IX
Tenho olhado para a América há anos. Passei mais de trinta anos em meu país antes; viajei por ele e morei em muitos de seus estados, mas não o havia visto. Os americanos deveriam olhar para a América. Olhem para esta terra vasta, infinitamente variada, completamente não padronizada, complexa, sutil, apaixonada, forte, fraca, bonita, inorgânica e intensamente vital.
Como
pudemos nos confundir tanto pelos livros e pelo desejo de nossa mente
de criar um padrão, de modo que aplicamos a estes Estados Unidos a
ideologia da Europa?
Com
alguma aproximação grosseira aos fatos, os europeus conseguem
pensar em termos de Trabalho, Capital, Sistema e Estado. Pode-se
falar em Trabalho em Paris, onde a classe trabalhadora é rigidamente
separada das outras classes; na Inglaterra, onde seu próprio modo de
falar, suas roupas e sua escolarização os separam; em Roma, onde os
operários tem orgulho de saber que até a vida ordeira de um
operário serve à Itália; e em Veneza, onde apenas o filho de um
gondoleiro pode ter permissão para se tornar gondoleiro.
Capitalista
é uma palavra que tem algum sentido nesses países onde, dentro de
uma estrutura social apenas levemente balançada, homens com dinheiro
ascenderam aos níveis mais altos antes ocupados apenas pela
aristocracia. Há um sistema de lucros em que os negócios se
infiltraram e substituíram o sistema feudal. O Estado é uma
abreviatura para muitos fatos onde as burocracias controlam uma ordem
socioeconômica regulada.
Na
América, um homem trabalha, mas não é “O Trabalho”. Cem
milhões de homens trabalhando não são “O Trabalho”. São cem
milhões de indivíduos com cem milhões de experiências de vida,
caracteres, gostos, ambições e graus de habilidade. Cada um deles,
em meio às incertezas, perigos, riscos, oportunidades e catástrofes
de uma sociedade livre, criou sua própria vida e seu próprio status
da melhor maneira que pôde.
Um
americano planta trigo, mas não é “O Plantador de Trigo”. Em
cada estado desta União, homens de todas as raças e circunstâncias
e mentes, por toda a variedade possível de métodos e com as mais
variadas necessidades e com diversas finalidades em vista, plantam
trigo. Todos eles juntos não são “O Plantador de Trigo”. Homens
plantam algodão, homens plantam laranjas, homens plantam soja; eles
não são “A Agricultura”.
“A
Agricultura”, como palavra aplicada a seres humanos, significa uma
classe de homens atrelada ao solo. Não existe essa classe na
América. Excetuando-se apenas a velha aristocracia fundiária do
sul, que já havia desaparecido quando Lincoln nasceu, nunca houve
uma classe assim neste país. Em primeiro lugar, os americanos eram
jogadores, especuladores. Especulavam com terras enquanto o jogo era
bom com terras. Nunca se prenderam genuinamente ao solo, a um pedaço
de terra, a estes campos, a esta floresta, a este rio, a este céu, a
estas estações cambiantes que se tornaram deles porque eles os
amavam e sua vida estava neles. Existe “O Camponês” europeu;
nunca existiu “O Camponês” americano.
Um
americano era fazendeiro se esperava ganhar dinheiro sendo
fazendeiro. Vendia a terra quando achava que podia ter lucro
vendendo-a. Hipotecava-a, se achasse que podia comprar mais terras
numa alta do mercado, ou entrar numa boa especulação com trigo,
petróleo, minas, gado ou Wall Street. Num mercado em baixa, ele saía
como podia e tocava um posto de gasolina, vendia carros, montava uma
doceria ou um restaurante. Seu filho podia se tornar qualquer coisa,
de um Dillinger1
a um Henry Ford.
Não
podemos encontrar “O Capitalista”; ele não existe. Homens com as
mais diversas mentes e por propósitos variados, ou por acidente ou
sorte ou a habilidade de um pirata, criaram imensos negócios e
organizações financeiras e lutaram para fazê-las crescer e obter
delas lucros maiores. Mas tudo aqui era fluido, cambiante e incerto;
nada era estático e seguro. Aqui, não havia uma classe estabelecida
solidamente, disposta numa ordem social e controlando as classes mais
baixas como vacas a serem ordenhadas. Não era possível capturar o
controle sobre as multidões americanas porque esse controle não
existia para ser capturado.
Enquanto
durar nossa forma de governo, esse controle não pode existir. Cada
negócio e empreendimento financeiro devem servir à multidão
imprevisível de homens comuns e adaptar-se rapidamente para servir
às suas demandas e desejos variáveis, amanhã e amanhã e amanhã,
ou seus rivais vão se levantar do meio dessa multidão e
destruí-los.
Deve-se
lutar constantemente pela propriedade e defendê-la e, exatamente
nessa luta, a propriedade de grandes corporações se desmanchou;
tornou-se tão espalhada e difusa entre a multidão, que ninguém
pode dizer onde começa ou termina, e o destino final dos lucros da
indústria, se existir, não pode ser descoberto.
Os
interesses econômicos se entrelaçam, o devedor também é o credor,
o produtor é o consumidor, a companhia de seguros planta trigo, o
fazendeiro vende a descoberto na Câmara de Comércio. Tudo se
encontra indo e voltando; ninguém entende nada e qualquer descrição
clara e ordeira desse caos é falsa.
Alguns
milhares de homens nessa luta e confusão aparentemente possuem
enormes somas de dinheiro. Mas procure o dinheiro e ele não está
lá; não é uma realidade sólida; não é a propriedade tangível,
não hipotecada e segura de uma classe rentista, nem a possessão de
um Junker2
de vastas extensões de terras e tantas aldeias. É o poder dinâmico
fluindo através de negócios e indústrias e – assim como a
potência que move uma máquina – se parar, desaparece.
As
vastas fortunas existem apenas como poder dinâmico e também esse
poder precisa servir às multidões. A riqueza americana é composta
de inúmeras correntes de poder, alimentadas por fontes pequenas e
grandes, fluindo através de mecanismos que produzem grandes
quantidades de bens consumidos pelas multidões. E não se pode dizer
que os homens que são considerados seus donos controlem nem mesmo a
riqueza que é registrada como deles, pois sua simples existência
depende de satisfazer desejos caóticos e agradar gostos
imprevisíveis. Fortunas criadas fabricando-se grampos de cabelo
desapareceram quando as americanas cortaram o cabelo.
Alguns
milhares de homens na América direcionaram fragmentos do poder
econômico da melhor maneira que puderam e extraíram das correntes
desse poder dinâmico tanta riqueza tangível quanto eles e suas
famílias podiam consumir. Alguns extraíram enormes quantias, além
da capacidade de consumo de qualquer homem, e usaram essas quantias
para construir bibliotecas, hospitais, museus ou para um serviço
ímpar e inestimável à música, à ciência, à saúde pública.
Muitos
deles gastaram de maneira estúpida e perdulária tanto quanto
puderam gastar, nos modos de vida mais luxuosos e decadentes
possíveis, e esse espetáculo é revoltante. Muitas vezes, quando
minhas contas e minhas dívidas se acumulavam e meus mais frenéticos
esforços não eram suficientes para tirar um dólar ou alguma
esperança daquele caos, de modo que era mais difícil enfrentar as
noites que os dias desesperados, eu pensava naquelas mulheres
cobertas de joias despreocupadamente despejando punhados de ouro nas
mesas de Monte Carlo ou naqueles colares tão charmosos que valiam
cem mil dólares e os casacos de pele de apenas US$ 25.000,00. Eu
disse revoltante? A palavra é amena.
Já
fui revolucionária de coração e não há nada que alguém me possa
dizer sobre pobreza, sofrimento, injustiças, fome e as crueldades
aparentemente desnecessárias que existem de costa a costa neste
país. Mas ninguém mais pode me dizer que essas coisas são
resultantes de um sistema capitalista, porque não existe sistema
aqui.
Todos
esses homens que, de diversas maneiras, com diversos objetivos e com
os mais variados resultados para o bem-estar e a felicidade dos
outros, lutam para direcionar os esforços dos americanos, custam
caro. Custam caro porque tiram grandes somas de dinheiro de verdade
das correntes do poder produtivo e despejam parte dessas somas de
volta nessas correntes, quando gastam dinheiro para seus próprios
objetivos individuais.
Mas
se esse caos fosse substituído por um sistema, por uma ordem social
tão perfeita que não existisse nenhum traço de egoísmo nela, uma
ordem que funcionasse perfeitamente apenas pelo objetivo de servir ao
bem comum, esses homens seriam substituídos por uma burocracia. E
uma burocracia também custa caro.
A
burocracia que é necessária para controlar, em detalhe e de acordo
com um planejamento criado por homens que possuem o poder econômico
centralizado, todos os processos de negócios, indústrias, finanças
e agricultura num estado moderno é estupendamente cara.
Tal
burocracia é custosa não apenas pelas folhas de pagamento sempre
crescentes, mas em energia humana. Porque ela tiraria uma quantidade
grande e sempre crescente de homens da atividade produtiva e os
colocaria para trabalhar arduamente entre rolos de fita vermelha e
massas de papel, registrando o que os outros homens fizeram ou foram
talvez autorizados a fazer, ou mandados fazer.
Além
disso, as burocracias são obstáculos estúpidos e morosos a toda a
gama de atividades humanas, como sabe qualquer um que tenha lutado
para se mover sob o peso de suas engrenagens na Europa. As
burocracias freiam, impedem e adiam a realização dos desejos da
multidão, porque não são obrigadas, como neste caos americano os
negócios e a indústria são obrigados, a servir a esses desejos ou
perecer.
http://www.libertarianismo.org/index.php/biblioteca/234-rose-wilder-lane/1074-quero-liberdade
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