sábado, 14 de julho de 2012

A Sonata de Vinteuil - I

Estou lendo "Em Busca do Tempo Perdido", de Marcel Proust, pela segunda vez. A primeira foi há dez anos. Aqui vai um trecho do volume 1, "No Caminho de Swann", sobre a primeira vez que Swann ouve a frase da Sonata de Vinteuil.


Depois que o pianista tocou, Swann foi ainda mais amável com ele do que com as outras pessoas que ali se achavam. Eis a razão: no ano anterior, em uma recepção, ele ouvira uma peça musical tocada ao piano e violino. A princípio admirara a qualidade material dos sons secretos tirados pelos instrumentos, aquilo já fora uma grande satisfação; eis senão quando, por baixo da linha menor do violino, tênue, resistente, densa e dominadora, ele vira de súbito elevar-se, num marulho líqüido, a massa da parte do piano, multiforme, indivisa, plana, entrechocada como a malva agitação das vagas que o luar encanta e memoriza em um dado momento, sem poder distinguir com nitidez um contorno, dar nome ao que lhe agradava, subitamente arrebatado, buscara recolher a frase ou a harmonia -- ele mesmo não o sabia -- que passava e que lhe abria a alma mais largamente, como certos aromas de rosas que circulam no ar úmido da noite têm a propriedade dilatar nossas narinas. Talvez porque não conhecia a música, pudera experimentar uma impressão tão confusa, uma dessas impressões que, no entanto, talvez sejam as únicas puramente musicais, não-extensas, inteiramente originais, irredutíveis a todo gênero diverso de impressões. Uma impressão desse tipo, durante um momento, é por assim dizer "sine materia". E claro que as notas que então ouvimos já se inclinam, segundo a altura e a quantidade, a cobrir diante de nossos olhos superfícies de dimensões variadas, a traçar arabescos, sensações de largura, tenuidade, estabilidade e capricho. Mas as notas desaparecem antes que essas sensações estejam bem formadas em nós para não se submergirem diante daquelas que as notas seguintes ou simultâneas já despertam. E essa impressão continuaria a envolver com sua liqüidez e o seu "fundo" os motivos e por instantes emergem, mal discerníveis, para logo mergulhar e desaparecer, conhecidos apenas pelo prazer particular que proporcionam, impossíveis de descrever, de serem lembrados, denominados, inefáveis -- se a memória, como um operário que trabalha para estabelecer fundações duradouras em meio às ondas, fabricando para nós fac-símiles dessas frases fugitivas, não nos permitisse compará-las às que as sucedem e diferenciá-las. Assim, mal havia expirado a sensação deliciosa que Swann sentira, a sua memória lhe fornecera, de imediato, uma transcrição sumária e provisória, mas sobre a qual já lançara ele os olhos enquanto o trecho continuava a ser tocado, se bem que, quando a mesma impressão voltara de súbito, ela já não era inatingível. Ele lhe concebia a extensão, os grupamentos simétricos, a grafia, o valor expressivo; tinha diante de si essa coisa que já não é mais música pura, que faz parte do desenho, da arquitetura, do pensamento, e que permite recordar a música. Desta vez havia distinguido nitidamente um trecho que se elevava por alguns instantes acima das ondas sonoras. Esse trecho lhe propusera logo volúpias especiais, que nunca imaginara antes de ouvi-lo, e percebia que somente ele lhe podia fazer conhecê-las, e sentiu por aquela frase como que um amor desconhecido.

Num ritmo lento, ela o dirigia primeiro para um lado, depois para outro, depois mais adiante, para uma felicidade nobre, precisa e ininteligível. E de repente, no ponto em que ela chegara e de onde ele se preparava para segui-la, depois de uma pausa de um segundo, mudava de direção bruscamente e, com um novo movimento, mais rápido, miúdo, permanente, melancólico e suave, ela o arrastava consigo para perspectivas desconhecidas. Depois, desapareceu. Ele desejou apaixonadamente revê-la uma terceira vez. E ela reapareceu, de fato, mas sem lhe falar mais claramente, causando-lhe mesmo uma volúpia menos profunda. Mas, chegando em casa, teve necessidade dela, era como um homem em cuja vida uma mulher, mal entrevista por um momento, acaba de fazer entrar a imagem de uma beleza nova, que dá à sua sensibilidade um valor maior, sem que ele saiba sequer se poderá rever algum dia aquela que ele já ama e da qual ignora até o nome.

Mesmo esse amor por uma frase musical pareceu, por um instante, trazer a Swann a possibilidade de uma espécie de renovação. Decorrera tanto tempo que havia desistido de aplicar sua vida a um objetivo ideal e limitava-a a perseguir satisfações do dia-a-dia, que julgava, sem nunca o afirmar formalmente, que aquilo não se modificaria até sua morte; ainda mais, já não sentindo idéias elevadas no espírito, deixara de crer na realidade delas, sem todavia não poder negá-las de todo. Assim, adquirira o hábito de se refugiar em pensamentos desimportantes que lhe permitissem deixar de lado o fundo das coisas. Assim como não cuidava de indagar de si mesmo se não seria melhor freqüentar a sociedade, mas, em compensação, sabia com certeza que se aceitasse um convite devia comparecer e que, se não fizesse visitas, deveria deixar um cartão, assim também, na conversação, esforçava-se para nunca exprimir sinceramente uma opinião íntima sobre as coisas, e sim de fornecer detalhes materiais que de certa forma valessem por si mesmos, evitando que os avaliasse em toda a medida. Era extremamente preciso quanto a uma receita culinária, quanto à data de nascimento ou morte de um pintor, quanto à nomenclatura de suas obras. Às vezes, apesar de tudo, permitia-se emitir uma opinião sobre uma obra, sobre uma forma de compreender a vida, mas então dava a suas palavras tom irônico, como se não aceitasse inteiramente o que dizia. Ora, como certos valetudinários a quem, de súbito, uma região aonde chegam, um regime diverso, às vezes uma evolução orgânica, espontânea e misteriosa,parecem trazer uma regressão do mal de que sofrem, e começam a admitir a possibilidade inesperada de principiar, ainda que tarde, uma vida completamente diferente, Swann encontrava em si, na lembrança da frase que ouvira, em certas sonatas que mandava tocar ver se a descobria, a presença de uma dessas realidades invisíveis em que deixara de acreditar e às quais, como se a música tivesse tido, sobre a secura moral de que ele sofria, uma espécie de influência eletiva, sentia de novo o desejo e quase a força de consagrar a vida. Porém, não tendo conseguido saber quem era o compositor da melodia que ouvira, não pudera procurá-la e a acabara esquecendo. Encontrara naquela semana algumas pessoas que, como ele, se achavam nessa recepção e as interrogara; mas vários tinham chegado após a música, e outros saíram antes; no entanto, alguns lá estavam durante a execução da peça, mas tinham ido conversar em outro salão, e outros, que ficaram para ouvir, só tinham escutado as primeiras notas. Quanto aos donos da casa, sabiam que se tratava de uma obra nova que os artistas contratados tinham pedido para tocar; tendo estes partido para uma turnê, Swann não pôde saber mais nada. Contava com muitos amigos músicos mas, embora recordasse o prazer especial e intraduzível que lhe dera a frase, vendo diante dos olhos as formas que ela desenhava, era todavia incapaz de cantá-la para eles. Depois, deixou de pensar naquilo.

Ora, somente alguns minutos depois que o jovem pianista começara a tocar na casa da Sra. Verdurin, eis que de repente, depois de uma nota alta longamente sustentada durante dois compassos, Swann viu se aproximar, escapando-se debaixo dessa sonoridade prolongada e tensa, como uma cortina sonora para ocultar o mistério de sua incubação, reconhecendo, secreta, sussurrante e fragmentária, a frase aérea e perfumada que amava. E ela era tão particular, tinha um charme tão individual e que nenhuma outra poderia substituir, que aquilo foi para Swann como se houvesse encontrado num salão amigo, uma pessoa que admirara na rua e desesperava de encontrar de novo. Por fim, a frase se afastou, indicadora, cuidadosa, por entre as ramificações de seu perfume, deixando no rosto de Swann o reflexo de seu sorriso. Mas, agora, ele podia perguntar o nome de sua desconhecida (disseram-lhe que se tratava do andante da "Sonata para piano e violino", de Vinteuil), tinha-a segura, podia tê-la consigo o quanto quisesse e tentar apreender a sua linguagem e o seu segredo.

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