quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Quero Liberdade (cap. I), de Rose Wilder Lane


I


Em 1919, eu era comunista. Meus amigos bolcheviques daqueles dias estão espalhados agora; alguns são burgueses, alguns estão mortos, alguns estão na China e na Rússia, e eu não conheci os últimos líderes americanos da Terceira Internacional, que hoje oficialmente aceitam a democracia. Eles me repudiariam até como uma camarada renegada, pois nunca fui membro do Partido. Mas foi só por acidente que não fui.


Naqueles dias logo após a Primeira Guerra Mundial, não era prudente defender mudanças fundamentais na América. A palavra era: “Se você não gosta deste país, volte para o lugar de onde você veio!”. Tive amigos, americanos patriotas de famílias americanas tão antigas quanto a minha, que foram julgados e condenados a vinte anos de prisão por editarem uma revista simpática à experiência russa. Navios atracavam com as caldeiras fumegando e a partida autorizada, prontos para despachar destas terras, sem processo legal ou qualquer oportunidade de defesa, grupos de supostos radicais capturados por agentes do Departamento de Justiça. Policiais arrombavam portas destrancadas, esmagavam mobília inocente e, com surpreendente falta de discernimento, atacavam de surpresa russos que haviam fugido do comunismo por não gostar dele.

Em meio a toda essa histeria e em grande perigo real, Jack Reed organizava o Partido Comunista da América.

Esqueço-me do local exato dessa cena histórica, mas eu estava lá. Em algum lugar nos becos de Nova York, uma escadaria suja subia de uma calçada imunda. Moleques famintos à porta ofereciam publicações comunistas para vender. A mulher esquelética de sempre pedia ajuda para a defesa legal de alguém: – Dez centavos, camarada? Cinco? Qualquer centavo ajuda.

Subimos através do aperto preguiçoso das escadas até a sala sombria de sempre, com cadeiras alugadas, pôsteres levemente tortos nas paredes manchadas, o cheiro de pobreza e fome, rostos iluminados.

Todas as reuniões eram iguais naquele inverno. Sua luz parecia vir não da má vontade das lâmpadas que balançavam no teto, mas dos rostos. Nossa polícia alardeava que os comunistas eram estrangeiros, e era verdade que a maioria dos rostos era de estrangeiros, e muitas das vozes. Mas essas pessoas tinham uma visão que parecia para mim o sonho americano. Eles tinham seguido essa visão até a América e continuavam seguindo; um sonho de um novo mundo de liberdade, justiça e igualdade.


Eles tinham fugido da opressão na Europa para viver em becos em Nova York, trabalhar horas intermináveis em subempregos e estudar inglês exaustivamente à noite. Estavam famintos e exaustos e explorados por seu próprio povo nesta terra estranha e, por seu sonho de um mundo melhor (o qual eles não tinham esperança de viver o suficiente para ver), doavam os tostões que tinham e de que precisavam para comer.


Lembro-me de que a sala era pequena, com talvez sessenta homens e mulheres nela. Havia um sentimento quase insuportável de expectativa e um senso de perigo. A reunião não tinha começado. Alguns homens em volta de Jack Reed falavam com seriedade e urgência. Ele avistou o homem que estava comigo e sua tensão se rompeu no sorriso de Jack Reed, mais alegre que um grito. Ele se desvencilhou dos outros, nos alcançou em meia dúzia de passos largos e exclamou: – Você está conosco?

Está? – ele repetia com expectativa. Mas a pergunta em si mesma era um desafio. A empreitada era arriscada. Jack Reed, como todo comunista sabe, não saiu de seu país depois; ele fugiu. Agentes federais ou uma batida da polícia poderiam invadir o lugar a qualquer momento. Sabíamos disso e, porque eu partilhava do sonho comunista, estava preparada para correr riscos e também para me submeter à rigorosa disciplina partidária. Mas o homem a meu lado começou uma discussão vaga sobre táticas; esquivou-se; hesitou; perguntou e objetou; finalmente, com um sorriso apaziguador, disse duvidar se deveria correr o risco de se comprometer, sua segurança era valiosa demais para a Causa. Jack Reed deu meia-volta dizendo: – Ah, vá para o inferno, seu covarde maldito.

Essa cena rápida me mostrou minha total falta de importância naquele momento; eu não representava nenhum grupo, não tinha nenhum peso naquele complexo de teóricos e líderes. Eu era apenas um indivíduo, apenas com uma simpatia entusiasmada pelas palavras de Jack Reed, e atordoada por um maldito resfriado. Voltei para casa. O resfriado se transformou em gripe. Quase morri, as despesas me atropelaram, tinha que ganhar meu sustento e, antes que minha saúde se recuperasse, estava na Europa.

Por essa margem tão pequena, não fui membro do Partido Comunista. De toda maneira, era comunista de coração. Muitos consideram o Estado coletivista uma extensão da democracia, como eu na época considerava. Segundo essa visão, o quadro é de passos progressivos para a liberdade. O primeiro passo havia sido a Reforma; conquistou a liberdade de consciência. O segundo foi a revolução política; nossa Revolução Americana contra o rei inglês foi parte dele. Esse segundo passo conquistou graus variados de liberdade política para todos os povos ocidentais. Os liberais continuavam a aumentar essa liberdade dando cada vez mais poder político ao Povo. Nos Estados Unidos, por exemplo, os liberais conseguiram sufrágio universal, eleição popular de quase todas as autoridades, iniciativa popular, referendo, recall e primárias.

Mas agora confrontamos a tirania econômica. Dito da maneira mais simples, nenhum homem é livre se sua subsistência mesma pode lhe ser negada, pela vontade de outro homem. O trabalhador é escravo de seu salário. A revolução final, então, deve capturar o controle econômico.

Hoje vejo a falácia dominante neste quadro e ainda vou apontá-la. Mas vamos deixar passar por enquanto. Há outro quadro. Este:

Uma vez que o progresso da ciência e das invenções nos permitiu produzir mais bens do que podemos consumir, não deveria faltar nenhuma coisa material para ninguém. Mesmo assim, vemos, por um lado, enorme riqueza nas mãos de uns poucos que, possuindo e controlando todos os meios de produção, são donos de todos os bens produzidos; por outro lado, multidões sempre relativamente pobres, não usufruindo dos bens que poderiam aproveitar.

Quem possui essa enorme riqueza? O Capitalista. O que cria a riqueza? O Trabalho. Como o Capitalista a obtém? Ele recolhe um lucro sobre todos os bens produzidos. O Capitalista produz alguma coisa? Não; o Trabalho produz tudo. Então, se todos os trabalhadores, organizados em sindicatos, obrigassem todos os Capitalistas a pagar em salários o pleno valor do seu trabalho, poderiam comprar todos os bens produzidos? Não, porque o Capitalista adiciona seu lucro aos bens antes de vendê-los.

Desse ponto de vista, é evidente que o Sistema de Lucro causa a injustiça e a desigualdade que vemos. Devemos eliminar o lucro; ou seja, devemos eliminar o Capitalista. Vamos tomar seus atuais lucros, distribuir sua riqueza acumulada e administrar nós mesmos seus antigos negócios. Os trabalhadores que produzem os bens vão então usufruir deles, não haverá mais desigualdade econômica e deveremos ter uma prosperidade geral tal como o mundo nunca conheceu.

Quando o Capitalista for embora, quem gerenciará a produção? O Estado. E o que é o Estado? O Estado será a massa de trabalhadores que labutam.

Foi nesse ponto que, pela primeira vez, uma dúvida fez um furo em minha fé comunista.http://www.libertarianismo.org/index.php/biblioteca/234-rose-wilder-lane/1074-quero-liberdade

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