sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

Quero Liberdade (cap. VI), de Rose Wilder Lane

VI

Quando perguntei a mim mesma: “Sou verdadeiramente livre?”, comecei lentamente a entender a natureza do homem e da situação humana neste planeta. Entendi finalmente que todo ser humano é livre; que sou dotada pelo Criador de liberdade inalienável enquanto sou dotada de vida; de que minha liberdade é inseparável de minha vida, uma vez que a liberdade é a natureza de autocontrole do indivíduo. Minha liberdade é meu controle de minha energia vital, pelos usos sobre os quais, portanto, somente eu sou responsável.

Mas o exercício dessa liberdade é outra coisa, uma vez que, em qualquer uso de minha energia vital, encontro obstáculos. Alguns desses obstáculos, como o tempo, o espaço, as condições climáticas, são eternos na situação humana neste planeta. Alguns se impõem por si mesmos e vêm da minha própria ignorância das realidades. E, durante os anos em que morei na Europa, uma enorme quantidade de obstáculos foi impingida a mim pelo poder de polícia dos homens que governam os Estados europeus.

Considero que é uma verdade evidente por si mesma que todos os homens são dotados pelo Criador de uma liberdade inalienável, de autocontrole individual e de responsabilidade por pensamentos, palavras e atos, em qualquer situação. Até que ponto essa liberdade natural pode ser exercida depende da quantidade de coerção externa imposta sobre o indivíduo. Nenhum carcereiro pode obrigar um prisioneiro a falar ou agir contra a vontade dele, prisioneiro, mas correntes podem impedi-lo de agir e uma mordaça pode impedi-lo de falar.

Os americanos têm mais liberdade de pensamento, de escolha e de movimento que os outros povos jamais tiveram.

Não herdamos limitações de casta para restringir nossa gama de desejos e ambições à classe em que nascemos.

Não temos uma burocracia governamental para monitorar cada movimento nosso, para registrar quais amigos ligam para nossa casa e a que horas eles chegam e saem, para que a polícia esteja plenamente informada caso sejamos assassinados. Não temos funcionários públicos que, no interesse do recolhimento justo e equitativo dos impostos sobre a gasolina, param nosso carro e medem o conteúdo do tanque quando entramos numa cidade americana ou saímos dela.

Não somos obrigados, como são os europeus do continente, a levar o tempo todo um cartão de identificação emitido pela polícia, renovado e pago a intervalos regulares, onde consta nossa foto propriamente carimbada e nosso nome, idade, endereço, parentesco, religião e ocupação.

Os trabalhadores americanos não são classificados; não carregam cartões emitidos pela polícia onde os empregadores registram cada dia em que eles trabalham; não têm locais de diversão separados dos das classes mais altas e sua diversão não está sujeita a interrupções por policiais fazendo batidas para inspecionar seus cartões de trabalhadores, e agindo a partir da premissa de que qualquer trabalhador cujo cartão mostre que ele não trabalhou na semana anterior é um ladrão.

Em 1922, como correspondente estrangeira em Budapeste, acompanhei uma dessas batidas policiais. O Chefe de Polícia mostrava a um colega da Scotland Yard em visita à Hungria os mecanismos de seu trabalho. Saímos às dez da noite, com sessenta policiais que se moviam com a bela precisão dos soldados.

Cercaram uma área no bairro operário da cidade e vieram fechando o cerco, enquanto o Chefe explicava que essa era a rotina de sempre; todo o bairro era varrido dessa maneira a cada semana.

Aparecemos de repente nas entradas dos bares de operários, lugares sujos com serragem sobre o chão de terra, onde um músico tentava tristemente tirar música de uma rabeca barata e homens e mulheres em andrajos cinzentos sentavam-se em mesas descobertas e bebericavam economicamente cerveja ou café. Seu terror ao ver os uniformes era abjeto. Todos se levantavam e humildemente erguiam as mãos. Os policiais sorriam com o prazer peculiar dos seres humanos de posse de tão grande poder.

Vasculhavam os bolsos dos homens, zombando um pouco de um objeto ou outro. Achavam os cartões de trabalho, inspecionavam-nos, enfiavam de volta nos bolsos. Ao ouvir a abrupta liberação, os homens se deixavam cair nas cadeiras e enxugavam a testa.

Em toda parte, alguns cartões não passavam na inspeção. Nenhum empregador os havia carimbado nos últimos três dias; homens e mulheres eram levados ao camburão.

Aqui e ali, quando entrávamos, alguém tentava fugir pela porta dos fundos ou pela janela e caía, é claro, nas mãos da polícia. Podíamos ouvir os policiais rindo. O Chefe recebeu os cumprimentos do detetive britânico. Tudo foi feito com perfeição, ninguém escapou.

Várias mulheres protestavam freneticamente, chorando, implorando de joelhos, de maneira que quase tinham de ser carregadas para o camburão. Uma jovem lutou, gritando horrivelmente. Foram necessários dois policiais para contê-la; não eram brutos, mas quando ela mordeu as mãos que eles colocavam nos braços dela, um terceiro lhe deu um tapa no rosto. No camburão, ela continuou gritando como louca. Eu não entendia húngaro. O Chefe explicou que algumas mulheres resistiam a receber cartões de prostituta.

Quando uma empregada doméstica ficava vários dias sem trabalho, a polícia tomava o cartão que a identificava como trabalhadora e que permitia que ela trabalhasse; dava em troca um cartão de prostituta. Homens que não tinham trabalhado recentemente eram condenados a uma pena curta de prisão por roubo. Obviamente, dizia o Chefe, se não estavam trabalhando, eram prostitutas e ladrões; como poderiam subsistir de outra forma?

Talvez com suas economias? – sugeri.

Os trabalhadores só ganham o suficiente para viver cada dia, não têm como economizar, disse o Chefe. É claro, se por um acaso extraordinário algum deles ganhou um pouco de dinheiro honestamente e puder provar, o juiz irá soltá-lo.

Tendo vasculhado todos os bares, começamos a olhar as pensões. Morei em subúrbios em Nova York e São Francisco. Os americanos que não viram os subúrbios europeus não têm a menor ideia do que é um subúrbio.

Até o amanhecer, a polícia subia pelas pensões imundas e descia até seus porões, agitando a massa de esfarrapados e exigindo os cartões de identificação dessas pessoas de olhos arregalados. Não prendemos tantos desempregados lá, porque é mais caro dormir sob um teto que sentar num bar; o simples fato de que tinham abrigo indicava que trabalhavam. Mas a polícia era minuciosa e acordou todo mundo. Trabalhavam quietos e de bom humor; essa batida não tinha nada da violência de uma operação da polícia americana. Quando uma porta trancada não se abria, a polícia tentava todas as chaves-mestras disponíveis antes de arrombá-la.

O homem da Scotland Yard dizia: – Admirável, sir, admirável. Os sistemas policiais do continente são maravilhosos, realmente. Vocês tem controle absoluto aqui. – Então falou seu orgulho britânico, reprovativamente, como sempre fazia. – Nunca poderíamos fazer algo assim em Londres, vocês não sabem? A casa de um inglês é seu castelo, e tudo o mais. Temos de ter um mandado antes que possamos vasculhar recintos ou tocar na pessoa de alguém. Limitação irracional, sabe? Não temos nada parecido com o seu controle daqui do continente.

Foi a única busca policial de um bairro operário que presenciei na Europa. Não acredito que a sujeição ao controle governamental em outros lugares chegue ao ponto de forçar mulheres a se prostituir e pode ser que isso não aconteça mais na Hungria. Mas esse sistemático cerco e busca em bairros operários ocorria normalmente em toda a Europa, e sei que se considerava um fato real que o desemprego forçava as pessoas para além do limite entre a privação e o crime.

Como qualquer habitante da Europa, fui parada muitas vezes a caminho de casa por dois policiais educados que pediam para ver minha carteira de identidade. Era tão comum que não era preciso explicar. Sabia que meu bairro de classe média, plenamente respeitável, era cercado, simplesmente por questão de rotina policial, e todo mundo tinha que mostrar a identidade emitida pela polícia.

De todo modo, desconfio que a criminalidade não fosse menor nessa Europa controlada pela polícia que na América. Muitos crimes eram contados em parágrafos curtos com letra pequena em qualquer jornal. Não havia nenhum lugar numa cidade americana em que eu tivesse medo de ir sozinha à noite. Sempre houve muitos bairros de cidades europeias que eram realmente perigosos depois do pôr-do-sol, e vários tipos de criminosos que matariam qualquer homem, mulher ou criança bem vestidos, só para ficar com as roupas.

O mais terrível é que o motivo por trás de toda essa supervisão do indivíduo é um bom motivo, um motivo racional. Como poderia um governante manter a ordem social sem ela?

Existe certo instinto de método e autopreservação que permite que aglomerações de seres humanos livres saiam de um lugar de alguma maneira. Nenhuma multidão deixa um teatro com eficiência, nem sem desconforto, impaciência e tempo perdido, mas normalmente chegamos à calçada sem brigar. Ordem é outra coisa. Todo professor sabe que não dá para manter a ordem sem regras, supervisão e disciplina. É uma questão de grau; quanto mais rígida e autocrática a disciplina, maior a ordem. Toda ordem social genuína exige, como primeiro fundamento, a classificação, regulamentação e obediência dos indivíduos. Sendo os indivíduos o que são, infinitamente variados e cheios de vontades, a obediência tem de ser imposta.

A grande perda num ambiente de ordem social é de tempo e energia. Ficar sentado em salas de espera até que se possa entrar numa fila para chegar à mesa de um burocrata parece, para qualquer americano, uma perda mortal e viver nessa ordem social encurta a vida das pessoas. Também fora do escritório do burocrata, essa regulamentação pelo bem público constantemente obstrui toda ação. É tão impossível mover-se livremente na vida diária quanto ziguezaguear ou apressar o passo quando se segue uma procissão.

Na América, não existem decretos comerciais dificultando a atividade de cada balconista ou cliente, como acontece na França, de maneira que se gasta meia hora a mais em cada compra numa loja de departamentos. Os comerciantes franceses são tão inteligentes quanto os americanos, mas não podem instalar tubos de vácuo e um sistema ágil de contabilidade num caixa central. – Para quê? – eles perguntariam a você. Eles ainda seriam obrigados a registrar cada compra por escrito num livro, na presença do comprador e do vendedor, conforme decretou Napoleão.

Também era um decreto inteligente, quando Napoleão o emitiu. Os comerciantes franceses poderiam mudá-lo? – É muito engraçado – diziam eles sem nenhuma vontade de rir. O decreto estava emaranhado em cem anos de complicações burocráticas e, além disso, imagine quanto desemprego sua revogação causaria entre aqueles caixas cansados, molhando a pena na tinta especificada, registrando a data e hora numa nova linha e perguntando: – Seu nome, madame? – escrevendo. – Seu endereço? – escrevendo. – Pagou em dinheiro? – escrevendo. – Vai levar a compra consigo? Ah, certo. – escrevendo. – Ah, entendo. Um novelo de linha, de algodão, preta, qual o tamanho? – escrevendo. – E a senhora ofereceu em pagamento? Sim, um franco. – escrevendo. – Por um franco, veja, madame, dou-lhe cinquenta centavos de troco. Bem. Está satisfeita, madame?

Ninguém avaliava quanto desemprego isso causava às multidões de clientes esperando pacientemente todos os dias, nem se aqueles funcionários poderiam estar fazendo alguma coisa útil, que criasse riqueza, se nunca tivessem sido empregados daquela maneira. Napoleão quis impedir o desperdício da desorganização, da fraude e das brigas nos mercados de seu tempo. E conseguiu. O resultado é que uma parte muito grande da França ficou permanentemente estacionada no tempo de Napoleão. Se ele tivesse deixado os franceses desperdiçarem e brigarem e fraudarem e serem lesados, como os americanos faziam em seus mercados igualmente primitivos, as lojas de departamentos da França certamente teriam se tornado tão vivamente eficientes e economizadoras de tempo como as da América.

Ninguém que sonha com uma ordem social ideal e com uma economia planejada para eliminar o desperdício e a injustiça leva em consideração quanta energia, quanto da vida humana é desperdiçado administrando-se e seguindo-se a melhor das regulamentações. Ninguém leva em conta o quanto essa regulamentação se tornaria rígida, nem que ela teria de se tornar rígida e resistir a mudanças, porque seu objetivo subjacente é proteger os homens dos riscos do acaso e das mudanças causadas pelo passar do tempo.

Os americanos, em nosso país, nunca experimentaram a disciplina de uma ordem social. Falamos de uma ordem social melhor quando, de fato, não sabemos o que é ordem social. Dizemos que há algo errado com nosso sistema quando, de fato, não temos sistema. Usamos frases aprendidas da Europa, sem conceber seu significado na experiência real vivida.

Na América, não temos nem mesmo treinamento militar universal, a base da ordem social que mostra a todo cidadão do sexo masculino que ele é submisso ao Estado e subtrai dele alguns anos de juventude, enfraquecendo, portanto, o poder militar de todas as nações que o adotaram.

Um contrato de aluguel de apartamento na América é valido a partir do momento em que é assinado; não é necessário levá-lo à polícia para ser carimbado, nem registrar uma cópia na coletoria de impostos, de maneira que, para fins fiscais, nossa renda seja considerada dez vezes maior que o aluguel que pagamos. Na teoria econômica, não há dúvida de que não é adequado pagar um aluguel maior que 10 por cento do que ganhamos e talvez seja economicamente justo que alguém tão extravagante a ponto de pagar mais seja punido pelos impostos. Nunca se consegue vencer com argumentos os motivos por trás das burocracias europeias; invariavelmente, os motivos são excelentes.

Um americano pode olhar o mundo a sua volta e pegar o que quiser, se conseguir. Só a lei penal e seu caráter, habilidade e sorte o limitam.

É o que os europeus querem dizer quando, depois de alguns dias neste país, exclamam: “Vocês são tão livres aqui!” Para um americano que volta depois de morar muito tempo no exterior, o mais infinito alívio é poder ir de um hotel a outro, de uma cidade a outra, poder entrar correndo numa loja e comprar um carretel de linha, resolver às três e meia tomar o trem das quatro, comprar um carro se tiver o dinheiro ou o crédito e dirigi-lo para onde bem entender, tudo sem ter que relatar absolutamente nada ao governo.

Mas qualquer pessoa para quem liberdade é a liberdade de ganhar seu sustento se possível, como sempre foi meu caso, sabe que essa independência é outro nome para responsabilidade.

Os pioneiros americanos expressaram isso de maneira clara e direta. Eles dizem: “Fuce, porco, ou morra”1.

Não pode haver uma terceira alternativa para o leitão que sai do chiqueiro, para ir onde quiser e fazer o que preferir. Liberdade individual é responsabilidade individual. Quem quer que tome decisões é responsável pelos resultados. Quando os homens comuns eram escravos e servos, obedeciam e eram alimentados, mas morriam aos milhares por pragas e fome. Homens livres pagam sua liberdade ao deixar aquela segurança falsa e ilusória.

A questão é se a liberdade pessoal vale o terrível esforço, o peso nunca aliviado e os riscos, os inevitáveis riscos, de depender de si mesmo.http://www.libertarianismo.org/index.php/biblioteca/234-rose-wilder-lane/1074-quero-liberdade



1 Em inglês, “Root, hog, or die”. Expressão idiomática comum nos Estados Unidos a partir do século XIX, que quer dizer que as pessoas devem depender de si mesmas.

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