Memórias do Subsolo, de Fiódor Dostoiévski, não é uma obra fácil. É curta, pouco mais de cem páginas. Mas é muito densa. Não recomendo ler num ambiente desfavorável à concentração.
O narrador sem nome, o Homem do Subsolo, é um personagem profundamente atormentado. Muda de idéia o tempo todo, corrige o que acabou de dizer, confessa que mentiu. Na primeira parte, falando do seu tempo presente, nos conta que tem quarenta anos, está doente, abandonou um cargo público humilde porque recebeu uma herança modesta e vive isolado da sociedade. Conhecemos sua visão de mundo. É culto, instruído, inteligente. Tem um profundo desprezo pelas pessoas e pela sociedade, mas tem um desprezo maior por si mesmo, pelo fracasso de sua vida. Na segunda parte, narra três histórias que aconteceram com ele catorze anos antes, e que ilustram suas dificuldades em se relacionar com as pessoas.
Temos vontade de voltar a São Petersburgo de 1860 e socar o Homem do Subsolo. Como ele pode ser tão idiota? Como pode dar tanto valor ao que é irrelevante e prejudicar tanto a si mesmo e aos outros?
Porém, não temos como discordar de parte das idéias que ele defende. E defende em seus atos, de maneira especialmente dolorosa para si mesmo, embora possamos perceber que ele sente satisfação em sofrer. O Homem do Subsolo faz talvez a melhor defesa que eu já vi do livre-arbítrio. O ser humano pode saber o que é melhor para si mesmo, mas desejar o que é pior. Como diz Ovídio, nas Metamorfoses, “video meliora proboque deteriora sequor”. “Vejo o que é melhor e o aprovo, mas persigo o que é pior.” E o Homem do Subsolo afirma radicalmente o direito de se perseguir o que é pior. Nestes tempos em que a Alana quer proibir as propagandas de bolacha, os ovos de Páscoa com brindes e o McLanche Feliz, precisamos ler Memórias do Subsolo.
Lembrei-me do personagem F. Alexander, de A Laranja Mecânica, de Anthony Burgess. Ele escreve um livro num estilo extremamente pedante, também chamado A Laranja Mecânica, no qual defende o livre-arbítrio e, em seguida, sua família é atacada violentamente por Alex, que personifica a aplicação de suas idéias. Mas ele está certo e exprime exatamente o pensamento de Anthony Burgess. O Homem do Subsolo faz mais ou menos a mesma coisa com as idéias de Dostoiévski.
Memórias do Subsolo foi escrito em resposta a O Que Fazer?, de Nikolai Tchernichévski, um autor comunista que influenciou Marx. Tolstói e Lênin escreveram obras também intituladas O Que Fazer?, por causa do livro de Tchernichévski. O título é uma citação de Lucas 3:10-14. O fato do título de um livro de Lênin vir do Evangelho é uma demonstração da frase de Shakespeare em O Mercador de Veneza, de que até o Diabo pode citar as Escrituras para seus objetivos.
Só li Memórias do Subsolo uma vez. Preciso ler novamente, para comparar o que o Homem do Subsolo diz na primeira parte com o que sei agora da segunda. Quero procurar também o livro de Tchernichévski. Na verdade, Dostoiévski dá uma grande vontade de sair pesquisando a literatura russa.
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