VIII
Olhe
este fenômeno: os Estados Unidos da América.
Por
duzentos e cinquenta anos, a Europa coloniza este continente. Como
resultado, a Espanha ocupa o Golfo e as Flóridas, o México, o
Texas, o Novo México, o Arizona e a Califórnia. A Rússia está no
norte. A França controla os Grandes Lagos e os rios navegáveis do
vale do Mississipi, o comércio de peles e as minas do Missouri. Ao
longo da costa atlântica, entre a região selvagem e o mar, estão
espalhadas pequenas colônias inglesas.
Nem
todas as colônias se rebelam contra a Inglaterra. O Canadá
permanece fiel ao Rei e, entre as outras, apenas a Virgínia e
Massachusetts têm real disposição de lutar. A guerra se arrasta –
uma pequena guerra de fronteira que poucos rebeldes lutam com coragem
e que a Inglaterra despreza, já que seus interesses vitais estão em
outro lugar. Uma expedição de canhoneiros franceses ajuda a decidir
a questão. A paz é assinada, e as treze colônias sem interesse
comum não sabem se devem se unir ou se tornar nações separadas.
Nesse
ponto, qual pareceria ser o futuro desse continente? Parece provável
que essas colônias – divididas pela religião, estrutura social e
interesses econômicos, brigando entre si por questões territoriais
que ameaçavam irromper em guerras – parece provável que elas
prevaleceriam contra as Grandes Potências já instaladas no solo da
América? Não parece que, se elas pretendem simplesmente sobreviver,
tem de se unir sob um governo extremamente poderoso?
Aconteceu
justamente o contrário. Os homens que se reuniram na Filadélfia
para formar um governo acreditavam que todos os homens nascem livres.
Fundaram este governo sobre o princípio: Todo poder ao indivíduo.
Como
pode tal princípio ser encarnado num governo? Não há como fugir do
fato de que qualquer governo precisa ser um homem, ou poucos, com
poder sobre uma multidão de homens. Como é possível transferir o
poder do governante a cada homem nessa multidão? Não é possível.
Não
era apenas o problema de permitir que o homem comum tivesse alguma
voz nas assembleias de seus governantes, alguma força para impedir
que os governantes usassem seu poder para prejudicar ou roubar o
homem comum. A intenção era realmente dar o poder de governar a
cada homem comum igualmente. De maneira que, na prática, o resultado
político seria o mesmo da aldeia comunista, onde cada homem tem
igual poder e luta por seu interesse até que um equilíbrio
satisfatório seja alcançado. O poder de governo desta nova
república estaria realmente nas multidões. O homem comum governaria
a si mesmo.
Mas
como é possível encarnar essa intenção nos mecanismos
governamentais, uma vez que qualquer governo de multidões de homens
precisa ser um homem, ou poucos, com poder sobre muitos? Não é
possível.
O
problema foi resolvido destruindo-se o próprio poder, até o ponto
em que isso foi possível. O poder foi diminuído até o mínimo
irredutível.
O
poder de governar foi quebrado em três fragmentos, de maneira que
jamais um homem pudesse possuir todo o poder. A função de governo
foi cortada em três partes, cada uma delas verificada continuamente
pelas outras duas. Qualquer governante é um ser humano e, num ser
humano, pensar, decidir, agir e julgar são inseparáveis. Neste
governo, nenhum homem teria permissão de funcionar como um ser
humano completo. Os congressistas pensariam e decidiriam; o executivo
agiria; os tribunais julgariam.
E
foi colocada sobre esses três poderes uma declaração escrita de
princípios políticos, que seria a mais forte verificação sobre
todos eles, uma limitação impessoal sobre os seres humanos falíveis
que teriam permissão de usar esses fragmentos de autoridade sobre
multidões de indivíduos.
Não
sem motivo, os europeus clamavam que esse governo era a anarquia
solta no mundo. Não sem motivo, os governos mais antigos se
recusaram a reconhecê-lo. Nenhum governo pode chegar mais perto da
anarquia que isso e se tornar um governo. Nunca antes multidões de
homens haviam sido libertadas para agir como quisessem.
Nessa
ocasião, um Congresso Continental subornado havia vendido milhões
de acres de terras públicas a especuladores, reivindicadas tanto por
Connecticut quanto pela Virgínia. E o primeiro Congresso dos Estados
Unidos, numa chicana inescrupulosa, roubou os soldados
revolucionários comuns de seu magro pagamento e colocou o dinheiro
no bolso dos congressistas e dos banqueiros nova-iorquinos.
Que
futuro se poderia prever para tal falta de governo, em tal situação?
Em
setenta anos, no tempo de uma vida, a França e a Rússia tinham
desaparecido deste continente. A Espanha tinha cedido as Flóridas, o
Texas, o Novo México, o Arizona e a Califórnia. A Inglaterra foi
repelida no norte. Toda a vasta extensão deste país foi coberta por
uma nação, uma tumultuosa multidão de homens sob o governo mais
fraco do mundo. Como isso aconteceu?
A
característica da história americana é que aparentemente tudo
acontece por acidente. Nada parece planejado ou pretendido. Outras
nações adotam políticas e as perseguem; sua história se forma
pelo choque entre essas políticas e outras políticas planejadas em
outro lugar. Mas a América se move como que sem direção. Sempre,
nestes Estados Unidos, o não pretendido e o não planejado acabam
sendo feitos.
Pense
na conquista do vasto território entre o Rio Ohio e os Grandes
Lagos, entre o Mississipi e as colônias litorâneas. Um homem fez
isso: George Rogers Clark. Ele emprestou dinheiro e conseguiu a
maioria dos seus homens com o governador espanhol e o povo francês
do Missouri e Illinois; realizou uma das mais terríveis marchas de
inverno da história e capturou em Vincennes o comandante das forças
britânicas no oeste. Ninguém planejou isso; ninguém exceto George
Rogers Clark e seu pequeno bando sabiam que isso estava sendo feito.
Nesse
único golpe independente, um americano livre e empreendedor destruiu
um plano que havia sido cuidadosamente amadurecido por dois anos em
Londres e no Canadá. Levou os Estados Unidos até o Mississipi. E
nem a Assembleia da Virgínia nem o Congresso dos Estados Unidos
jamais pagaram os títulos que ele emitiu em St. Louis para os
suprimentos militares que usou. Esses títulos não foram pagos;
George Rogers Clark estava arruinado, o governador espanhol estava
arruinado, os comerciantes de peles de St. Louis tiveram um prejuízo
gigantesco e uma grande casa de comércio de peles faliu, porque os
títulos não foram pagos. Mas o território noroeste era dos Estados
Unidos.
Pense
na colonização do Kentucky. A Companhia de Terras Henderson a fez.
O governo desejava restringir e controlar a colonização do oeste;
avançava rápido demais, era sem lei demais, ameaçava causar
rebeliões contra os Estados Unidos e problemas com a Espanha.
Qualquer homem inteligente no poder a teria impedido. Mas não havia
nenhum homem no poder, porque não havia nenhum poder que um homem
pudesse usar. E o juiz Henderson viu uma chance de enriquecer.
Ele
vendeu a terra do Kentucky a crédito para os colonos e teria
enriquecido se eles pagassem. Não pagaram; expulsaram a bala os
cobradores das prestações. A Companhia de Terras Henderson faliu na
depressão da década de 1790. Mas o Kentucky foi colonizado.
Pense
na Compra da Louisiana, que levou os Estados Unidos do Mississipi até
as Montanhas Rochosas. Ninguém tinha a intenção de comprar aquelas
terras. Todos viam o Mississipi como a fronteira permanente dos
Estados Unidos. O grande rio era um limite geográfico natural.
Como
previsto, entretanto, o Kentucky estava dando problemas. Aqueles
colonos ocidentais ameaçavam juntar-se à Espanha, que dominava o
Golfo e os mantinha sem acesso a um porto marítimo. Jefferson
percebeu que todo o Oeste – ou seja, a metade oriental do vale do
Mississipi – seria perdido, a não ser que os Estados Unidos
conseguissem um porto para o Golfo. Tudo que ele queria era um porto,
só uma pequena baía.
Dois
delegados americanos em Paris, sem nenhuma autoridade para fazê-lo,
compraram a Louisiana inteira de Napoleão. Pertencia à Espanha, mas
Napoleão a vendeu; seu exército poderia resolver a questão com a
Espanha. E os dois americanos compraram, pagando quinze milhões de
dólares por ela. Jefferson ficou horrorizado quando soube. Ficou a
um passo de rejeitar o negócio.
Pense
na questão vital da escravidão. Em todos os outros lugares no mundo
ocidental, a escravidão foi abolida por uma legislação debatida e
bem analisada. Todas as vezes que a questão foi apresentada aos
americanos, uma maioria esmagadora votou contra a abolição.
Então,
Lincoln foi eleito com uma plataforma que prometia terras de graça e
uma estrada de ferro para o Pacífico. Uma antiga disputa sobre a
divisão de poder entre os governos estaduais e o governo federal
acabou provocando uma guerra que vinha sendo evitada havia meio
século e, como medida de guerra, a escravidão foi abolida.
Ninguém
pretendia expulsar os índios do Meio Oeste. De novo e de novo, de
boa fé, os tratados dos Estados Unidos estabeleciam para sempre as
tribos indígenas como estados-tampão permanentes. Era uma política
racional, baseada em todas as probabilidades futuras que podiam ser
vislumbradas na ocasião. De novo e de novo, tropas federais
despejavam colonos brancos das terras garantidas aos índios pelos
tratados. Mas não havia controle sobre o individualismo e os índios
desapareceram.
A
Califórnia foi arrancada do México numa aventura pessoal
clandestina do general Fremont, com a conivência do senador Benton,
do Missouri, que mandou dizer a ele que se movesse rápido antes que
fosse impedido de continuar. Aconteceu numa época em que ninguém
sonhava que houvesse ouro no pé daquelas colinas e os homens
previdentes sabiam que o solo da Califórnia não tinha valor porque
os Estados Unidos já tinham muito mais terras do que os americanos
podiam usar e, nos séculos futuros, a população da costa do
Pacífico não seria grande o bastante para se tornar um mercado para
os produtos agrícolas.
Insuflados
pela propaganda privada e egoísta e inspirados por ideais
democráticos, os americanos se lançaram numa guerra para libertar
Cuba da tirania imperial da Espanha e descobriram que estavam lutando
contra os filipinos para impedi-los de se libertarem. Assim, os
Estados Unidos se tornaram um império e uma potência mundial.
Esses
exemplos se multiplicam às centenas, aos milhares. Em qualquer ponto
da história americana que se olhe, eles estão lá. Não há plano,
intenção, política fixa em parte alguma; é a anarquia, o caos. É
o individualismo. Em menos de um século, criou nossa América.http://www.libertarianismo.org/index.php/biblioteca/234-rose-wilder-lane/1074-quero-liberdade
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