sábado, 12 de janeiro de 2013

Quero Liberdade (cap. VIII), de Rose Wilder Lane

VIII

Olhe este fenômeno: os Estados Unidos da América.

Por duzentos e cinquenta anos, a Europa coloniza este continente. Como resultado, a Espanha ocupa o Golfo e as Flóridas, o México, o Texas, o Novo México, o Arizona e a Califórnia. A Rússia está no norte. A França controla os Grandes Lagos e os rios navegáveis do vale do Mississipi, o comércio de peles e as minas do Missouri. Ao longo da costa atlântica, entre a região selvagem e o mar, estão espalhadas pequenas colônias inglesas.

Nem todas as colônias se rebelam contra a Inglaterra. O Canadá permanece fiel ao Rei e, entre as outras, apenas a Virgínia e Massachusetts têm real disposição de lutar. A guerra se arrasta – uma pequena guerra de fronteira que poucos rebeldes lutam com coragem e que a Inglaterra despreza, já que seus interesses vitais estão em outro lugar. Uma expedição de canhoneiros franceses ajuda a decidir a questão. A paz é assinada, e as treze colônias sem interesse comum não sabem se devem se unir ou se tornar nações separadas.

Nesse ponto, qual pareceria ser o futuro desse continente? Parece provável que essas colônias – divididas pela religião, estrutura social e interesses econômicos, brigando entre si por questões territoriais que ameaçavam irromper em guerras – parece provável que elas prevaleceriam contra as Grandes Potências já instaladas no solo da América? Não parece que, se elas pretendem simplesmente sobreviver, tem de se unir sob um governo extremamente poderoso?

Aconteceu justamente o contrário. Os homens que se reuniram na Filadélfia para formar um governo acreditavam que todos os homens nascem livres. Fundaram este governo sobre o princípio: Todo poder ao indivíduo.

Como pode tal princípio ser encarnado num governo? Não há como fugir do fato de que qualquer governo precisa ser um homem, ou poucos, com poder sobre uma multidão de homens. Como é possível transferir o poder do governante a cada homem nessa multidão? Não é possível.

Não era apenas o problema de permitir que o homem comum tivesse alguma voz nas assembleias de seus governantes, alguma força para impedir que os governantes usassem seu poder para prejudicar ou roubar o homem comum. A intenção era realmente dar o poder de governar a cada homem comum igualmente. De maneira que, na prática, o resultado político seria o mesmo da aldeia comunista, onde cada homem tem igual poder e luta por seu interesse até que um equilíbrio satisfatório seja alcançado. O poder de governo desta nova república estaria realmente nas multidões. O homem comum governaria a si mesmo.

Mas como é possível encarnar essa intenção nos mecanismos governamentais, uma vez que qualquer governo de multidões de homens precisa ser um homem, ou poucos, com poder sobre muitos? Não é possível.

O problema foi resolvido destruindo-se o próprio poder, até o ponto em que isso foi possível. O poder foi diminuído até o mínimo irredutível.

O poder de governar foi quebrado em três fragmentos, de maneira que jamais um homem pudesse possuir todo o poder. A função de governo foi cortada em três partes, cada uma delas verificada continuamente pelas outras duas. Qualquer governante é um ser humano e, num ser humano, pensar, decidir, agir e julgar são inseparáveis. Neste governo, nenhum homem teria permissão de funcionar como um ser humano completo. Os congressistas pensariam e decidiriam; o executivo agiria; os tribunais julgariam.

E foi colocada sobre esses três poderes uma declaração escrita de princípios políticos, que seria a mais forte verificação sobre todos eles, uma limitação impessoal sobre os seres humanos falíveis que teriam permissão de usar esses fragmentos de autoridade sobre multidões de indivíduos.

Não sem motivo, os europeus clamavam que esse governo era a anarquia solta no mundo. Não sem motivo, os governos mais antigos se recusaram a reconhecê-lo. Nenhum governo pode chegar mais perto da anarquia que isso e se tornar um governo. Nunca antes multidões de homens haviam sido libertadas para agir como quisessem.

Nessa ocasião, um Congresso Continental subornado havia vendido milhões de acres de terras públicas a especuladores, reivindicadas tanto por Connecticut quanto pela Virgínia. E o primeiro Congresso dos Estados Unidos, numa chicana inescrupulosa, roubou os soldados revolucionários comuns de seu magro pagamento e colocou o dinheiro no bolso dos congressistas e dos banqueiros nova-iorquinos.

Que futuro se poderia prever para tal falta de governo, em tal situação?

Em setenta anos, no tempo de uma vida, a França e a Rússia tinham desaparecido deste continente. A Espanha tinha cedido as Flóridas, o Texas, o Novo México, o Arizona e a Califórnia. A Inglaterra foi repelida no norte. Toda a vasta extensão deste país foi coberta por uma nação, uma tumultuosa multidão de homens sob o governo mais fraco do mundo. Como isso aconteceu?

A característica da história americana é que aparentemente tudo acontece por acidente. Nada parece planejado ou pretendido. Outras nações adotam políticas e as perseguem; sua história se forma pelo choque entre essas políticas e outras políticas planejadas em outro lugar. Mas a América se move como que sem direção. Sempre, nestes Estados Unidos, o não pretendido e o não planejado acabam sendo feitos.

Pense na conquista do vasto território entre o Rio Ohio e os Grandes Lagos, entre o Mississipi e as colônias litorâneas. Um homem fez isso: George Rogers Clark. Ele emprestou dinheiro e conseguiu a maioria dos seus homens com o governador espanhol e o povo francês do Missouri e Illinois; realizou uma das mais terríveis marchas de inverno da história e capturou em Vincennes o comandante das forças britânicas no oeste. Ninguém planejou isso; ninguém exceto George Rogers Clark e seu pequeno bando sabiam que isso estava sendo feito.

Nesse único golpe independente, um americano livre e empreendedor destruiu um plano que havia sido cuidadosamente amadurecido por dois anos em Londres e no Canadá. Levou os Estados Unidos até o Mississipi. E nem a Assembleia da Virgínia nem o Congresso dos Estados Unidos jamais pagaram os títulos que ele emitiu em St. Louis para os suprimentos militares que usou. Esses títulos não foram pagos; George Rogers Clark estava arruinado, o governador espanhol estava arruinado, os comerciantes de peles de St. Louis tiveram um prejuízo gigantesco e uma grande casa de comércio de peles faliu, porque os títulos não foram pagos. Mas o território noroeste era dos Estados Unidos.

Pense na colonização do Kentucky. A Companhia de Terras Henderson a fez. O governo desejava restringir e controlar a colonização do oeste; avançava rápido demais, era sem lei demais, ameaçava causar rebeliões contra os Estados Unidos e problemas com a Espanha. Qualquer homem inteligente no poder a teria impedido. Mas não havia nenhum homem no poder, porque não havia nenhum poder que um homem pudesse usar. E o juiz Henderson viu uma chance de enriquecer.

Ele vendeu a terra do Kentucky a crédito para os colonos e teria enriquecido se eles pagassem. Não pagaram; expulsaram a bala os cobradores das prestações. A Companhia de Terras Henderson faliu na depressão da década de 1790. Mas o Kentucky foi colonizado.

Pense na Compra da Louisiana, que levou os Estados Unidos do Mississipi até as Montanhas Rochosas. Ninguém tinha a intenção de comprar aquelas terras. Todos viam o Mississipi como a fronteira permanente dos Estados Unidos. O grande rio era um limite geográfico natural.

Como previsto, entretanto, o Kentucky estava dando problemas. Aqueles colonos ocidentais ameaçavam juntar-se à Espanha, que dominava o Golfo e os mantinha sem acesso a um porto marítimo. Jefferson percebeu que todo o Oeste – ou seja, a metade oriental do vale do Mississipi – seria perdido, a não ser que os Estados Unidos conseguissem um porto para o Golfo. Tudo que ele queria era um porto, só uma pequena baía.

Dois delegados americanos em Paris, sem nenhuma autoridade para fazê-lo, compraram a Louisiana inteira de Napoleão. Pertencia à Espanha, mas Napoleão a vendeu; seu exército poderia resolver a questão com a Espanha. E os dois americanos compraram, pagando quinze milhões de dólares por ela. Jefferson ficou horrorizado quando soube. Ficou a um passo de rejeitar o negócio.

Pense na questão vital da escravidão. Em todos os outros lugares no mundo ocidental, a escravidão foi abolida por uma legislação debatida e bem analisada. Todas as vezes que a questão foi apresentada aos americanos, uma maioria esmagadora votou contra a abolição.

Então, Lincoln foi eleito com uma plataforma que prometia terras de graça e uma estrada de ferro para o Pacífico. Uma antiga disputa sobre a divisão de poder entre os governos estaduais e o governo federal acabou provocando uma guerra que vinha sendo evitada havia meio século e, como medida de guerra, a escravidão foi abolida.

Ninguém pretendia expulsar os índios do Meio Oeste. De novo e de novo, de boa fé, os tratados dos Estados Unidos estabeleciam para sempre as tribos indígenas como estados-tampão permanentes. Era uma política racional, baseada em todas as probabilidades futuras que podiam ser vislumbradas na ocasião. De novo e de novo, tropas federais despejavam colonos brancos das terras garantidas aos índios pelos tratados. Mas não havia controle sobre o individualismo e os índios desapareceram.

A Califórnia foi arrancada do México numa aventura pessoal clandestina do general Fremont, com a conivência do senador Benton, do Missouri, que mandou dizer a ele que se movesse rápido antes que fosse impedido de continuar. Aconteceu numa época em que ninguém sonhava que houvesse ouro no pé daquelas colinas e os homens previdentes sabiam que o solo da Califórnia não tinha valor porque os Estados Unidos já tinham muito mais terras do que os americanos podiam usar e, nos séculos futuros, a população da costa do Pacífico não seria grande o bastante para se tornar um mercado para os produtos agrícolas.

Insuflados pela propaganda privada e egoísta e inspirados por ideais democráticos, os americanos se lançaram numa guerra para libertar Cuba da tirania imperial da Espanha e descobriram que estavam lutando contra os filipinos para impedi-los de se libertarem. Assim, os Estados Unidos se tornaram um império e uma potência mundial.

Esses exemplos se multiplicam às centenas, aos milhares. Em qualquer ponto da história americana que se olhe, eles estão lá. Não há plano, intenção, política fixa em parte alguma; é a anarquia, o caos. É o individualismo. Em menos de um século, criou nossa América.http://www.libertarianismo.org/index.php/biblioteca/234-rose-wilder-lane/1074-quero-liberdade

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