O Deus da Máquina, capítulo XVII
A Ficção da Propriedade Pública
Isabel Paterson
A
linguagem é a faculdade que diferencia o homem dos animais
inferiores. Também é um bom indicador do nível intelectual de
culturas e pessoas. A confusão e a ambiguidade de termos sempre
encontradas nas teorias coletivistas não são acidentais; constituem
um retorno às limitações mentais e verbais da sociedade primitiva
que essas teorias defendem, ou seja, a incapacidade de pensar em
termos abstratos. Esse defeito é flagrantemente evidente nos
argumentos coletivistas sobre a propriedade.
Propriedade
é a condição de pertencer a alguém. Coisas que não são de
ninguém não são propriedade, são simplesmente objetos na
natureza. A expressão mais vazia de sentido cunhada até mesmo por
um coletivista é provavelmente aquela de Proudhon: “Toda
propriedade é um roubo”. É realmente notável à sua maneira,
pela variedade de erros comprimidos em tão breve enunciado. Em cinco
palavras, confunde objetos, atos, atributos, valores morais e
relações, como se fossem intercambiáveis. Um roubo pressupõe uma
propriedade legítima. Um objeto precisa ser propriedade antes
de poder ser roubado.
Os
selvagens e os coletivistas são notavelmente ignorantes do ramo
estritamente lógico da linguagem que é a matemática. O selvagem
não vai além da simples soma e subtração contando nos dedos. O
coletivista pode decorar fórmulas, mas não consegue compreender os
princípios de sua aplicação aos fenômenos físicos. Um
coletivista avalia processos e pensa chegar a resultados que só
poderiam ser obtidos a partir de um fator que ele, por sua teoria,
excluiu do problema que pretende resolver. O problema é definir as
condições necessárias para uma sociedade produtiva. Essas
condições devem responder ao mundo da realidade física; não se
pode assumir que exista na realidade física algo que de fato não
existe; também não se pode excluir nenhum aspecto dos fenômenos
físicos que irá inevitavelmente interferir nas condições da
realidade. Mas, quando o coletivista exclui a propriedade privada de
sua economia teórica, tira dos fenômenos materiais o aspecto que os
matemáticos chamam de terceira dimensão. “As três dimensões de
um corpo, ou do espaço comum, são o comprimento, a largura e a
espessura; uma superfície tem apenas duas dimensões; uma linha,
apenas uma.”
Com a terceira dimensão, a medida cúbica é possível; e a
construção se torna capaz de conter algo sólido. Não teria sido
possível conceber a medição de maneira abstrata, sem a realidade
preexistente e o conceito de unidade de medida. A unidade de medida
da energia física é estabelecida a partir dos sólidos, em termos
de tempo, espaço e resistência de massa ou deslocamento
(gravidade). A energia física real não pode existir, exceto num
mundo tridimensional, e não poderia ter sido concebida de maneira
abstrata sem que existisse na realidade.
Dois
corpos não podem ocupar o mesmo espaço ao mesmo tempo. Esta é a
razão pela qual a propriedade privada pertence ao homem como ser
criativo (um direito tanto natural quanto divino). A propriedade
individual responde exatamente às condições dos fenômenos
físicos. A propriedade pública é fictícia; seus termos verbais
não correspondem à realidade, nem às características dos objetos
físicos, nem às condições do tempo e do espaço. Várias pessoas
podem morar na mesma casa, mas apenas pela distribuição de objetos
entre elas, no espaço e no tempo, especificamente ou por
precedência. Ninguém poderia viver em uma casa se o público em
geral tivesse o direito de entrar e sair, de sentar nas cadeiras, de
dormir nas camas, de usar a cozinha. Dez homens podem ser legalmente
os iguais proprietários de um campo, mas nenhum deles pode obter
nenhum bem dali, a menos que a ocupação e o uso sejam distribuídos
entre eles por medidas de tempo e espaço. Nenhum acordo pode
suplantar essa necessidade. Se os dez homens quisessem fazer
exatamente a mesma coisa, ao mesmo tempo e no mesmo ponto, isso seria
fisicamente impossível, com ou sem consenso. A propriedade privada
em grupo se transforma necessariamente no gerenciamento por uma
pessoa, com a divisão do produto, e pode levar à divisão da
propriedade em si, no caso de um desacordo irreconciliável.
Teoricamente,
a propriedade pública pertence a todas as pessoas igualmente,
indivisivelmente e simultaneamente, o que é absurdo. Se essa
premissa fosse aplicada, o resultado seria que qualquer pessoa que se
apresentasse para usar a propriedade teria de responder à pergunta:
“Você é todas as pessoas?” e seria obrigado a dizer: “Não”.
Sendo assim, não poderia reivindicar o uso de qualquer divisão
específica da propriedade. O uso real da propriedade pública pelo
público é, portanto, limitado aproximadamente a duas condições
dimensionais, nas quais a medida cúbica não precisa ser levada em
consideração. Assim, cada homem é considerado um ponto em uma
reta, que pode ser dividida em infinitos de pontos e estar no
cruzamento de infinitas retas numa superfície plana. Assim, é
possível — independentemente se isso é ou não necessário ou
aconselhável — fazer com que as estradas sejam propriedade
pública, porque a maneira de se usar uma estrada é viajar por ela.
Embora o usuário de fato ocupe um dado espaço num dado instante, a
duração é desprezível, de maneira que o tempo e o espaço não
precisam ser levados em consideração, exceto por negação,
proibição: o passageiro não tem o direito de permanecer por tempo
indefinido em um ponto da estrada. A mesma regra se aplica aos
parques e aos prédios públicos. A viabilidade desse arranjo torna
plausível a ficção da “propriedade pública”. Na verdade,
mesmo no uso de uma estrada, se uma quantidade excessiva de membros
do público tentar se mover por ela de uma vez, a regra regride para
“quem chega primeiro é atendido primeiro” (divisão no tempo e
no espaço), ou as autoridades podem fechar a estrada. O público não
tem o direito essencial de propriedade de ocupação contínua e
definitiva.
A
“propriedade pública” que é usada para outras finalidades
(diferentes da simples passagem) não está disponível ao público
de maneira nenhuma. Parte da Mansão Executiva está aberta ao
público para visitação em parte do tempo; mas as condições foram
demonstradas claramente quando duas crianças entraram no prédio sem
permissão e invadiram uma área proibida. A esposa do Executivo
Chefe considerou recomendável imprimir um aviso de que essa conduta
não é segura; as crianças poderiam ter sido baleadas por um
segurança. “Domínio público” que é alugado por dinheiro é
usado pelos locatários como pessoas privadas e o aluguel não é
distribuído aos membros do público; é usado pelas autoridades.
Seja qual for a forma de posse ou usufruto de uma propriedade
“pública”, as autoridades a ocupam ou consomem o usufruto,
enquanto o público paga pela manutenção. Nenhum “serviço
público” está disponível ao público como se este fosse o
proprietário. Qualquer cidadão que deseje obter eletricidade de uma
usina municipal tem de pagar com seus recursos privados pela
quantidade de energia medida que usar. Ele não é o proprietário:
um proprietário não precisa comprar o produto de sua propriedade.
Ao mesmo tempo, um cidadão que não use eletricidade nenhuma é
cobrado indiretamente, da mesma maneira, porque o custo de manutenção
é pago por impostos, embora o cidadão não possa exercer nenhum
direito de propriedade na usina. Ele não tem nem sequer o direito de
entrar nas instalações, o que é a primeira prerrogativa de um
proprietário.
A
propriedade pública então admite o uso
pelo público
somente de passagem, não para produção, comércio, consumo ou para
segurança como base de terra. Onde toda a propriedade é “pública”,
no comunismo, as autoridades se apropriam para uso pessoal de
qualquer coisa que queiram, com dinheiro público para manutenção;
enquanto o público existe condição perpétua de passageiros de uma
estrada, não tendo direito de permanecer em nenhum ponto ou de usar
nenhum objeto; todas as atividades dos membros do público são por
permissão ou por compulsão.
É
impossível imaginar um método prático pelo qual o uso ou o produto
de qualquer tipo de propriedade produtiva fique disponível “ao
público” como tal. Embora qualquer pessoa que chegue possa usar
uma estrada (a menos que ela fique congestionada), não é possível
desenvolver nenhum meio pelo qual qualquer pessoa que chegue possa se
servir de eletricidade, ou de batatas, como membro do público, “de
acordo com sua necessidade”. A expressão não tem aplicação à
realidade numa
sociedade produtiva.
É uma ideia limitada às condições da natureza selvagem, na qual o
homem primitivo vive de qualquer coisa que consiga obter, na forma de
caça, frutas, peixe ou insetos.
O
coletivista é incapaz de entender isso, porque seu conceito de
“coletivo” não
possui dimensões.
A sociedade fundada na propriedade privada é organizada para um
homem de três dimensões, ocupando espaço num mundo de três
dimensões, através do qual a energia flui em ação e é colocada
em uso para a produção. A sociedade coletivista é “planejada”
para um mundo de duas dimensões, no qual nada é concebido como se
ocupasse espaço ou causasse deslocamento. O homem é imaginado
estando em todos os lugares ao mesmo tempo e em nenhum lugar em
particular, na coletividade. O conceito é de um mundo e uma
sociedade nos
quais não existe energia,
nem cinética nem estática.
Mas,
como cada objeto ocupa espaço tridimensional na realidade e
movimentar objetos causa deslocamento, sempre que os comunistas tomam
o poder político para realizarem sua suposta experiência, o
comunismo é colocado num futuro vindouro, nunca no presente. O
presente é descrito como “um período de transição”. O senso
comum da fala coloquial reconhece os fatos, com o advento do
coletivismo, quando as pessoas reclamam que estão sendo humilhadas.
Talvez
o coletivista tenha uma vaga noção da dificuldade lógica com a
coletividade não-dimensional, já que todas as teorias coletivistas
começam com a suposição de um maquinário e um sistema produtivos
tomados
de uma sociedade de propriedade privada e iniciativa pessoal. Mesmo
que não admitam, os coletivistas devem sentir que sua sociedade
hipotética não é produtiva, porque a produção cria seus próprios
meios. Para esconder essa dificuldade, dão ênfase à distribuição
e ao consumo como o ponto crucial de seus planos. Mas não conseguem
imaginar nenhum método prático que realize sua promessa; podem
apenas oferecer uma cópia em papel das formas de distribuição
criadas pela sociedade da propriedade privada, enquanto eliminam as
relações morais e físicas que tornaram viáveis essas formas. Ou
seja, têm de usar medidas quantitativas para os bens, e para o tempo
de trabalho (medidas desnecessárias para o meio de vida selvagem na
generosidade da natureza); e um meio de trocas. Mas negam o direito
do dono e produtor à sua propriedade e ao seu produto. Agindo assim,
negam o direito do homem ao seu próprio trabalho, ou seja, à sua
própria pessoa. Todas as sociedades coletivas exigem trabalho
forçado. Com isso, não pode haver comércio verdadeiro, somente
expropriação e esmolas estatais.
Os
coletivistas usam a palavra “direito”, mas jamais em um contexto
que corresponda à realidade e permita uma aplicação específica.
Pela teoria marxista, é óbvio que eles não deveriam usar nunca a
palavra “direito”, porque o Materialismo Dialético é
determinista; portanto, não admite nem direitos nem injustiças. O
uso da fala é comunicação, mas os marxistas usam as palavras com o
objetivo de confundir; mesmo assim, supõem que uma sociedade
produtiva, que depende essencialmente de comunicação exata, pode
ser organizada depois que destruírem a comunicação. Com isso,
regridem para menos que a selvageria e até para menos que o nível
animal. Descem ao ponto do simples mecanismo. Engrenagens numa
máquina não precisam de linguagem.
Assim,
os coletivistas falam de direitos civis numa sociedade coletiva,
quando nessa sociedade os direitos civis não podem existir. Não
podem porque não existe um lugar
onde possam ser exercidos, nem materiais sobre os quais possam ter
efeito. Como pode um homem falar livremente, se não existe um lugar
onde sua audiência tenha o direito de ficar? Como pode praticar sua
religião, se não tem o direito de possuir um edifício religioso e
não tem direito à sua própria pessoa? Como pode existir uma
imprensa livre, se os materiais não são propriedade privada? Com a
propriedade estatal, nada
pode ser feito, exceto por ordem ou permissão.
Um escravo vive submetido a ordens e permissões. Um escravo não é
livre.
Os
coletivistas falam, com frequência, do “direito ao trabalho”. O
que isso significa, em termos de realidade física? Numa sociedade
livre, todo homem tem, por natureza, o direito de trabalhar. Ninguém
pode forçá-lo a trabalhar; e ninguém pode impedi-lo de trabalhar
em sua propriedade ou em contrato com outra pessoa. Mas, se não
possui propriedade, ou se sua propriedade não produz o suficiente
para garantir sua subsistência, ele precisa procurar emprego com
outras pessoas. O trabalhador nunca terá o poder de exigir que todos
os seus termos sejam aceitos pela outra parte, da mesma maneira que
não encontrará na natureza tudo que gostaria de ter. Mas, uma vez
que o empregador precisa contratar trabalhadores (se não precisasse,
não contrataria), existe uma base para barganhas e acordos. Se
nenhum dos dois quiser aceitar os termos do outro, cada um pode
procurar por outro possível empregador ou trabalhador. Mas diz-se
que o trabalhador sem propriedade (terra) tem uma necessidade mais
urgente que o possível empregador; não pode esperar até que seus
termos sejam aceitos, e o empregador pode. (Não se considera, nessa
teoria, que empregadores também vão à falência, embora isso
certamente aconteça. Assume-se, pelo contrário, que podem sentar e
esperar para sempre, se quiserem.) Portanto, como a terra existe na
natureza e todas as matérias-primas são de origem natural, diz-se
que, se um homem não pode exigir e receber um emprego que garanta
seu sustento, seu direito natural ao trabalho foi negado.
Mas
existe alguma economia de produção imaginável na qual a
contingência do desemprego não ocorra, com condições muito mais
duras associadas a ele?
Certamente,
numa sociedade nômade selvagem, os recursos brutos da natureza estão
disponíveis diretamente a todos os homens (assim como aos animais
inferiores), “de acordo com suas habilidades”. Mas, no momento em
que alguém começa a utilizar esses recursos além das habilidades
dos animais, produzindo armas ou ferramentas, a propriedade privada
sobre esses objetos é necessariamente estabelecida. E qualquer outro
homem pode presumivelmente fazer ferramentas similares a partir dos
recursos da natureza. Da mesma maneira, quando a terra é cultivada
de maneira primitiva, marginal à economia caçadora — como alguns
índios norte-americanos cultivavam milho em seus acampamentos de
verão — não são necessários limites exatos; e, presumivelmente,
qualquer pessoa poderia fazer suas próprias ferramentas e arar um
pedaço não utilizado de terra. Mas as causas naturais vão provocar
fome recorrente. O caçador tem o direito de caçar, mas não
encontra caça. Os animais podem devorar o milho; não há cerca. As
construções não são sólidas nem duráveis; não há como
armazenar os alimentos. Então, todos passam fome, e é isso.
Com
assentamentos permanentes, a posse permanente da terra pelo cultivo
regular passa a ser reconhecida. Quanto mais evoluída a forma de
produção, mais necessário determinar a propriedade. E a
propriedade pode assumir variadas formas, por pessoas ou grupos
locais ou famílias ou outras divisões, possivelmente sujeitas a uma
redistribuição. Os dois extremos do título de propriedade são
propriedade governamental e propriedade privada individual. A questão
é: por qual sistema o homem permanece com seus direitos naturais?
Com
a propriedade em grupo, cada homem precisa nascer membro de um grupo
ou ser formalmente admitido a ele. Caso contrário, não tem direito
de propriedade. Se pertencer ao grupo, pode, em certas
circunstâncias, ficar preso ao solo. Assim era o sistema feudal. Era
um conceito tridimensional; cada homem tinha um lugar, o direito de
trabalhar numa porção específica de terra. Mas os homens eram
sujeitos ao trabalho forçado em muitos dias do ano; não tinham o
direito de mudar de emprego; e tinham muito poucas possibilidades de
aumentar sua produção, melhorando suas ferramentas. Seus direitos
naturais eram extremamente restritos; perdiam a mobilidade e a
escolha. A compensação presumida era a estabilidade com o circuito
local de energia de produção. Mas ainda sofriam fomes recorrentes,
como no estado de natureza. O sistema feudal não tinha condições
de formar um longo circuito de energia. Um fugitivo de um grupo
feudal não tinha como entrar em outro grupo; tinha de procurar a
sociedade de contrato. Muitos o fizeram, uma prova de qual sistema é
preferível; outros compraram sua liberdade.
Com
a propriedade privada individual, todo homem tem o direito natural de
possuir propriedade. Pode herdá-la, pode trabalhar para ganhar
dinheiro e adquiri-la. Essa aquisição é razoavelmente possível a
qualquer pessoa competente e sadia, no tempo de vida natural, pelo
trabalho e economia. Quando alguém a consegue, a propriedade é sua,
assim como tudo o que ela produzir. O dono pode experimentar suas
próprias ideias, melhorar ou aumentar a produção, construir para
alugar, ou usar a propriedade para sua satisfação. Pode acumular
provisões para quando envelhecer ou contra vicissitudes de qualquer
tipo. Além disso, numa sociedade de contrato, se ele tiver boa
capacidade gerencial ou ideias criativas, pode obter capital a
crédito, sem garantias de sua parte exceto sua honestidade de
conduta e retribuição se o projeto der certo, com o sócio
capitalista assumido o risco financeiro do fracasso, enquanto o que
toma o capital tem a chance de um ganho considerável, sabendo que o
obteve de maneira justa, aumentando a produção. Essas são as
vantagens características da propriedade privada individual.
Vamos
então enunciar o caso contra a propriedade privada, suas possíveis
desvantagens, com o máximo rigor, na pior condição possível.
Muitas pessoas podem não ter herdado nenhuma propriedade, nem ter
tido tempo de acumular recursos de seus ganhos antes de encontrar
tempos difíceis. É verdade que alguns podem ter tido a chance e a
desprezado; mas nunca será verdade que todos os desempregados
tiveram essa chance antes. Alguns são jovens; outros trabalharam
produtivamente, mas enfrentaram doenças ou perdas. E não se pode
dizer mesmo dos imprudentes que seus direitos naturais tenham sido
anulados. A oportunidade pode aparecer novamente no futuro, mas isso
não suaviza as dores imediatas da necessidade. Parte do tempo de
vida dessas pessoas será um período de grandes dificuldades, o que
parece ainda pior porque outros têm melhor sorte sem esforço
próprio.
Mas
é verdade que os desempregados estão nessa condição por não
terem acesso à terra?
Na
Europa, em tempos modernos, praticamente toda a terra utilizável
tinha dono. Não havia terra selvagem à qual um desempregado pudesse
ter “acesso”; e seria improvável que os donos de terra
permitissem que os desempregados a usassem de graça. Mas, nos
Estados Unidos, nunca houve um dia nos “tempos difíceis” em que
um desempregado não pudesse ter acesso à terra selvagem, ou mesmo a
terras pertencentes a alguém, mas que o dono permitisse que fossem
usadas para produção. Mesmo assim, nos tempos difíceis, as pessoas
não migraram para as terras selvagens. A afirmação de que a
fronteira selvagem incorporou os desempregados durante as depressões
industriais é uma completa falsidade. Pelo contrário, a fronteira
foi conquistada a partir do excedente de produção capitalista dos
bons tempos. Nos tempos ruins, os homens saíam da fronteira, até
mesmo abandonando seus lotes, e retornavam para as áreas mais
desenvolvidas, as cidades e as regiões industriais. Buscavam
empregos assalariados.
Então,
diz-se que se nega aos desempregados o “acesso aos meios de
produção”, o que inclui a terra. Mas os meios de produção de
uma economia industrial não se encontram prontos na natureza. Então,
o homem que deseja um emprego precisa de algo além de seu direito
natural original. Precisa do uso de ferramentas, de capital acumulado
e da organização de uma economia altamente produtiva, que sejam
aplicados aos recursos da natureza.
Mas
essa definição ainda não abrange toda a dificuldade. Os donos de
propriedade industrial ocasionalmente trabalham com prejuízo, para
manter sua fábrica e seus contatos comerciais para o futuro. Nos
Estados Unidos, em tempos de crise, muitos empregadores certamente
ficariam felizes se conseguissem manter o pleno emprego naquele
momento, cobrindo o custo da matéria-prima, manutenção e salários
de produção e gerenciamento. Os dividendos podem esperar e
frequentemente são adiados. Mas, se uma fábrica ociosa, contendo
até mesmo um estoque de matéria-prima, fosse entregue a
trabalhadores desempregados, dando assim a eles o livre “acesso aos
meios de produção”, esses trabalhadores não conseguiriam manter
uma produção contínua para remunerar seu trabalho, porque isso
depende de vendas constantes com lucro; conseguiram apenas usar o
estoque inteiro e parar de trabalhar.
Então,
o desempregado numa economia de propriedade privada não perdeu seus
direitos naturais e não está em uma situação de privação maior
do que estaria no estado de natureza. É livre para buscar o que
precisa, mas, naquele momento, o que busca é escasso, difícil de
encontrar. Será que ele preferiria retornar ao estado de natureza?
Não. Sua recusa é racional. A privação, de fato, foi grandemente
reduzida; os Estados Unidos, a única grande economia livre que o
mundo desenvolveu, nunca conheceu a fome, embora os índios, no mesmo
território, tenham sofrido com ela. Não há perda, mas ganho
líquido. Se o desempregado enfrenta dificuldades, não é porque
seus direitos naturais tenham sido negados, mas porque, naquele
momento, ele não tem acesso a algo que não conseguiria na natureza.
Mas
aquilo de que ele precisa não pode ser definido simplesmente como
acesso à terra ou aos meios de produção; o que lhe falta é uma
conexão direta ao longo
circuito
de energia.
O
ponto principal da acusação do coletivista é que, em tempos
difíceis, existem bens não distribuídos, maquinário produtivo
ocioso e homens precisando de trabalho e de bens. Embora os bens
sejam de fato rapidamente distribuídos, com prejuízo aos donos se
necessário, e o emprego produtivo retomado, não se considera que
isso constitua a condição ideal para um sistema de trabalho. Seriam
possíveis melhorias em sua operação específica que permitissem
melhores resultados seguindo a mesma linha. Então, a acusação real
contra o capitalismo privado deveria ser a de que ele desacelera
ocasionalmente, que quebras e interrupções ocorrem. Não funciona
com absoluta, invariante, matemática regularidade para suprir as
necessidades de todos contínua e infalivelmente e sem exceções,
apesar dos riscos infinitos da falibilidade humana, moral e
intelectual.
O
coletivista promete uma organização que não sofrerá avarias
nunca, nem mesmo temporariamente. Insiste que possui o plano da
máquina perfeita, “automática”. Em seus próprios termos, a
teoria é insana. Se for reduzida às suas especificações, deve ser
como a maravilhosa One-Hoss Shay,
na qual cada material, peça e detalhe eram exatamente tão fortes
quanto todo o restante dos itens, de maneira que nenhuma peça
poderia quebrar. A carruagem imaginária de fato parou de funcionar,
mas inteira de uma vez, completamente, em total desintegração.
Espera-se que o governo coletivista absoluto “definhe” e
desapareça da mesma maneira. Mas, embora o governo seja a única
forma específica que o coletivista tenha em mente, ele insiste que,
no momento de sua dissolução, outro tipo de organização tomará
seu lugar automaticamente, sem que ele saiba exatamente qual — a
proposição vai morrendo em incoerências e murmúrios de revelações
que serão feitas depois.
Existe
apenas mais uma suposta objeção proposta pelo coletivista, seu
argumento final contra a propriedade privada. Diz-se que, a partir de
um determinado estágio do desenvolvimento capitalista, sempre e
necessariamente haverá mais gente procurando emprego que empregos;
portanto, o trabalhador não terá poder real de barganhar e
conseguir um salário digno, mas será obrigado a aceitar qualquer
coisa que o empregador oferecer. É uma variação invertida da
teoria malthusiana. Malthus pensava que havia uma “lei” que fazia
com que a população crescesse mais rapidamente que a produção, de
maneira que os trabalhadores estariam sempre “lutando pela
subsistência” (como fazem os animais na natureza) — e a única
coisa que poderia remediar esse mal seria a limitação da população.
É claro que, teoricamente, o mundo poderia ser superpovoado, além
do que seus recursos naturais são capazes de suportar; mas Malthus
estava argumentando especificamente sobre o problema da pobreza em um
sistema produtivo funcional num mundo que ainda tinha abundância de
espaço não ocupado. Sua suposta lei funciona numa economia
coletivista, porque essa economia não permite melhorias nos meios de
produção; consequentemente, as sociedades coletivistas legitimaram
o infanticídio no passado. Embora Malthus tenha vivido durante o
período em que a produção industrial estava ganhando ritmo, ele
parece ter caído numa armadilha aritmética, como a falácia de
Aquiles e a tartaruga; ou então pensou que a produção já tivesse
atingido ou estivesse perto de atingir sua capacidade máxima. De
qualquer maneira, os coletivistas foram obrigados a reconhecer que a
produção refutou Malthus, crescendo prodigiosamente, ano após ano.
Então, tiveram de dizer que o problema era a “superprodução”;
o trabalhador poderia em breve acabar com seu emprego como resultado
de seu trabalho! Essa teoria criou a expressão “desemprego
tecnológico”, que se diz que é causado pelas melhorias mecânicas
nos meios de produção. Ou seja, se for inventada uma máquina com a
qual um homem faz o trabalho que antes era feito por dez, ela deve
desempregar permanentemente os outros nove. Parece plausível, mas é
verdade?
Malthus
imaginou um limite fixo de capacidade produtiva por pessoa, uma
quantidade arbitrária. (Deve ter imaginado isso, porque certamente
existe um limite para o número de filhos que um adulto pode ter.) O
coletivismo com a teoria de “desemprego tecnológico” supõe um
número fixo de empregos, outra quantidade arbitrária. No sistema
feudal, havia esse número fixo de empregos, estabelecido pela
distribuição de terras numa área determinada e ratificado pelo
senhor feudal e pela comunidade. Essa condição não precisava ser
enunciada em teoria, era factual e inevitável nas circunstâncias;
mas, infelizmente, foi transportada para teorias sobre a livre
iniciativa, na qual não tem significado. No feudalismo, a limitação
específica do número de empregos podia esticar ou encolher um
pouco, mas era basicamente constante.
Nenhuma
regra semelhante pode ser aplicada ou mesmo imaginada como aplicável
num sistema de livre iniciativa de capital privado, se os fatos forem
examinados.
Numa
economia livre, não
pode haver um número fixo de empregos,
nem por um minuto. Emprego, produção e consumo numa
sociedade de livre iniciativa
não podem ser calculados com as mesmas razões e relações que os
coletivistas supõem (e eles as obtiveram de fato nas sociedades
coletivistas). As sociedades coletivistas antigas supunham que
determinada quantidade de pessoas conseguia produzir determinada
quantidade de bens; evidentemente, uma quantidade podia ser dividida
pela outra pro
rata.
(O que, na prática, sempre resultava na mera subsistência.) Então,
se toda a terra ou todos os materiais disponíveis estivessem em
produção, o número máximo de empregos estaria preenchido; alguém
teria de sair de um emprego para que outra pessoa pudesse obter um
emprego. E, se uma quantidade excedente fosse produzida, no cômputo
total, para a mesma quantidade de trabalho, isso faria com que a
demanda (necessidade) de trabalho diminuísse na mesma quantidade.
Teoricamente, tiraria o emprego de alguém. Esse cálculo é feito
realmente na base da estrita subsistência, na qual “consumo” é
o que as pessoas comem e vestem.
Mas,
em uma sociedade de livre iniciativa, o
aumento da produção aumenta o número de empregos.
Seria possível dizer que um emprego cria outro, o que é verdadeiro,
mas dá margem a interpretações errôneas; porque somente os
empregos produtivos fazem isso. Se um homem fosse pago para recolher
pedrinhas na praia e jogá-las no oceano, seria o mesmo que estar num
“emprego governamental” ou receber uma bolsa; a parte produtiva
da economia tem de sustentá-lo sem nenhum retorno. Isso impede o
aumento normal de empregos. Dar uma bolsa aos desempregados não
aumenta
o “poder de compra”. As bolsas dividem o que já estava com a
produção. “Poder de compra”, em si, é comércio. O aumento de
produção é que aumenta o “poder de compra” e, portanto, cria
empregos.
Há
menos homens empregados hoje na grande indústria metalúrgica que
havia antes na forjaria manual? Ou no transporte ferroviário e
rodoviário que no transporte a carroças? Ou na construção civil
com escavadeiras, betoneiras e afins que na construção manual? Não.
O resultado real não é apenas que as pessoas têm mais ferramentas,
casas maiores e viajam mais, o que tende a manter os empregos —
elas também querem ter e têm coisas que nunca haviam tido antes.
Carros precisam de pneus, estradas, gasolina; casas são equipadas
com novas conveniências; quando as pessoas viajam, querem hotéis,
diversões, mais roupas — tudo isso significa a criação de mais
empregos, empregos novos.
Nada
aumenta mais o número de empregos que as máquinas que poupam
trabalho, porque elas libertam necessidades anteriormente
desconhecidas ao permitirem o ócio. Numa economia pré-industrial,
os empregos são feitos pela simples divisão de trabalho;
habilidades adquiridas e organização permitem alguma economia de
esforço. Mas, em geral, as pessoas literalmente não têm um
excedente de energia
suficiente para desejar muito mais. O que quer uma pessoa que está
completamente fatigada? A resposta é simplesmente nada. E se
trabalhar por muitas horas, também não terá tempo para usar o que
pudesse querer. Ao conservar a energia corporal humana, multiplicando
a produção resultante de um mesmo gasto de força muscular, a
economia livre permite aos homens querer coisas que eram
inimagináveis no estado de natureza.
Aqui
temos um estranho caso em que a organização humana escapa das
implicações gerais da Segunda Lei da Termodinâmica. A energia
física manifestada por meio de um mecanismo inanimado — gasolina
introduzida num automóvel, eletricidade num aspirador de pó — não
faz com que o mecanismo deseja ou exija nem mais nem menos que uma
dada quantidade, conhecida a priori, que ele pode acomodar, da qual
uma porcentagem fixa será “perdida” na transmissão e o restante
será usado para realizar uma tarefa mensurável. Um homem pode
absorver apenas uma quantidade limitada de energia física em comida,
mas no nível do bem-estar suas necessidades de outras coisas crescem
progressiva e incalculavelmente. E ele próprio é capaz de criar
dispositivos para aumentar sua energia e fazê-los trabalhar para
atingir seus novos objetivos. Seu circuito é intrinsecamente
diferente de qualquer circuito específico composto apenas de
materiais inanimados. Cálculos mecânicos estritamente
quantitativos, por proporção ou quantidade não
podem ser aplicados a priori à livre organização produtiva humana
como um todo.
O
sistema de livre iniciativa começa corretamente com um conceito,
correspondente à realidade, de um homem tridimensional num mundo
tridimensional e que possui livre arbítrio, a capacidade moral para
contratos. Portanto, implica na propriedade privada individual, pela
qual esse homem pode adquirir e manter seu próprio lugar, a partir
do qual suas relações no tempo de no espaço são passíveis de
acordo e autoajuste. A esfera econômica é protegida da influência
política estática, porque se entende que a quantidade de produção
e as mudanças de posição não
podem ser calculadas antecipadamente.
A
teoria coletivista começa com um homem não dimensional em uma
coletividade não dimensional e em um mundo bidimensional, que exclui
a propriedade privada, mas supõe que a produção e a divisão do
produto são tridimensionais. É impossível elucidar as inúmeras
contradições implícitas nessa confusão. O coletivista nem mesmo
tenta criar um sistema prático próprio, coerente com suas teorias;
simplesmente regride ao barbarismo da distribuição por decreto, ao
mesmo tempo em que diz que vai usar o maquinário produtivo da livre
iniciativa, que na verdade só pode funcionar com o impulso indutivo
da distribuição pelo livre comércio.
Ao
argumentar contra o capitalismo de livre iniciativa, o coletivista
sempre adota a falsa premissa de um número fixo de empregos nesse
sistema. De modo inverso, ao argumentar a favor do coletivismo,
assume sempre que haverá tantos empregos quantos trabalhadores
houver. O governo criará os empregos.
A
única condição final e inequívoca do coletivista é que toda a
propriedade deve estar nas mãos do governo para o bem da
coletividade. Nesse caso, todos
terão de pedir trabalho ao governo;
e ninguém
poderá possuir recursos que lhe permitam negociar os termos de sua
contratação enquanto espera. Também não haverá nenhum outro
empregador a quem o trabalhador possa recorrer.
Na
livre iniciativa, os empregos são criados espontaneamente pelo
sistema produtivo. A pessoa que quer trabalhar é contratada
diretamente pela pessoa que quer que um trabalho seja feito, cada um
sendo livre para procurar o outro; cada um está pessoalmente
interessado no benefício. (Se dizemos que um intermediário contrata
homens para realizarem um trabalho que outra pessoa quer que seja
feito, é evidente que o intermediário também quer que o trabalho
seja feito, para seu próprio benefício.) Toda demanda age
diretamente para estimular uma oferta; toda oferta é um estímulo
para descobrir uma demanda. (A oferta cria a demanda tanto quanto a
demanda faz com que passe a existir a oferta.) Por toda a longa série
de trocas, cada pessoa tem um interesse direto em conseguir bens ou
em produzi-los; assim, a sequência geral cria o longo circuito de
energia, pela transmissão ininterrupta.
A
teoria coletivista do inevitável “conflito de classes” numa
economia livre apoia-se na falácia econômica do “fundo de
salários”. Ela supõe uma quantidade fixa a ser dividida entre
“trabalho” e “capital”, de maneira que nenhum dos dois possa
ganhar mais, exceto à custa do outro; portanto, seus interesses
devem ser diametralmente opostos e antagônicos. Sem dúvida, os
indivíduos devem sempre ter seus interesses separados. Mas, em uma
economia livre, não há nada a dividir até que “capital e
trabalho” tenham chegado a um acordo. Logo, seus interesses
separados os unem. E o aumento da produção pode aumentar a parte de
cada um, não a parte de um à custa da parte do outro.
Quando
o governo é o único empregador, alguém certamente quer trabalhar,
ou que um trabalho seja feito, ou quer certo produto; mas ninguém
nunca negocia diretamente com outra pessoa que tem um interesse
semelhante na transação. O homem que quer trabalhar deve pedir ao
governo algum tipo de emprego, em troca de uma parte da suposta
produção “geral”. Assim, entre o que oferece e o que deseja,
intervém uma agência que não tem interesse na transação. O
incentivo imediato é realmente o contrário: os funcionários não
querem ter mais trabalho por aceitarem mais pessoas para as quais
“empregos” devem ser “criados”. Então, o governo distribui o
produto. Não interessa às pessoas empregadas na distribuição se a
qualidade é boa ou não, nem se as coisas são manuseadas para a
conveniência do produtor ou do consumidor; porque nem o produtor nem
o consumidor têm o poder de decidir qual distribuidor irão usar, ou
qual o preço do artigo. O interessado deve ir até seja qual for o
armazém que seu tíquete indicar, e pegar o que houver, em termos
fixos, ou ficar sem; enquanto as pessoas empregadas na distribuição
vão preferir manusear quantidades menores, em vez de maiores. Os
funcionários vão primeiro pegar para si mesmos a melhor parte.
Além
disso, todas essas pessoas precisam pedir emprego ao governo durante
a vida inteira. É ocioso exigir isso como um direito, uma vez que
elas não têm o menor poder para fazer cumprir essa exigência. Não
podem acumular materiais e terra para se tornarem independentes; e,
obviamente, não podem pegar algumas ferramentas improvisadas e
começarem a trabalhar com os primeiros materiais ou o primeiro
pedaço de terra que encontrarem. Devem
pedir permissão para tudo, dia após dia, hora após hora.
Se
é verdade que, com a propriedade privada, algumas pessoas que não
têm propriedade num dado momento (não têm “acesso” à terra ou
aos meios de produção) ficam em desvantagem quando procuram
emprego, com o coletivismo, todos ficam nessa condição. Todo
trabalhador perdeu todos
os seus direitos naturais e não ganhou absolutamente
nada
em troca. Ainda está sujeito à fome e, na melhor das hipóteses,
ganha o suficiente para a mera subsistência; mas não pode ficar em
algum lugar por direito ou mudar-se para outro lugar por direito.
Longos trens de prisioneiros transportados em vagões de gado para
onde não querem ir são a condição lógica dos membros da
coletividade.
Numa
coletividade, aumentar a produção acima do nível de subsistência
para o bem “do povo” vai especificamente contra o interesse dos
funcionários. Isso só daria mais trabalho a eles; e (se a produção
fosse consumida) tenderia a aumentar a energia da população
miserável, e tornar “o povo” insubordinado.
Mesmo quando o interesse dos funcionários é de aumentar a produção
de material bélico durante uma guerra (quando pretendem salvar o
próprio pescoço), a necessidade tem de ser atendida pela importação
de maquinário e bens, ao custo de se reduzir a margem de
subsistência, ou a crédito, uma dívida que não será paga nunca.
Em
quais circunstâncias o indivíduo consegue ter algum poder contra o
governo? Numa economia livre, os poderes do governo são limitados.
Cidadãos individuais são os donos das propriedades produtivas.
Independentemente de isso estar expresso em uma legislação formal,
o que garante a limitação do poder do governo é o fato de que ele
precisa obter seus suprimentos dos cidadãos pela taxação. E essa
taxação pode ser limitada por uma divisão apropriada das agências
políticas (freios e contrapesos) e por um sistema representativo
adequado, em que os representantes sejam obrigados a se submeter ao
voto para se reelegerem. Ninguém tem o direito de exigir emprego do
governo, porque está claro que os “empregos” governamentais são
não-produtivos. Entretanto, se o cidadão sem propriedade possui um
voto, também tem meios de subornar o governo para que crie um
emprego para ele, expropriando a propriedade de outro cidadão. Esse
suborno depende inteiramente de que outros cidadãos possuam
propriedade privada. Se o processo continuar até que toda a
propriedade privada tenha sido expropriada ou esteja sujeita à
expropriação, nenhum cidadão, nenhum eleitor, terá ficado com
nenhum poder contra o governo, nem nenhum suborno a oferecer ao
governo.
Na
coletividade, onde não existe propriedade privada e o governo possui
tudo e o indivíduo nada, o poder do governo é absoluto; não
importa qual seja a reivindicação que um trabalhador faça, ele não
terá meios de obtê-la.
O
governo certamente pode “criar empregos”, mas não há ligação
entre a oferta e a demanda, não há indução no fluxo de energia. A
única demanda efetiva é a dos funcionários por aquilo que
pessoalmente desejam; mas como eles não têm necessidade de produzir
nada em troca, não há comércio; é simplesmente uma carga líquida
sobre o trabalho forçado. O circuito de energia é cortado a cada
transação.
Além
disso, se o conceito não-dimensional da coletividade se aproximasse
da realidade — o que é impossível — o “direito ao trabalho”
seria completamente sem sentido. Nenhuma parte do coletivo poderia
agir sem que o todo agisse de acordo. Se considerarmos que uma pessoa
é apenas um componente do coletivo, e uma pessoa desejar fazer uma
única coisa, ela deve teoricamente conseguir o consentimento de
todas as outras pessoas, sejam mil, um milhão, cem milhões ou dois
bilhões. É ridículo. Evidentemente, o que a pessoa de fato tem de
fazer é conseguir o consentimento de certas autoridades. Agora, em
uma sociedade livre, qualquer pessoa que deseja se incumbir de um
empreendimento, no qual se use capital e sejam empregadas várias
pessoas, deve obter o consentimento dos donos do capital e das
pessoas que farão o trabalho. Isso nem sempre é fácil, mas ela
pode tratar com os interessados diretamente e eles tomarão sua
decisão de acordo com a opinião que tiverem sobre seu próprio
interesse. Muito poucas ideias originais dão um retorno de produção
imediato; incontáveis ideias fracassam gastando muito dinheiro; mas
os interessados têm o direito de correr o risco. Como pode qualquer
funcionário público receber explicitamente a autoridade de correr
um risco semelhante? Não pode. O assunto exige o julgamento pessoal
de cada proposta em particular. Todos os funcionários públicos do
coletivo podem, por acaso, ter autoridade para dispor de todos os
materiais disponíveis? Não. Cada funcionário pode ter autoridade
para dispor de uma dada porção dos materiais disponíveis para —
para quê? Para uma proposta de inovação experimental, feita por
alguém, enquanto ninguém sabe qual será o resultado dela? É óbvio
que não. O que o funcionário pode fazer? Pode negociar um favor,
mas estará correndo um risco sem nenhuma participação específica
nos possíveis lucros. E qual o incentivo para o inovador, o homem de
ideias criativas? Nenhum.
Logo,
a sociedade coletiva é estática. Qualquer maquinário produtivo que
contenha foi herdado ou emprestado de um campo primário de liberdade
em outro lugar, uma economia livre. Com esses empréstimos, ninguém
na coletividade precisa ser responsável nem pela decisão nem pelo
gasto do período da invenção original. O maquinário pode ser
obtido por um custo fixo. Pode até ser copiado por uma estimativa
fixa; mas não pode ser inventado.
A
história de diversas coletividades nominais pequenas dentro de uma
economia livre leva a conclusões extremamente enganosas, porque não
se reconhece a relação dessas comunidades com a economia livre.
Muitas fracassaram de início, mas alguns experimentos de grupo foram
“bem-sucedidos” de maneira notável. Onde o fundador de alguma
dessas coletividades determinou uma regra que rompeu as relações
sociais do grupo com a sociedade livre — como pelo celibato entre
os Shakers,
ou pelo “casamento comunitário” da comunidade Oneida —, é
possível que também tenham sido estabelecidas uma estrita limitação
interna sobre o consumo e uma disciplina sobre o trabalho regular.
Nessas experiências “de sucesso”, as comunidades não apenas
conseguiram sobreviver; na verdade, enriqueceram. Pergunta-se então:
por que o coletivismo não é pelo menos um sistema viável, pelo
qual as pessoas, se desejarem abdicar de sua liberdade, podem se
tornar ricas e seguras?
A
resposta é: porque não existiria uma economia livre em torno, a
partir da qual elas poderiam enriquecer. Esses grupos enclaves
vendiam seus produtos à economia livre e convertiam o ganho em
propriedade real, terra e construções, formas estáticas. Mas os
indivíduos envolvidos nunca abdicaram realmente de sua liberdade; é
impossível fazer isso enquanto existir a economia livre. Qualquer
membro da coletividade poderia sair no minuto em que desejasse.
Enquanto existisse a economia livre, nenhum membro da coletividade
poderia realmente ser submetido a uma punição pessoal,
aprisionamento, ou mesmo à disciplina determinada de trabalho, como
pela privação de sua subsistência, pela coletividade. Apenas
aqueles que voluntariamente se submetessem a ela estariam na
coletividade, e apenas pelo tempo em que desejassem permanecer. Nada
em seu processo econômico era exclusivo do sistema coletivista.
Qualquer um, na economia livre, poderia enriquecer com o mesmo
trabalho, economia e acumulação como os coletivistas praticavam.
Tudo
nesses grupos que é evidenciado como fruto do coletivismo se deve à
economia livre: os meios de produção; o mercado pelo qual a
produção é transformada em riqueza estática; as leis pelas quais
a vida e a posse são garantidas; e mesmo o hábito de
autodisciplina, pelo qual as regras são seguidas e o trabalho
executado. Acima de tudo, não havia absolutamente
nenhum poder
real de compulsão, de brutalidades, tortura, fome, exílio, execução
que o coletivismo inflige quando está no poder.
De
modo geral, a propriedade privada é a única base de uma sociedade
produtiva, o único
meio pelo qual qualquer
um
pode ter livre “acesso aos meios de produção”, não por
permissão, mas por direito natural. Em qualquer sociedade, ou mesmo
que só existisse um único homem em uma ilha deserta, existe
trabalho a ser feito; é uma lei da natureza. Mas, apenas em uma
sociedade de propriedade privada individual, um homem pode opinar
sobre as condições em que trabalhará, ou adquirir propriedade na
qual pode trabalhar como quiser, ou acumular propriedade por meio da
qual pode garantir o lazer subsequente, ou melhorar sua habilidade ou
os meios de produção em seu próprio benefício.
O
risco casual de uma sociedade livre — que é o mesmo da natureza,
de que alguns indivíduos podem temporariamente não dispor de meios
de subsistência — é a condição permanente de todos os homens em
uma sociedade coletiva. Ao renunciar à liberdade, o indivíduo não
recebe nada em troca e desiste para sempre de qualquer chance ou
esperança de conseguir qualquer coisa.
A
propriedade privada individual não é apenas a condição mais
favorável para uma economia de alta produção. É
a única linha de transmissão que torna possível a alta produção.
O
que qualquer sociedade coletiva promete, mesmo em sua propaganda mais
extravagante? Simplesmente, que copiará a produção das sociedades
livre — o que, na verdade, é impossível. No século dezenove,
alguns socialistas prometeram uma volta ao artesanato, embora o
artesanato tenha se desenvolvido com a propriedade privada, não com
a propriedade governamental. Os trabalhadores não se entusiasmaram.
Os comunistas então prometeram maquinário.
Durante
os últimos vinte e cinco anos, o coletivismo foi imposto a uma nação
europeia após a outra. Durante esse período, melhorias
consideráveis no maquinário foram feitas nos Estados Unidos. Alguma
nação coletivista fez alguma melhoria no maquinário? Nenhuma. A
coletividade nazista prometeu carros baratos aos trabalhadores
alemães, que os trabalhadores americanos têm em quantidade cada vez
maior há vinte e cinco anos. Algum carro barato foi produzido ou
comprado por um trabalhador na Alemanha? Ou na Rússia? Ou no Japão?
Nenhum. O padrão de vida aumentou em algum desses países? Não,
caiu muito abaixo do nível do século dezenove.
Como
um teste razoável das promessas e resultados da sociedade coletiva e
da sociedade livre, pergunto: quando existem simultaneamente, qual
das duas é escolhida pelos indivíduos, quando podem escolher?
Milhões de pessoas vieram aos Estados Unidos e permaneceram
alegremente, enquanto foi possível entrar; hoje, existe uma fila
para as cotas de imigração. Quantas pessoas pediram admissão e
residência permanente na Rússia, na Alemanha, na Itália ou no
Japão coletivistas? Algum alemão coletivista declarado tentou
entrar na Rússia? Não, eles procuram os Estados Unidos da mesma
maneira, se conseguirem entrar lá. As fronteiras das nações
coletivistas são fechadas — para impedir seu próprio povo de
fugir, como numa prisão. E os felizes coletivistas rastejam através
do arame farpado para sair.