quinta-feira, 26 de junho de 2014

Sócrates conversa com seu filho Lâmprocles

Tendo percebido, certo dia, que Lâmprocles, o seu filho mais velho, andava indisposto com a mãe, chamou-o:

— Diz-me lá, meu filho, sabes que há certos homens a quem chamam ingratos?

— Sei, pois — respondeu o rapaz.

— E já reparaste bem no que fazem esses a quem dão tal nome?

— Sim, são aqueles que, tendo sido bem tratados e podendo devolver esse favor, não o fazem, a esses chama-se ingratos.

— Ora, então, e não te parece que podemos contar os ingratos no rol dos injustos?

— Claro.

— E já ponderaste alguma vez se, porventura, tal como não parece justo escravizar os amigos enquanto é justo fazê-lo com os inimigos, também não será injusto ser ingrato com os amigos mas justo se for com os inimigos?

— Já e parece-me que alguém que tenha sido bem tratado por outro, seja amigo, seja inimigo, e não tenha intenção de retribuir o favor, esse é injusto.

— Ora, se as coisas são assim, a ingratidão deve ser tida como uma total injustiça, não?

O filho concordou.

— Então, e quantos mais favores sem troca alguém tiver recebido, mais injusto será, não é?

Mais uma vez, o rapaz disse que sim.

— Então — continuou Sócrates —, será possível encontrarmos quem tenha sido mais beneficiado por alguém do que são os filhos pelos pais? Filhos que não existiam e a quem os pais deram o ser, a quem providenciaram ver tudo quanto existe de belo e participar em tudo quanto existe de bom, de entre os dons que os deuses concederam aos homens, dons que nos parecem de tal modo valiosos que, mais do que a qualquer outra coisa, todos recusamos deixá-los. Até as cidades instituíram a pena de morte para os crimes mais graves pensando que não poderias travar a injustiça senão com o medo de um mal maior. E certamente que não é pelo prazer do sexo que os homens geram filhos, porque para saciá-lo estão as ruas cheias e cheias as casas. Pelo contrário, é evidente que ponderamos a escolha da mulher de que poderemos ter melhores filhos e é a essa que nos unimos para procriar. Assim, claro, é o homem que sustenta aquela que juntamente com ele gera os filhos que espera ter e providencia, com a abundância possível, tudo quanto pensa que lhes irá ser necessário ao longo das suas vidas. E a mulher, ao aceitá-lo, carrega então esse fardo, grávida, pondo em risco a sua vida, partilhando o seu alimento com aquele que carrega no ventre e, depois de ter chegado ao fim do tempo, com grande esforço, e de ter dado à luz, alimenta-o e cuida dele, sem receber nada de bom em troca, sem que o seu bebé saiba quem o trata assim tão bem e sem que possa dar sinais do que precisa. É ela, então, que tentando adivinhar o que é bom para ele e o que o fará feliz, procura satisfazê-lo e cria-o, durante muito tempo, de dia e de noite, suportando com paciência o cansaço, sem saber se virá a receber por esse cuidado algum agradecimento.

E não chega apenas criá-las; além disso, quando as crianças parecem ser capazes de aprender alguma coisa, daquilo que os pais, eles próprios, têm como bom para a vida, então ensinam-lho. E para coisas em que acham que há outro que é mais capaz de os ensinar, enviam-no para junto desse, sem olhar a gastos, investindo tudo quanto podem para que os filhos se tornem o melhor possíveis.

Depois de ouvir o pai, o rapaz respondeu:

— Mesmo que assim seja e tenha feito tudo isto e muito mais ainda, ninguém poderia suportar o seu mau feitio.

— E achas que é mais gravosa a ferocidade de um animal ou a de uma mãe?

— A mim parece-me que a de uma mãe, sobretudo se for como a minha.

— Sim? Por acaso alguma vez te fez algum mal, mordendo-te ou dando-te um coice, como já aconteceu a muitos com animais?

— Ora, por Zeus, ela diz coisas que ninguém gostaria de ouvir em toda a vida.

— E tu — respondeu Sócrates — quantas vezes achas que, com palavras e actos, enquanto eras pequeno a aborreceste e lhe causaste incómodos de noite e de dia e quanto a afligiste por estares doente?

— Mas em momento nenhum lhe disse nem lhe fiz nada de que se envergonhe.

— Não? Achas que é mais difícil para ti ouvires o que ela te diz do que para os actores, quando nas tragédias se dizem uns aos outros as últimas?

— Só que esses — acho eu —, enquanto falam, não pensam que aquele que insulta está a insultar para causar danos, nem que aquele que ameaça está a ameaçar para fazer algum mal, e assim é fácil de aguentar.

— Então, e tu, sabendo que o que a tua mãe te diz não o diz com qualquer má intenção, mas porque quer que tenhas tudo melhor do que qualquer outro, ficas irritado? Ou julgas que a tua mãe tem para contigo alguma má intenção?

— Não, claro que não me parece nada disso.

Sócrates continuou:

— Ora, então tu, dessa que é tua amiga e que se preocupa quanto pode para que fiques bom, quando estás doente, e para que não te falte nada do que te faz falta, e que pede o melhor para ti aos deuses e lhes paga promessas, dessa, dizes que tem mau feitio? Olha que eu acho que se não podes suportar semelhante mãe, não podes suportar nada de bom. Ora diz-me lá, achas que há alguma outra pessoa com quem te devas preocupar ou não tencionas agradar nem obedecer nem a general, nem a qualquer outro governante?

— Por Zeus, claro que sim.

— Pois bem, — continuou Sócrates — e hás de querer ser agradável ao teu vizinho para que ele te empreste fogo, quando precisares dele, para que se torne teu companheiro das horas boas, para que se te acontecer algum acidente se prontifique logo a auxiliar-te de boa vontade.

— Claro — respondeu ele.

— Ah, sim?! E se encontrares um companheiro de viagem ou de navegação, ou de qualquer outra situação, ia fazer-te alguma diferença que fosse um amigo ou um inimigo ou achas que deverias preocupar-te com qualquer um deles com a mesma boa vontade?

— Acho que sim.

— Então, estás disposto a te preocupares com eles, mas achas que não deves respeitar a tua mãe que é a pessoa que é mais tua amiga? Não sabes, pois, que a cidade não se preocupa nem castiga nenhuma outra ingratidão, até fecham os olhos àqueles que tendo sido bem tratados não retribuem esse favor, mas, se, por acaso, alguém não respeitar os pais, levam-no a tribunal e rejeitam-no impedindo-lhe o acesso às magistraturas porque nem os sacrifícios oferecidos por ele à cidade poderiam ser oferecidos piedosamente, nem qualquer outra acção bela ou justa que praticasse. E, por Zeus, se alguém não cuidar do túmulo dos pais falecidos, também essa atitude a cidade examina ao confirmar as magistraturas. Ora tu, meu filho, se fores sensato, pedirás aos deuses que sejam indulgentes contigo, caso tenhas faltado à tua mãe nalguma coisa, para que estes não julguem que és um ingrato e não queiram negar-te benefícios. E, quanto aos homens, deverás manter-te alerta para que não percebam que não dás atenção aos teus pais e te desprezem todos e depois se veja que ficaste isolado dos teus amigos.

Porque se suspeitarem que és ingrato com os teus pais, ninguém acreditará que, tratando-te bem, possa vir a receber o teu agradecimento.


In Memorabilia, de Xenofonte. Traduzido do grego para o português de Portugal por Ana Elias Pinheiro.

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