I
Em 1919, eu era comunista. Meus amigos bolcheviques daqueles dias estão espalhados agora; alguns são burgueses, alguns estão mortos, alguns estão na China e na Rússia, e eu não conheci os últimos líderes americanos da Terceira Internacional, que hoje oficialmente aceitam a democracia. Eles me repudiariam até como uma camarada renegada, pois nunca fui membro do Partido. Mas foi só por acidente que não fui.
Naqueles
dias logo após a Primeira Guerra Mundial, não era prudente defender
mudanças fundamentais na América. A palavra era: “Se você não
gosta deste país, volte para o lugar de onde você veio!”. Tive
amigos, americanos patriotas de famílias americanas tão antigas
quanto a minha, que foram julgados e condenados a vinte anos de
prisão por editarem uma revista simpática à experiência russa.
Navios atracavam com as caldeiras fumegando e a partida autorizada,
prontos para despachar destas terras, sem processo legal ou qualquer
oportunidade de defesa, grupos de supostos radicais capturados por
agentes do Departamento de Justiça. Policiais arrombavam portas
destrancadas, esmagavam mobília inocente e, com surpreendente falta
de discernimento, atacavam de surpresa russos que haviam fugido do
comunismo por não gostar dele.
Em
meio a toda essa histeria e em grande perigo real, Jack Reed
organizava o Partido Comunista da América.
Esqueço-me
do local exato dessa cena histórica, mas eu estava lá. Em algum
lugar nos becos de Nova York, uma escadaria suja subia de uma calçada
imunda. Moleques famintos à porta ofereciam publicações comunistas
para vender. A mulher esquelética de sempre pedia ajuda para a
defesa legal de alguém: – Dez centavos, camarada? Cinco? Qualquer
centavo ajuda.
Subimos
através do aperto preguiçoso das escadas até a sala sombria de
sempre, com cadeiras alugadas, pôsteres levemente tortos nas paredes
manchadas, o cheiro de pobreza e fome, rostos iluminados.
Todas
as reuniões eram iguais naquele inverno. Sua luz parecia vir não da
má vontade das lâmpadas que balançavam no teto, mas dos rostos.
Nossa polícia alardeava que os comunistas eram estrangeiros, e era
verdade que a maioria dos rostos era de estrangeiros, e muitas das
vozes. Mas essas pessoas tinham uma visão que parecia para mim o
sonho americano. Eles tinham seguido essa visão até a América e
continuavam seguindo; um sonho de um novo mundo de liberdade, justiça
e igualdade.
Eles
tinham fugido da opressão na Europa para viver em becos em Nova
York, trabalhar horas intermináveis em subempregos e estudar inglês
exaustivamente à noite. Estavam famintos e exaustos e explorados por
seu próprio povo nesta terra estranha e, por seu sonho de um mundo
melhor (o qual eles não tinham esperança de viver o suficiente para
ver), doavam os tostões que tinham e de que precisavam para comer.
Lembro-me
de que a sala era pequena, com talvez sessenta homens e mulheres
nela. Havia um sentimento quase insuportável de expectativa e um
senso de perigo. A reunião não tinha começado. Alguns homens em
volta de Jack Reed falavam com seriedade e urgência. Ele avistou o
homem que estava comigo e sua tensão se rompeu no sorriso de Jack
Reed, mais alegre que um grito. Ele se desvencilhou dos outros, nos
alcançou em meia dúzia de passos largos e exclamou: – Você está
conosco?
– Está?
– ele repetia com expectativa. Mas a pergunta em si mesma era um
desafio. A empreitada era arriscada. Jack Reed, como todo comunista
sabe, não saiu de seu país depois; ele fugiu. Agentes federais ou
uma batida da polícia poderiam invadir o lugar a qualquer momento.
Sabíamos disso e, porque eu partilhava do sonho comunista, estava
preparada para correr riscos e também para me submeter à rigorosa
disciplina partidária. Mas o homem a meu lado começou uma discussão
vaga sobre táticas; esquivou-se; hesitou; perguntou e objetou;
finalmente, com um sorriso apaziguador, disse duvidar se deveria
correr o risco de se comprometer, sua segurança era valiosa demais
para a Causa. Jack Reed deu meia-volta dizendo: – Ah, vá para o
inferno, seu covarde maldito.
Essa
cena rápida me mostrou minha total falta de importância naquele
momento; eu não representava nenhum grupo, não tinha nenhum peso
naquele complexo de teóricos e líderes. Eu era apenas um indivíduo,
apenas com uma simpatia entusiasmada pelas palavras de Jack Reed, e
atordoada por um maldito resfriado. Voltei para casa. O resfriado se
transformou em gripe. Quase morri, as despesas me atropelaram, tinha
que ganhar meu sustento e, antes que minha saúde se recuperasse,
estava na Europa.
Por
essa margem tão pequena, não fui membro do Partido Comunista. De
toda maneira, era comunista de coração. Muitos consideram o Estado
coletivista uma extensão da democracia, como eu na época
considerava. Segundo essa visão, o quadro é de passos progressivos
para a liberdade. O primeiro passo havia sido a Reforma; conquistou a
liberdade de consciência. O segundo foi a revolução política;
nossa Revolução Americana contra o rei inglês foi parte dele. Esse
segundo passo conquistou graus variados de liberdade política para
todos os povos ocidentais. Os liberais continuavam a aumentar essa
liberdade dando cada vez mais poder político ao Povo. Nos Estados
Unidos, por exemplo, os liberais conseguiram sufrágio universal,
eleição popular de quase todas as autoridades, iniciativa popular,
referendo, recall e primárias.
Mas
agora confrontamos a tirania econômica. Dito da maneira mais
simples, nenhum homem é livre se sua subsistência mesma pode lhe
ser negada, pela vontade de outro homem. O trabalhador é escravo de
seu salário. A revolução final, então, deve capturar o controle
econômico.
Hoje
vejo a falácia dominante neste quadro e ainda vou apontá-la. Mas
vamos deixar passar por enquanto. Há outro quadro. Este:
Uma
vez que o progresso da ciência e das invenções nos permitiu
produzir mais bens do que podemos consumir, não deveria faltar
nenhuma coisa material para ninguém. Mesmo assim, vemos, por um
lado, enorme riqueza nas mãos de uns poucos que, possuindo e
controlando todos os meios de produção, são donos de todos os bens
produzidos; por outro lado, multidões sempre relativamente pobres,
não usufruindo dos bens que poderiam aproveitar.
Quem
possui essa enorme riqueza? O Capitalista. O que cria a riqueza? O
Trabalho. Como o Capitalista a obtém? Ele recolhe um lucro sobre
todos os bens produzidos. O Capitalista produz alguma coisa? Não; o
Trabalho produz tudo. Então, se todos os trabalhadores, organizados
em sindicatos, obrigassem todos os Capitalistas a pagar em salários
o pleno valor do seu trabalho, poderiam comprar todos os bens
produzidos? Não, porque o Capitalista adiciona seu lucro aos bens
antes de vendê-los.
Desse
ponto de vista, é evidente que o Sistema de Lucro causa a injustiça
e a desigualdade que vemos. Devemos eliminar o lucro; ou seja,
devemos eliminar o Capitalista. Vamos tomar seus atuais lucros,
distribuir sua riqueza acumulada e administrar nós mesmos seus
antigos negócios. Os trabalhadores que produzem os bens vão então
usufruir deles, não haverá mais desigualdade econômica e deveremos
ter uma prosperidade geral tal como o mundo nunca conheceu.
Quando
o Capitalista for embora, quem gerenciará a produção? O Estado. E
o que é o Estado? O Estado será a massa de trabalhadores que
labutam.
Foi
nesse ponto que, pela primeira vez, uma dúvida fez um furo em minha
fé comunista.http://www.libertarianismo.org/index.php/biblioteca/234-rose-wilder-lane/1074-quero-liberdade
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