Tendo percebido, certo dia, que
Lâmprocles, o seu filho mais velho, andava indisposto com a mãe, chamou-o:
— Diz-me lá, meu filho, sabes
que há certos homens a quem chamam ingratos?
— Sei, pois — respondeu o rapaz.
— E já reparaste bem no que
fazem esses a quem dão tal nome?
— Sim, são aqueles que, tendo
sido bem tratados e podendo devolver esse favor, não o fazem, a esses chama-se
ingratos.
— Ora, então, e não te parece
que podemos contar os ingratos no rol dos injustos?
— Claro.
— E já ponderaste alguma vez
se, porventura, tal como não parece justo escravizar os amigos enquanto é justo
fazê-lo com os inimigos, também não será injusto ser ingrato com os amigos mas
justo se for com os inimigos?
— Já e parece-me que alguém que
tenha sido bem tratado por outro, seja amigo, seja inimigo, e não tenha
intenção de retribuir o favor, esse é injusto.
— Ora, se as coisas são assim,
a ingratidão deve ser tida como uma total injustiça, não?
O filho concordou.
— Então, e quantos mais favores
sem troca alguém tiver recebido, mais injusto será, não é?
Mais uma vez, o rapaz disse que
sim.
— Então — continuou Sócrates —,
será possível encontrarmos quem tenha sido mais beneficiado por alguém do que
são os filhos pelos pais? Filhos que não existiam e a quem os pais deram o ser,
a quem providenciaram ver tudo quanto existe de belo e participar em tudo
quanto existe de bom, de entre os dons que os deuses concederam aos homens,
dons que nos parecem de tal modo valiosos que, mais do que a qualquer outra
coisa, todos recusamos deixá-los. Até as cidades instituíram a pena de morte
para os crimes mais graves pensando que não poderias travar a injustiça senão
com o medo de um mal maior. E certamente que não é pelo prazer do sexo que os homens
geram filhos, porque para saciá-lo estão as ruas cheias e cheias as casas. Pelo
contrário, é evidente que ponderamos a escolha da mulher de que poderemos ter
melhores filhos e é a essa que nos unimos para procriar. Assim, claro, é o
homem que sustenta aquela que juntamente com ele gera os filhos que espera ter
e providencia, com a abundância possível, tudo quanto pensa que lhes irá ser
necessário ao longo das suas vidas. E a mulher, ao aceitá-lo, carrega então
esse fardo, grávida, pondo em risco a sua vida, partilhando o seu alimento com
aquele que carrega no ventre e, depois de ter chegado ao fim do tempo, com
grande esforço, e de ter dado à luz, alimenta-o e cuida dele, sem receber nada
de bom em troca, sem que o seu bebé saiba quem o trata assim tão bem e sem que
possa dar sinais do que precisa. É ela, então, que tentando adivinhar o que é
bom para ele e o que o fará feliz, procura satisfazê-lo e cria-o, durante muito
tempo, de dia e de noite, suportando com paciência o cansaço, sem saber se virá
a receber por esse cuidado algum agradecimento.
E não chega apenas criá-las;
além disso, quando as crianças parecem ser capazes de aprender alguma coisa,
daquilo que os pais, eles próprios, têm como bom para a vida, então
ensinam-lho. E para coisas em que acham que há outro que é mais capaz de os
ensinar, enviam-no para junto desse, sem olhar a gastos, investindo tudo quanto
podem para que os filhos se tornem o melhor possíveis.
Depois de ouvir o pai, o rapaz
respondeu:
— Mesmo que assim seja e tenha
feito tudo isto e muito mais ainda, ninguém poderia suportar o seu mau feitio.
— E achas que é mais gravosa a
ferocidade de um animal ou a de uma mãe?
— A mim parece-me que a de uma
mãe, sobretudo se for como a minha.
— Sim? Por acaso alguma vez te
fez algum mal, mordendo-te ou dando-te um coice, como já aconteceu a muitos com
animais?
— Ora, por Zeus, ela diz coisas
que ninguém gostaria de ouvir em toda a vida.
— E tu — respondeu Sócrates —
quantas vezes achas que, com palavras e actos, enquanto eras pequeno a aborreceste
e lhe causaste incómodos de noite e de dia e quanto a afligiste por estares
doente?
— Mas em momento nenhum lhe
disse nem lhe fiz nada de que se envergonhe.
— Não? Achas que é mais difícil
para ti ouvires o que ela te diz do que para os actores, quando nas tragédias
se dizem uns aos outros as últimas?
— Só que esses — acho eu —,
enquanto falam, não pensam que aquele que insulta está a insultar para causar
danos, nem que aquele que ameaça está a ameaçar para fazer algum mal, e assim é
fácil de aguentar.
— Então, e tu, sabendo que o
que a tua mãe te diz não o diz com qualquer má intenção, mas porque quer que
tenhas tudo melhor do que qualquer outro, ficas irritado? Ou julgas que a tua
mãe tem para contigo alguma má intenção?
— Não, claro que não me parece
nada disso.
Sócrates continuou:
— Ora, então tu, dessa que é
tua amiga e que se preocupa quanto pode para que fiques bom, quando estás
doente, e para que não te falte nada do que te faz falta, e que pede o melhor
para ti aos deuses e lhes paga promessas, dessa, dizes que tem mau feitio? Olha
que eu acho que se não podes suportar semelhante mãe, não podes suportar nada
de bom. Ora diz-me lá, achas que há alguma outra pessoa com quem te devas
preocupar ou não tencionas agradar nem obedecer nem a general, nem a qualquer
outro governante?
— Por Zeus, claro que sim.
— Pois bem, — continuou
Sócrates — e hás de querer ser agradável ao teu vizinho para que ele te
empreste fogo, quando precisares dele, para que se torne teu companheiro das
horas boas, para que se te acontecer algum acidente se prontifique logo a
auxiliar-te de boa vontade.
— Claro — respondeu ele.
— Ah, sim?! E se encontrares um
companheiro de viagem ou de navegação, ou de qualquer outra situação, ia
fazer-te alguma diferença que fosse um amigo ou um inimigo ou achas que
deverias preocupar-te com qualquer um deles com a mesma boa vontade?
— Acho que sim.
— Então, estás disposto a te
preocupares com eles, mas achas que não deves respeitar a tua mãe que é a
pessoa que é mais tua amiga? Não sabes, pois, que a cidade não se preocupa nem
castiga nenhuma outra ingratidão, até fecham os olhos àqueles que tendo sido
bem tratados não retribuem esse favor, mas, se, por acaso, alguém não respeitar
os pais, levam-no a tribunal e rejeitam-no impedindo-lhe o acesso às
magistraturas porque nem os sacrifícios oferecidos por ele à cidade poderiam
ser oferecidos piedosamente, nem qualquer outra acção bela ou justa que
praticasse. E, por Zeus, se alguém não cuidar do túmulo dos pais falecidos,
também essa atitude a cidade examina ao confirmar as magistraturas. Ora tu, meu
filho, se fores sensato, pedirás aos deuses que sejam indulgentes contigo, caso
tenhas faltado à tua mãe nalguma coisa, para que estes não julguem que és um
ingrato e não queiram negar-te benefícios. E, quanto aos homens, deverás
manter-te alerta para que não percebam que não dás atenção aos teus pais e te
desprezem todos e depois se veja que ficaste isolado dos teus amigos.
Porque se suspeitarem que és ingrato com os teus pais, ninguém acreditará que, tratando-te bem, possa vir a receber o teu agradecimento.
Porque se suspeitarem que és ingrato com os teus pais, ninguém acreditará que, tratando-te bem, possa vir a receber o teu agradecimento.
In Memorabilia, de Xenofonte.
Traduzido do grego para o português de Portugal por Ana Elias Pinheiro.
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