III
A
imagem da revolução econômica como o passo final para a liberdade
se mostrou falsa tão logo eu me fiz essa pergunta. Porque, na
realidade, o Estado e o Governo não podem existir. São conceitos
abstratos, suficientemente úteis em seus lugares, como a teoria dos
números negativos é útil na matemática. Na experiência real
vivida, entretanto, é impossível subtrair alguma coisa de nada;
quando uma bolsa está vazia, está vazia. Não pode conter menos dez
dólares. Nesse mesmo plano de realidade, não existe Estado, não
existe Governo. O que existe de fato é um homem, ou alguns homens,
no poder sobre muitos outros homens.
A
Reforma reduziu o poder do Estado – os padres – de maneira que o
homem comum passou a ser livre para pensar e falar como quisesse. A
revolução política reduziu ou destruiu o poder do Estado – os
reis – de maneira que o homem comum ficou mais próximo de ser
livre para fazer o que quisesse. Mas esta revolução econômica
concentrava o poder econômico nas mãos do Estado – os comissários
– de maneira que a vida e os meios de subsistência do homem comum
estavam outra vez dominados por ditadores.
Todos
os avanços na direção da liberdade pessoal que haviam sido ganhos
pela revolução religiosa e pela revolução política foram
perdidos pela reação econômica coletivista.
Quando analisei
esses fatos, vi que não podia ser de outra maneira. A aldeia
comunista era possível porque lá uns poucos homens, cara a cara,
lutavam cada um por seu interesse próprio, até que daquele conflito
se chegasse a um equilíbrio razoavelmente satisfatório. A mesma
coisa acontece dentro de toda família. Mas o governo de centenas de
milhões de homens é outra coisa. O tempo e o espaço impedem uma
luta pessoal de tantas vontades, cada pessoa em um encontro pessoal
com cada outra, chegando a uma decisão comum. O governo de multidões
de homens fica necessariamente nas mãos de poucos.
Os
americanos criticavam Lênin porque ele não estabeleceu uma
república. Se ele tivesse feito isso, o fato de que poucos homens
governavam a Rússia não teria mudado.
O
governo representativo não pode expressar a vontade da massa de
pessoas porque não existe massa de pessoas. O Povo é uma ficção,
assim como o Estado. Não se consegue obter a Vontade da Massa, mesmo
entre uma dúzia de pessoas que querem fazer um piquenique. A única
massa humana com uma vontade comum é uma turba e essa vontade é uma
insanidade temporária. Na realidade, a população de um país é
uma multidão de seres humanos diferentes com uma infinita variedade
de objetivos e desejos e vontades flutuantes.
Numa
república, essa população decide de tempos em tempos, por maioria,
qual dos candidatos a um cargo público poderá usar o poder de
polícia do Estado. De tempos em tempos, uma ação da maioria pode
mudar os métodos pelos quais os homens chegam ao poder, a extensão
desse poder ou em que termos eles podem mantê-lo. Mas a maioria não
governa; não pode governar; no máximo, age como um freio sobre os
governantes. Qualquer governo de multidões de homens, em qualquer
lugar, em qualquer tempo, necessariamente é um homem ou uns poucos
homens no poder. Não há como escapar desse fato.
Uma
república não é possível na União Soviética porque o objetivo
de seus governantes é econômico. O poder econômico é diferente do
poder político.
A
política é uma questão de princípios gerais que, uma vez
adotados, podem permanecer inalterados indefinidamente; princípios
como, por exemplo, de que o governo deriva seus justos poderes do
consentimento dos governados. Desses princípios são extraídas
regras gerais, como “No
taxation without representation1”.
Essas regras são encarnadas na legislação que restringe ou limita
o poder político, como: “O direito exclusivo de cobrar impostos
pertence ao Congresso e apenas o Congresso pode gastar o dinheiro
recolhido de impostos”. Esta aplicação mais concreta do princípio
político não afeta os detalhes íntimos da vida do indivíduo.
Podemos descuidadamente permitir que o Congresso faça o que bem
entender, podemos deixar de reagir quando ele quiser tomar uma medida
que nos afeta, podemos resmungar quando temos de tomar um empréstimo
para pagar os impostos ou podemos perder nossa casa ou fazenda se não
conseguirmos e, mesmo assim, a liberdade pessoal de escolha ainda é
nossa.
A
economia, entretanto, não se preocupa com princípios abstratos e
leis gerais, mas com coisas materiais; trata diretamente com vagões
reais carregados de carvão, colheitas reais de grãos, produção
real de fábricas. O poder econômico em ação está sujeito a uma
infinidade de crises imprevisíveis que afetam as coisas materiais;
está sujeito às secas, a tempestades, a enchentes, a terremotos e
pestes, à moda, a doenças, a insetos, a falhas mecânicas e ao
desgaste do maquinário. E a economia participa dos pequenos detalhes
da existência de uma pessoa – sua alimentação, bebida, trabalho,
diversão e hábitos pessoais.
Governantes
econômicos devem decidir sobre questões como: quantos metros de
tecido devem ser usados num vestido de mulher? Batons devem ser
permitidos? Existe valor econômico no chiclete? Há um ponto de
vista perfeitamente válido segundo o qual toda a indústria de fumo
é um desperdício econômico.
Todo
o sistema de circulação da economia é afetado pelo número de
pessoas que lavam atrás das orelhas. Esse assunto tão pessoal afeta
a importação e produção de óleos vegetais; o uso de gordura de
animais de fazenda; a manufatura de produtos químicos: perfumes,
corantes; a construção ou o fechamento de fábricas de sabão, com
consequentes mudanças no emprego nessas fábricas e no negócio da
construção civil e indústrias pesadas e na demanda por
matérias-primas e por trabalho na sua produção; e nos fretes e no
uso de combustíveis, com seus efeitos sobre minas, campos de
petróleo e transportes. Já falamos do sabão. Considere agora as
toalhas de rosto que podem ou não ser usadas para lavar atrás das
orelhas, com todos os efeitos dessa decisão sobre plantações de
algodão ou linho e o trabalho, no campo e nas fábricas;
descaroçadores de algodão e seus subprodutos das sementes de
algodão: óleo, fertilizante ou alimento para o gado; e máquinas de
fiação e tecelagem e suas demandas sobre a indústria do aço.
Todos
esses fatores econômicos, e muitos outros, mudam se os hábitos
pessoais de higiene mudam. Uma dieta de Hollywood ou uma paixão por
quebra-cabeças têm resultados prodigiosos nos lugares mais remotos
e inesperados. O fato de a criança, faminta ao voltar da escola,
comer pão com manteiga ou doces é um assunto de importância
econômica internacional.
O
controle centralizado da economia sobre multidões de seres humanos
precisa, portanto, ser contínuo e flexível de uma maneira
sobre-humana, além de ser autocrático. Um governo assim precisa de
um fluxo rápido de decretos emitidos apressadamente para responder
em tempo a eventos que somem no passado, antes que possam ser
relatados, organizados, analisados e considerados e será obrigado a
usar a coerção. No esforço de ser bem-sucedido, o controle terá
de se tornar rigoroso e minucioso sobre pequenos detalhes da vida
individual, de uma maneira que ninguém aceitaria sem coerção. Não
pode ser submetido a verificações, revogações e remoções de
pessoas no poder que as maiorias podem provocar nas repúblicas.
1
Não há tributação sem representação. (NT)
A
imagem da revolução econômica como o passo final para a liberdade
se mostrou falsa tão logo eu me fiz essa pergunta. Porque, na
realidade, o Estado e o Governo não podem existir. São conceitos
abstratos, suficientemente úteis em seus lugares, como a teoria dos
números negativos é útil na matemática. Na experiência real
vivida, entretanto, é impossível subtrair alguma coisa de nada;
quando uma bolsa está vazia, está vazia. Não pode conter menos dez
dólares. Nesse mesmo plano de realidade, não existe Estado, não
existe Governo. O que existe de fato é um homem, ou alguns homens,
no poder sobre muitos outros homens.
A
Reforma reduziu o poder do Estado – os padres – de maneira que o
homem comum passou a ser livre para pensar e falar como quisesse. A
revolução política reduziu ou destruiu o poder do Estado – os
reis – de maneira que o homem comum ficou mais próximo de ser
livre para fazer o que quisesse. Mas esta revolução econômica
concentrava o poder econômico nas mãos do Estado – os comissários
– de maneira que a vida e os meios de subsistência do homem comum
estavam outra vez dominados por ditadores.
Todos
os avanços na direção da liberdade pessoal que haviam sido ganhos
pela revolução religiosa e pela revolução política foram
perdidos pela reação econômica coletivista.
Quando analisei esses fatos, vi que não podia ser de outra maneira. A aldeia comunista era possível porque lá uns poucos homens, cara a cara, lutavam cada um por seu interesse próprio, até que daquele conflito se chegasse a um equilíbrio razoavelmente satisfatório. A mesma coisa acontece dentro de toda família. Mas o governo de centenas de milhões de homens é outra coisa. O tempo e o espaço impedem uma luta pessoal de tantas vontades, cada pessoa em um encontro pessoal com cada outra, chegando a uma decisão comum. O governo de multidões de homens fica necessariamente nas mãos de poucos.
Quando analisei esses fatos, vi que não podia ser de outra maneira. A aldeia comunista era possível porque lá uns poucos homens, cara a cara, lutavam cada um por seu interesse próprio, até que daquele conflito se chegasse a um equilíbrio razoavelmente satisfatório. A mesma coisa acontece dentro de toda família. Mas o governo de centenas de milhões de homens é outra coisa. O tempo e o espaço impedem uma luta pessoal de tantas vontades, cada pessoa em um encontro pessoal com cada outra, chegando a uma decisão comum. O governo de multidões de homens fica necessariamente nas mãos de poucos.
Os
americanos criticavam Lênin porque ele não estabeleceu uma
república. Se ele tivesse feito isso, o fato de que poucos homens
governavam a Rússia não teria mudado.
O
governo representativo não pode expressar a vontade da massa de
pessoas porque não existe massa de pessoas. O Povo é uma ficção,
assim como o Estado. Não se consegue obter a Vontade da Massa, mesmo
entre uma dúzia de pessoas que querem fazer um piquenique. A única
massa humana com uma vontade comum é uma turba e essa vontade é uma
insanidade temporária. Na realidade, a população de um país é
uma multidão de seres humanos diferentes com uma infinita variedade
de objetivos e desejos e vontades flutuantes.
Numa
república, essa população decide de tempos em tempos, por maioria,
qual dos candidatos a um cargo público poderá usar o poder de
polícia do Estado. De tempos em tempos, uma ação da maioria pode
mudar os métodos pelos quais os homens chegam ao poder, a extensão
desse poder ou em que termos eles podem mantê-lo. Mas a maioria não
governa; não pode governar; no máximo, age como um freio sobre os
governantes. Qualquer governo de multidões de homens, em qualquer
lugar, em qualquer tempo, necessariamente é um homem ou uns poucos
homens no poder. Não há como escapar desse fato.
Uma
república não é possível na União Soviética porque o objetivo
de seus governantes é econômico. O poder econômico é diferente do
poder político.
A
política é uma questão de princípios gerais que, uma vez
adotados, podem permanecer inalterados indefinidamente; princípios
como, por exemplo, de que o governo deriva seus justos poderes do
consentimento dos governados. Desses princípios são extraídas
regras gerais, como “No
taxation without representation1”.
Essas regras são encarnadas na legislação que restringe ou limita
o poder político, como: “O direito exclusivo de cobrar impostos
pertence ao Congresso e apenas o Congresso pode gastar o dinheiro
recolhido de impostos”. Esta aplicação mais concreta do princípio
político não afeta os detalhes íntimos da vida do indivíduo.
Podemos descuidadamente permitir que o Congresso faça o que bem
entender, podemos deixar de reagir quando ele quiser tomar uma medida
que nos afeta, podemos resmungar quando temos de tomar um empréstimo
para pagar os impostos ou podemos perder nossa casa ou fazenda se não
conseguirmos e, mesmo assim, a liberdade pessoal de escolha ainda é
nossa.
A
economia, entretanto, não se preocupa com princípios abstratos e
leis gerais, mas com coisas materiais; trata diretamente com vagões
reais carregados de carvão, colheitas reais de grãos, produção
real de fábricas. O poder econômico em ação está sujeito a uma
infinidade de crises imprevisíveis que afetam as coisas materiais;
está sujeito às secas, a tempestades, a enchentes, a terremotos e
pestes, à moda, a doenças, a insetos, a falhas mecânicas e ao
desgaste do maquinário. E a economia participa dos pequenos detalhes
da existência de uma pessoa – sua alimentação, bebida, trabalho,
diversão e hábitos pessoais.
Governantes
econômicos devem decidir sobre questões como: quantos metros de
tecido devem ser usados num vestido de mulher? Batons devem ser
permitidos? Existe valor econômico no chiclete? Há um ponto de
vista perfeitamente válido segundo o qual toda a indústria de fumo
é um desperdício econômico.
Todo
o sistema de circulação da economia é afetado pelo número de
pessoas que lavam atrás das orelhas. Esse assunto tão pessoal afeta
a importação e produção de óleos vegetais; o uso de gordura de
animais de fazenda; a manufatura de produtos químicos: perfumes,
corantes; a construção ou o fechamento de fábricas de sabão, com
consequentes mudanças no emprego nessas fábricas e no negócio da
construção civil e indústrias pesadas e na demanda por
matérias-primas e por trabalho na sua produção; e nos fretes e no
uso de combustíveis, com seus efeitos sobre minas, campos de
petróleo e transportes. Já falamos do sabão. Considere agora as
toalhas de rosto que podem ou não ser usadas para lavar atrás das
orelhas, com todos os efeitos dessa decisão sobre plantações de
algodão ou linho e o trabalho, no campo e nas fábricas;
descaroçadores de algodão e seus subprodutos das sementes de
algodão: óleo, fertilizante ou alimento para o gado; e máquinas de
fiação e tecelagem e suas demandas sobre a indústria do aço.
Todos
esses fatores econômicos, e muitos outros, mudam se os hábitos
pessoais de higiene mudam. Uma dieta de Hollywood ou uma paixão por
quebra-cabeças têm resultados prodigiosos nos lugares mais remotos
e inesperados. O fato de a criança, faminta ao voltar da escola,
comer pão com manteiga ou doces é um assunto de importância
econômica internacional.
O
controle centralizado da economia sobre multidões de seres humanos
precisa, portanto, ser contínuo e flexível de uma maneira
sobre-humana, além de ser autocrático. Um governo assim precisa de
um fluxo rápido de decretos emitidos apressadamente para responder
em tempo a eventos que somem no passado, antes que possam ser
relatados, organizados, analisados e considerados e será obrigado a
usar a coerção. No esforço de ser bem-sucedido, o controle terá
de se tornar rigoroso e minucioso sobre pequenos detalhes da vida
individual, de uma maneira que ninguém aceitaria sem coerção. Não
pode ser submetido a verificações, revogações e remoções de
pessoas no poder que as maiorias podem provocar nas repúblicas.
1
Não há tributação sem representação. (NT)
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