sábado, 8 de fevereiro de 2014

A Ficção da Propriedade Pública

O Deus da Máquina, capítulo XVII
A Ficção da Propriedade Pública
Isabel Paterson

A linguagem é a faculdade que diferencia o homem dos animais inferiores. Também é um bom indicador do nível intelectual de culturas e pessoas. A confusão e a ambiguidade de termos sempre encontradas nas teorias coletivistas não são acidentais; constituem um retorno às limitações mentais e verbais da sociedade primitiva que essas teorias defendem, ou seja, a incapacidade de pensar em termos abstratos. Esse defeito é flagrantemente evidente nos argumentos coletivistas sobre a propriedade.

Propriedade é a condição de pertencer a alguém. Coisas que não são de ninguém não são propriedade, são simplesmente objetos na natureza. A expressão mais vazia de sentido cunhada até mesmo por um coletivista é provavelmente aquela de Proudhon: “Toda propriedade é um roubo”. É realmente notável à sua maneira, pela variedade de erros comprimidos em tão breve enunciado. Em cinco palavras, confunde objetos, atos, atributos, valores morais e relações, como se fossem intercambiáveis. Um roubo pressupõe uma propriedade legítima. Um objeto precisa ser propriedade antes de poder ser roubado.

Os selvagens e os coletivistas são notavelmente ignorantes do ramo estritamente lógico da linguagem que é a matemática. O selvagem não vai além da simples soma e subtração contando nos dedos. O coletivista pode decorar fórmulas, mas não consegue compreender os princípios de sua aplicação aos fenômenos físicos. Um coletivista avalia processos e pensa chegar a resultados que só poderiam ser obtidos a partir de um fator que ele, por sua teoria, excluiu do problema que pretende resolver. O problema é definir as condições necessárias para uma sociedade produtiva. Essas condições devem responder ao mundo da realidade física; não se pode assumir que exista na realidade física algo que de fato não existe; também não se pode excluir nenhum aspecto dos fenômenos físicos que irá inevitavelmente interferir nas condições da realidade. Mas, quando o coletivista exclui a propriedade privada de sua economia teórica, tira dos fenômenos materiais o aspecto que os matemáticos chamam de terceira dimensão. “As três dimensões de um corpo, ou do espaço comum, são o comprimento, a largura e a espessura; uma superfície tem apenas duas dimensões; uma linha, apenas uma.”1 Com a terceira dimensão, a medida cúbica é possível; e a construção se torna capaz de conter algo sólido. Não teria sido possível conceber a medição de maneira abstrata, sem a realidade preexistente e o conceito de unidade de medida. A unidade de medida da energia física é estabelecida a partir dos sólidos, em termos de tempo, espaço e resistência de massa ou deslocamento (gravidade). A energia física real não pode existir, exceto num mundo tridimensional, e não poderia ter sido concebida de maneira abstrata sem que existisse na realidade.

Dois corpos não podem ocupar o mesmo espaço ao mesmo tempo. Esta é a razão pela qual a propriedade privada pertence ao homem como ser criativo (um direito tanto natural quanto divino). A propriedade individual responde exatamente às condições dos fenômenos físicos. A propriedade pública é fictícia; seus termos verbais não correspondem à realidade, nem às características dos objetos físicos, nem às condições do tempo e do espaço. Várias pessoas podem morar na mesma casa, mas apenas pela distribuição de objetos entre elas, no espaço e no tempo, especificamente ou por precedência. Ninguém poderia viver em uma casa se o público em geral tivesse o direito de entrar e sair, de sentar nas cadeiras, de dormir nas camas, de usar a cozinha. Dez homens podem ser legalmente os iguais proprietários de um campo, mas nenhum deles pode obter nenhum bem dali, a menos que a ocupação e o uso sejam distribuídos entre eles por medidas de tempo e espaço. Nenhum acordo pode suplantar essa necessidade. Se os dez homens quisessem fazer exatamente a mesma coisa, ao mesmo tempo e no mesmo ponto, isso seria fisicamente impossível, com ou sem consenso. A propriedade privada em grupo se transforma necessariamente no gerenciamento por uma pessoa, com a divisão do produto, e pode levar à divisão da propriedade em si, no caso de um desacordo irreconciliável.

Teoricamente, a propriedade pública pertence a todas as pessoas igualmente, indivisivelmente e simultaneamente, o que é absurdo. Se essa premissa fosse aplicada, o resultado seria que qualquer pessoa que se apresentasse para usar a propriedade teria de responder à pergunta: “Você é todas as pessoas?” e seria obrigado a dizer: “Não”. Sendo assim, não poderia reivindicar o uso de qualquer divisão específica da propriedade. O uso real da propriedade pública pelo público é, portanto, limitado aproximadamente a duas condições dimensionais, nas quais a medida cúbica não precisa ser levada em consideração. Assim, cada homem é considerado um ponto em uma reta, que pode ser dividida em infinitos de pontos e estar no cruzamento de infinitas retas numa superfície plana. Assim, é possível — independentemente se isso é ou não necessário ou aconselhável — fazer com que as estradas sejam propriedade pública, porque a maneira de se usar uma estrada é viajar por ela. Embora o usuário de fato ocupe um dado espaço num dado instante, a duração é desprezível, de maneira que o tempo e o espaço não precisam ser levados em consideração, exceto por negação, proibição: o passageiro não tem o direito de permanecer por tempo indefinido em um ponto da estrada. A mesma regra se aplica aos parques e aos prédios públicos. A viabilidade desse arranjo torna plausível a ficção da “propriedade pública”. Na verdade, mesmo no uso de uma estrada, se uma quantidade excessiva de membros do público tentar se mover por ela de uma vez, a regra regride para “quem chega primeiro é atendido primeiro” (divisão no tempo e no espaço), ou as autoridades podem fechar a estrada. O público não tem o direito essencial de propriedade de ocupação contínua e definitiva.

A “propriedade pública” que é usada para outras finalidades (diferentes da simples passagem) não está disponível ao público de maneira nenhuma. Parte da Mansão Executiva está aberta ao público para visitação em parte do tempo; mas as condições foram demonstradas claramente quando duas crianças entraram no prédio sem permissão e invadiram uma área proibida. A esposa do Executivo Chefe considerou recomendável imprimir um aviso de que essa conduta não é segura; as crianças poderiam ter sido baleadas por um segurança. “Domínio público” que é alugado por dinheiro é usado pelos locatários como pessoas privadas e o aluguel não é distribuído aos membros do público; é usado pelas autoridades. Seja qual for a forma de posse ou usufruto de uma propriedade “pública”, as autoridades a ocupam ou consomem o usufruto, enquanto o público paga pela manutenção. Nenhum “serviço público” está disponível ao público como se este fosse o proprietário. Qualquer cidadão que deseje obter eletricidade de uma usina municipal tem de pagar com seus recursos privados pela quantidade de energia medida que usar. Ele não é o proprietário: um proprietário não precisa comprar o produto de sua propriedade. Ao mesmo tempo, um cidadão que não use eletricidade nenhuma é cobrado indiretamente, da mesma maneira, porque o custo de manutenção é pago por impostos, embora o cidadão não possa exercer nenhum direito de propriedade na usina. Ele não tem nem sequer o direito de entrar nas instalações, o que é a primeira prerrogativa de um proprietário.

A propriedade pública então admite o uso pelo público somente de passagem, não para produção, comércio, consumo ou para segurança como base de terra. Onde toda a propriedade é “pública”, no comunismo, as autoridades se apropriam para uso pessoal de qualquer coisa que queiram, com dinheiro público para manutenção; enquanto o público existe condição perpétua de passageiros de uma estrada, não tendo direito de permanecer em nenhum ponto ou de usar nenhum objeto; todas as atividades dos membros do público são por permissão ou por compulsão.

É impossível imaginar um método prático pelo qual o uso ou o produto de qualquer tipo de propriedade produtiva fique disponível “ao público” como tal. Embora qualquer pessoa que chegue possa usar uma estrada (a menos que ela fique congestionada), não é possível desenvolver nenhum meio pelo qual qualquer pessoa que chegue possa se servir de eletricidade, ou de batatas, como membro do público, “de acordo com sua necessidade”. A expressão não tem aplicação à realidade numa sociedade produtiva. É uma ideia limitada às condições da natureza selvagem, na qual o homem primitivo vive de qualquer coisa que consiga obter, na forma de caça, frutas, peixe ou insetos.2

O coletivista é incapaz de entender isso, porque seu conceito de “coletivo” não possui dimensões. A sociedade fundada na propriedade privada é organizada para um homem de três dimensões, ocupando espaço num mundo de três dimensões, através do qual a energia flui em ação e é colocada em uso para a produção. A sociedade coletivista é “planejada” para um mundo de duas dimensões, no qual nada é concebido como se ocupasse espaço ou causasse deslocamento. O homem é imaginado estando em todos os lugares ao mesmo tempo e em nenhum lugar em particular, na coletividade. O conceito é de um mundo e uma sociedade nos quais não existe energia, nem cinética nem estática.

Mas, como cada objeto ocupa espaço tridimensional na realidade e movimentar objetos causa deslocamento, sempre que os comunistas tomam o poder político para realizarem sua suposta experiência, o comunismo é colocado num futuro vindouro, nunca no presente. O presente é descrito como “um período de transição”. O senso comum da fala coloquial reconhece os fatos, com o advento do coletivismo, quando as pessoas reclamam que estão sendo humilhadas.3

Talvez o coletivista tenha uma vaga noção da dificuldade lógica com a coletividade não-dimensional, já que todas as teorias coletivistas começam com a suposição de um maquinário e um sistema produtivos tomados de uma sociedade de propriedade privada e iniciativa pessoal. Mesmo que não admitam, os coletivistas devem sentir que sua sociedade hipotética não é produtiva, porque a produção cria seus próprios meios. Para esconder essa dificuldade, dão ênfase à distribuição e ao consumo como o ponto crucial de seus planos. Mas não conseguem imaginar nenhum método prático que realize sua promessa; podem apenas oferecer uma cópia em papel das formas de distribuição criadas pela sociedade da propriedade privada, enquanto eliminam as relações morais e físicas que tornaram viáveis essas formas. Ou seja, têm de usar medidas quantitativas para os bens, e para o tempo de trabalho (medidas desnecessárias para o meio de vida selvagem na generosidade da natureza); e um meio de trocas. Mas negam o direito do dono e produtor à sua propriedade e ao seu produto. Agindo assim, negam o direito do homem ao seu próprio trabalho, ou seja, à sua própria pessoa. Todas as sociedades coletivas exigem trabalho forçado. Com isso, não pode haver comércio verdadeiro, somente expropriação e esmolas estatais.

Os coletivistas usam a palavra “direito”, mas jamais em um contexto que corresponda à realidade e permita uma aplicação específica. Pela teoria marxista, é óbvio que eles não deveriam usar nunca a palavra “direito”, porque o Materialismo Dialético é determinista; portanto, não admite nem direitos nem injustiças. O uso da fala é comunicação, mas os marxistas usam as palavras com o objetivo de confundir; mesmo assim, supõem que uma sociedade produtiva, que depende essencialmente de comunicação exata, pode ser organizada depois que destruírem a comunicação. Com isso, regridem para menos que a selvageria e até para menos que o nível animal. Descem ao ponto do simples mecanismo. Engrenagens numa máquina não precisam de linguagem.

Assim, os coletivistas falam de direitos civis numa sociedade coletiva, quando nessa sociedade os direitos civis não podem existir. Não podem porque não existe um lugar onde possam ser exercidos, nem materiais sobre os quais possam ter efeito. Como pode um homem falar livremente, se não existe um lugar onde sua audiência tenha o direito de ficar? Como pode praticar sua religião, se não tem o direito de possuir um edifício religioso e não tem direito à sua própria pessoa? Como pode existir uma imprensa livre, se os materiais não são propriedade privada? Com a propriedade estatal, nada pode ser feito, exceto por ordem ou permissão. Um escravo vive submetido a ordens e permissões. Um escravo não é livre.

Os coletivistas falam, com frequência, do “direito ao trabalho”. O que isso significa, em termos de realidade física? Numa sociedade livre, todo homem tem, por natureza, o direito de trabalhar. Ninguém pode forçá-lo a trabalhar; e ninguém pode impedi-lo de trabalhar em sua propriedade ou em contrato com outra pessoa. Mas, se não possui propriedade, ou se sua propriedade não produz o suficiente para garantir sua subsistência, ele precisa procurar emprego com outras pessoas. O trabalhador nunca terá o poder de exigir que todos os seus termos sejam aceitos pela outra parte, da mesma maneira que não encontrará na natureza tudo que gostaria de ter. Mas, uma vez que o empregador precisa contratar trabalhadores (se não precisasse, não contrataria), existe uma base para barganhas e acordos. Se nenhum dos dois quiser aceitar os termos do outro, cada um pode procurar por outro possível empregador ou trabalhador. Mas diz-se que o trabalhador sem propriedade (terra) tem uma necessidade mais urgente que o possível empregador; não pode esperar até que seus termos sejam aceitos, e o empregador pode. (Não se considera, nessa teoria, que empregadores também vão à falência, embora isso certamente aconteça. Assume-se, pelo contrário, que podem sentar e esperar para sempre, se quiserem.) Portanto, como a terra existe na natureza e todas as matérias-primas são de origem natural, diz-se que, se um homem não pode exigir e receber um emprego que garanta seu sustento, seu direito natural ao trabalho foi negado.

Mas existe alguma economia de produção imaginável na qual a contingência do desemprego não ocorra, com condições muito mais duras associadas a ele?

Certamente, numa sociedade nômade selvagem, os recursos brutos da natureza estão disponíveis diretamente a todos os homens (assim como aos animais inferiores), “de acordo com suas habilidades”. Mas, no momento em que alguém começa a utilizar esses recursos além das habilidades dos animais, produzindo armas ou ferramentas, a propriedade privada sobre esses objetos é necessariamente estabelecida. E qualquer outro homem pode presumivelmente fazer ferramentas similares a partir dos recursos da natureza. Da mesma maneira, quando a terra é cultivada de maneira primitiva, marginal à economia caçadora — como alguns índios norte-americanos cultivavam milho em seus acampamentos de verão — não são necessários limites exatos; e, presumivelmente, qualquer pessoa poderia fazer suas próprias ferramentas e arar um pedaço não utilizado de terra. Mas as causas naturais vão provocar fome recorrente. O caçador tem o direito de caçar, mas não encontra caça. Os animais podem devorar o milho; não há cerca. As construções não são sólidas nem duráveis; não há como armazenar os alimentos. Então, todos passam fome, e é isso.

Com assentamentos permanentes, a posse permanente da terra pelo cultivo regular passa a ser reconhecida. Quanto mais evoluída a forma de produção, mais necessário determinar a propriedade. E a propriedade pode assumir variadas formas, por pessoas ou grupos locais ou famílias ou outras divisões, possivelmente sujeitas a uma redistribuição. Os dois extremos do título de propriedade são propriedade governamental e propriedade privada individual. A questão é: por qual sistema o homem permanece com seus direitos naturais?

Com a propriedade em grupo, cada homem precisa nascer membro de um grupo ou ser formalmente admitido a ele. Caso contrário, não tem direito de propriedade. Se pertencer ao grupo, pode, em certas circunstâncias, ficar preso ao solo. Assim era o sistema feudal. Era um conceito tridimensional; cada homem tinha um lugar, o direito de trabalhar numa porção específica de terra. Mas os homens eram sujeitos ao trabalho forçado em muitos dias do ano; não tinham o direito de mudar de emprego; e tinham muito poucas possibilidades de aumentar sua produção, melhorando suas ferramentas. Seus direitos naturais eram extremamente restritos; perdiam a mobilidade e a escolha. A compensação presumida era a estabilidade com o circuito local de energia de produção. Mas ainda sofriam fomes recorrentes, como no estado de natureza. O sistema feudal não tinha condições de formar um longo circuito de energia. Um fugitivo de um grupo feudal não tinha como entrar em outro grupo; tinha de procurar a sociedade de contrato. Muitos o fizeram, uma prova de qual sistema é preferível; outros compraram sua liberdade.

Com a propriedade privada individual, todo homem tem o direito natural de possuir propriedade. Pode herdá-la, pode trabalhar para ganhar dinheiro e adquiri-la. Essa aquisição é razoavelmente possível a qualquer pessoa competente e sadia, no tempo de vida natural, pelo trabalho e economia. Quando alguém a consegue, a propriedade é sua, assim como tudo o que ela produzir. O dono pode experimentar suas próprias ideias, melhorar ou aumentar a produção, construir para alugar, ou usar a propriedade para sua satisfação. Pode acumular provisões para quando envelhecer ou contra vicissitudes de qualquer tipo. Além disso, numa sociedade de contrato, se ele tiver boa capacidade gerencial ou ideias criativas, pode obter capital a crédito, sem garantias de sua parte exceto sua honestidade de conduta e retribuição se o projeto der certo, com o sócio capitalista assumido o risco financeiro do fracasso, enquanto o que toma o capital tem a chance de um ganho considerável, sabendo que o obteve de maneira justa, aumentando a produção. Essas são as vantagens características da propriedade privada individual.

Vamos então enunciar o caso contra a propriedade privada, suas possíveis desvantagens, com o máximo rigor, na pior condição possível. Muitas pessoas podem não ter herdado nenhuma propriedade, nem ter tido tempo de acumular recursos de seus ganhos antes de encontrar tempos difíceis. É verdade que alguns podem ter tido a chance e a desprezado; mas nunca será verdade que todos os desempregados tiveram essa chance antes. Alguns são jovens; outros trabalharam produtivamente, mas enfrentaram doenças ou perdas. E não se pode dizer mesmo dos imprudentes que seus direitos naturais tenham sido anulados. A oportunidade pode aparecer novamente no futuro, mas isso não suaviza as dores imediatas da necessidade. Parte do tempo de vida dessas pessoas será um período de grandes dificuldades, o que parece ainda pior porque outros têm melhor sorte sem esforço próprio.

Mas é verdade que os desempregados estão nessa condição por não terem acesso à terra?

Na Europa, em tempos modernos, praticamente toda a terra utilizável tinha dono. Não havia terra selvagem à qual um desempregado pudesse ter “acesso”; e seria improvável que os donos de terra permitissem que os desempregados a usassem de graça. Mas, nos Estados Unidos, nunca houve um dia nos “tempos difíceis” em que um desempregado não pudesse ter acesso à terra selvagem, ou mesmo a terras pertencentes a alguém, mas que o dono permitisse que fossem usadas para produção. Mesmo assim, nos tempos difíceis, as pessoas não migraram para as terras selvagens. A afirmação de que a fronteira selvagem incorporou os desempregados durante as depressões industriais é uma completa falsidade. Pelo contrário, a fronteira foi conquistada a partir do excedente de produção capitalista dos bons tempos. Nos tempos ruins, os homens saíam da fronteira, até mesmo abandonando seus lotes, e retornavam para as áreas mais desenvolvidas, as cidades e as regiões industriais. Buscavam empregos assalariados.

Então, diz-se que se nega aos desempregados o “acesso aos meios de produção”, o que inclui a terra. Mas os meios de produção de uma economia industrial não se encontram prontos na natureza. Então, o homem que deseja um emprego precisa de algo além de seu direito natural original. Precisa do uso de ferramentas, de capital acumulado e da organização de uma economia altamente produtiva, que sejam aplicados aos recursos da natureza.

Mas essa definição ainda não abrange toda a dificuldade. Os donos de propriedade industrial ocasionalmente trabalham com prejuízo, para manter sua fábrica e seus contatos comerciais para o futuro. Nos Estados Unidos, em tempos de crise, muitos empregadores certamente ficariam felizes se conseguissem manter o pleno emprego naquele momento, cobrindo o custo da matéria-prima, manutenção e salários de produção e gerenciamento. Os dividendos podem esperar e frequentemente são adiados. Mas, se uma fábrica ociosa, contendo até mesmo um estoque de matéria-prima, fosse entregue a trabalhadores desempregados, dando assim a eles o livre “acesso aos meios de produção”, esses trabalhadores não conseguiriam manter uma produção contínua para remunerar seu trabalho, porque isso depende de vendas constantes com lucro; conseguiram apenas usar o estoque inteiro e parar de trabalhar.

Então, o desempregado numa economia de propriedade privada não perdeu seus direitos naturais e não está em uma situação de privação maior do que estaria no estado de natureza. É livre para buscar o que precisa, mas, naquele momento, o que busca é escasso, difícil de encontrar. Será que ele preferiria retornar ao estado de natureza? Não. Sua recusa é racional. A privação, de fato, foi grandemente reduzida; os Estados Unidos, a única grande economia livre que o mundo desenvolveu, nunca conheceu a fome, embora os índios, no mesmo território, tenham sofrido com ela. Não há perda, mas ganho líquido. Se o desempregado enfrenta dificuldades, não é porque seus direitos naturais tenham sido negados, mas porque, naquele momento, ele não tem acesso a algo que não conseguiria na natureza.

Mas aquilo de que ele precisa não pode ser definido simplesmente como acesso à terra ou aos meios de produção; o que lhe falta é uma conexão direta ao longo circuito de energia.

O ponto principal da acusação do coletivista é que, em tempos difíceis, existem bens não distribuídos, maquinário produtivo ocioso e homens precisando de trabalho e de bens. Embora os bens sejam de fato rapidamente distribuídos, com prejuízo aos donos se necessário, e o emprego produtivo retomado, não se considera que isso constitua a condição ideal para um sistema de trabalho. Seriam possíveis melhorias em sua operação específica que permitissem melhores resultados seguindo a mesma linha. Então, a acusação real contra o capitalismo privado deveria ser a de que ele desacelera ocasionalmente, que quebras e interrupções ocorrem. Não funciona com absoluta, invariante, matemática regularidade para suprir as necessidades de todos contínua e infalivelmente e sem exceções, apesar dos riscos infinitos da falibilidade humana, moral e intelectual.

O coletivista promete uma organização que não sofrerá avarias nunca, nem mesmo temporariamente. Insiste que possui o plano da máquina perfeita, “automática”. Em seus próprios termos, a teoria é insana. Se for reduzida às suas especificações, deve ser como a maravilhosa One-Hoss Shay4, na qual cada material, peça e detalhe eram exatamente tão fortes quanto todo o restante dos itens, de maneira que nenhuma peça poderia quebrar. A carruagem imaginária de fato parou de funcionar, mas inteira de uma vez, completamente, em total desintegração. Espera-se que o governo coletivista absoluto “definhe” e desapareça da mesma maneira. Mas, embora o governo seja a única forma específica que o coletivista tenha em mente, ele insiste que, no momento de sua dissolução, outro tipo de organização tomará seu lugar automaticamente, sem que ele saiba exatamente qual — a proposição vai morrendo em incoerências e murmúrios de revelações que serão feitas depois.

Existe apenas mais uma suposta objeção proposta pelo coletivista, seu argumento final contra a propriedade privada. Diz-se que, a partir de um determinado estágio do desenvolvimento capitalista, sempre e necessariamente haverá mais gente procurando emprego que empregos; portanto, o trabalhador não terá poder real de barganhar e conseguir um salário digno, mas será obrigado a aceitar qualquer coisa que o empregador oferecer. É uma variação invertida da teoria malthusiana. Malthus pensava que havia uma “lei” que fazia com que a população crescesse mais rapidamente que a produção, de maneira que os trabalhadores estariam sempre “lutando pela subsistência” (como fazem os animais na natureza) — e a única coisa que poderia remediar esse mal seria a limitação da população. É claro que, teoricamente, o mundo poderia ser superpovoado, além do que seus recursos naturais são capazes de suportar; mas Malthus estava argumentando especificamente sobre o problema da pobreza em um sistema produtivo funcional num mundo que ainda tinha abundância de espaço não ocupado. Sua suposta lei funciona numa economia coletivista, porque essa economia não permite melhorias nos meios de produção; consequentemente, as sociedades coletivistas legitimaram o infanticídio no passado. Embora Malthus tenha vivido durante o período em que a produção industrial estava ganhando ritmo, ele parece ter caído numa armadilha aritmética, como a falácia de Aquiles e a tartaruga; ou então pensou que a produção já tivesse atingido ou estivesse perto de atingir sua capacidade máxima. De qualquer maneira, os coletivistas foram obrigados a reconhecer que a produção refutou Malthus, crescendo prodigiosamente, ano após ano. Então, tiveram de dizer que o problema era a “superprodução”; o trabalhador poderia em breve acabar com seu emprego como resultado de seu trabalho! Essa teoria criou a expressão “desemprego tecnológico”, que se diz que é causado pelas melhorias mecânicas nos meios de produção. Ou seja, se for inventada uma máquina com a qual um homem faz o trabalho que antes era feito por dez, ela deve desempregar permanentemente os outros nove. Parece plausível, mas é verdade?

Malthus imaginou um limite fixo de capacidade produtiva por pessoa, uma quantidade arbitrária. (Deve ter imaginado isso, porque certamente existe um limite para o número de filhos que um adulto pode ter.) O coletivismo com a teoria de “desemprego tecnológico” supõe um número fixo de empregos, outra quantidade arbitrária. No sistema feudal, havia esse número fixo de empregos, estabelecido pela distribuição de terras numa área determinada e ratificado pelo senhor feudal e pela comunidade. Essa condição não precisava ser enunciada em teoria, era factual e inevitável nas circunstâncias; mas, infelizmente, foi transportada para teorias sobre a livre iniciativa, na qual não tem significado. No feudalismo, a limitação específica do número de empregos podia esticar ou encolher um pouco, mas era basicamente constante.

Nenhuma regra semelhante pode ser aplicada ou mesmo imaginada como aplicável num sistema de livre iniciativa de capital privado, se os fatos forem examinados.

Numa economia livre, não pode haver um número fixo de empregos, nem por um minuto. Emprego, produção e consumo numa sociedade de livre iniciativa não podem ser calculados com as mesmas razões e relações que os coletivistas supõem (e eles as obtiveram de fato nas sociedades coletivistas). As sociedades coletivistas antigas supunham que determinada quantidade de pessoas conseguia produzir determinada quantidade de bens; evidentemente, uma quantidade podia ser dividida pela outra pro rata. (O que, na prática, sempre resultava na mera subsistência.) Então, se toda a terra ou todos os materiais disponíveis estivessem em produção, o número máximo de empregos estaria preenchido; alguém teria de sair de um emprego para que outra pessoa pudesse obter um emprego. E, se uma quantidade excedente fosse produzida, no cômputo total, para a mesma quantidade de trabalho, isso faria com que a demanda (necessidade) de trabalho diminuísse na mesma quantidade. Teoricamente, tiraria o emprego de alguém. Esse cálculo é feito realmente na base da estrita subsistência, na qual “consumo” é o que as pessoas comem e vestem.

Mas, em uma sociedade de livre iniciativa, o aumento da produção aumenta o número de empregos. Seria possível dizer que um emprego cria outro, o que é verdadeiro, mas dá margem a interpretações errôneas; porque somente os empregos produtivos fazem isso. Se um homem fosse pago para recolher pedrinhas na praia e jogá-las no oceano, seria o mesmo que estar num “emprego governamental” ou receber uma bolsa; a parte produtiva da economia tem de sustentá-lo sem nenhum retorno. Isso impede o aumento normal de empregos. Dar uma bolsa aos desempregados não aumenta o “poder de compra”. As bolsas dividem o que já estava com a produção. “Poder de compra”, em si, é comércio. O aumento de produção é que aumenta o “poder de compra” e, portanto, cria empregos.

Há menos homens empregados hoje na grande indústria metalúrgica que havia antes na forjaria manual? Ou no transporte ferroviário e rodoviário que no transporte a carroças? Ou na construção civil com escavadeiras, betoneiras e afins que na construção manual? Não. O resultado real não é apenas que as pessoas têm mais ferramentas, casas maiores e viajam mais, o que tende a manter os empregos — elas também querem ter e têm coisas que nunca haviam tido antes. Carros precisam de pneus, estradas, gasolina; casas são equipadas com novas conveniências; quando as pessoas viajam, querem hotéis, diversões, mais roupas — tudo isso significa a criação de mais empregos, empregos novos.

Nada aumenta mais o número de empregos que as máquinas que poupam trabalho, porque elas libertam necessidades anteriormente desconhecidas ao permitirem o ócio. Numa economia pré-industrial, os empregos são feitos pela simples divisão de trabalho; habilidades adquiridas e organização permitem alguma economia de esforço. Mas, em geral, as pessoas literalmente não têm um excedente de energia suficiente para desejar muito mais. O que quer uma pessoa que está completamente fatigada? A resposta é simplesmente nada. E se trabalhar por muitas horas, também não terá tempo para usar o que pudesse querer. Ao conservar a energia corporal humana, multiplicando a produção resultante de um mesmo gasto de força muscular, a economia livre permite aos homens querer coisas que eram inimagináveis no estado de natureza.

Aqui temos um estranho caso em que a organização humana escapa das implicações gerais da Segunda Lei da Termodinâmica. A energia física manifestada por meio de um mecanismo inanimado — gasolina introduzida num automóvel, eletricidade num aspirador de pó — não faz com que o mecanismo deseja ou exija nem mais nem menos que uma dada quantidade, conhecida a priori, que ele pode acomodar, da qual uma porcentagem fixa será “perdida” na transmissão e o restante será usado para realizar uma tarefa mensurável. Um homem pode absorver apenas uma quantidade limitada de energia física em comida, mas no nível do bem-estar suas necessidades de outras coisas crescem progressiva e incalculavelmente. E ele próprio é capaz de criar dispositivos para aumentar sua energia e fazê-los trabalhar para atingir seus novos objetivos. Seu circuito é intrinsecamente diferente de qualquer circuito específico composto apenas de materiais inanimados. Cálculos mecânicos estritamente quantitativos, por proporção ou quantidade não podem ser aplicados a priori à livre organização produtiva humana como um todo.

O sistema de livre iniciativa começa corretamente com um conceito, correspondente à realidade, de um homem tridimensional num mundo tridimensional e que possui livre arbítrio, a capacidade moral para contratos. Portanto, implica na propriedade privada individual, pela qual esse homem pode adquirir e manter seu próprio lugar, a partir do qual suas relações no tempo de no espaço são passíveis de acordo e autoajuste. A esfera econômica é protegida da influência política estática, porque se entende que a quantidade de produção e as mudanças de posição não podem ser calculadas antecipadamente.

A teoria coletivista começa com um homem não dimensional em uma coletividade não dimensional e em um mundo bidimensional, que exclui a propriedade privada, mas supõe que a produção e a divisão do produto são tridimensionais. É impossível elucidar as inúmeras contradições implícitas nessa confusão. O coletivista nem mesmo tenta criar um sistema prático próprio, coerente com suas teorias; simplesmente regride ao barbarismo da distribuição por decreto, ao mesmo tempo em que diz que vai usar o maquinário produtivo da livre iniciativa, que na verdade só pode funcionar com o impulso indutivo da distribuição pelo livre comércio.

Ao argumentar contra o capitalismo de livre iniciativa, o coletivista sempre adota a falsa premissa de um número fixo de empregos nesse sistema. De modo inverso, ao argumentar a favor do coletivismo, assume sempre que haverá tantos empregos quantos trabalhadores houver. O governo criará os empregos.

A única condição final e inequívoca do coletivista é que toda a propriedade deve estar nas mãos do governo para o bem da coletividade. Nesse caso, todos terão de pedir trabalho ao governo; e ninguém poderá possuir recursos que lhe permitam negociar os termos de sua contratação enquanto espera. Também não haverá nenhum outro empregador a quem o trabalhador possa recorrer.

Na livre iniciativa, os empregos são criados espontaneamente pelo sistema produtivo. A pessoa que quer trabalhar é contratada diretamente pela pessoa que quer que um trabalho seja feito, cada um sendo livre para procurar o outro; cada um está pessoalmente interessado no benefício. (Se dizemos que um intermediário contrata homens para realizarem um trabalho que outra pessoa quer que seja feito, é evidente que o intermediário também quer que o trabalho seja feito, para seu próprio benefício.) Toda demanda age diretamente para estimular uma oferta; toda oferta é um estímulo para descobrir uma demanda. (A oferta cria a demanda tanto quanto a demanda faz com que passe a existir a oferta.) Por toda a longa série de trocas, cada pessoa tem um interesse direto em conseguir bens ou em produzi-los; assim, a sequência geral cria o longo circuito de energia, pela transmissão ininterrupta.

A teoria coletivista do inevitável “conflito de classes” numa economia livre apoia-se na falácia econômica do “fundo de salários”. Ela supõe uma quantidade fixa a ser dividida entre “trabalho” e “capital”, de maneira que nenhum dos dois possa ganhar mais, exceto à custa do outro; portanto, seus interesses devem ser diametralmente opostos e antagônicos. Sem dúvida, os indivíduos devem sempre ter seus interesses separados. Mas, em uma economia livre, não há nada a dividir até que “capital e trabalho” tenham chegado a um acordo. Logo, seus interesses separados os unem. E o aumento da produção pode aumentar a parte de cada um, não a parte de um à custa da parte do outro.

Quando o governo é o único empregador, alguém certamente quer trabalhar, ou que um trabalho seja feito, ou quer certo produto; mas ninguém nunca negocia diretamente com outra pessoa que tem um interesse semelhante na transação. O homem que quer trabalhar deve pedir ao governo algum tipo de emprego, em troca de uma parte da suposta produção “geral”. Assim, entre o que oferece e o que deseja, intervém uma agência que não tem interesse na transação. O incentivo imediato é realmente o contrário: os funcionários não querem ter mais trabalho por aceitarem mais pessoas para as quais “empregos” devem ser “criados”. Então, o governo distribui o produto. Não interessa às pessoas empregadas na distribuição se a qualidade é boa ou não, nem se as coisas são manuseadas para a conveniência do produtor ou do consumidor; porque nem o produtor nem o consumidor têm o poder de decidir qual distribuidor irão usar, ou qual o preço do artigo. O interessado deve ir até seja qual for o armazém que seu tíquete indicar, e pegar o que houver, em termos fixos, ou ficar sem; enquanto as pessoas empregadas na distribuição vão preferir manusear quantidades menores, em vez de maiores. Os funcionários vão primeiro pegar para si mesmos a melhor parte.

Além disso, todas essas pessoas precisam pedir emprego ao governo durante a vida inteira. É ocioso exigir isso como um direito, uma vez que elas não têm o menor poder para fazer cumprir essa exigência. Não podem acumular materiais e terra para se tornarem independentes; e, obviamente, não podem pegar algumas ferramentas improvisadas e começarem a trabalhar com os primeiros materiais ou o primeiro pedaço de terra que encontrarem. Devem pedir permissão para tudo, dia após dia, hora após hora.

Se é verdade que, com a propriedade privada, algumas pessoas que não têm propriedade num dado momento (não têm “acesso” à terra ou aos meios de produção) ficam em desvantagem quando procuram emprego, com o coletivismo, todos ficam nessa condição. Todo trabalhador perdeu todos os seus direitos naturais e não ganhou absolutamente nada em troca. Ainda está sujeito à fome e, na melhor das hipóteses, ganha o suficiente para a mera subsistência; mas não pode ficar em algum lugar por direito ou mudar-se para outro lugar por direito. Longos trens de prisioneiros transportados em vagões de gado para onde não querem ir são a condição lógica dos membros da coletividade.

Numa coletividade, aumentar a produção acima do nível de subsistência para o bem “do povo” vai especificamente contra o interesse dos funcionários. Isso só daria mais trabalho a eles; e (se a produção fosse consumida) tenderia a aumentar a energia da população miserável, e tornar “o povo” insubordinado.5 Mesmo quando o interesse dos funcionários é de aumentar a produção de material bélico durante uma guerra (quando pretendem salvar o próprio pescoço), a necessidade tem de ser atendida pela importação de maquinário e bens, ao custo de se reduzir a margem de subsistência, ou a crédito, uma dívida que não será paga nunca.

Em quais circunstâncias o indivíduo consegue ter algum poder contra o governo? Numa economia livre, os poderes do governo são limitados. Cidadãos individuais são os donos das propriedades produtivas. Independentemente de isso estar expresso em uma legislação formal, o que garante a limitação do poder do governo é o fato de que ele precisa obter seus suprimentos dos cidadãos pela taxação. E essa taxação pode ser limitada por uma divisão apropriada das agências políticas (freios e contrapesos) e por um sistema representativo adequado, em que os representantes sejam obrigados a se submeter ao voto para se reelegerem. Ninguém tem o direito de exigir emprego do governo, porque está claro que os “empregos” governamentais são não-produtivos. Entretanto, se o cidadão sem propriedade possui um voto, também tem meios de subornar o governo para que crie um emprego para ele, expropriando a propriedade de outro cidadão. Esse suborno depende inteiramente de que outros cidadãos possuam propriedade privada. Se o processo continuar até que toda a propriedade privada tenha sido expropriada ou esteja sujeita à expropriação, nenhum cidadão, nenhum eleitor, terá ficado com nenhum poder contra o governo, nem nenhum suborno a oferecer ao governo.

Na coletividade, onde não existe propriedade privada e o governo possui tudo e o indivíduo nada, o poder do governo é absoluto; não importa qual seja a reivindicação que um trabalhador faça, ele não terá meios de obtê-la.

O governo certamente pode “criar empregos”, mas não há ligação entre a oferta e a demanda, não há indução no fluxo de energia. A única demanda efetiva é a dos funcionários por aquilo que pessoalmente desejam; mas como eles não têm necessidade de produzir nada em troca, não há comércio; é simplesmente uma carga líquida sobre o trabalho forçado. O circuito de energia é cortado a cada transação.

Além disso, se o conceito não-dimensional da coletividade se aproximasse da realidade — o que é impossível — o “direito ao trabalho” seria completamente sem sentido. Nenhuma parte do coletivo poderia agir sem que o todo agisse de acordo. Se considerarmos que uma pessoa é apenas um componente do coletivo, e uma pessoa desejar fazer uma única coisa, ela deve teoricamente conseguir o consentimento de todas as outras pessoas, sejam mil, um milhão, cem milhões ou dois bilhões. É ridículo. Evidentemente, o que a pessoa de fato tem de fazer é conseguir o consentimento de certas autoridades. Agora, em uma sociedade livre, qualquer pessoa que deseja se incumbir de um empreendimento, no qual se use capital e sejam empregadas várias pessoas, deve obter o consentimento dos donos do capital e das pessoas que farão o trabalho. Isso nem sempre é fácil, mas ela pode tratar com os interessados diretamente e eles tomarão sua decisão de acordo com a opinião que tiverem sobre seu próprio interesse. Muito poucas ideias originais dão um retorno de produção imediato; incontáveis ideias fracassam gastando muito dinheiro; mas os interessados têm o direito de correr o risco. Como pode qualquer funcionário público receber explicitamente a autoridade de correr um risco semelhante? Não pode. O assunto exige o julgamento pessoal de cada proposta em particular. Todos os funcionários públicos do coletivo podem, por acaso, ter autoridade para dispor de todos os materiais disponíveis? Não. Cada funcionário pode ter autoridade para dispor de uma dada porção dos materiais disponíveis para — para quê? Para uma proposta de inovação experimental, feita por alguém, enquanto ninguém sabe qual será o resultado dela? É óbvio que não. O que o funcionário pode fazer? Pode negociar um favor, mas estará correndo um risco sem nenhuma participação específica nos possíveis lucros. E qual o incentivo para o inovador, o homem de ideias criativas? Nenhum.

Logo, a sociedade coletiva é estática. Qualquer maquinário produtivo que contenha foi herdado ou emprestado de um campo primário de liberdade em outro lugar, uma economia livre. Com esses empréstimos, ninguém na coletividade precisa ser responsável nem pela decisão nem pelo gasto do período da invenção original. O maquinário pode ser obtido por um custo fixo. Pode até ser copiado por uma estimativa fixa; mas não pode ser inventado.

A história de diversas coletividades nominais pequenas dentro de uma economia livre leva a conclusões extremamente enganosas, porque não se reconhece a relação dessas comunidades com a economia livre. Muitas fracassaram de início, mas alguns experimentos de grupo foram “bem-sucedidos” de maneira notável. Onde o fundador de alguma dessas coletividades determinou uma regra que rompeu as relações sociais do grupo com a sociedade livre — como pelo celibato entre os Shakers6, ou pelo “casamento comunitário” da comunidade Oneida —, é possível que também tenham sido estabelecidas uma estrita limitação interna sobre o consumo e uma disciplina sobre o trabalho regular. Nessas experiências “de sucesso”, as comunidades não apenas conseguiram sobreviver; na verdade, enriqueceram. Pergunta-se então: por que o coletivismo não é pelo menos um sistema viável, pelo qual as pessoas, se desejarem abdicar de sua liberdade, podem se tornar ricas e seguras?

A resposta é: porque não existiria uma economia livre em torno, a partir da qual elas poderiam enriquecer. Esses grupos enclaves vendiam seus produtos à economia livre e convertiam o ganho em propriedade real, terra e construções, formas estáticas. Mas os indivíduos envolvidos nunca abdicaram realmente de sua liberdade; é impossível fazer isso enquanto existir a economia livre. Qualquer membro da coletividade poderia sair no minuto em que desejasse. Enquanto existisse a economia livre, nenhum membro da coletividade poderia realmente ser submetido a uma punição pessoal, aprisionamento, ou mesmo à disciplina determinada de trabalho, como pela privação de sua subsistência, pela coletividade. Apenas aqueles que voluntariamente se submetessem a ela estariam na coletividade, e apenas pelo tempo em que desejassem permanecer. Nada em seu processo econômico era exclusivo do sistema coletivista. Qualquer um, na economia livre, poderia enriquecer com o mesmo trabalho, economia e acumulação como os coletivistas praticavam. Tudo nesses grupos que é evidenciado como fruto do coletivismo se deve à economia livre: os meios de produção; o mercado pelo qual a produção é transformada em riqueza estática; as leis pelas quais a vida e a posse são garantidas; e mesmo o hábito de autodisciplina, pelo qual as regras são seguidas e o trabalho executado. Acima de tudo, não havia absolutamente nenhum poder real de compulsão, de brutalidades, tortura, fome, exílio, execução que o coletivismo inflige quando está no poder.

De modo geral, a propriedade privada é a única base de uma sociedade produtiva, o único meio pelo qual qualquer um pode ter livre “acesso aos meios de produção”, não por permissão, mas por direito natural. Em qualquer sociedade, ou mesmo que só existisse um único homem em uma ilha deserta, existe trabalho a ser feito; é uma lei da natureza. Mas, apenas em uma sociedade de propriedade privada individual, um homem pode opinar sobre as condições em que trabalhará, ou adquirir propriedade na qual pode trabalhar como quiser, ou acumular propriedade por meio da qual pode garantir o lazer subsequente, ou melhorar sua habilidade ou os meios de produção em seu próprio benefício.

O risco casual de uma sociedade livre — que é o mesmo da natureza, de que alguns indivíduos podem temporariamente não dispor de meios de subsistência — é a condição permanente de todos os homens em uma sociedade coletiva. Ao renunciar à liberdade, o indivíduo não recebe nada em troca e desiste para sempre de qualquer chance ou esperança de conseguir qualquer coisa.

A propriedade privada individual não é apenas a condição mais favorável para uma economia de alta produção. É a única linha de transmissão que torna possível a alta produção.

O que qualquer sociedade coletiva promete, mesmo em sua propaganda mais extravagante? Simplesmente, que copiará a produção das sociedades livre — o que, na verdade, é impossível. No século dezenove, alguns socialistas prometeram uma volta ao artesanato, embora o artesanato tenha se desenvolvido com a propriedade privada, não com a propriedade governamental. Os trabalhadores não se entusiasmaram. Os comunistas então prometeram maquinário.

Durante os últimos vinte e cinco anos, o coletivismo foi imposto a uma nação europeia após a outra. Durante esse período, melhorias consideráveis no maquinário foram feitas nos Estados Unidos. Alguma nação coletivista fez alguma melhoria no maquinário? Nenhuma. A coletividade nazista prometeu carros baratos aos trabalhadores alemães, que os trabalhadores americanos têm em quantidade cada vez maior há vinte e cinco anos. Algum carro barato foi produzido ou comprado por um trabalhador na Alemanha? Ou na Rússia? Ou no Japão? Nenhum. O padrão de vida aumentou em algum desses países? Não, caiu muito abaixo do nível do século dezenove.

Como um teste razoável das promessas e resultados da sociedade coletiva e da sociedade livre, pergunto: quando existem simultaneamente, qual das duas é escolhida pelos indivíduos, quando podem escolher? Milhões de pessoas vieram aos Estados Unidos e permaneceram alegremente, enquanto foi possível entrar; hoje, existe uma fila para as cotas de imigração. Quantas pessoas pediram admissão e residência permanente na Rússia, na Alemanha, na Itália ou no Japão coletivistas? Algum alemão coletivista declarado tentou entrar na Rússia? Não, eles procuram os Estados Unidos da mesma maneira, se conseguirem entrar lá. As fronteiras das nações coletivistas são fechadas — para impedir seu próprio povo de fugir, como numa prisão. E os felizes coletivistas rastejam através do arame farpado para sair.


1 Extraído da definição de “dimensão” do Oxford English Dictionary. (N. do T.)

2 Mesmo em uma economia caçadora, onde o resultado de uma boa caçada é distribuído entre os membros da tribo, é o caçador individual que dá a caça para ser repartida. Seu direito de propriedade é respeitado, uma vez que ele toma para si a parte que preferir. (N. da A.)

3 No original, “pushed around”. É uma expressão usada com o significado de “receber ordens de maneira insultuosa”, “ser humilhado”. Mais literalmente, poderíamos traduzir como “ser empurrado para qualquer lado”. (N. do T.)

4 One-Hoss Shay: Do poema The Deacon’s Masterpiece or The Wonderful “One-Hoss Shay”: A Logical Story, de Oliver Wendell Holmes (1809-1894), em que um diácono fictício constrói uma carruagem puxada por um cavalo de maneira tão lógica que ela nunca poderia quebrar. Foi feita com os melhores materiais possíveis e nenhuma peça era mais forte que qualquer outra. A carruagem dura exatamente 100 anos, até o preciso momento do centésimo aniversário do Terremoto de Lisboa, quando se despedaça inteira de uma vez, como uma bolha de sabão quando explode. (N. do T.)

5 Isso vale para qualquer administração que pretende se perpetuar no poder. Robert Owen [(1771 – 1858) Reformador social galês, um dos fundadores do socialismo utópico e do movimento cooperativo. (N. do T.)] conta que ouviu de “um diplomata veterano” em 1817 que “os poderes que governam a Europa” tinham consciência de que a ciência poderia melhorar a situação da raça humana e, portanto, esses poderes eram contra a ciência — “se as massas se tornarem prósperas e independentes, como as classes governantes conseguirão controlá-las?” O método moderno de impedir o bem-estar geral foi enunciado. “Vamos taxar e taxar, e gastar e gastar, e eleger e eleger.” (N. da A.)

6 Shakers: seita religiosa cristã fundada em 1747, na Inglaterra. Seus membros migraram para os Estados Unidos em 1774. (N. do T.)

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