José Serra lançou recentemente o livro Cinqüenta Anos Esta Noite: o Golpe, a Ditadura e o Exílio. Conta toda a sua experiência traumática de líder estudantil, cujo curso e cujos projetos pessoais e políticos foram interrompidos bruscamente pelo golpe de 64.
Li seu relato com grande curiosidade e, para falar a verdade, com grande espanto. Nasci sete anos depois do golpe. Quando comecei a me interessar por notícias, a anistia já era uma realidade. Provavelmente, fui prestar atenção em Serra quando ele se candidatou a prefeito de São Paulo, em 1988. Conhecia muito pouco de sua carreira como líder estudantil.
A primeira coisa que me chocou foi a reunião, que abre o livro, entre o presidente João Goulart e os dirigentes da Frente de Mobilização Popular (FMP), em um apartamento em Ipanema, num domingo de outubro de 1963. Quem conduz a reunião é Leonel Brizola, que liderava a ala radical da FMP. A ala moderada era ligada ao Partido Comunista Brasileiro (PCB). José Serra, presidente da UNE, com 21 anos, disse a Jango:
“— Presidente, nós defendemos que o pedido de estado de sítio seja retirado. Ele vai suprimir as garantias constitucionais e fortalecer a direita. Vai acabar se voltando contra o povo, contra o seu governo e contra o senhor mesmo.”
É um fato completamente exótico que o presidente da República participe de uma reunião secreta com representantes de organizações regulares e clandestinas para discutir a suspensão da ordem constitucional.
Pelo que Serra conta ao longo do livro, ele certamente não estava preparado, aos 21 ou 22 anos, para dar opiniões embasadas sobre a organização política nacional. Mas fazia isso com desembaraço. Tinha se mudado de São Paulo para o Rio de Janeiro para presidir a UNE. Tinha parado de assistir aulas do curso de engenharia na Poli e voltava a São Paulo apenas para fazer provas e visitar a família. É recebido por Jango para discutir assuntos políticos e educacionais. É convocado pelo Congresso para explicar as atividades da UNE. Discursou no Comício da Central, em 13 de março de 64.
Seis dias depois desse comício, houve a Marcha da Família com Deus pela Liberdade. Serra reconhece que a maioria das pessoas que participou desse ato foi de boa-fé, com medo das ameaças de comunismo que rondavam o Brasil. Conheço gente apolítica que esteve na Marcha, achando que era um tipo de procissão. Serra está convencido que essas pessoas temiam uma ameaça irreal. Não tenho a mesma certeza. Menciona grupos paramilitares de direita e diz que não havia paramilitares de esquerda. Minimiza a importância das Ligas Camponesas de Francisco Julião e dos Grupos dos Onze de Brizola. Não tenho conhecimento suficiente para avaliar essa questão. A sensação que tenho é que a ordem institucional estava sendo claramente ameaçada pelos dois lados. Talvez a esquerda de fato não tivesse força para ser vitoriosa em um golpe. Mas me parece claro que setores importantes dela tinham essa intenção e que as pessoas tinham motivos para ter medo.
É evidente que a ditadura militar brasileira foi uma violência sem tamanho contra toda uma geração de brasileiros. Ninguém deveria ter sido obrigado a fugir do Brasil. Ninguém deveria ter sido preso sem o devido processo legal. Ninguém deveria ter sido torturado, morto sob custódia, desaparecido. Os militares se aproveitaram da ameaça percebida contra a democracia para tomarem o poder e ficarem por lá por 21 anos, traindo as pessoas que os apoiaram.
Então, ocorre o golpe militar e Serra foge. A UNE foi invadida e incendiada. Muitas pessoas foram presas. Depois de vagar por algum tempo sem saber direito para onde ir, Serra se refugia na Embaixada da Bolívia. Muitos outros refugiados passam por lá e, rapidamente, conseguem o salvo-conduto para saírem do Brasil. Ele fica por 80 dias, mas finalmente consegue ir para a Bolívia e, de lá, para a França. Conseguiu uma bolsa em uma universidade francesa, mas passou pouco tempo por lá. Antes do final de 64, falsificou um passaporte brasileiro e, em janeiro de 1965, voltou para a América, para o Chile, com o documento falso. Passando pela Argentina e pelo Uruguai, entrou clandestinamente no Brasil, em fevereiro. Quem o ajudou a cruzar a fronteira foi Brizola, que tentava organizar uma resistência armada ao regime, a partir de Santa Catarina. Quem o ajudou no Uruguai foi Andrés Cultelli, que Serra diz ter sabido depois que era um dos líderes do Movimento de Libertação Nacional, os Tupamaros. Cultelli participou do assassinato de um agente da CIA em Montevidéu. Serra se espanta em descobrir que o “homem cordial e paciente” que o recebeu era um líder Tupamaro.
Escondido em São Paulo, Serra foi ajudado por dois companheiros da Ação Popular (AP), Egídio Bianchi e Sérgio Motta. Em março, houve uma reunião nacional da AP em São Paulo. Serra queria ir. Os companheiros pediram que ele não se arriscasse e foram à reunião no lugar dele. O Dops interrompeu o evento e prendeu todo mundo. Bianchi e Motta passaram nove dias na prisão, mas não foram torturados. A polícia apreendeu uma pasta de Bianchi, com a correspondência cifrada que ele mantinha com Betinho (Herbert de Souza) e Aldo Arantes, exilados no Uruguai. Os papéis mencionavam contatos com Brizola, que tentava montar uma guerrilha de padrão cubano. A polícia não entendeu os textos cifrados e não deu importância à papelada. Serra resolveu sair novamente do Brasil e foi para o Chile.
No Chile, estudou economia. Conseguiu uma graduação, dava aulas, conheceu sua esposa e teve dois filhos. Trabalhou para o governo chileno.
Sobre o governo de Salvador Allende, Serra narra as arbitrariedades cometidas contra diversos setores da economia e reconhece parte dos erros de Allende. Mas também acusa a oposição de tentar inviabilizar o governo dele. Se o que ele narra acontecesse em meu país e eu fosse a oposição, também tentaria inviabilizar um governo que cometesse aqueles absurdos.
Em agosto de 1973, Serra foi a Moscou, a convite da Federação Mundial da Juventude. Lá, num encontro com Luís Carlos Prestes, ficou sabendo que o general Pinochet havia substituído Carlos Pratts no comando do Estado-Maior das Forças Armadas chilenas. Voltou ao Chile acreditando que logo haveria um golpe, mas não conseguiu sair do país com sua família antes que ocorresse. Ficou seis meses na Embaixada da Itália, até obter um salvo-conduto para deixar o país, em maio de 74. Morou nos Estados Unidos até 1977. Nesse momento, a abertura estava em andamento no Brasil e ele voltou para cá. Chegou a ser interrogado algumas vezes, mas não foi realmente perturbado pelo regime militar a partir de então.
Percebo, nas opiniões expressas por José Serra por todo o livro, que as opiniões dele são diferentes das minhas sobre quase todos os assuntos. Ele é um homem de esquerda, que tem uma visão de esquerda sobre qualquer questão política e econômica. Não é marxista e não apoiou o regime da União Soviética, mas sempre defendeu a intervenção do Estado na vida das pessoas. Gostaria que os meus prezados amigos de esquerda, com quem tenho o prazer de debater, lessem este livro e me contassem em que pontos discordam do autor. Não diferencio o que ele diz do que eles dizem.
O que vou dizer agora vai soar desrespeitoso, mas não posso evitar. Considero Serra um homem sério e acho que seus governos no Município e no Estado de São Paulo foram excelentes. Considero-o um grande administrador. Acho que ele conseguiu seu objetivo no exílio, de ser um dos políticos mais preparados de sua geração. Porém, por todo o livro, ele está sempre se encontrando com comunistas, com terroristas, com guerrilheiros. Acho que ele não tentou de fato participar da luta armada. Mas não vejo uma expressão mais clara de arrependimento ou repúdio por esses contatos, por voltar clandestino ao Brasil, pelas atividades de Betinho ou de Brizola. Não consigo deixar de lembrar do personagem de Casseta e Planeta, o Wanderney, que estava sempre em uma sauna gay com o Peludão, mas declarava aos brados: “— Estou aqui, mas eu não sou gay! Eu não sou gay!”
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