VI
Quando
perguntei a mim mesma: “Sou verdadeiramente livre?”, comecei
lentamente a entender a natureza do homem e da situação humana
neste planeta. Entendi finalmente que todo ser humano é livre; que
sou dotada pelo Criador de liberdade inalienável enquanto sou dotada
de vida; de que minha liberdade é inseparável de minha vida, uma
vez que a liberdade é a natureza de autocontrole do indivíduo.
Minha liberdade é meu controle de minha energia vital, pelos usos
sobre os quais, portanto, somente eu sou responsável.
Mas
o exercício dessa liberdade é outra coisa, uma vez que, em qualquer
uso de minha energia vital, encontro obstáculos. Alguns desses
obstáculos, como o tempo, o espaço, as condições climáticas, são
eternos na situação humana neste planeta. Alguns se impõem por si
mesmos e vêm da minha própria ignorância das realidades. E,
durante os anos em que morei na Europa, uma enorme quantidade de
obstáculos foi impingida a mim pelo poder de polícia dos homens que
governam os Estados europeus.
Considero
que é uma verdade evidente por si mesma que todos os homens são
dotados pelo Criador de uma liberdade inalienável, de autocontrole
individual e de responsabilidade por pensamentos, palavras e atos, em
qualquer situação. Até que ponto essa liberdade natural pode ser
exercida depende da quantidade de coerção externa imposta sobre o
indivíduo. Nenhum carcereiro pode obrigar um prisioneiro a falar ou
agir contra a vontade dele, prisioneiro, mas correntes podem
impedi-lo de agir e uma mordaça pode impedi-lo de falar.
Os
americanos têm mais liberdade de pensamento, de escolha e de
movimento que os outros povos jamais tiveram.
Não
herdamos limitações de casta para restringir nossa gama de desejos
e ambições à classe em que nascemos.
Não
temos uma burocracia governamental para monitorar cada movimento
nosso, para registrar quais amigos ligam para nossa casa e a que
horas eles chegam e saem, para que a polícia esteja plenamente
informada caso sejamos assassinados. Não temos funcionários
públicos que, no interesse do recolhimento justo e equitativo dos
impostos sobre a gasolina, param nosso carro e medem o conteúdo do
tanque quando entramos numa cidade americana ou saímos dela.
Não
somos obrigados, como são os europeus do continente, a levar o tempo
todo um cartão de identificação emitido pela polícia, renovado e
pago a intervalos regulares, onde consta nossa foto propriamente
carimbada e nosso nome, idade, endereço, parentesco, religião e
ocupação.
Os
trabalhadores americanos não são classificados; não carregam
cartões emitidos pela polícia onde os empregadores registram cada
dia em que eles trabalham; não têm locais de diversão separados
dos das classes mais altas e sua diversão não está sujeita a
interrupções por policiais fazendo batidas para inspecionar seus
cartões de trabalhadores, e agindo a partir da premissa de que
qualquer trabalhador cujo cartão mostre que ele não trabalhou na
semana anterior é um ladrão.
Em
1922, como correspondente estrangeira em Budapeste, acompanhei uma
dessas batidas policiais. O Chefe de Polícia mostrava a um colega da
Scotland Yard em visita à Hungria os mecanismos de seu trabalho.
Saímos às dez da noite, com sessenta policiais que se moviam com a
bela precisão dos soldados.
Cercaram
uma área no bairro operário da cidade e vieram fechando o cerco,
enquanto o Chefe explicava que essa era a rotina de sempre; todo o
bairro era varrido dessa maneira a cada semana.
Aparecemos
de repente nas entradas dos bares de operários, lugares sujos com
serragem sobre o chão de terra, onde um músico tentava tristemente
tirar música de uma rabeca barata e homens e mulheres em andrajos
cinzentos sentavam-se em mesas descobertas e bebericavam
economicamente cerveja ou café. Seu terror ao ver os uniformes era
abjeto. Todos se levantavam e humildemente erguiam as mãos. Os
policiais sorriam com o prazer peculiar dos seres humanos de posse de
tão grande poder.
Vasculhavam
os bolsos dos homens, zombando um pouco de um objeto ou outro.
Achavam os cartões de trabalho, inspecionavam-nos, enfiavam de volta
nos bolsos. Ao ouvir a abrupta liberação, os homens se deixavam
cair nas cadeiras e enxugavam a testa.
Em
toda parte, alguns cartões não passavam na inspeção. Nenhum
empregador os havia carimbado nos últimos três dias; homens e
mulheres eram levados ao camburão.
Aqui
e ali, quando entrávamos, alguém tentava fugir pela porta dos
fundos ou pela janela e caía, é claro, nas mãos da polícia.
Podíamos ouvir os policiais rindo. O Chefe recebeu os cumprimentos
do detetive britânico. Tudo foi feito com perfeição, ninguém
escapou.
Várias
mulheres protestavam freneticamente, chorando, implorando de joelhos,
de maneira que quase tinham de ser carregadas para o camburão. Uma
jovem lutou, gritando horrivelmente. Foram necessários dois
policiais para contê-la; não eram brutos, mas quando ela mordeu as
mãos que eles colocavam nos braços dela, um terceiro lhe deu um
tapa no rosto. No camburão, ela continuou gritando como louca. Eu
não entendia húngaro. O Chefe explicou que algumas mulheres
resistiam a receber cartões de prostituta.
Quando
uma empregada doméstica ficava vários dias sem trabalho, a polícia
tomava o cartão que a identificava como trabalhadora e que permitia
que ela trabalhasse; dava em troca um cartão de prostituta. Homens
que não tinham trabalhado recentemente eram condenados a uma pena
curta de prisão por roubo. Obviamente, dizia o Chefe, se não
estavam trabalhando, eram prostitutas e ladrões; como poderiam
subsistir de outra forma?
– Talvez
com suas economias? – sugeri.
Os
trabalhadores só ganham o suficiente para viver cada dia, não têm
como economizar, disse o Chefe. É claro, se por um acaso
extraordinário algum deles ganhou um pouco de dinheiro honestamente
e puder provar, o juiz irá soltá-lo.
Tendo
vasculhado todos os bares, começamos a olhar as pensões. Morei em
subúrbios em Nova York e São Francisco. Os americanos que não
viram os subúrbios europeus não têm a menor ideia do que é um
subúrbio.
Até
o amanhecer, a polícia subia pelas pensões imundas e descia até
seus porões, agitando a massa de esfarrapados e exigindo os cartões
de identificação dessas pessoas de olhos arregalados. Não
prendemos tantos desempregados lá, porque é mais caro dormir sob um
teto que sentar num bar; o simples fato de que tinham abrigo indicava
que trabalhavam. Mas a polícia era minuciosa e acordou todo mundo.
Trabalhavam quietos e de bom humor; essa batida não tinha nada da
violência de uma operação da polícia americana. Quando uma porta
trancada não se abria, a polícia tentava todas as chaves-mestras
disponíveis antes de arrombá-la.
O
homem da Scotland Yard dizia: – Admirável, sir,
admirável. Os sistemas policiais do continente são maravilhosos,
realmente. Vocês tem controle absoluto aqui. – Então falou seu
orgulho britânico, reprovativamente, como sempre fazia. – Nunca
poderíamos fazer algo assim em Londres, vocês não sabem? A casa de
um inglês é seu castelo, e tudo o mais. Temos de ter um mandado
antes que possamos vasculhar recintos ou tocar na pessoa de alguém.
Limitação irracional, sabe? Não temos nada parecido com o seu
controle daqui do continente.
Foi
a única busca policial de um bairro operário que presenciei na
Europa. Não acredito que a sujeição ao controle governamental em
outros lugares chegue ao ponto de forçar mulheres a se prostituir e
pode ser que isso não aconteça mais na Hungria. Mas esse
sistemático cerco e busca em bairros operários ocorria normalmente
em toda a Europa, e sei que se considerava um fato real que o
desemprego forçava as pessoas para além do limite entre a privação
e o crime.
Como
qualquer habitante da Europa, fui parada muitas vezes a caminho de
casa por dois policiais educados que pediam para ver minha carteira
de identidade. Era tão comum que não era preciso explicar. Sabia
que meu bairro de classe média, plenamente respeitável, era
cercado, simplesmente por questão de rotina policial, e todo mundo
tinha que mostrar a identidade emitida pela polícia.
De
todo modo, desconfio que a criminalidade não fosse menor nessa
Europa controlada pela polícia que na América. Muitos crimes eram
contados em parágrafos curtos com letra pequena em qualquer jornal.
Não havia nenhum lugar numa cidade americana em que eu tivesse medo
de ir sozinha à noite. Sempre houve muitos bairros de cidades
europeias que eram realmente perigosos depois do pôr-do-sol, e
vários tipos de criminosos que matariam qualquer homem, mulher ou
criança bem vestidos, só para ficar com as roupas.
O
mais terrível é que o motivo por trás de toda essa supervisão do
indivíduo é um bom motivo, um motivo racional. Como poderia um
governante manter a ordem social sem ela?
Existe
certo instinto de método e autopreservação que permite que
aglomerações de seres humanos livres saiam de um lugar de alguma
maneira. Nenhuma multidão deixa um teatro com eficiência, nem sem
desconforto, impaciência e tempo perdido, mas normalmente chegamos à
calçada sem brigar. Ordem é outra coisa. Todo professor sabe que
não dá para manter a ordem sem regras, supervisão e disciplina. É
uma questão de grau; quanto mais rígida e autocrática a
disciplina, maior a ordem. Toda ordem social genuína exige, como
primeiro fundamento, a classificação, regulamentação e obediência
dos indivíduos. Sendo os indivíduos o que são, infinitamente
variados e cheios de vontades, a obediência tem de ser imposta.
A
grande perda num ambiente de ordem social é de tempo e energia.
Ficar sentado em salas de espera até que se possa entrar numa fila
para chegar à mesa de um burocrata parece, para qualquer americano,
uma perda mortal e viver nessa ordem social encurta a vida das
pessoas. Também fora do escritório do burocrata, essa
regulamentação pelo bem público constantemente obstrui toda ação.
É tão impossível mover-se livremente na vida diária quanto
ziguezaguear ou apressar o passo quando se segue uma procissão.
Na
América, não existem decretos comerciais dificultando a atividade
de cada balconista ou cliente, como acontece na França, de maneira
que se gasta meia hora a mais em cada compra numa loja de
departamentos. Os comerciantes franceses são tão inteligentes
quanto os americanos, mas não podem instalar tubos de vácuo e um
sistema ágil de contabilidade num caixa central. – Para quê? –
eles perguntariam a você. Eles ainda seriam obrigados a registrar
cada compra por escrito num livro, na presença do comprador e do
vendedor, conforme decretou Napoleão.
Também
era um decreto inteligente, quando Napoleão o emitiu. Os
comerciantes franceses poderiam mudá-lo? – É muito engraçado –
diziam eles sem nenhuma vontade de rir. O decreto estava emaranhado
em cem anos de complicações burocráticas e, além disso, imagine
quanto desemprego sua revogação causaria entre aqueles caixas
cansados, molhando a pena na tinta especificada, registrando a data e
hora numa nova linha e perguntando: – Seu nome, madame?
– escrevendo. – Seu endereço? – escrevendo. – Pagou em
dinheiro? – escrevendo. – Vai levar a compra consigo? Ah, certo.
– escrevendo. – Ah, entendo. Um novelo de linha, de algodão,
preta, qual o tamanho? – escrevendo. – E a senhora ofereceu em
pagamento? Sim, um franco. – escrevendo. – Por um franco, veja,
madame,
dou-lhe cinquenta centavos de troco. Bem. Está satisfeita, madame?
Ninguém
avaliava quanto desemprego isso causava às multidões de clientes
esperando pacientemente todos os dias, nem se aqueles funcionários
poderiam estar fazendo alguma coisa útil, que criasse riqueza, se
nunca tivessem sido empregados daquela maneira. Napoleão quis
impedir o desperdício da desorganização, da fraude e das brigas
nos mercados de seu tempo. E conseguiu. O resultado é que uma parte
muito grande da França ficou permanentemente estacionada no tempo de
Napoleão. Se ele tivesse deixado os franceses desperdiçarem e
brigarem e fraudarem e serem lesados, como os americanos faziam em
seus mercados igualmente primitivos, as lojas de departamentos da
França certamente teriam se tornado tão vivamente eficientes e
economizadoras de tempo como as da América.
Ninguém
que sonha com uma ordem social ideal e com uma economia planejada
para eliminar o desperdício e a injustiça leva em consideração
quanta energia, quanto da vida humana é desperdiçado
administrando-se e seguindo-se a melhor das regulamentações.
Ninguém leva em conta o quanto essa regulamentação se tornaria
rígida, nem que ela teria de se tornar rígida e resistir a
mudanças, porque seu objetivo subjacente é proteger os homens dos
riscos do acaso e das mudanças causadas pelo passar do tempo.
Os
americanos, em nosso país, nunca experimentaram a disciplina de uma
ordem social. Falamos de uma ordem social melhor quando, de fato, não
sabemos o que é ordem social. Dizemos que há algo errado com nosso
sistema quando, de fato, não temos sistema. Usamos frases aprendidas
da Europa, sem conceber seu significado na experiência real vivida.
Na
América, não temos nem mesmo treinamento militar universal, a base
da ordem social que mostra a todo cidadão do sexo masculino que ele
é submisso ao Estado e subtrai dele alguns anos de juventude,
enfraquecendo, portanto, o poder militar de todas as nações que o
adotaram.
Um
contrato de aluguel de apartamento na América é valido a partir do
momento em que é assinado; não é necessário levá-lo à polícia
para ser carimbado, nem registrar uma cópia na coletoria de
impostos, de maneira que, para fins fiscais, nossa renda seja
considerada dez vezes maior que o aluguel que pagamos. Na teoria
econômica, não há dúvida de que não é adequado pagar um aluguel
maior que 10 por cento do que ganhamos e talvez seja economicamente
justo que alguém tão extravagante a ponto de pagar mais seja punido
pelos impostos. Nunca se consegue vencer com argumentos os motivos
por trás das burocracias europeias; invariavelmente, os motivos são
excelentes.
Um
americano pode olhar o mundo a sua volta e pegar o que quiser, se
conseguir. Só a lei penal e seu caráter, habilidade e sorte o
limitam.
É
o que os europeus querem dizer quando, depois de alguns dias neste
país, exclamam: “Vocês são tão livres aqui!” Para um
americano que volta depois de morar muito tempo no exterior, o mais
infinito alívio é poder ir de um hotel a outro, de uma cidade a
outra, poder entrar correndo numa loja e comprar um carretel de
linha, resolver às três e meia tomar o trem das quatro, comprar um
carro se tiver o dinheiro ou o crédito e dirigi-lo para onde bem
entender, tudo sem ter que relatar absolutamente nada ao governo.
Mas
qualquer pessoa para quem liberdade é a liberdade de ganhar seu
sustento se possível, como sempre foi meu caso, sabe que essa
independência é outro nome para responsabilidade.
Os
pioneiros americanos expressaram isso de maneira clara e direta. Eles
dizem: “Fuce, porco, ou morra”1.
Não
pode haver uma terceira alternativa para o leitão que sai do
chiqueiro, para ir onde quiser e fazer o que preferir. Liberdade
individual é responsabilidade individual. Quem quer que tome
decisões é responsável pelos resultados. Quando os homens comuns
eram escravos e servos, obedeciam e eram alimentados, mas morriam aos
milhares por pragas e fome. Homens livres pagam sua liberdade ao
deixar aquela segurança falsa e ilusória.
A
questão é se a liberdade pessoal vale o terrível esforço, o peso
nunca aliviado e os riscos, os inevitáveis riscos, de depender de si
mesmo.http://www.libertarianismo.org/index.php/biblioteca/234-rose-wilder-lane/1074-quero-liberdade
1
Em inglês, “Root, hog, or die”. Expressão idiomática
comum nos Estados Unidos a partir do século XIX, que quer dizer que
as pessoas devem depender de si mesmas.
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