sábado, 4 de janeiro de 2014

As Grandes Empresas e a Lei de Status

O Deus da Máquina, capítulo XVI
As Grandes Empresas e a Lei de Status
Isabel Paterson


Enquanto o poder político se expande, o sistema de produção é desorganizado direta e indiretamente. A Guerra Civil teve consequências de longuíssimo prazo na vida econômica. A “reconstrução” do Sul sobrecarregou os estados sulistas com dívidas contraídas pelos sequazes do governo conquistador, a administração dos aproveitadores. A consequência foi recusarem-se a pagar; independentemente da solvência, os sulistas não se sentiam moralmente obrigados. Não é difícil entender seu ponto de vista. Mesmo assim, eles erraram; o repúdio a dívidas aterra a linha de transmissão de energia. O Sul continuou prostrado economicamente, enquanto o restante da nação progredia.

A Guerra Civil também levou o governo federal a financiar ferrovias, por concessões de terra e subsídios em dinheiro. Com isso, iniciou-se a era em que as empresas são acusadas de corromper a política. Mas empresas não podem corromper a política. De maneira leviana, seria possível dizer que a corrupção não pode corrompida. Mas, dentro de limites corretos, a organização política não é corrupção. Esses limites são indicados, de maneira aproximada, pela margem onde começa a suposta corrupção pelas empresas. É claro que é a política que corrompe as empresas. Ela corrompe até o grau em que foi ampliada além do seu campo próprio. Negócios consistem em produção e comércio. São atividades espontâneas, que são necessariamente executadas em liberdade. Por isso, a propriedade privada individual é a condição indispensável para um sistema de alta energia; o proprietário não tem de esperar por uma permissão para colocá-la em uso. O campo dos negócios é primário.

A política consiste no poder de proibir, obstruir e expropriar. Seu campo é marginal. Mas, por essa razão, ela sempre tende a invadir o campo primário da liberdade, de tal maneira que o produtor pode ser obrigado a obter permissão para conseguir trabalhar. Onde é exigida permissão ou a expropriação é possível, um pagamento pode ser extorquido. O elemento da corrupção é inerente aos negócios ou à política?

É errado produzir alguma coisa ou comprar e vender produtos? Não. Então, isso não pode levar a corrupção a algum outro lugar. É errado restringir, obstruir ou tomar os bens de outra pessoa? Sim. É sempre errado se for feito por ação originária (em vez de por reação). O potencial de corrupção então reside na política, não nos negócios. Quando a política é notavelmente corrupta, isso é um indicativo infalível de que existe poder político excessivo, que se estende além de seu campo de ação marginal próprio.

O poder político, tanto de obstruir como de expropriar, foi assim estendido no caso das ferrovias. Para integrar o oeste, o governo federal concedeu vastas áreas de terra e deu subsídios em dinheiro para uma ferrovia transcontinental. Se a Guerra Civil não tivesse acontecido, provavelmente o governo federal não teria tomado essa ação. Nessa hipótese, ninguém pode dizer quanto tempo levaria para que uma linha transcontinental passasse a existir, se é que existiria; mas, sem nenhuma dúvida, haveria alguns anos de atraso. Eis aqui a combinação de circunstâncias e a sequência de eventos que dão plausibilidade ao argumento de que é correto que a ação política se estenda ao campo primário da economia. Não houve um ganho positivo, pelo menos no tempo? De fato, como uma linha transcontinental poderia ser construída, atravessando a longa extensão selvagem, sem subsídios federais?

Vou responder primeiro a última questão. Se o poder político simplesmente tivesse permitido que qualquer um que quisesse construir uma linha transcontinental adquirisse os títulos para o necessário direito de passagem nos mesmos termos que qualquer colono no território virgem, fosse por compra ou por posse, uso e registro, uma estrada de ferro teria sido construída tão logo existisse uma perspectiva razoável de tráfego suficiente, ou talvez um pouco antes disso.

Mesmo assim, nas circunstâncias existentes, houve o “ganho de tempo” cronológico. O desenvolvimento pelo capitalismo privado funciona numa equação autoajustável de espaço e tempo entre os circuitos de energia locais e o longo circuito. O solitário caçador na fronteira era um capitalista de vanguarda. Podia trazer uma carga de peles para vender apenas uma vez por ano; então, essa carga viajava num carroção fretado. Pode-se dizer que havia uma distância de um ano ou mais entre ele e seu mercado. Por outro lado, seu tempo de produção e venda era mesmo de um ano, aproximadamente; ele podia aguentar dois anos, se necessário. Mas se os preços das peles e as tarifas dos fretes permitissem, um transporte competitivo seria atraído, em um ano ou dois.

As fazendas também avançaram pelo território selvagem pela iniciativa privada, num ritmo que se ajustava, conforme o excedente de produção compensasse o tempo e a distância (transporte). Se um grupo de fazendeiros tivesse “ganho” tempo, em termos de distância, para dentro do território selvagem, isso seria na verdade uma piora em sua situação. Por toda a economia privada, os custos e riscos são evidentes por si mesmos e as condições são abertas à escolha. Erros são autodestrutivos.

Havia uma peculiaridade na economia escravagista. Ela era incapaz de pioneirismo, não conseguindo ir além dos limites da autoridade política estabelecida, do seu tipo singular. Se um senhor obrigasse seus escravos a carregar a si e a seus bens além dos limites do poder coletivo por meio do qual impunha seus comandos — e que, de fato, os fazia escravos — não teria mais controle sobre eles. Não voltaria, nem traria seus bens de volta da maneira como foi. Aconteceria o mesmo a qualquer pessoa que usasse escravos da mesma maneira, por concessão do proprietário. Viajantes na África relataram como receberam carregadores sob o comando de algum chefe nativo; os carregadores levavam a carga até certa distância e, então, passavam a ignorar qualquer ordem. Só podemos saber se os viajantes “ganharam tempo” ou não se calcularmos o tempo que levaram para encontrar algum outro meio de transporte para sair dessa encrenca.

A situação peculiar dos fazendeiros do oeste fica clara quando examinamos suas reclamações. Os fretes ferroviários eram tão mais baratos que os fretes de carroça, pela mesma distância, que não há comparação. As viagens também eram dez vezes mais rápidas. Mesmo assim, os fazendeiros denunciavam as ferrovias por tarifas excessivas; e, se ocorria um atraso, isso causava grande irritação. Se alguém sugerisse a um fazendeiro do oeste que, se ele achasse os preços excessivos, devia usar alguma linha concorrente ou algum outro método de transporte, o fazendeiro ficaria indignado. Não havia nenhum, e ele não podia esperar até que a concorrência surgisse. O tempo e a distância que pareciam ter sido “ganhos” eram simplesmente a medida da distância no tempo para a concorrência; o que significa para o mercado. O poder político interveio e foi esse o efeito inevitável. Os fazendeiros do oeste, que voluntariamente aproveitaram o que parecia ser uma vantagem, ao fazê-lo renunciaram ao poder de escolha por tempo indeterminado. A intervenção do poder político criou um monopólio. E mesmo seus supostos beneficiários o achavam odioso.

Curiosamente, as pessoas faziam a diferenciação correta emocionalmente, embora não conseguissem traduzi-la para a razão. Existe uma forte ambiguidade no sentimento despertado pelas ferrovias. A visão e o som de uma locomotiva ainda evocam, para os americanos, prodígio, romantismo e expectativas esperançosas. Em distritos rurais e pequenas cidades, todos gostavam de viajar de trem. As pessoas iam às estações para ver o trem chegar. Conheciam os expressos pelo número, ouviam o apito como um som amigo, acenavam quando os trens passavam. Odiavam “a ferrovia” apenas como uma abstração.1

Mas o que exatamente eles odiavam? Certamente, não pretendiam abolir as ferrovias e nunca mais ver nenhuma. A diferença aparece claramente. Tudo o que era criação da iniciativa privada nas ferrovias trazia satisfação. A iniciativa privada minerou, fundiu e forjou o ferro, inventou a máquina a vapor, desenvolveu instrumentos de controle, produziu e acumulou capital, organizou o esforço. Na construção e operação de estradas de ferro, tudo o que pertence à esfera da iniciativa privada foi feito com competência. A primeira linha transcontinental foi o maior problema de engenharia resolvido de uma vez até então. Foi construída com uma velocidade inédita do longo circuito de energia de alto potencial ao qual pertencia. A mesma competência para organização de sistemas de alta energia se incorporou à operação das linhas. Nenhum tipo de negócio anterior precisava de um décimo da habilidade desta atividade; os horários precisavam ser exatos, contínuos e, mesmo assim, instantaneamente ajustáveis em cada detalhe, no tempo e no espaço, lidando com quantidades imprevisíveis de pessoas e unidades de bens em trânsito entre milhares de pontos intermediários num sistema ramificado, em todas as direções, nEmendas Fataisa máxima velocidade. Provavelmente, as ferrovias ainda representam o pico de eficiência em gerenciamento operacional, porque nenhuma demanda maior foi feita ainda em qualquer outro tipo de negócio. E, no conjunto, o público respeitava essa realização.

O que as pessoas odiavam era o monopólio. O monopólio, e nada mais, é a contribuição política.

Mesmo em sua aplicação adequada, o poder político tende a causar irritação — muito mais quando ela é indevida. A vida protesta instantaneamente contra a compulsão, o aprisionamento ou a expropriação de seu produto criativo. A nuvem negra de puro ódio, desespero vingativo, que obscurece o mundo civilizado neste momento, é evocada pela onipresença de agências políticas. A Gestapo e a Ogpu ou Cheka2 são as crias gosmentas do Estado Absoluto.

A consequência direta da intromissão do poder político no campo primário da livre iniciativa, com respeito às ferrovias, foi que novos Estados foram admitidos na União antes que tivessem tempo de desenvolver verdadeiros interesses regionais e entidades políticas. Em um caso pelo menos, um Estado foi designado apenas para garantir uma maioria política na nação. Sendo de fato criações do governo federal e não dos seus cidadãos, os novos Estados tendiam a buscar no governo federal legislações especiais, inclusive de caridade.

A consequência indireta é igualmente ruim. Obviamente, se recursos públicos foram concedidos para qualquer coisa que se imagine, com o pretexto de que é para o benefício geral dos cidadãos, todo cidadão deve ter o direito de usar o que foi criado com esse dinheiro em igualdade de condições. (Ele pode absolutamente não querer usar; pode até ter sido arruinado financeiramente em seu patrimônio por não conseguir competir com a companhia mantida pelo governo, mas ninguém pergunta isso a ele.) Então, o governo deve ter autoridade para impor essa igualdade. (O governo já destruiu o poder natural do indivíduo de fazer com que a companhia aceite condições pela competição.) Uma “regulamentação governamental” é imposta. Na verdade, isso não trará qualquer bem ao cidadão; o resultado é que as estradas de ferro não podem fazer as melhorias desejáveis ou descontinuar gastos inúteis.3 Mas o poder está lá, e fatalmente será usado. (Não traz nenhum bem simplesmente porque a “economia mista” não deixa nenhuma base para a justiça; não existe nenhuma razão ética pela qual alguém teria o direito a um subsídio de dez dólares vindo de recursos públicos, quanto mais um subsídio de um milhão de dólares.)

O gerenciamento bem sucedido e a iniciativa produtiva sempre foram admirados e respeitados, como devem ser; atualmente, tornaram-se objeto de suspeita e de ressentimento. A mudança de sentimento pode ser facilmente rastreada até a origem. Se alguma empresa pode ser identificada, depois das estradas de ferro, tendo incorrido nessa desonra, foi a Standard Oil Company. Porém, assim como as estradas de ferro, essa empresa, por suas operações comerciais normais, aumentou continuamente o conforto e a conveniência da existência na América — de lâmpadas a óleo a postos de gasolina. É gerenciada com fantástica competência; cumpriu todas as suas obrigações financeiras mesmo em tempos difíceis e se manteve solvente; seus produtos são excelentes e confiáveis. Poderia ser citada como uma empresa modelo — se não tivesse usado o poder político, em certo momento, recebendo incentivos fiscais nas taxas de fretes ferroviários. A acusação de arruinar competidores não teria sentido, exceto pelos meios empregados, que foram considerados desleais, e certamente eram mesmo. Se uma loja de departamentos prospera e outra fecha, o público percebe corretamente que a loja bem-sucedida foi estabelecida ou gerenciada com maior competência e não há nenhuma razão sensata para que esse público subsidie a falta de competência. Sabe-se que a competição de capacidades não tende a extinguir a competição, mas aumenta o mercado; o que as pessoas desejam é a possibilidade de escolha. Mas o contribuinte individual não tem escolha sobre dar ou não incentivos fiscais sobre um “serviço público” subsidiado por impostos. A Standard Oil usou os meios políticos; tornou-se um objeto de execração. Pode-se demonstrar que não houve outra causa de antipatia, uma vez que as pessoas que a denunciavam ainda compravam seus produtos de boa vontade. Aprovavam a Standard Oil como empresa; estavam revoltadas com suas ligações políticas.

O único remédio para o abuso de poder político é limitar esse poder; mas quando a política corrompe os negócios, os reformadores modernos invariavelmente exigem a ampliação do poder político. Houve um tempo em que as pessoas tinham mais sensatez ou mais honestidade; mas talvez simplesmente não fosse possível interpretar erroneamente a questão, da maneira como se apresentava. A forma corporativa obscurece a transação. Antigamente, os monopólios eram concedidos pelos reis a seus favoritos. Era evidente que uma lei escrita para indivíduos era absurda; a solução efetiva era proibir que o poder político concedesse monopólios. Mas a proposta de “regular” as grandes empresas para impedir monopólios parece plausível. Se fosse simplesmente uma tolice, não pioraria as coisas; mas ela continha outro elemento pernicioso: reintroduziu a lei de status.

Isso foi feito desviando-se a atenção da causa para o efeito e, então, legislando-se contra o processo natural que havia sido desvirtuado — uma perversão tripla. Como legislação aberrante, as leis antitruste são um caso singular. Ninguém sabe o que elas proíbem. Seu objetivo declarado é impedir ou dissolver (com penalidades) “combinações que restrinjam o comércio”. O que é uma combinação que restringe o comércio?

As ferrovias não poderiam ser acusadas desse crime imaginário a menos que duas ou mais empresas ferroviárias fizessem uma combinação; mas seus monopólios existiam de qualquer maneira e nunca restringiram o comércio de nenhum modo. Elas tomavam todo o tráfego que conseguiam e faziam o possível para criar tráfego, propagandeando a imigração.

A Standard Oil não restringia o comércio; ia até os confins da terra para criar um mercado. Será que uma empresa pode ser acusada de “restringir comércio” quando o comércio que ela supre não existia antes que ela produzisse e vendesse os bens? As montadoras de automóveis restringiram o comércio no período em que produziram e venderam cinquenta milhões de carros, onde antes não havia carro nenhum? Ou as ferrovias restringiram a indústria automobilística? Não teriam como fazer isso; o que fizeram de fato foi trazer as matérias primas para as montadoras de automóveis e depois transportar os veículos produzidos para serem vendidos em toda parte.

Se duas empresas fazem uma combinação e realizam juntas as operações que ambas faziam anteriormente, ampliando-as se possível, estão restringindo o comércio? A acusação feita contra as grandes empresas é que elas não produzem mais do que o que elas acreditam que serão capazes de vender com grande esforço. Isso é “limitar” e, portanto, “restringir” o comércio. Mas, em primeiro lugar, qualquer produção num período é intrinsecamente limitada pelo capital disponível, assim como pela expectativa de mercado; e, em segundo lugar, se elas esticassem esse limite ao máximo num período e não vendessem toda a produção com lucro líquido, não seriam capazes de produzir nada no ano seguinte. Iriam à bancarrota. Não podem nem mesmo consumir seu capital gradativamente, um tanto por ano. Geralmente, seu capital líquido está no prédio e nos equipamentos; enquanto os materiais em processo de manufatura ou em estoque representam crédito (empréstimos bancários ou títulos a pagar). Mesmo que um fabricante operasse estritamente com capital próprio, não devendo nada a ninguém e com dinheiro no banco, seu estoque é capital líquido; e estaria exaurido no segundo ano. Com relação ao capital emprestado, crédito, se os juros não forem pagos e as contas das matérias-primas vencerem, os empréstimos serão suspensos e nenhuma matéria-prima será entregue; então, o negócio inteiro para de uma vez; não em percentagens sucessivas; e a instalação passa a ser improdutiva. Se os diretores da empresa desconsiderassem esses imperativos, seriam candidatos ao Matteawan4. É difícil acreditar que alguém possa sugerir isso de boa-fé.

Então, o que seria esse delito? Outras queixas contra as empresas continham uma contradição tripla. Elas foram acusadas, de maneira variada, de cobrar demais, de vender a preços inferiores aos dos concorrentes e de fixação de preços (combinação de preços com os concorrentes).

Quanto exatamente, em comparação com o que, é “demais”? É demais se um proprietário pede mais do que outra pessoa deseja ou é capaz de pagar? Então, a grande maioria de nós teria razões para processar a Tiffany’s5. É pedir mais que outra pessoa pelo mesmo tipo de bens? Então, a outra pessoa é culpada de “vender a preços inferiores”; ambos deveriam ser levados ao tribunal. Mas, se concordarem em estabelecer o mesmo preço, seriam criminosos fixadores de preços. Também não seria um procedimento inocente para eles não vender mais nada e morrer de fome pacificamente; estariam certamente “limitando o mercado” se segurassem seus bens ou não continuassem produzindo.

De modo geral, os únicos atos dos quais as empresas podem ser acusadas em suas transações comerciais são simplesmente os atos necessários de produção e trocas; o homem neolítico que lascava uma pedra para fazer uma ponta de flecha e a trocava por um ornamento de concha era culpado do mesmo crime — com exceção da acusação de “combinação” entre duas ou mais empresas. Mas teria sido possível aprovar uma lei específica para impedir essas fusões; bastaria limitar suas licenças de funcionamento, proibindo que uma empresa comprasse outra, ou qualquer parte de outra. Uma lei assim seria sem sentido ou prejudicial; certamente constituiria uma restrição ao comércio, mas o poder político é restritivo; e a lei seria específica ao determinar o ato proibido.

É a única coisa que os legisladores não iriam fazer. Fariam qualquer coisa exceto admitir o nome do verdadeiro crime — o uso do poder político. Seu objetivo era conseguir o controle das grandes empresas. Isso foi feito usando-se uma expressão que pode ser interpretada como qualquer tipo de transação comercial em que uma empresa estivesse envolvida; com a implicação de que tais atos seriam considerados crimes, em situações particulares, de acordo com seus efeitos, embora esses efeitos não pudessem, em nenhum caso, ser mostrados ou provados. Pegue qualquer caso, real ou imaginário, e faça a seguinte pergunta: Exatamente onde, quando e como o comércio foi restringido? O volume de comércio diminuiu? Alguma pessoa foi de fato impedida de oferecer um artigo para ser vendido ou de comprar um artigo oferecido, depois de ter decidido fazê-lo? Qual artigo? E qual pessoa?

Quando um indivíduo é indiciado por apropriação indébita, roubo ou qualquer delito semelhante, o dinheiro ou os bens envolvidos precisam ter existência real e o proprietário precisa ser indicado; com o ônus da prova pertencendo à acusação, basta ao acusado refutar a evidência apresentada, se ele é inocente. Se uma pessoa fosse simplesmente acusada de “desonestidade” ou “imoralidade” e fosse exigido que ela desse conta de sua vida inteira, que apresentasse toda a sua correspondência ao tribunal e provasse uma negativa geral, estaria sujeita ao mesmo tipo de lei que as leis antitruste. Indivíduos foram submetidos a esse tipo de lei na Sociedade de Status. Seu nome moderno é Legislação Administrativa. Durante o século 19, essa prática sobreviveu apenas na Rússia, sob os Czares (e era chamada por lá de legislação administrativa; viajantes de nações livres ouviam sobre ela com espanto e indignação). Ainda é a lei na Rússia comunista, mas não está mais confinada apenas à Rússia.

Sem dúvida, se fosse feito um esforço honesto para decidir qual a acusação mais imbecil possível contra alguém — algo como prender um coelho pela prática de controle de natalidade, ou um campeão de maratona durante a corrida por vagabundagem, ou Brigham Young6 por celibato — não seria possível imaginar nada mais absurdo que pegar as empresas americanas, que criaram e ampliaram, numa magnitude sempre crescente, um volume e uma variedade de comércio tão vastos que fizeram com que tudo o que era produzido e vendido anteriormente parecesse uma barraca de beira de estrada rural, e chamar esse desempenho de “restrição de comércio”, estigmatizando-o como um crime!

Outro aspecto da imposição da “regulação” política sobre um esforço econômico é o pretexto de que as empresas têm poder demais, um poder econômico que também influencia a política. Isso é imputado da mesma maneira às grandes fortunas privadas como justificativa para pesados impostos sobre a herança. Na verdade, o perigo inerente às grandes fortunas é sua fraqueza diante do poder político. Mas, se fosse provado que as grandes empresas têm esse poder indevido e o exercem, e se alguém quisesse fazer uma proposta séria para corrigir essa condição entregando o governo à direção das empresas, isso não seria uma maluquice? Porém, é esse o resultado da regulação governamental, para além da exigência do cumprimento da lei contratual, porque ela se aplica a qualquer transação comercial entre pessoas privadas. Os poderes políticos e econômicos se fundem num único controle. Daí em diante, é irrelevante qual o grupo de pessoas que exerce esse poder conjunto (embora os políticos inevitavelmente consigam a posição mais alta); a soma de poderes será a mesma. Se somarmos três com dois ou dois com três, o resultado é cinco. “Governo totalitário” não é nada mais que o controle político sobre a vida econômica. As queixas contra a “competição”, a expressão sem sentido “produção para uso e não para lucro” — como se fosse possível ter lucro se o produto não é usado; a Standard Oil despejou seus produtos no ralo? ou a direção da General Motors usava seus produtos em correntes de relógio? — são passos para estabelecer o controle político e a tirania absoluta. A competição não pode ser erradicada; no esforço produtivo ou criativo, ela é benéfica. Se for penalizada nessas formas desejáveis, vai encontrar meios vis e fúteis para se manifestar. Nas cortes reais, onde o status é rigidamente definido e não há campo produtivo, insignificâncias tornam-se objeto de competição; cortesãos ficarão em pé durante o dia todo, de maneira que sentar-se torna-se um privilégio; príncipes discutirão ignominiosamente pela honra de passar primeiro por uma porta. Um homem que faz um carro melhor que outro, ou mais barato, está competindo de maneira útil; mesmo um homem que quer ganhar mais dinheiro que seu vizinho, numa sociedade livre, descobrirá que a maiores fortunas são ganhas pela produção em grande escala. Apenas no campo político é que a competição é por poder sobre outros homens, até mesmo por matar uma quantidade maior na guerra. Somente o individualismo dá uma aplicação legítima e criativa ao instinto competitivo, ampliando e melhorando a produção.

O governo não pode “restaurar a competição” ou “garanti-la”. Governo é monopólio; tudo o que ele consegue fazer é impor restrições que podem resultar em monopólio, quando chega ao ponto de exigir permissão para que o indivíduo participe da produção. Essa é a essência da Sociedade de Status.

O retrocesso à lei de status na legislação antitruste passou despercebido. Provavelmente, os políticos não sabiam exatamente o que estavam fazendo; mas sabiam o que queriam. Aprovaram uma lei pela qual se tornou impossível ao cidadão saber de antemão o que constitui um crime e, portanto, tornou qualquer esforço produtivo sujeito a processo judicial, ou condenação inescapável. Como isso foi imposto primeiramente às grandes empresas, sua real incidência não foi percebida. Quem disse que “uma empresa não tem nem corpo para ser chutado nem alma para ser perdida” vislumbrou a verdade: toda e qualquer lei se aplica a pessoas. Os atos de uma empresa são necessariamente realizados por pessoas; os bens de uma empresa pertencem a pessoas; a punição deve cair sobre pessoas. E se esses atos são sujeitos a penas, a lei rapidamente será ampliada para incluir o esforço estritamente individual em seu campo de ação.

Nessa extensão é que o propósito exposto se torna evidente. A consequência final de qualquer ampliação do poder político consiste no campo de ação que ela cobre, não no ato particular primeiramente proibido. Ou seja, se o governo é moralmente competente para proibir a venda de bebidas alcoólicas, deve ter o poder de prescrever todos os itens da dieta aos cidadãos. Depois de séculos de liberdade, essa afirmação parecerá vagamente absurda; mas foi posta em prática em Esparta. O campo de ação que as leis antitruste invadiram foi o da produção e do comércio; o primeiro crime alegado foi “restrição ao comércio”. Mas o poder invocado era necessariamente abrangente; e, quando foi aplicado aos indivíduos, a acusação foi “superprodução”!

Mais uma vez, o ato de trabalhar foi criminalizado, o ato de produzir foi criminalizado. Tornou-se crime até mesmo doar comida plantada pelo doador em sua própria terra, por seu próprio trabalho. Ainda não é um crime específico um homem comer a comida que ele mesmo produziu — como acontece na Rússia — mas esse é o próximo passo inevitável. O direito primário dos seres humanos à mera existência já foi negado; uma vez que cotas agrícolas, prioridades e cartões de racionamento envolvem todos os processos de produção e comércio, pelos quais a existência é mantida, a vida passou a depender de permissões diárias e horárias.

No famoso caso Dred Scott7, que os homens corretamente entenderam como definidor das questões pelas quais a Guerra Civil foi desencadeada, a decisão se baseou num axioma declarado; e o axioma repudiava a Declaração da Independência. Tecnicamente, decidiu-se que a Suprema Corte não tinha jurisdição; e a razão apresentada foi que um negro não podia ser cidadão, nem mesmo por nascimento, nem mesmo se seus pais não estivessem formalmente em escravidão. Ele de fato podia ser autorizado a residir no país e possuir bens, mas apenas como um favor, não como um direito. Se não era um cidadão, estava sujeito a ser deportado. Porém, tendo nascido nos Estados Unidos, não tinha outro país ou lugar em que pudesse ser admitido. Portanto, não havia um lugar em que ele pudesse usufruir do primeiro benefício da propriedade, que é um chão para viver. Não existia um lugar na face da Terra onde ele tivesse o direito de existir; o que é o mesmo que dizer que ele não tinha o direito de existir, se essa decisão contivesse a verdade.

No caso de Dred Scott, sua condição material foi deduzida de uma premissa primária, uma negação do direito natural de um ser humano. Pela abordagem contrária, quando a aquisição, posse e uso de cada objeto material depende de permissão, então toda ação produtiva de que um homem é capaz passa a ser realizada apenas por permissão. Como essas ações constituem o modo de ser do homem, a premissa primária fica implícita; ele foi reduzido à situação inominável de Dred Scott. Se não tem o direito de agir, de produzir, de comerciar, não tem o direito de existir.

Portanto, a sentença de Dred Scott foi pronunciada sobre toda a humanidade, pela negação de todos os atributos do direito natural. Presume-se que os homens só existem mediante permissão. Finalmente, o persistente objetivo dos improdutivos foi alcançado, sem reservas, sem limitações; e, de maneira ainda mais extraordinária, sem nenhuma outra justificativa exceto a de sua própria incompetência. Conseguiram colocar uma canga nos produtores.

1 Exceto talvez na Califórnia, especialmente em São Francisco, onde não é exagero dizer que as pessoas detestavam até o trem, os trilhos e a estação ferroviária, com hostilidade concreta. Existem razões para esse sentimento local. A Califórnia tinha existência independente antes do surgimento das estradas de ferro. Então, alguns magnatas ferroviários moravam lá, visivelmente desfrutando de imensas fortunas ganhas pelos subsídios políticos que foram dados as linhas férreas. Além disso, houve casos locais flagrantes de fazendeiros positivamente espoliados por uma companhia ferroviária em contratos de terra e que nunca foram ressarcidos; aqui, outra vez, o poder político foi usado para perpetrar a injustiça. Homens foram mortos por defender seus direitos de propriedade. A mistura de poder político à vida econômica teve o costumeiro efeito de corrupção insolente. (N. da A.)
2 Gestapo: polícia política da Alemanha nazista. Ogpu e Cheka: nomes da polícia política soviética, depois chamada de KGB. (N. do T.)
3 A melhoria verdadeira do serviço de ferrovias e a economia de gerenciamento permaneceram no ritmo do desenvolvimento de métodos competitivos de transporte, com automóveis e aviões. Ao mesmo tempo, as ferrovias não foram suplantadas, porque os diferentes meios de transporte alimentam-se mutuamente, cada um possuindo uma função específica. (N. da A.)
4 Matteawan State Hospital: hospital psiquiátrico estabelecido no estado de Nova York em 1892. Funcionou até a década de 1970. (N. do T.)
5 Tiffany’s: rede multinacional de lojas de artigos de luxo, com sede em Nova York. (N. do T.)
6 Brigham Young (1801 - 1877): segundo presidente da igreja mórmon, casou-se 55 vezes. (N. do T.)
7 Dred Scott (1795 - 1858): escravo americano que tentou obter liberdade na justiça, para si mesmo e para sua esposa. Alegou que, embora fossem escravos, viveram com seu dono em estados e territórios onde a escravidão era ilegal. Por 7 votos a 2, a Suprema Corte decidiu que nenhuma pessoa com ancestralidade africana poderia reivindicar cidadania americana. (N. do T.)

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