrorista Mão Negra. Ele recrutou um grupo de nacionalistas sérvios, quase todos jovens estudantes, e deu a cada um deles uma pistola ou uma bomba para atirarem contra o carro do Arquiduque. Deu também uma cápsula de cianeto, para que se suicidassem depois do atentado. Os terroristas eram Muhamed Mehmedbašić, Vaso Čubrilović, Nedeljko Čabrinović, Cvjetko Popović, Gavrilo Princip e Trifko Grabež. Čabrinović, Princip e Grabež eram tuberculosos e acreditavam ter pouco tempo de vida.

O Arquiduque e sua esposa estavam em visita a Sarajevo. Seu carro passou por Mehmedbašić e por Čubrilović, que não conseguiram atacá-lo. Quando a comitiva se aproximou de Nedeljko Čabrinović, o terrorista lançou sua granada. O artefato bateu no capô do carro, mas demorou um pouco a explodir. Acabou destruindo o carro seguinte e ferindo cerca de vinte pessoas. O motorista do Arquiduque acelerou e eles passaram incólumes pelos outros três conspiradores.

Muhamed Mehmedbašić Vaso Čubrilović Nedeljko Čabrinović Cvjetko Popović Trifko Grabež
Nedeljko Čabrinović tentou se suicidar tomando a pílula de cianeto e se jogando no Rio Miljacka. O veneno apenas o fez vomitar e o rio tinha menos de vinte centímetros de profundidade. Foi preso pela polícia depois de quase ser linchado.

Gavrilo Princip
Depois de ser recebido na Prefeitura, o Arquiduque decidiu visitar no hospital as vítimas do atentado, contrariando a orientação dos responsáveis por sua segurança. No caminho de volta, a comitiva errou o caminho e entrou em uma rua não prevista. Percebendo o erro, tentaram manobrar para voltar. Gavrilo Princip estava exatamente nesse ponto e disparou sua arma, atingindo o Arquiduque e a Duquesa.

Os participantes do atentado foram presos. Os executores foram condenados a penas de prisão. Os mandantes foram condenados à forca ou ao fuzilamento e executados. Čabrinović, Princip e Grabež morreram de tuberculose na prisão, antes do final da guerra.

Francisco Fernando não era filho do Imperador Francisco José, era sobrinho. Tornou-se o herdeiro do trono porque o príncipe herdeiro Rodolfo de Habsburgo, seu primo e único filho homem do Imperador, morreu em circunstâncias nebulosas, em sua estação de caça em Mayerling, em 1889. A versão oficial é de que o príncipe, de 30 anos, cometeu suicídio depois de matar sua amante, a Baronesa Maria Vetsera, de 17 anos.

Coronel Dragutin Dimitrijević

quinta-feira, 26 de junho de 2014

Sócrates conversa com seu filho Lâmprocles

Tendo percebido, certo dia, que Lâmprocles, o seu filho mais velho, andava indisposto com a mãe, chamou-o:

— Diz-me lá, meu filho, sabes que há certos homens a quem chamam ingratos?

— Sei, pois — respondeu o rapaz.

— E já reparaste bem no que fazem esses a quem dão tal nome?

— Sim, são aqueles que, tendo sido bem tratados e podendo devolver esse favor, não o fazem, a esses chama-se ingratos.

— Ora, então, e não te parece que podemos contar os ingratos no rol dos injustos?

— Claro.

— E já ponderaste alguma vez se, porventura, tal como não parece justo escravizar os amigos enquanto é justo fazê-lo com os inimigos, também não será injusto ser ingrato com os amigos mas justo se for com os inimigos?

— Já e parece-me que alguém que tenha sido bem tratado por outro, seja amigo, seja inimigo, e não tenha intenção de retribuir o favor, esse é injusto.

— Ora, se as coisas são assim, a ingratidão deve ser tida como uma total injustiça, não?

O filho concordou.

— Então, e quantos mais favores sem troca alguém tiver recebido, mais injusto será, não é?

Mais uma vez, o rapaz disse que sim.

— Então — continuou Sócrates —, será possível encontrarmos quem tenha sido mais beneficiado por alguém do que são os filhos pelos pais? Filhos que não existiam e a quem os pais deram o ser, a quem providenciaram ver tudo quanto existe de belo e participar em tudo quanto existe de bom, de entre os dons que os deuses concederam aos homens, dons que nos parecem de tal modo valiosos que, mais do que a qualquer outra coisa, todos recusamos deixá-los. Até as cidades instituíram a pena de morte para os crimes mais graves pensando que não poderias travar a injustiça senão com o medo de um mal maior. E certamente que não é pelo prazer do sexo que os homens geram filhos, porque para saciá-lo estão as ruas cheias e cheias as casas. Pelo contrário, é evidente que ponderamos a escolha da mulher de que poderemos ter melhores filhos e é a essa que nos unimos para procriar. Assim, claro, é o homem que sustenta aquela que juntamente com ele gera os filhos que espera ter e providencia, com a abundância possível, tudo quanto pensa que lhes irá ser necessário ao longo das suas vidas. E a mulher, ao aceitá-lo, carrega então esse fardo, grávida, pondo em risco a sua vida, partilhando o seu alimento com aquele que carrega no ventre e, depois de ter chegado ao fim do tempo, com grande esforço, e de ter dado à luz, alimenta-o e cuida dele, sem receber nada de bom em troca, sem que o seu bebé saiba quem o trata assim tão bem e sem que possa dar sinais do que precisa. É ela, então, que tentando adivinhar o que é bom para ele e o que o fará feliz, procura satisfazê-lo e cria-o, durante muito tempo, de dia e de noite, suportando com paciência o cansaço, sem saber se virá a receber por esse cuidado algum agradecimento.

E não chega apenas criá-las; além disso, quando as crianças parecem ser capazes de aprender alguma coisa, daquilo que os pais, eles próprios, têm como bom para a vida, então ensinam-lho. E para coisas em que acham que há outro que é mais capaz de os ensinar, enviam-no para junto desse, sem olhar a gastos, investindo tudo quanto podem para que os filhos se tornem o melhor possíveis.

Depois de ouvir o pai, o rapaz respondeu:

— Mesmo que assim seja e tenha feito tudo isto e muito mais ainda, ninguém poderia suportar o seu mau feitio.

— E achas que é mais gravosa a ferocidade de um animal ou a de uma mãe?

— A mim parece-me que a de uma mãe, sobretudo se for como a minha.

— Sim? Por acaso alguma vez te fez algum mal, mordendo-te ou dando-te um coice, como já aconteceu a muitos com animais?

— Ora, por Zeus, ela diz coisas que ninguém gostaria de ouvir em toda a vida.

— E tu — respondeu Sócrates — quantas vezes achas que, com palavras e actos, enquanto eras pequeno a aborreceste e lhe causaste incómodos de noite e de dia e quanto a afligiste por estares doente?

— Mas em momento nenhum lhe disse nem lhe fiz nada de que se envergonhe.

— Não? Achas que é mais difícil para ti ouvires o que ela te diz do que para os actores, quando nas tragédias se dizem uns aos outros as últimas?

— Só que esses — acho eu —, enquanto falam, não pensam que aquele que insulta está a insultar para causar danos, nem que aquele que ameaça está a ameaçar para fazer algum mal, e assim é fácil de aguentar.

— Então, e tu, sabendo que o que a tua mãe te diz não o diz com qualquer má intenção, mas porque quer que tenhas tudo melhor do que qualquer outro, ficas irritado? Ou julgas que a tua mãe tem para contigo alguma má intenção?

— Não, claro que não me parece nada disso.

Sócrates continuou:

— Ora, então tu, dessa que é tua amiga e que se preocupa quanto pode para que fiques bom, quando estás doente, e para que não te falte nada do que te faz falta, e que pede o melhor para ti aos deuses e lhes paga promessas, dessa, dizes que tem mau feitio? Olha que eu acho que se não podes suportar semelhante mãe, não podes suportar nada de bom. Ora diz-me lá, achas que há alguma outra pessoa com quem te devas preocupar ou não tencionas agradar nem obedecer nem a general, nem a qualquer outro governante?

— Por Zeus, claro que sim.

— Pois bem, — continuou Sócrates — e hás de querer ser agradável ao teu vizinho para que ele te empreste fogo, quando precisares dele, para que se torne teu companheiro das horas boas, para que se te acontecer algum acidente se prontifique logo a auxiliar-te de boa vontade.

— Claro — respondeu ele.

— Ah, sim?! E se encontrares um companheiro de viagem ou de navegação, ou de qualquer outra situação, ia fazer-te alguma diferença que fosse um amigo ou um inimigo ou achas que deverias preocupar-te com qualquer um deles com a mesma boa vontade?

— Acho que sim.

— Então, estás disposto a te preocupares com eles, mas achas que não deves respeitar a tua mãe que é a pessoa que é mais tua amiga? Não sabes, pois, que a cidade não se preocupa nem castiga nenhuma outra ingratidão, até fecham os olhos àqueles que tendo sido bem tratados não retribuem esse favor, mas, se, por acaso, alguém não respeitar os pais, levam-no a tribunal e rejeitam-no impedindo-lhe o acesso às magistraturas porque nem os sacrifícios oferecidos por ele à cidade poderiam ser oferecidos piedosamente, nem qualquer outra acção bela ou justa que praticasse. E, por Zeus, se alguém não cuidar do túmulo dos pais falecidos, também essa atitude a cidade examina ao confirmar as magistraturas. Ora tu, meu filho, se fores sensato, pedirás aos deuses que sejam indulgentes contigo, caso tenhas faltado à tua mãe nalguma coisa, para que estes não julguem que és um ingrato e não queiram negar-te benefícios. E, quanto aos homens, deverás manter-te alerta para que não percebam que não dás atenção aos teus pais e te desprezem todos e depois se veja que ficaste isolado dos teus amigos.

Porque se suspeitarem que és ingrato com os teus pais, ninguém acreditará que, tratando-te bem, possa vir a receber o teu agradecimento.


In Memorabilia, de Xenofonte. Traduzido do grego para o português de Portugal por Ana Elias Pinheiro.

domingo, 22 de junho de 2014

O Deus da Máquina, capítulo XXII

No penúltimo capítulo de "O Deus da Máquina", O Circuito de Energia em Tempos de Guerra, Isabel Paterson examina quais são as condições para que uma nação sustente uma força combatente. Ela conclui que a principal condição é que a nação continue sendo produtiva, para que o excedente de produção sustente o esforço militar. E que a única maneira para a nação continuar sendo produtiva é que a produção seja feita pela economia livre, com livre iniciativa e respeito à propriedade privada. Sem isso, a produção vai declinar, não haverá excedente para sustentar a força combatente e os recursos de capital da nação vão se exaurir.

Tudo isso foi escrito em 1943, quando a derrota da Alemanha e do Japão ainda não eram completamente evidentes.

O Circuito de Energia em Tempos de Guerra

O Deus da Máquina, capítulo XXII
O Circuito de Energia em Tempos de Guerra
Isabel Paterson, 1943

Bombardeiro B29
A guerra é uma demonstração em grande escala da natureza do governo como mecanismo e de sua relação com o fluxo de energia. A principal razão pela qual o governo é identificado com o poder é que a autorização e condução da guerra são prerrogativas da agência política; mas, se essa impressão for examinada como uma proposição da Física, descobriremos que a verdade é o contrário. O governo é estrutura repressiva e mecanismo expropriante, pelos quais, em tempos de paz, a energia dos cidadãos é protegida do canal guerreiro e represada, para ser liberada — não originada ou criada — quando a guerra começa. O poderio está antes da barragem. Não está no exército, mas na nação, uma vez que consiste em um excedente de produção, tanto em efetivo pessoal como em materiais. Um exército mobilizado é subtraído da produção e só pode funcionar se houver um suprimento contínuo fornecido pela vida civil da nação. É um produto acabado. Assim, nações e impérios de longa duração são sempre aqueles de caráter civil e sempre parecem estar despreparados para a guerra.

A ciência militar como tal considera apenas a ação do produto acabado e fica desorientada quando os exércitos se tornam ineficazes. A força de combate de uma nação é geralmente calculada em efetivos (pessoal) e armamentos, incluindo instalações estacionárias de defesa. É a partir desses cálculos que os projetos de conquista do mundo pela força das armas são empreendidos; e embora fracassem sempre, não se percebe a razão inerente porque fracassam.

Embora a produção seja a medida real do poder militar, uma estimativa bruta ou total pode ser ainda mais fatalmente enganosa. A produção é o fluxo de energia. Indica a força combatente disponível se a conexão entre a ordem civil e o exército estiver correta; caso contrário, revela apenas a extensão do desastre em potencial.

A relação correta depende do modo de conversão de energia em uso. Em uma economia primitiva, a força disponível é uma porcentagem simples. O produtor selvagem também é o combatente; é capaz de prover sua própria subsistência e regula a si mesmo, igualando-se nele o impulso beligerante e o controle. Não há organização externa ou comando. Isso vale também para a sociedade pastoril nômade; os combatentes precisam manter sua própria fonte de suprimentos e as linhas de suprimentos, porque também são os produtores. Nos dois casos, é óbvio que a tribo não pode dispor de seu efetivo em uma proporção além da reposição natural, por um dado período de anos, sem uma derrota absoluta por extinção.

Em comunidades agrícolas assentadas com uma cultura de artesanato, algum grau de organização militar específica passa a ser viável. Mas o tipo apropriado de organização é determinado pelo estágio de desenvolvimento do comércio. A esse respeito, a República Romana era uma economia mais avançada que o feudalismo estrito. A sociedade feudal era uma economia agrária plenamente organizada; e o limite estreito de sujeição ao serviço militar era determinado pela margem estreita de excedente de produção. Exigia-se de uma senhoria feudal que fornecesse apenas certo número de homens, que deveriam proteger o campo por apenas poucas semanas no ano. Seria inútil exigir mais; a economia não conseguiria equipá-los ou sustentá-los, com seu escasso suprimento de alimentos e seus meios de transporte de alcance limitado. Os combatentes, cavaleiros, escudeiros e cavalariços, não faziam muito trabalho produtivo, de maneira que podiam facilmente ficar à disposição, já que tinham de ser sustentados durante a paz da mesma maneira que durante a guerra. Os produtores eram praticamente isentos do serviço militar. Embora os combatentes feudais estivessem à disposição do suserano ou do rei, e sob seu comando nominal na guerra, o controle real era local; respondia aos suprimentos de seu local de origem. Assim, as regras da guerra eram feitas em conformidade com isso. Em seus recursos militares, a República Romana estava quinhentos anos à frente do feudalismo; havia comércio e dinheiro suficientes para permitir um comando centralizado e um raio de ação mais abrangente. Era possível engajar uma grande porcentagem da força de trabalho; portanto, todo cidadão fisicamente capaz estava sujeito a servir em caso de emergência. O recrutamento continuava sendo viável porque o raio ainda era limitado e também era coerente com o patria potestas[1] na ordem moral.

Quando a receita nacional provém principalmente do comércio, como era no Império Romano e no Império Britânico, o recrutamento militar deixa de ser viável. O exército é um coeficiente do sistema comercial; sua efetividade existe na proporção de sua mobilidade, velocidade, disciplina e constante prontidão, e não de seu tamanho. Isso exige um exército profissional, com um contingente mínimo sempre a serviço, em vez de um máximo convocado por um período curto em ocasiões especiais. O recrutamento militar foi abandonado, em Roma e na Inglaterra, exatamente quando essas nações se tornaram impérios. O dinheiro é o meio de uma sociedade de contrato; e ele necessita de uma relação compatível do exército com a nação.

As condições de funcionamento de um estado militar, organizado para a “guerra total”, foram perfeitamente exemplificadas uma única vez na história, e seus limites expostos, por Esparta. A produção era extorquida dos escravos, que mantinham a economia no mais baixo nível de subsistência. Todos os cidadãos do sexo masculino (não-escravos) eram soldados; mas não podiam ir lutar longe de casa, sem possuir recursos auxiliares — comércio, dinheiro, transportes. O modelo espartano era perfeito em sua categoria terrível. Sobreviveu por um período considerável em uma condição estática; mas, quando tentou se expandir, — sendo abastecido pelos estados mercantis gregos para poder combater em um raio ampliado — se desmantelou. Nenhum estado desse tipo consegue se beneficiar da conquista de uma nação de produção superior; será arruinado pela vitória se não for pela derrota. Qualquer estado militar que tente usar uma economia de máquinas sofrerá uma dissolução ainda mais rápida.

A teoria militar carece de sentido porque trabalha com a conduta dos exércitos existentes, sem levar em consideração a ordem civil de onde foram tirados. Mesmo que a estratégia, as táticas e a tecnologia sejam idênticas em teoria, um exército profissional, um exército mercenário e um exército cidadão lutam por princípios diferentes, de acordo com sua relação com a ordem civil.

O exército profissional, embora sinceramente leal a seu próprio país, tem de lutar por sua própria conservação como exército, tanto quanto pela vitória imediata. O objetivo intermitente é uma vitória em particular; o objetivo específico é vencer uma guerra; mas o objetivo constante é manter o exército existindo indefinidamente. Isso não significa que faltará coragem aos soldados em qualquer momento; ao contrário, sua determinação não deve falhar nunca e qualquer parte do exército pode ser obrigada a resistir a um ataque a qualquer momento, com custos extremos para o destacamento. A condição mais desmoralizante para um exército profissional é ser envolvido ou usado, ou acreditar que está sendo usado, por facções internas de seu próprio país. Um exército profissional é um instrumento da autoridade constituída: sua conexão de energia é com a linha central ou tronco; seu interesse normal é o do país inteiro, por meio do governo; e o interesse privado dos soldados fica confinado à sua profissão. Quando é usado por uma parte da nação contra outra parte da nação, acontece um curto-circuito; assim, mesmo o emprego do exército para tarefas extraordinárias de polícia é um expediente duvidoso.

Um exército mercenário luta por suas próprias mãos; seu interesse é na extorsão e só pode ser avaliado como uma série de objetivos imediatistas. Quando exércitos estritamente mercenários existiam, estavam abertos a ofertas de qualquer lado e não estavam dispostos a lutar mais do que o que compensasse. Geralmente, eram tão perigosos para seus empregadores quanto para o inimigo. É muito difícil desmoralizá-los além de sua condição ordinária; quando existiam, isso indicava a falta de uma ordem civil normal nas nações que os empregavam. Eram o resultado de uma economia comercial que não tinha estrutura política adequada, onde faltavam bases regionais.

Um exército cidadão luta pelo interesse dos soldados enquanto cidadãos, tendo em mente as conseqüências da guerra real em que estão engajados. O incentivo mais positivo para um exército cidadão lutar é o desejo de ir para casa; mas isso significa que o soldado deve esperar encontrar em casa o objetivo pelo qual está lutando. O interesse do soldado cidadão é o do produtor, um homem que deixou seu emprego e propriedade. A condição mais desmoralizante para um exército cidadão é o conhecimento ou suspeita de que os direitos dos soldados individuais como cidadãos estão sendo prejudicados a pretexto da guerra. O exército cidadão luta por uma causa definida, que se acredita que seja atingível pela guerra; e se a causa desaparecer, o exército se dissolve. O soldado cidadão é sustentado pela energia da linha de produção privada de sua vida civil, que é temporariamente desconectada e ligada à estrutura militar; a linha civil carrega a carga. Se o circuito de energia civil for rompido, a carga não poderá ser mantida. Daí vem o fato, registrado em toda a história, de que é sempre o maior exército que uma nação consegue reunir que subitamente se desfaz. Ele luta com uma energia incomparável enquanto lutar; e se desintegra completamente quanto se acaba, como ocorreu com os exércitos de Napoleão, do Czar, e da Alemanha ao fim da Primeira Guerra Mundial.

A fraqueza da teoria puramente militar fica evidente quando aplicada a qualquer guerra passada. Pelas regras formais, a Revolução Americana deveria ter fracassado antes de começar, e uma dúzia de vezes depois que começou. Confrontados com essas impossibilidades técnicas, os teóricos ficam furiosos e especulam sobre o que teria acontecido se Washington tivesse recebido um apoio mais adequado do Congresso; se os dois lados tivessem recorrido ao recrutamento militar; e assim por diante — considerando que, se os americanos ou os ingleses se sujeitassem ao recrutamento militar naquele momento, não poderia ter havido Guerra Revolucionária nenhuma; nem haveria tal guerra se um Congresso com autoridade federal definida já existisse previamente, porque esse governo necessariamente pertenceria a uma nação já independente. Outra vez, teóricos sugerem que a Guerra Civil poderia ter sido vencida pelo governo federal na primeira campanha se houvesse um exército permanente suficiente. Mas as forças confederadas eram comandadas por um soldado que renunciou ao seu comissionamento federal por causa da secessão; um grande exército permanente teria sido dividido em obediência a ele. As guerras têm de ser lutadas quaisquer que sejam as condições presentes na ocasião. Elas se originam dessas condições. Mas, em toda e qualquer circunstância, a condição indispensável para a vitória final é que os produtores mantenham o controle do sistema de produção, de maneira que apenas o produto acabado possa ser tomado para fins militares.

O motivo pelo qual essa condição não é entendida é que, ao avaliar a efetividade militar, não se considera o fator tempo; não se diferenciam os resultados de curto prazo e os de longo prazo. Napoleão é considerado um mestre na arte da guerra porque venceu numerosas batalhas e conquistou um vasto território em um período de menos de vinte anos; mas, ao final, a nação que comandava estava exaurida e ocupada por seus inimigos. Ele tinha o controle de todos os recursos da nação. Desde sua época, a França declinou continuamente em poder militar, enquanto manteve fielmente o sistema usado por Napoleão. Como essa seqüência específica aconteceu — uma explosão de energia avassaladora seguida por um longo declínio? Napoleão não apenas esvaziou o reservatório de energia excedente, mas deixou aberta a comporta, com o recrutamento militar geral em tempos de paz, de maneira que o pleno poderio nunca mais pôde se formar. Depois disso, a Alemanha seguiu o mesmo caminho, com os mesmos fenômenos resultantes, até o mesmo fim, num ritmo levemente acelerado. A França foi unificada por Luís XIV, que obteve numerosas vitórias e conquistou a Europa, para terminar derrotado; a bancarrota e o colapso se seguiram rapidamente; o processo foi repetido com a Revolução e o regime de Napoleão. Bismarck “unificou” os principados alemães e obteve vitórias; a Alemanha conquistou a Europa em 1914, foi derrotada, entrou em colapso; e repetiu o processo na guerra mundial atual. Esses “homens de poder” são na realidade meros destroços de naufrágio, resíduos flutuando em uma enchente, ilustres por sua falta de capacidade produtiva e de responsabilidade.

A miséria generalizada é fatalmente o resultado se um exército é abastecido por uma fonte — seja interna ou externa — sobre a qual os produtores não têm controle. É uma possibilidade recorrente; acontece quando a energia cinética minou as bases políticas. Causa guerras do tipo mais terrível, nas quais ninguém é capaz de fazer a paz. A Guerra dos Cem Anos[2], as Guerras das Rosas[3] e a Guerra dos Trinta Anos[4] foram desse tipo. A perda de controle é mais evidente na Guerra dos Trinta Anos. A autoridade do Sacro Imperador Romano-Germânico era nominalmente válida para recrutar um exército; mas as receitas diretas do imperador eram inadequadas para sustentar grandes forças em campo, por qualquer período de tempo. O imperador, portanto autorizou um soldado aristocrático de posses, o Conde Wallestein[5], a recrutar soldados e sustentá-los por pilhagem ou tributos forçados. Outros soberanos, por seus próprios objetivos, contribuíam com Wallenstein com subsídios em dinheiro de tempos em tempos. Como resultado, não havia controle efetivo sobre o exército de Wallenstein; o imperador não podia desmobilizá-lo quando quisesse; os soldados vagavam como bandos de lobos, devastando o país e cometendo atrocidades horripilantes. Quando veio a paz, foi a paz da desolação, com o exército desmobilizado pela fome e a zona rural quase despovoada. Foi praticamente o fim do Sacro Império Romano-Germânico. E o efeito teria sido exatamente o mesmo se o Imperador estivesse em posição de tomar todos os recursos de seus súditos para uso militar; nos dois casos, a situação é que a agência militar não está sob controle do elemento produtivo. A Europa, atualmente, está em uma guerra do mesmo tipo. Os governos tomaram o controle de todos os recursos de suas nações. Todos os exércitos estão lutando sustentados pelo retorno decrescente de seus recursos de capital e alguns subsídios da América. Não têm como esperar voltar à vida civil porque não existe vida civil; também não são soldados profissionais; portanto, lutam sem objetivo. O problema obscuro é escondido pelo problema aparente; o problema obscuro é que não há controle sobre os exércitos. (Quando um automóvel não pode ser parado pelas pessoas que estão dentro dele, está fora de controle.) Os comandantes nominais dos exércitos da Europa não ousam deixá-los ir para casa. Os exércitos são porções imensas de massa deslocada colidindo uns contra os outros pela energia cinética; e os soldados foram isolados tanto do passado como do futuro, porque o circuito de produção da Europa foi rompido e destruído. Para nações nessa situação, nem mesmo o fim dos combates pode trazer alívio, porque os governos não podem desmobilizar esses exércitos monstruosos em nenhum caso. Eles permanecerão em pé-de-guerra. O fato é reconhecido, já que a única solução proposta é um “armistício” por tempo indeterminado sob exércitos de ocupação.

A produção mecanizada não pode ser desenvolvida ou sustentada em nenhuma economia planejada, mesmo em tempo de paz, porque o gerador funciona em um circuito de energia muito longo, no qual as conexões são feitas pelo livre comércio. A primeira carga de qualquer circuito de energia é a manutenção e a reposição ao longo do circuito inteiro. Isso é óbvio em um circuito local de energia, no qual é um problema evidente do produtor conseguir comida, roupas e abrigo a partir de sua produção; mesmo que seja usado trabalho escravo, o senhor mais brutal não pode enganar a si mesmo acreditando que um escravo pode continuar trabalhando se sua ração for inadequada para sustentar a vida. Mas o longo circuito é uma economia financeira; e, aparentemente, muitos homens imaginam que podem subtrair mais e mais energia da linha de transmissão de dinheiro sem conseqüências para a continuidade do fluxo.

O estado militar é a forma final para a qual toda economia planejada tende rapidamente. Mas a força militar consiste em energia extraída da produção, sem dar retorno. Então, se o nível de produção geral é diminuído, o poderio militar deve ser prejudicado de maneira correspondente. A energia que flui pelos canais da vida civil privada é auto-sustentável, auto incrementável e auto renovável. A energia que flui pelo canal militar é totalmente gasta; não produz nada, nem mesmo a manutenção de suas linhas de transmissão. Um exército pode ocasionalmente tomar suprimentos do inimigo, em pilhagem ou indenizações, mas esses recursos são rapidamente consumidos.

Portanto, a efetividade militar de longo prazo, a sobrevivência de uma nação através dos riscos recorrentes de guerra, geração após geração — e é isso que uma nação tem de conseguir se quiser sobreviver — depende, de maneira absoluta, da preservação dos recursos de capital, usando apenas o excedente para fins militares como produto acabado. É duvidoso se existe alguma hipótese em que o capital possa ser consumido de maneira segura; não podemos confiar na aparência superficial, porque descobriremos, examinando o registro histórico, que nações de longa sobrevivência jamais permitiram que seu capital fosse comprometido, nem mesmo em seus maiores esforços militares. O que fizeram de fato foi aumentar a produção geral. Ao final das guerras napoleônicas, estima-se que a Grã-Bretanha tinha uma produção geral cinqüenta por cento superior à do início dos conflitos. Napoleão tentou embargar a Europa, enquanto os britânicos comerciavam com todos que desejassem, incluindo os próprios franceses. Na Guerra Civil Americana, o Norte certamente aumentou sua produção geral; enquanto o Sul, de maneira insana, começou a guerra declarando um embargo de seu próprio algodão, paralisando assim o seu crédito no exterior.

A teoria atual de que “sacrifícios” vencerão a guerra é o extremo da irracionalidade. Quando um caminhão é necessário, não é possível dirigir um sacrifício. O objeto tem de ser fabricado, e só pode ser fabricado no circuito completo, com homens livres usando a propriedade privada livremente. Se a guerra toma mais que o excedente de produção por um dado período de tempo, mesmo uma série ininterrupta de vitórias levará a nação cada vez mais perto da derrota irremediável, pela cessação completa de suprimentos.

O erro de uma nação que faz guerra gastando seu capital, pensando em vencer antes que as reservas se esgotem, é que ela assumiu um gasto incalculável sustentado por uma quantidade limitada. Cortou a alimentação e está funcionando a bateria; mas a energia em uma bateria é uma quantidade fixa, enquanto o tempo futuro que uma guerra vai durar e o consumo de energia resultante que será exigido ao longo do tempo jamais podem ser conhecidos previamente. A única certeza é que a relação que essas conjecturas ignoram — o fato de que se o capital está sendo exaurido; mais energia é tirada do circuito que o excedente provê — é uma fórmula para a derrota; a nação ficará cada vez mais fraca. Se a força militar não é mais que o que o excedente de energia provê, é pelo menos uma potência permanente, estendendo-se ao infinito e pode, portanto, manter-se esperando a vitória final por um período indeterminado.

O tempo está ao lado da nação que aumenta sua produção geral. O tempo é neutro para a nação que mantém a produção geral em seu nível anterior. O tempo é mortal para a nação que luta com seus recursos de capital.

Conseqüentemente, com um sistema de alta energia, a única coisa que torna a vitória final impossível é a organização da nação inteira como um estabelecimento militar, tirando recursos da produção. A manufatura de material bélico não constitui um circuito de produção; é apenas produto acabado. Em pouco tempo, uma organização militar desse tipo entrará em conflito consigo mesma internamente, discutindo de onde a energia deve ser expropriada do pessoal e dos materiais existentes quando ela assume o poder. O “problema obscuro” foi completamente ignorado; e o “problema aparente” se separa em uma dúzia de falsos problemas. Isso só pode ser entendido se o problema obscuro for definido, a necessidade militar real.[6]

O problema militar real de uma nação é encontrar de onde a energia para a guerra pode ser tirada do circuito para se obter a máxima força sustentável de combate na aplicação final. O gerador funciona em um sistema muito longo e complexo de linhas de transmissão, das fontes de matéria-prima aos pontos focais, tributários, alimentando linhas tronco, para que haja uma redistribuição em produtos-acabados. A energia se eleva gradativamente por toda a linha.

E não é simplesmente uma progressão geométrica, um múltiplo do efetivo pessoal, ao final; é um poder transcendente.

Para a conveniência de expressar o problema real, vamos assumir que cem homens[7] na produção geral produzem o suficiente para sua própria subsistência e, além disso, um excedente suficiente para sustentar outros cem homens com maquinário, materiais e tudo o que é necessário para produzir um avião de máxima velocidade e raio de ação, equipado com o máximo de armamento; e para manter esse avião no ar durante seu tempo efetivo de uso. Assim, há duzentos homens inteiramente ocupados tanto no circuito principal de produção como no circuito de produção final, ao fim do qual um avião é disponibilizado para uso militar. Mas, uma vez que o avião foi montado, equipado e posto em operação, todos os homens ocupados no processo, com a matéria-prima que usaram, ficariam completamente indefesos contra a arma que criaram, com sua pequena tripulação treinada. A máquina que produziram não é simplesmente um múltiplo de seu poder natural; ela transcende o poder que foi usado para criá-la. Toda a efetividade militar da guerra moderna foi colocada naquele avião, porque se trabalhou no longo circuito de energia de alto potencial.

A máxima força combatente sustentável por um sistema de alta energia, uma economia livre usando suas próprias armas, é infinitamente superior à simples soma de um múltiplo do efetivo pessoal de uma nação. Se os duzentos homens envolvidos no processo completo do qual o avião é um produto final fossem tirados da linha de produção e mandados para o front, a força de duzentos homens não seria somada ao exército. Ao contrário, a força combatente que eles forneceriam seria completamente perdida.

Assim, a razão ou porcentagem de homens úteis no exército de uma nação de alta energia, para se obter a máxima força combatente sustentável, é muito menor, na proporção do simples efetivo pessoal da nação, do que seria com um sistema de energia inferior. Quanto mais alto o potencial de energia usado no sistema de produção, menor deve ser o exército proporcionalmente ao simples efetivo pessoal da nação. Se são necessários duzentos homens para produzir o poder transcendente que dez homens usam na aplicação final na linha de combate, então apenas cinco por cento do efetivo pessoal da nação podem ser eficazes nas forças armadas. Usar mais que essa porcentagem é enfraquecer a força combatente na razão inversa.[8]

Mas é isso o que faz o recrutamento militar, absorvendo o simples efetivo pessoal em vastas quantidades, o que significa expropriar energia da nação exatamente no nível em que isso é ineficaz para a guerra, e desperdiçá-la numa extensão incalculável. A teoria de “guerra total”, que significa recrutamento militar geral e uma “economia planejada”, com toda a força de trabalho da nação submetida a restrições e proibições, presa a empregos designados ou deslocada arbitrariamente, corta a linha de produção na origem. O poder transcendente da produção geral só pode ser obtido por homens livres que escolhem seus empregos por sua vontade própria, em troca do pagamento que esse trabalho trará, qualquer que seja ele. O homem criativo deve encontrar o lugar e o emprego onde possa funcionar; deve ter uma liberdade de escolha contínua do que fará com sua capacidade, seu tempo e seus meios. Se um homem é colocado em um trabalho forçado, tudo o que pode ser obtido dele é sua força muscular. Se está preso a um emprego designado, tudo o que pode ser obtido dele é o que a tarefa prescrita permite. Quando trabalha conforme escolheu, encontrando para si o mercado para seu talento, é absolutamente impossível prever em que extensão ele vai aumentar a produção. Se Charles F. Kettering[9] ou Thomas Alva Edison ou Henry Ford tivessem sido obrigados a cavar trincheiras, seria possível calcular aproximadamente quanta energia ou trabalho poderiam ser extraídos deles. Deixados a seus próprios dispositivos, como aconteceu, é impossível dizer quanta energia eles acabaram liberando na produção. Da mesma maneira, o dinheiro que ganharam em salários ou lucros, que deu a eles uma chance maior de experimentar o que tinham em mente e que retornou à linha de produção por meio deles, tornou-se um poder transcendente ou infinito; enquanto a mesma soma dividida em salários diários pelo trabalho comum teria produzido apenas aquela soma em energia. (Se tomada em impostos e paga a funcionários públicos, teria apenas aumentado o peso morto.) Assim, a limitação proposta do salário dos homens produtivos seria uma grave restrição à alta produção; se o limite fosse suficientemente baixo, o efeito seria parar completamente a alta produção.

Agora, esta possibilidade incalculável ou infinita, o poder transcendente, é necessária de maneira ainda mais urgente na guerra que na paz; mas não pode existir a menos que os homens sejam livres para procurar seus próprios empregos, e tenham controle privado dos meios de produção. Apenas quando a liberdade pessoal e a propriedade privada são preservadas, a produção geral pode crescer em tempos de guerra, com um aumento concomitante do excedente disponível para uso militar.

A lição é que a energia para uso militar deve ser tirada do circuito apenas como produto acabado, para que se atinja a máxima força combatente sustentável. Além disso, um homem não é nem um meio nem um produto; sua competência em uma tecnologia avançada é desenvolvida por ele mesmo; portanto, só pode se tornar disponível efetivamente por sua própria vontade. É possível recrutar homens e ordenar que embarquem em aviões e pilotem? Não, isso é impossível. Um sistema de alta produção fornece, na vida civil, a maior parte do treinamento para o uso da tecnologia na guerra, da mesma maneira que cria as invenções, o material, o maquinário e a organização para fabricar armamento avançado, com o fluxo de energia que sustenta as forças militares; e esses recursos devem ser usados nos mesmos termos em que são criados, ou seja, por um efetivo voluntário, para que seja obtida a máxima força de combate. O erro mais abrangente e fatal que pode ser cometido na guerra é tirar a maior parte da energia da nação no nível de mão-de-obra simples e em dinheiro para ser gasto no mesmo nível para a subsistência de um exército massivo. Então, não sobra nada para ser extraído exceto uma pilha de matérias-primas, o maquinário que já existia e que deve se desgastar rapidamente, e um resto inadequado de pessoal de produção que só pode continuar trabalhando nesses bens de capital depreciados enquanto não se esgotarem. É o que a Europa fez.

Um sistema de produção não determina as relações morais da sociedade. As relações morais criam o sistema de produção. Homens livres criaram o dínamo; e ele não funciona exceto na sociedade de contrato, de propriedade privada, de livre iniciativa. Um exército não está em uma relação correta com a ordem civil a menos que seja organizado sobre os mesmos princípios morais. Não é verdade que “ninguém vence uma guerra”. Quando uma nação é atacada, embora o custo da guerra seja uma perda, se conseguir preservar a si mesma e às suas instituições da destruição, derrotando o inimigo, venceu a guerra. Uma economia livre invariavelmente vence uma economia fechada ou de status ou um “estado totalitário”. Mas tem de lutar como uma economia livre.

A destruição causada pelas nações ditatoriais da Europa na guerra atual provocou uma impressão completamente enganosa do problema real de guerrear utilizando o produto de um sistema de alta energia. Essas nações ditatoriais se prepararam para a guerra carregando suas baterias enquanto ainda estavam ligadas ao grande circuito mundial de energia, criado e mantido pelas economias livres. A Rússia não contribuiu criativamente em nada para esse sistema. Mas existem minas de ouro na Rússia; e a Rússia exportou ouro, vendeu ações no exterior, e também espremeu o que pôde de sua própria miserável economia de subsistência — ao custo da fome efetiva de sua população — para trocar por maquinário e contratar técnicos das economias livres. A Alemanha herdou uma tecnologia avançada, técnicos treinados, maquinário e uma organização industrial de sua condição anterior de comparativa liberdade. A Alemanha também usou todos os dispositivos fraudulentos de inflação da moeda, empréstimos elevados do exterior e crédito estrangeiro — desfalques deliberados durante vinte anos — para obter os bens produzidos pelas economias livres. O Japão vendeu ações no exterior para comprar armamento.[10] Confiando nessas baterias carregadas, a Rússia, a Alemanha e o Japão mergulharam na guerra, e conseguiram pilhar mais alguns suprimentos. Estão consumindo as reservas da Europa na luta, produzidas pela economia livre anterior, e o produto do circuito de energia americano. Viajando pelo mundo nas duas direções, a energia da América encontrou-se consigo mesma em Stalingrado, num curto-circuito. A energia americana ainda abastece a Rússia e é sua única força efetiva. Em menor quantidade, a energia americana também chegou à China, para encontrar a energia americana fornecida anteriormente ao Japão. A energia americana literalmente explodiu o mundo civilizado, porque foi jogada nos canais políticos da Alemanha, da Rússia e do Japão.

A relação histórica da Rússia com a Europa permanece, na guerra atual, a mesma que tem sido nos últimos trezentos anos. Na vida de uma nação, a descentralização é a fórmula da longevidade; mas isso pode acontecer por planejamento, com uma estrutura política sólida, ou por acaso, pela ausência total de estrutura. Dadas certas condições, nações de grande expansão podem existir de maneira continuada por inércia. Isso é verdade na China e na Rússia. Ambas consistem em vastas planícies, isoladas das nações adjacentes por barreiras naturais de montanhas, desertos, pântanos, lagos e geleiras. Ficam no final das rotas comerciais do velho mundo. Nenhuma delas chegou a ter estrutura política. Apenas a configuração física, a superfície plana, levou a população desses países a se agregar em monarquias, como objetos móveis se juntam rolando em uma tigela rasa. Suas economias são locais, com um comércio mínimo. Até a ascensão da monarquia moscovita, a Rússia era um agrupamento solto de comunidades inconstantes e desconectadas. As comunidades rurais eram democracias puras. Nas comunas das velhas aldeias, “cada questão devia ser decidida por unanimidade”; assim, os dissidentes eram “espancados até abandonarem sua oposição”. (Essa é a contradição inerente da teoria democrática.) A pressão de incursões bárbaras as consolidou sob um despotismo. Mas o despotismo central deixava as economias locais funcionarem de maneira autônoma, exceto pelos impostos.

Quando uma nação com um sistema de energia superior invade uma grande área que contém apenas economias rurais locais, encontra o problema da dissipação da alta energia no espaço. Enquanto Napoleão conquistava a Europa, podia alimentar seu exército com o circuito de energia das nações que ocupava, exigindo indenizações em dinheiro e usando esse dinheiro para obter o que precisasse do sistema de produção civil. Na Rússia, não havia como fazer isso. A população civil russa não poderia abastecê-lo, mesmo que quisesse; não tinham os transportes necessários, nem a organização geral. Portanto, o exército de Napoleão avançou rapidamente até o limite de sua própria linha de suprimentos, e então estacou, como uma bala disparada cai ao chão.

Na guerra atual, os alemães encontraram o mesmo problema de espaço e não há como resolvê-lo. Não tinham como levar suprimentos para seus exércitos avançarem indefinidamente, porque as necessidades de transporte crescem em progressão geométrica; e não tinham como obter suprimentos adequados dos territórios conquistados. Já foi dito, e é verdade, que o fracasso do Plano Qüinqüenal de Stalin arruinou Hitler. Da mesma maneira, o Japão invadiu a China com energia emprestada das economias livres, mas não conseguiu obter suprimentos adequados na China para sustentar seus exércitos mecanizados. Quando os suprimentos dos Estados Unidos foram suspensos pelo embargo, o Japão teve de escolher entre se retirar da China com prejuízo ou declarar guerra às potências ocidentais para tomar as estações de suprimentos fronteiriças do circuito de energia ocidental no Oriente, como os poços de petróleo e refinarias da Holanda nas Índias Orientais. Por quanto tempo o Japão vai conseguir manter seu equipamento militar de alta energia, enquanto está isolado do circuito de produção ocidental, é uma questão que só pode ser respondida com conhecimento específico de suas necessidades de reposição e das matérias-primas pilhadas. No longo prazo, o poder militar do Japão vai certamente entrar em colapso, assim como o equipamento da Alemanha e da Rússia vão se desgastar e se tornar inúteis se elas continuarem permanentemente sem contato com as economias livres. Se a liberdade fosse extinta em todo o mundo, todo o sistema de produção de alta energia se desmantelaria e pararia de funcionar. Nenhum despotismo consegue manter de maneira independente e indefinida uma economia de máquinas ou um exército mecanizado. Mas, até que as baterias estejam completamente descarregadas, um despotismo consegue causar danos gigantescos; e o Japão está em posição de provocar essa destruição no Oriente e, até certo ponto, no mundo ocidental com suas reservas atuais. Não é desprezível enquanto durar. Contudo, toda a força de combate do Japão foi tirada do Ocidente.

Então, se as economias livres interromperem seus próprios circuitos de energia internamente, impondo o poder político sobre a produção, de onde vão tirar a energia necessária para funcionarem e lutarem? Os Estados Unidos não podem emprestar, mendigar, copiar, fraudar ou pilhar qualquer outra nação no mundo, seja pela paz, seja pela guerra. Como pode então a América imitar as nações “totalitárias”? É impossível. A liberdade para os americanos não é um luxo da paz, que pode ser “sacrificado” em tempos de guerra. É uma necessidade em qualquer tempo, mas acima de tudo na guerra; nessa situação, torna-se uma questão imediata de vida ou morte.



[1] Patria potestas: instituição romana pela qual o homem mais velho de uma casa tinha completo controle sobre toda a família, até sua morte. (N. do T.)
[2] Guerra dos Cem Anos (1337 - 1453): guerra entre a Inglaterra e a França, que terminou com a derrota da Inglaterra. (N. do T.)
[3] Guerras das Rosas (1455 - 1487): série de guerras dinásticas pelo trono da Inglaterra, entre a Casa de Lancaster e a Casa de York. As guerras terminaram com a vitória de Henrique Tudor, da Casa de Lancaster, contra Ricardo III, da Casa de York. Ele foi coroado como Henrique VII e casou-se com Elizabeth de York, filha de Eduardo IV, unindo as duas Casas. (N. do T.)
[4] Guerra dos Trinta Anos (1618 - 1648): um dos maiores conflitos da história da Europa, lutado entre estados católicos e protestantes. (N. do T.)
[5] Conde Albrecht Wensel Eusebius Von Wallenstein (1583 – 1634): líder militar da Boêmia, ofereceu seu exército de mais de 30.000 homens ao Sacro Imperador Romano-Germânico Fernando II e tornou-se o supremo comandante dos exércitos da Monarquia de Habsburgo. Foi destituído pelo Imperador e pensou em se aliar aos protestantes, mas foi assassinado antes disso. (N. do T.)
[6] A distinção entre um “problema aparente”, ou seja, um sintoma ou efeito superficial enganoso, e o “problema obscuro” real, que é a verdadeira causa, foi feita por Charles F. Kettering. (N. da A.)
[7] A subsistência das pessoas que trabalham na produção tem de incluir a subsistência de todos de alguma maneira envolvidos por toda a economia, com suas famílias ou outros dependentes. Mas a subsistência para a alta produção também significa a manutenção, reposição e melhoria dos bens de capital da nação — maquinário, edificações, equipamento agrícola, gado e suprimentos de reserva de todos os tipos, suplementares ao sistema. (N. da A.)
[8] Não estou querendo dizer que aviões sozinhos constituem uma força militar eficaz para uma nação de alta energia. O gerador é o produto e o meio de produção da economia capitalista de livre iniciativa e propriedade privada. Ele torna possível o mais alto potencial e fluxo de energia conhecidos. Conseqüentemente, permitiu a invenção de encouraçados, tanques, artilharia, bombas, aviões — de força, velocidade e alcance inéditos. Condições e circunstâncias variáveis determinam a combinação, proporção e relação dominante ou auxiliar mais efetiva dessas diferentes formas de armamento, com o concomitante efetivo militar. Essa questão pertence necessariamente às autoridades políticas e militares. Elas não serão infalíveis, mas a autoridade tem de ser confiada a elas, porque é o único lugar onde pode residir. O avião mencionado aqui é o desenvolvimento mais recente do poder transcendente na guerra, mas não exclui o uso de outras armas. Assim, posso dizer apenas que o avião é indicado como particularmente adaptado, por sua velocidade, para proteger as linhas de um longo circuito de energia. Também é o armamento de uma nação pacífica, já que, sozinho, não é um meio de conquista, mas de defesa e retaliação adequada. (N. da A.)
[9] Charles F. Kettering (1876 – 1958): inventor, engenheiro e empresário americano, detentor de 186 patentes. Suas invenções mais utilizadas foram o motor elétrico de partida e o aditivo para gasolina chumbo tetraetila. Também inventou o freon, usado em refrigeradores e aparelhos de ar condicionado. (N. do T.)
[10] O falecido Dwight Morrow relatou complacentemente como tantas ações japonesas foram vendidas em uma cidade da Califórnia! A energia transferida por essas ações retornou como bombas em Pearl Harbor e Manila.