sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Quero Liberdade (cap. II), de Rose Wilder Lane

II

Eu estava na Rússia transcaucasiana na ocasião, bebendo chá com cerejas em conserva e tentando segurar ao mesmo tempo uma pelota de açúcar entre os dentes. É difícil. Minha roliça anfitriã russa e seu marido tranquilo, de barba dourada, sorriam para mim e algumas crianças de bochechas redondas fitavam maravilhadas a americana. A casa deles tinha um século de idade e era charmosa. Havia imagens penduradas nas paredes grossas, mais brancas que a neve. Colchões de penas circundavam o nicho de camas do grande fogão de tijolos, que também era caiado. Todos os tecidos eram bordados. O colarinho do meu anfitrião e o vestido de sua mulher eram obras de arte. Havia uma máquina de costura americana e um orgulhoso samovar.

A aldeia era comunista, é claro. Sempre tinha sido comunista. A única fonte de riqueza era a terra e nunca tinha ocorrido a esses camponeses que a terra podia ser propriedade de alguém.

Essas planícies da Geórgia russa são muito parecidas com as de Illinois. Os russos chegaram lá como pioneiros, por volta da mesma época em que os americanos estavam entrando em Illinois. Vieram do mesmo jeito, a pé, chuchando os bois que puxavam as lentas carroças pelas pradarias sem estradas. Diligentes, frugais, afáveis e eminentemente sensatos, os russos avançaram em grupos, se estabeleceram em aldeias, cultivaram a boa terra em comum e prosperaram.

Em Illinois, todo colono pagou pela sua terra. Não havia terra de graça para os americanos até 1862. Na Rússia, a terra era de graça. Cada aldeia cultivava tanto quanto precisasse. Dentro da aldeia, cada família cultivava uma área pré-determinada. Quando, no curso dos eventos naturais, o tamanho das famílias se alterava de maneira que a divisão de terras não mais fosse satisfatória, todos os camponeses se reuniam e discutiam uma nova divisão. Isso acontecia a cada mais ou menos dez anos, dependendo dos nascimentos, casamentos e mortes.

Essas pessoas nunca foram oprimidas por donos de terras; a maioria deles não tinha conhecido donos de terras e nenhum tinha tido qualquer contato real com o governo do czar. Estavam acostumados a pagar a um coletor de impostos, uma vez por ano, no outono, um décimo da produção anual dos campos de grãos. O coletor vinha a cavalo pela planície, recolhia os impostos em carros de boi e ia embora. Os rapazes ocasionalmente iam para a guerra, normalmente alguma pequena guerra particular contra uma aldeia tártara. A maioria desses russos era de cristãos primitivos, contrários à guerra; eles haviam vindo ou sido obrigados a sair da antiga Rússia por que não mandariam seus filhos para os exércitos do czar. Mas depois de um século, sua oposição havia se enfraquecido; os jovens às vezes tinham disposição suficiente para se alistar para a guerra. Assim, ocasionalmente, um militar cavalgava até a aldeia, alguns jovens iam embora com ele e, quando alguns retornavam meses ou anos depois, traziam notícias de onde haviam estado e o que haviam feito e visto.

Tinha diante de mim o espetáculo de um país virgem, terra de graça, solo rico, para onde os pioneiros tinham levado o comunismo. Eles viviam lá havia cem anos, sem serem perturbados. Encontrei entre esses camponeses muitos velhos que me perguntavam o que tinha acontecido em meu país quando morreu o czar do mundo. Encontrei jovens que tinham estado em campos alemães de prisioneiros, e que explicavam aos vizinhos de olhos arregalados que eu vinha da América, uma terra fabulosa onde você podia escrever uma carta e pedir qualquer coisa – comida, cigarros, meias, fósforos, açúcar, até um casaco – e chegaria.

E eles não eram estúpidos, de maneira nenhuma. Eram os melhores fazendeiros e criadores de gado, eram bons mecânicos; as mulheres eram ótimas donas de casa e cozinheiras. Tinham mente aberta e gostavam de fazer experiências. Uma aldeia tinha contratado um suíço, por um bom salário, e construído um chalé suíço para ele e sua família; sua tarefa era melhorar a raça de vacas leiteiras e produzir queijo na fábrica da aldeia. Havia uma aldeia de duas milhas de comprimento e uma rua de largura, iluminada por eletricidade da usina elétrica da aldeia; as mulheres de lá não lavavam a roupa no rio, mas numa lavanderia comunitária.

A colheita tinha sido boa naquele ano; o gado estava gordo, os celeiros transbordavam, e em todos os sótãos havia pilhas de abóboras vermelho-douradas. É claro que não havia mendigos no vilarejo. Todos trabalhavam e – se o clima permitisse – qualquer um que trabalhasse era alimentado com abundância. Nenhum comunista poderia ter desejado uma prova melhor do valor prático do comunismo que o próspero bem-estar daqueles aldeões.

Os bolcheviques estavam no poder havia cerca de quatro anos e os impostos na aldeia não haviam subido, nem os jovens haviam sido convocados ao exército em maior quantidade que durante o regime do czar. Essas aldeias dependiam muito pouco de Tiflis, a cidade mais próxima, mas até Tiflis estava então revivendo por causa da NEP, a Nova Política Econômica de Lênin, uma pausa temporária para o capitalismo respirar.

Meu anfitrião me deixou perplexa com a força com que disse que não gostava do novo governo. Eu mal podia acreditar que alguém que foi comunista a vida toda, com abundantes provas do sucesso do comunismo em volta de nós, se opunha a um governo comunista. Ele repetia que não gostava dele: – Não! Não!

Sua queixa era a interferência governamental nos assuntos da aldeia. Ele protestava contra a burocracia crescente que estava tirando mais e mais homens do trabalho produtivo. Ele previa caos e sofrimento resultantes da centralização do poder econômico em Moscou. Não eram suas palavras, mas era o que ele queria dizer.

Isto, eu disse a mim mesma, é a oposição de uma mente camponesa a novas ideias, grandes demais para o seu entendimento. É minha pequena oportunidade de espalhar um pouco de luz. Eu compreendia um pouco de russo, mas não podia falar bem e, com a ajuda do meu intérprete, expliquei em palavras simples o paralelo entre as terras da aldeia, como fontes de riqueza, e todas as fontes de riqueza. Desenhei para ele uma figura da Grande Rússia, até seus cantos mais remotos, desfrutando a igualdade, a paz e a prosperidade dividida com justiça que existiam na sua aldeia. Ele balançou a cabeça com tristeza.

– É grande demais – ele disse. – Grande demais. E o topo é pequeno demais. Não vai funcionar. Em Moscou há apenas homens e o homem não é Deus. Um homem só tem uma cabeça de homem e cem cabeças juntas não fazem uma grande cabeça. Não. Só Deus pode ter a Rússia inteira em sua mente.

Um ocidental entre russos frequentemente acha que eles são todos meio loucos. Em outros momentos, seu misticismo se parece com puro bom senso. É bem verdade que muitas cabeças não fazem uma grande cabeça; na verdade, fazem uma sessão do Congresso. O que então, perguntei atordoada a mim mesma, é o Estado? O Estado Comunista – ele existe? Ele pode existir?

Hoje, gostaria de saber se aquela casa ancestral e aquela aldeia já foram varridas do solo da Rússia para dar lugar à fazenda comunal, cultivada em três turnos diários de oito horas, arada por tratores e com a colheita feita por colheitadeiras, iluminada à noite por enormes refletores. Será que meu anfitrião e sua esposa comem num salão de jantar comunal e dormem em barracas comunais agora?

Certamente, o padrão de vida deles era primitivo. Em cem anos, não havia mudado. Eles não tinham luz elétrica nem encanamento. Tomavam banho, suponho, uma vez por semana na casa de banho da aldeia e talvez isso não fosse higiênico. Quantos germes havia na água que eles bebiam ninguém sabia. Não havia tela em suas janelas. Suas estradas poeirentas viravam sem dúvida um lamaçal sem fundo no tempo chuvoso. Não tinham automóveis nem cavalos; apenas carros de boi. Seu padrão de vida, numa palavra, era o mesmo daqueles pioneiros de Illinois de cem anos atrás. Possivelmente, seu padrão de vida já subiu. Deve vir um tempo em que todo dente na Rússia seja escovado três vezes ao dia e toda criança alimentada com espinafre.

Mas, se isso for feito com o povo da antiga Rússia, não será feito por eles, mas para eles. E quem o fará? O Estado?

http://www.libertarianismo.org/index.php/biblioteca/234-rose-wilder-lane/1074-quero-liberdade

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