Neste trecho de "Em Busca do Tempo Perdido", de Marcel Proust, já no segundo volume, "À Sombra das Moças em Flor", o protagonista ouve o trecho da Sonata de Vinteuil pela primeira vez, tocado por Odette.
Mas em geral, na maioria das vezes, não ficávamos em casa e íamos passear. Às vezes, antes de ir se vestir, a Sra. Swann sentava-se ao piano. Suas belas mãos, saindo das mangas róseas ou brancas, muitas vezes de cores bastante vivas, do seu chambre de crepe da China, alongavam as falanges sobre o piano com a mesma melancolia que estava em seus olhos, mas não no coração. Foi num desses dias que lhe ocorreu tocar para mim o trecho da Sonata de Vinteuil onde se acha a pequena frase que Swann amara tanto. Mas, as mais das vezes não se entendia nada, pois é uma música meio complicada para quem a ouve pela primeira vez. Entretanto, quando mais tarde me foi tocada duas ou três vezes esta sonata, achei que a conhecia perfeitamente. Assim, não é errado dizer "ouvir pela primeira vez". Se a gente, de fato, como julga, não entendeu nada na primeira audição, a segunda e a terceira seriam outras tantas primeiras e não haveria razão para que se compreenda algo a mais na décima. Provavelmente, o que falta na primeira vez não é a compreensão, e sim a memória. Pois a nossa, relativamente à complexidade das impressões com que se defronta enquanto ouvimos, é ínfima, tão breve quanto a memória de um homem que, ao dormir, pensa mil coisas que logo esquece, ou de um homem meio reduzido à infância, que não se recorda no minuto seguinte daquilo que acabamos de lhe dizer. A memória não é capaz de nos fornecer imediatamente a lembrança dessas impressões múltiplas. Mas esta lembrança se forma pouco a pouco na memória e, no tocante às obras que ouvimos duas ou três vezes, estamos como o colegial que releu diversas vezes antes de dormir um ponto que achava não saber e o recita de cor na manhã seguinte. Apenas, eu ainda não ouvira aquela sonata até esse dia, e onde Swann e sua mulher viam uma frase distinta, esta se achava tão longe de minha percepção nítida quanto um nome que a gente procura recordar e em cujo lugar só se encontra o vazio absoluto, vazio do qual, uma hora mais tarde, sem que se pense nelas, brotam por si mesmas, de um só golpe, as sílabas antes solicitadas em vão. E não apenas a gente não retém de imediato as obras verdadeiramente raras, porém até no íntimo de cada uma delas -- isto me aconteceu no caso da Sonata de Vinteuil -- são as partes menos preciosas que percebemos em primeiro lugar. De modo que eu não me enganava apenas ao pensar que a obra não me reservava mais nada (o que fez com que eu ficasse muito tempo sem procurar ouvi-la) tão logo a Sra. Swann executou a frase mais famosa (eu era tão estúpido a esse respeito como aqueles que já não esperam ter surpresas diante da igreja de São Marcos, em Veneza, porque a fotografia lhes fez saber a forma de seus domos). Muito mais, porém; mesmo quando ouvi a sonata do princípio ao fim, ela me permaneceu quase totalmente invisível, como um monumento do qual a bruma ou a distância não deixam perceber senão partes diminutas. Daí a melancolia que se liga ao conhecimento de tais obras, como a tudo que se realiza no tempo. Quando o que era o mais oculto na Sonata de Vinteuil se desvelou pra mim, então, arrastado pelo hábito para fora da minha sensibilidade, começava a escapar-me, a fugir-me, o que eu distinguira e preferira da primeira vez. Por só ter podido amar em tempos sucessivos tudo aquilo que a sonata me trazia, nunca a possuí completamente: ela assemelhava-se à vida. Porém, menos enganosas que a vida, estas grandes obras-primas não começam por doar o que possuem de melhor. Na Sonata de Vinteuil, as belezas que se descobrem mais rapidamente são também as que cansam mais cedo e sem dúvida pela mesma razão, ou seja, que elas diferem menos daquilo que já se conhece. Mas, quando estas são afastadas, resta-nos amar a tal frase, cuja ordenação, por demais nova para oferecer ao nosso espírito nada além de confusão, a mantivera indiscernível e conservara intacta; e aí então, ela, diante da qual passávamos todos os dias sem o saber e que se reservara, que pelo poder de sua exclusiva beleza se tornara invisível e permanecera desconhecida, ela nos chega por último. Mas também a deixaremos por último. E iremos amá-la durante muito mais tempo que às outras, pois teremos levado muito mais tempo até a amar. Ademais, esse tempo de que precisa um indivíduo -- como me foi preciso a respeito dessa Sonata -- para penetrar numa obra um pouco profunda, é a súmula e como que o símbolo dos anos, por vezes dos séculos, que se escoam antes que o público possa amar uma obra-prima verdadeiramente nova. Talvez por isso o homem de gênio, para evitar as incompreensões da turba, considere que, visto faltar aos contemporâneos a necessária distância, as obras escritas para a posteridade só deveriam ser lidas por ela, como certas pinturas que avaliamos incorretamente de muito perto. Mas na realidade, toda precaução desprezível para evitar os falsos julgamentos é inútil, eles não podem ser evitados. O que faz com que uma obra de gênio dificilmente seja admirada de imediato é que aquele que a escreveu é extraordinário, poucas pessoas se lhe assemelham. Sua própria obra é que, fecundando os raros espíritos capazes de compreendê-la, os fará crescer e se multiplicar. Foram os próprios quartetos de Beethoven (os de número XII, XIII, XIV e XV) que levaram cinqüenta anos para fazer nascer e crescer o público dos quartetos de Beethoven, realizando assim, como todas as obras-primas, um progresso senão do valor dos artistas, pelo menos na sociedade dos espíritos, hoje largamente composta daquilo que era impensável quando a obra-prima apareceu, ou seja, criaturas capazes de amá-la. O que denominamos posteridade é a posteridade da obra. É necessário que a obra (não levando em conta, para simplificar, os gênios que na mesma época podem, paralelamente, preparar para o futuro um melhor o público do qual os outros gênios se beneficiarão) crie ela mesma a sua posteridade. Se, no entanto, a obra era mantida em segredo, e se fosse apenas conhecida pela posteridade, esta, quanto a tal obra, não seria a posteridade e sim uma assembléia de contemporâneos que simplesmente tivessem vivido cinqüenta anos mais tarde. Assim, é preciso que o artista -- e era o que havia feito Vinteuil --, se deseja que sua obra possa seguir seu caminho, lance-a, onde houver bastante profundidade, em pleno e longínquo futuro. E, no entanto, esse tempo a vir, verdadeira perspectiva das obras-primas, se não levá-lo em conta é o erro dos maus juízes, levá-lo em conta é por vezes o perigoso escrúpulo dos bons. Sem dúvida, é fácil imaginar, numa ilusão análoga à que uniformiza todas as coisas no horizonte, que todas as revoluções havidas até agora na pintura ou na música respeitavam todavia certas regras, e o que está imediatamente diante de nós, impressionismo, procura da dissonância, emprego exclusivo da gama chinesa, cubismo, futurismo, difere de modo ultrajante daquilo que o precedeu. É que aquilo que o precedeu é considerado sem levar em conta que uma longa assimilação o converteu para nós numa matéria variada, sem dúvida, mas afinal de contas homogênea, onde Victor Hugo se avizinha de Molière. Imaginemos apenas os disparates chocantes que nos apresentariam, se não levássemos em conta o tempo vindouro e as mudanças que ele acarreta, determinado horóscopo de nossa própria idade madura feito diante de nós durante a nossa adolescência. Apenas, nenhum horóscopo é verdadeiro e sermos obrigados, no caso de uma obra de arte, a computar em sua beleza o fator tempo mescla ao nosso julgamento algo tão casual e, por isso, tão desprovido de interesse verdadeiro como toda profecia cuja não-realização não implicará de forma alguma a mediocridade de espírito do profeta, pois o que chama à existência as possibilidades, ou dela as exclui, não é forçosamente da competência do gênio; pode-se ter tido gênio e não haver acreditado nas estradas de ferro nem nos aviões, ou, sendo grande psicólogo, na falsidade de uma amante ou de um amigo, cujas traições os mais medíocres conseguiram prever.
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