sábado, 23 de novembro de 2013

A Virgem e o Dínamo

O Deus da Máquina, capítulo XIV
A Virgem e o Dínamo
Isabel Paterson



Era certo que os Estados Unidos afetariam a mente da Europa, porque eram uma projeção da experiência e das esperanças europeias, postas à prova em supostas condições naturais, como um caso de teste contra a tradição. Os primeiros colonos trouxeram a este país suas habilidades e ferramentas, artes e letras, teologia, moral e ciência, seus costumes e leis; mas deixaram para trás quase todo o aparato de imposição das leis. Não trouxeram a economia fechada nem a religião sacramental; e a natureza fornecia recursos suficientes contra que sobrou de autoridade oficial. Podemos assumir que qualquer coisa que tenha sobrevivido por si mesma foi validada. A liberdade emergiu e triunfou.

Uma crítica sutil disse: “A Declaração da Independência tirou da Europa sua base moral”.1 A frase é perfeita; a Europa não foi colocada em uma nova base. A ideia americana jamais chegou à Europa (como, em circunstâncias semelhantes, a ideia da lei romana nunca foi compreendida na Ásia). Em vez disso, os fenômenos resultantes foram profundamente mal interpretados, acabando adaptados a uma teoria europeia divergente. As consequências físicas dessa discrepância moral se tornaram evidentes imediatamente na Revolução Francesa, com o Terror e a explosão napoleônica; mas o efeito pleno foi adiado até este século. Em um passo, os Estados Unidos causaram a atual explosão e desintegração da Europa. Nenhuma parcela desse dano foi feita por inimizade. Pelo contrário, enquanto persistiu o antagonismo indicado pela Doutrina Monroe2, a Europa tinha uma chance de se ajustar. A amizade da América, que despejou uma torrente de energia, foi fatal.

Enquanto os Estados Unidos estavam começando a existir como um punhado de colônias alegremente desprezadas, algo estranho aconteceu no pensamento europeu; por causa da ciência, ele retrocedeu ao determinismo nas esferas social e política.

O livre arbítrio como doutrina positiva era a afirmação original do Cristianismo. A morte é o único evento inevitável em toda vida humana; portanto, foi tomada pelo mundo pagão como prova definitiva de que “o destino de cada homem está marcado em sua testa”. Quando a morte passou a ser considerada um evento no tempo que emanciparia a alma da temporalidade para uma esfera mais ampla, o livre arbítrio passou a fazer parte da fé. (As principais heresias do Cristianismo sempre pularam de volta para o fatalismo.)3 O Cristianismo tendeu para Roma como seu centro de organização, porque no sistema político romano o livre arbítrio era considerado legítimo, não em uma margem precária, mas como o princípio operativo, em contraste com o determinismo de massa da democracia grega ou o beco sem saída do despotismo asiático.

Mas os mil anos de regime de status na Europa, apesar da modificação preservada pela Igreja, cultivaram em seus súditos uma fadiga profunda. Era difícil esquecer a queda do Império Romano, uma vez que os homens lutaram inutilmente para mantê-lo funcionando; seu fracasso fez com que perdessem a confiança em suas próprias capacidades e habilidades. A figura do Nobre Selvagem sinaliza o descrédito do governo de status, mas apenas por negação. A fusão gradual entre Igreja e Estado — que ocorreu tanto nos países católicos como nos protestantes — tirou da Igreja sua função de oposição à administração secular e facilitou o surgimento do Estado Absoluto. Ao mesmo tempo, a explicação de Galileu para o sistema solar, à primeira vista, levou a uma filosofia mecanicista. A ciência aplicada à invenção mecânica parecia confirmar essa implicação; e foi levada a especulações sobre as relações sociais, incluindo a economia política. No conjunto, o livre arbítrio praticamente desapareceu do contexto intelectual da Europa.

Não de maneira consciente, mas no fundo de sua mente, os europeus sentiam que haviam tentado tanto a política como a religião e nenhuma “funcionava”. Esse é o sentido sugerido das reflexões aparentemente sem opinião de Montaigne. Ele não chegou à conclusão, mas parou no ponto de inflexão. Nunca atacava nem a Igreja nem o Estado diretamente; procurava, em vez disso, um desvio; sua aparência exterior de conformidade era uma fuga tácita. Quando disse que, se fosse acusado de roubar as torres de Notre Dame, fugiria do país antes de tentar defender sua inocência num tribunal, a conclusão é evidente: não era possível ter justiça pela lei. A atitude é legítima como um ponto de partida para uma investigação, mas racionalmente deveria levar a um exame do sistema legal existente e dos corretos axiomas do direito, um caminho que seria trilhado em seguida com resultados úteis. O que Montaigne fez foi montar, pedaço por pedaço, fragmentos de evidências do comportamento humano a partir dos quais o homem “natural” pudesse ser sintetizado. Mas ele também nunca disse isso; embora suas evidências tendam a indicar primordialmente que o homem é um produto do ambiente. Mais tarde, quando a teoria do homem “natural” foi formulada, a teoria mecanicista do universo havia conquistado credibilidade na filosofia europeia. Deus era um matemático; Descartes e Newton eram Seus profetas. Na verdade, Descartes admitia que o homem era uma exceção em sua filosofia matemática, estando “continuamente em contato com a Ideia Divina”, mas os cartesianos de uma geração posterior chegaram a afirmar que os animais eram meras máquinas, incapazes de sentir dor.4 Um passo a mais e o homem estritamente “natural” também foi reduzido a um mecanismo nesse universo mecanicista.

Nesse ponto, alguns pensadores sociais afirmaram que, se as restrições artificiais da sociedade fossem abolidas, o homem como mecanismo funcionaria perfeitamente e precisamente conforme projetado. Mas não tentaram explicar como um mecanismo absolutamente natural num universo estritamente mecanicista poderia ter desenvolvido e imposto restrições “artificiais” a si mesmo, contrárias à sua própria natureza e maquinaria. Quando a questão foi colocada, como pôde a escola rigidamente mecanicista negar que “o que quer que seja, é o certo”, porque não poderia ser de outra maneira? Porém, se eles desejavam mudar a “sociedade”, deveriam supor que alguma coisa estava errada com ela. Naquele momento, foram obrigados a ignorar essa dificuldade; e, quando Marx avançou contra ela mais tarde com seu materialismo dialético, sua suposta solução simplesmente asfixiou a questão, postulando que algumas partes do mecanismo poderiam obedecer o conselho da merluza ao caracol5, e mover-se um pouco mais rápido se quisessem, ou retardar-se, se fossem teimosas. A máquina universal absoluta e perfeita tinha uma propensão a ficar maluca.

Enquanto isso, é extraordinário que os colonos ingleses na América, de origem puritana, que eram fatalistas por religião, defendessem o livre arbítrio em seus assuntos seculares, contra a corrente da Europa. Mas foi o que eles fizeram. Foram capazes de alcançar essa façanha intelectual restringindo a predestinação a seu significado exato e literal de um destino final, céu ou inferno. Nesta terra, haviam conseguido chegar à América por seu próprio esforço, confrontando a autoridade ou escapando dela. Então, superaram as enormes dificuldades da terra selvagem, acabando por estabelecer um governo local. Portanto, tinham fundamentos para acreditar no livre arbítrio político ou temporal; e, em boa hora, provaram essa convicção, com a grande demonstração que foi a revolução. (Não estou dizendo que somente os puritanos ou seus descendentes contribuíram para esse resultado; mas fizeram sua parte, ao passo que, na Europa, homens que eram originalmente da mesma fé concordaram que a doutrina determinista servisse ao Estado Absoluto.)

A filosofia mecanicista é uma importação muito posterior na América; e é completamente importada. Não decorre de nosso maquinário e absolutamente não criou a era das máquinas. Quando os americanos começaram a inventá-las e usá-las, eram da firme opinião de que produziam e faziam funcionar aqueles dispositivos a seu bel-prazer, sem nenhuma bobagem de que as máquinas “determinavam” ou “criavam” coisa nenhuma. Máquinas, para um americano, ainda são uma expressão do livre arbítrio. É difícil para um americano viajar num carro como mero passageiro; mentalmente, ele o dirige.

Mas o que os europeus queriam era algo que funcionasse e fizesse a humanidade funcionar junto, sem precisar de mais nada dos homens exceto sua submissão passiva. Recusando-se a reconhecer que até mesmo a vida de um selvagem exige uma adaptação voluntária e extremamente ativa, os europeus se imaginaram abaixo da selvageria. A “Natureza” se personificou no “despotismo esclarecido”; antes do final do século 18, a Europa estava pedindo abertamente por um ditador.

A pista central para o programa de reforma dos filósofos era sua fé na lei natural… Tudo o que era necessário para destravar o milênio era um legislador supremo, um Euclides das ciências sociais, que descobriria e formularia os princípios naturais da harmonia social. As generalizações matemáticas que formaram as bases da física foram propostas por poucos pensadores audazes, e parecia uma suposição razoável que as leis fundamentais da sociedade humana fossem, da mesma maneira, descobertas por algum gênio inspirado, em vez de por uma assembleia parlamentar.”6

Apesar de falarem em nome da ciência, não se deram ao trabalho de usar o método científico de definição de termos; usavam as palavras monarquia, democracia e república de maneira permutável e da forma mais conveniente para qualquer ditador que pudesse se aproveitar de sua oferta. Napoleão foi a resposta. “Ao deixar indefinida a forma ideal de governo, possibilitaram que Napoleão unisse as tradições republicana e monárquica numa fórmula de despotismo democrático.”

Napoleão foi a criação dos planejadores acadêmicos. Mas não foi, de modo algum, a primeira tentativa, embora normalmente seus predecessores não sejam reconhecidos. A consorte de Jorge II7, a Rainha Carolina, defendia a mesma doutrina e acreditava que estava colocando-a em prática, sem o conhecimento de seus súditos, com Walpole8 como seu agente. Mas nenhum dano ocorreu, uma vez que Walpole precisava de que suas políticas fossem executadas pelo Parlamento. O método indireto, pelo qual Carolina manipulava Jorge e Walpole manipulava Carolina, simplesmente completou a transferência de poder da Coroa para os Comuns, embora a aristocracia agrária ainda retivesse, durante o processo de transição, a maior parte dos cargos executivos. A fonte da ideia de “despotismo benevolente” para Carolina foi a avó de Jorge II, a Eleitriz Sofia9, que a aprendeu com Leibniz10. Por outro caminho, a mesma ideia foi passada para Jorge III11, que tentou encarná-la como o “Rei Patriota”. Seus esforços bem-intencionados eram incompreensíveis e exasperadores para os ingleses, que não tinham dissociado a razão do senso comum; e quando Jorge tornou-se certificadamente louco, ninguém se surpreendeu.

Mas, no continente, foi em concordância com essa teoria de um legislador autocrático inexplicavelmente incumbido de ministrar a “lei natural” que Voltaire se aproximou de Frederico, o Grande12, e Diderot de Catarina, a Grande13; e Madame de Staël14 estava ansiosa por adular Napoleão e disse a Alexandre da Rússia15: “Seu caráter, Majestade, é uma constituição.” Atribui-se a Turgot16 a frase: “Deem-me cinco anos de despotismo e a França será livre.” Uma vez que a França já tinha tido cem anos de despotismo e não era livre, parece que a única objeção que os filósofos tinham contra os Bourbons é que eles não foram suficientemente despóticos. Esta é a vanguarda dos modernos “progressistas”.

A Europa nunca desistiu dessa fantasia do deus ex machina; ela reaparece a cada reviravolta dos eventos. Revela-se nas palavras da Imperatriz Eugênia17, falando do Império efêmero de Maximiliano18, no México, quando ela disse que Maximiliano deveria ter estabelecido uma ditadura no padrão daquela de Napoleão III, “uma ditadura que trouxesse liberdade e um homem suficientemente capaz para manter as duas lado a lado”. As palavras não significam absolutamente nada; ela falava por força do hábito. O próprio Maximiliano explicou que “precisava de uma grande força para impor reformas e melhorias; o povo aqui tem de ser obrigado ao que é bom”. Sua imperatriz Carlota, quando enlouqueceu, sonhava que Maximiliano era “rei da terra e soberano do universo”.

Durante a Revolução Francesa, Burke19 comentou sobre os monarquistas franceses exilados na Inglaterra que, exceto por declarações de afeto às pessoas do Rei e da Rainha da França, esses refugiados aristocráticos “falavam como jacobinos”. Obviamente, eles não estavam conscientes disso; e Burke diria a verdade se acrescentasse que os jacobinos, em companhia da maioria dos revolucionários europeus dos séculos 18 e 19, falavam como monarquistas absolutistas. O slogan dos cartistas ingleses era: “Poder político nosso meio, felicidade social nosso fim”. A “ditadura do proletariado” de Marx, a partir da qual “o Estado se desmancharia”, foi uma repetição posterior. A versão atual desse disparate fatal foi ecoada por um jornalista americano depois de uma visita à Rússia comunista; na versão dele, “a Rússia está lançando as bases de uma sociedade evolucionária, que vai passar por estágios previstos e planejados de crescimento, por meio do industrialismo, de uma ditadura política absoluta para a liberdade, democracia e paz… Uma cultura científica, não uma cultura moral.” O massacre e a inanição de milhões de pessoas, escolhidas como vítimas especificamente por causa de seu caráter produtivo e inteligência livre, foi o resultado de longo prazo da teoria mecanicista do universo. E o séquito do Juggernaut20 sagrado forma uma procissão notável: Frederico, Catarina, Carolina, Madame de Staël, os dois Jorges, os dois Napoleões, Eugênia, Carlota, Marx, Lênin e uma trilha servil de jornalistas.

Enquanto isso, John Stuart Mill, declarando-se o paladino da liberdade, vendeu-a baratinho outra vez para a “sociedade”. Ou seja, admitiu que a liberdade pessoal só se justifica se servir ao bem coletivo. Então, se for possível formular um argumento plausível que negue que ela sirva — e tal argumento parecerá plausível porque não existe bem comum —, obviamente a escravidão será correta.

Os sonhos persistentes da humanidade são juventude e beleza eternas e poder absoluto. Os dois primeiros devem ser buscados por si mesmos, uma vez que não podem ser disfarçados por um pretexto moral. Nas mitologias mais antigas, são imaginados como presentes dos deuses para alguns mortais afortunados. Com a aurora da ciência, a esperança foi transferida para a expectativa de um Elixir da Vida, a ser descoberto pela pesquisa. Nenhum desses desejos pode fazer grande mal. O Bispo Berkeley, o filósofo, estava misteriosamente convencido de que a água de alcatrão era uma panaceia para quase todos os males do corpo. Pode-se adivinhar porque ele dotou essa prescrição irrelevante de tais propriedades mágicas; ele não tinha um motivo mais profundo. O ponto significativo não é simplesmente que a água de alcatrão não pode fazer o que Berkeley acreditava que podia. Nada pode. O que ele desejava é irrealizável na natureza das coisas. Existem drogas mortíferas mas não existe um elixir da vida para o corpo físico. Mesmo assim, esse desejo tem uma inteligência residual, que leva a resultados benéficos na melhoria da saúde e da beleza por meio do estudo racional da biologia e da higiene.

Na mecânica, imaginou-se uma impossibilidade semelhante, um Moto Perpétuo. Aqui, a ciência genuína enfrenta uma dificuldade, até aqui não resolvida, em definir o que é energia ou descobrir suas propriedades definitivas. A ciência estrita é confinada a medições; suas descobertas têm de ser quantitativas. Trabalhando com matéria inorgânica, a ciência postula a Segunda Lei da Termodinâmica, que diz que a energia “decai”, pela conversão de uma manifestação cinética para estática. Os dois aspectos da energia são exemplificados num homem andando, movido pela energia cinética e colidindo contra uma parede de pedra, onde encontra energia estática. A parede tem resistência, que é mensurável em termos de energia pela força necessária para rompê-la; e a energia cinética, reciprocamente, é medida pelo que ela pode mover, em forma estática.

Agora, se considerarmos que a energia do universo inteiro, pela qual ele se move, está completamente definida em teros de suas propriedade manifestas por meio da matéria inorgânica, a energia universal deve existir numa quantidade fixa; e deve também estar sujeita à Segunda Lei da Termodinâmica, pela qual o universo inteiro está fadado a “decair” finalmente, e tornar-se uma massa escura, congelada e imóvel, absolutamente estática, e permanecer assim para todo o sempre. Certamente, a Segunda Lei da Termodinâmica é válida com respeito à energia utilizada por meio de materiais inanimados; a engenharia e a mecânica devem ser governadas por este princípio para chegarem a resultados. Mas, se assumíssemos que o mesmo princípio governasse a energia universal como tal — em vez de ser simplesmente uma fase de sua transmissão através de certos elementos inorgânicos — ele evocaria um fenômeno inicial, a “partida” do mecanismo universal em primeiro lugar, pela existência primária de uma quantidade fixa de energia cinética: como ou de onde a hipótese não pode pretender explicar e nem mesmo contemplar.

A hipótese religiosa na natureza do universo é, na verdade, muito mais racional, postulando um Primeiro Princípio (Deus), a Fonte de energia, que não “decai”, não é mensurável e se apresenta às nossas faculdades racionais tanto em aspectos eternos como temporais, pelos fenômenos mensuráveis da matéria inorgânica e pela própria faculdade racional, que é de ordem não mensurável, indicando um elemento divino no homem, a alma imortal. A partir desse Primeiro Princípio, o universo não precisa decair; as fases dos elementos inorgânicos que estão sujeitas à Segunda Lei da Termodinâmica seriam secundárias em relação ao Primeiro Princípio Criativa que completa o circuito eterno, se renovando eternamente, por meio de outros processos nos quais o homem ainda não penetrou.

Agora, a partida do “motoperpétuo”, de maneira confusa, está se aproximando do absurdo da visão mecanicista estritamente quantitativa do universo, que implica que, de alguma maneira, a maquinaria cósmica foi configurada em potencial e, então, posta em movimento com uma dada quantidade de energia cinética que devemos supor que já “estava lá”; depois disso, continuou funcionando “por si mesma”, sem nenhum suprimento posterior, e deve continuar assim até que decaia totalmente, pela exaustão da quantidade. Assim, a partida do moto perpétuo, aproximando-se do suposto problema, admite que seu mecanismo precisa ser iniciado pela introdução normal de energia de uma fonte externa. Depois disso, diz-se, ele continuará funcionando por si mesmo indefinidamente.

Essas são a alegação e a exigência feitas por todos os que prometem a felicidade final por meio de um despotismo inicial. Poucos anos de força externa, a ditadura do proletariado ou da elite, governo absoluto — e, então, nada mais de esforço, nada mais de necessidade de inteligência, uma máquina funcionando continuamente — até o fim. A teoria do comunismo marxista é exatamente a da Máquina de Moto Perpétuo, ponto por ponto, porque ela estipula que o sistema produtivo criado pela livre iniciativa é um pré-requisito, que será tomado pela máquina comunista.

Assim, o sonho de poder também é suscetível a duas interpretações, uma incalculavelmente benéfica e a outra viciosa, causa de miséria infinita. Quando direcionado ao domínio da natureza, o ordenamento da matéria inorgânica pelo conhecimento da lei natural, é criativo, não apenas em bens materiais mas no enriquecimento da personalidade humana. O desenvolvimento mais recente ocorre porque no homem, o ser pensante, a razão é o atributo individualizante. Observadores argutos descobriram que povos primitivos, como os esquimós, manifestam uma psicologia “coletiva”, a tal ponto que, em ações em grupo, a consciência da individualidade fica obscurecida. A razão envolvida na ação se funde com o instinto pelo hábito. Não é a ação conjunta nem o pensamento semelhante em termos racionais conscientes que induzem essa “unidade” coletiva; é o fato de não pensar naquele dado momento. O exercício do intelecto no raciocínio abstrato leva os homens inteligentes a conclusões semelhantes por meio de sequências lógicas e, ao mesmo tempo, desenvolve sua individualidade; porque pensar é uma função individual.

Portanto, o coletivista, para alcançar seu objetivo, o estado ou sociedade coletivos, busca o único tipo de organização, a agência política, que é diretamente proibitória e tende a fazer com que os homens parem de pensar. Esta é a interpretação maligna do sonho de poder sua perversão na luxúria por poder sobre outros homens, em vez do domínio da natureza.

A luxúria pelo poder é muito facilmente disfarçada sob motivos humanitários ou filantrópicos. Apela naturalmente a pessoas que sentem um desconforto emocional pelos infortúnios dos outros, misturado a uma ânsia por aprovação imerecida, ainda mais se não são produtivas.21 Uma criança amável, que deseja um milhão de dólares vai normalmente “pretender” distribuir metade de sua riqueza ilusória. A guinada do motivo se mostra pelo fato de que seria igualmente fácil desejar que essa sorte inesperada fosse diretamente para os outros, sem se imaginar como intermediária de sua felicidade. A criança pode imaginar que ganha o dinheiro trabalhando, embora mesmo assim a imaginação também pudesse incluir os outros ganhando dinheiro trabalhando; mas, como regra, o dinheiro viria de um suprimento indeterminado disponível sem esforço e já existente — uma máquina de motoperpétuo. A criança nem se dá conta de que pessoas que precisam de ajuda também podem imaginar por si mesmas um milhão de dólares. A gratificação dupla, das necessidades pessoais e do poder por “fazer o bem”, é estipulada inocentemente. Levada aos anos adultos, essa auto glorificação ingênua se transforma em ódio positivo a qualquer sugestão de que as pessoas ajudem a si mesmas por seu próprio esforço individual, por meios não-políticos que não impliquem em poder sobre outros, sem um aparato compulsório. O ódio tem um motivo profundo por trás de si; é verdade que nada, exceto meios políticos pode produzir adulação pública imerecida. Perguntemos como uma pessoa completamente desprovida de talento, habilidade, realizações, sabedoria, beleza, charme ou mesmo da capacidade prática de ganhar a vida com um trabalho rotineiro pode se tornar objeto de atenção bajulatória, ser saudada com aplauso e ter suas mais medíocres futilidades apreciadas — obviamente, a única resposta é uma posição política. Uma grande fortuna privada pode granjear um círculo privado de sicofantas; mas apenas o decreto imperial poderia dar a Nero uma audiência para seu canto ou arrebatar aplausos da multidão para Calígula.

Mas o sonho racionalizado do Estado Absoluto tem uma implicação histórica especial em sua repetição. Os períodos em que se cristalizou na literatura são imensamente significativos.

Os três mais famosos esquemas de papel desse tipo são a “Politeia”, ou o estado ideal, de Platão, traduzida erroneamente como “A República”22, a Utopia de Thomas More e a Terra Prometida sem nome de Marx, que surgiria depois da destruição do capitalismo. O que elas têm em comum em sua forma é que todas são finais; são arranjos nos quais os seres humanos se encaixam como partes especializadas de um padrão. Suas relações sociais e econômicas não admitem nem a ordem biologicamente natural mas matematicamente irregular e entrelaçada da família, nem a faculdade criativa imprevisível do indivíduo. A fôrma é colocada para impedir variação ou mudança. São sociedades estáticas. Platão e More fizeram o indivíduo súdito da organização cívica e Marx o fez súdito da indústria mecanizada.

Mas o que elas têm em comum com respeito a época em que foram imaginadas revela seu significado verdadeiro. Cada uma marca uma era em que novos desenvolvimentos já haviam ocorrido que tornaram impossível uma sociedade estática. Os homens que escreveram esses sonhos eram sismógrafos. Sentiram a mudança iminente, como se a terra se mexesse sob seus pés; e sua mente procurou refúgio numa fantasia de um mundo não sujeito à mudança. Platão viveu numa época em que os gregos formulavam os princípios básicos da ciência. Sir Thomas More viveu nos anos perigosos do Renascimento, o reviver da ciência. Marx testemunhou a revolução industrial, a aplicação da ciência. As três fantasias são reações da Era da Energia.

Platão era um literato; seu senso artístico de forma estava inquieto e ele tentou compensar isso com um planejamento rigoroso. More era um homem inteligente e um sábio; ele rotulou sua criação francamente pelo que era: Utopia significa Lugar Nenhum. Marx era um tolo; ofereceu seu esquema como uma previsão do futuro.

É por meio desse modelo imposto de mecanismo que a Europa observou os Estados Unidos desde o início; a estultificação não poderia ir além. O princípio da harmonia social é a liberdade, os direitos do indivíduo; essa é a lei natural do homem, que os Estados Unidos descobriram e formularam, antes da Revolução Francesa.

Henry Adams23, que testemunhou a Era da Energia depois que ela já havia avançado muito, passou a vida empenhado em descobrir a ligação entre o último século da Idade Média e a moderna explosão de energia nas aplicações cinéticas. Ele encontrou a pista, analisou-a e deixou-a escapar. Qual a relação, perguntou ele, entre a Virgem e o Dínamo? Sua pergunta não era irreverente nem irrelevante. Adams percebeu que depois que a majestade da Lei Divina foi estabelecida na filosofia medieval por lógica rigorosa, a imagem da Virgem tornou-se mais proeminente na religião, como objeto de honras e petições. Reconheceu que isso se devia ao fato de que a Virgem representava um elemento não constrangido, graça ou misericórdia, que implica no livre arbítrio do homem, disponível para decisões contínuas. Então, o homem não estaria preso a uma sequência determinada de maneira irrevogável, como é o caso de uma máquina. O homem não é uma máquina. Mas, nesse ponto, Henry Adams não percebeu que é pela liberdade da vontade pessoal que o homem é capaz de perseguir seus questionamentos intelectuais e produzir suas invenções. Essa é a gênese do dínamo. Construído de acordo com as leis da mecânica, o dínamo é determinístico; ou seja, deixado a si mesmo, ele para. Então, se ele vai funcionar, deve ser pela vontade e inteligência do homem. Uma economia de máquinas não pode funcionar por uma filosofia mecanicista.


1 FROM THESE ROOTS. De Mary Colum (N. da A.)

2 A Doutrina Monroe foi uma política americana estabelecida em 1823 pelo presidente James Monroe. Segundo ela, qualquer esforço de nações europeias para colonizar novas terras ou interferir em Estados na América do Norte ou do Sul seria considerado um ato de agressão, exigindo intervenção dos Estados Unidos. Porém, os Estados Unidos não interfeririam em colônias europeias existentes nem em conflitos internos na Europa. (N. do T.)

3 Essa tendência pode não ser evidente à primeira vista, mas é consequência de uma aberração secundária da lógica. A doutrina mais ampla do Cristianismo engloba tanto a Lei Divina como a lei natural agindo sobre um princípio geral superior e um Intercessor para moderar a justiça com a misericórdia, em consideração à imperfeição humana e ao esforço humano na direção da verdade e do bem. O salto para o fatalismo pode ocorrer nas duas direções; o dualismo explícito da heresia maniqueísta entregou este mundo ao domínio do mal; por outro lado, o unitarismo absoluto pode ser interpretado como uma visão mecanicista do universo. Mesmo a visão jansenista da doutrina da graça faz com que a graça se torne uma compulsão, em vez de uma oportunidade de libertação pela escolha e aceitação. (N. da A.)

4 Foi relatado sobre um grupo de cartesianos em Port Royal (o centro jansenista): “Eles espancavam seus cães sem remorso e riam daqueles que sentiam pena dos animais quando estes ganiam. 'Puro mecanismo', respondiam, dizendo que os ganidos e gritos eram resultado de uma pequena mola escondida dentro deles, que eram totalmente destituídos de sensações.” Seguindo essa opinião, eles vivissectavam animais para estudar a circulação do sangue. Esses eram extremistas. Um pesquisador moderado protestaria dizendo que era necessário apenas que uma pessoa observasse seus cães de espeto [Em inglês, turnspit dogs. Pequenos cães criados e treinados para correr dentro de uma roda que girava um espeto de carne enquanto esta era assada. Normalmente, as pessoas tinham pares de cães, para que trabalhassem alternadamente. Os cães de espeto foram extintos no século 19. (N. do T)] — um, preguiçoso, se esconderia quando fosse sua hora de trabalhar, enquanto o outro iria atrás do delinquente e o traria para executar sua tarefa — para perceber que a questão envolvia algo mais que mecanismo… Quando Berkeley se perdeu em um labirinto de argumentos sobre se alguma coisa existia objetivamente, o Dr. Johnson fez um apelo semelhante ao senso comum, com exasperação compreensível, chutando uma pedra como refutação. Foi uma resposta concludente; subjetivo é o meu pé. O subjetivo é inconcebível sem o objetivo. (N. da A.)

5 Referência ao primeiro verso do poema nonsense A Quadrilha da Lagosta, em Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll. (N. do T)

6 EUROPE AND THE FRENCH IMPERIUM. De Geoffrey Bruun. (N. da A.)

7 Jorge II (1683 - 1760): Rei da Grã-Bretanha de 1727 a 1760. Foi o último rei britânico nascido fora do país. Nasceu e foi criado na Alemanha. (N. do T.)

8 Robert Walpole (1676 - 1745): estadista britânico, considerado normalmente o primeiro homem a ser Primeiro-Ministro do Reino Unido. Esse cargo ainda não existia, mas pode-se dizer que Walpole o ocupava de facto por causa de sua influência com o Gabinete. (N. do T.)

9 Sofia de Hanover (1630 - 1714): casada com o Eleitor de Hanover. Foi declarada herdeira do trono inglês, embora nunca tenha estado nos domínios da Grã-Bretanha. Morreu menos de dois meses antes de poder se tornar rainha, e o trono passou a seu filho Jorge I. Mecenas das artes, patrocinou os filósofos Gottfried Leibniz e John Toland. (N. do T.)

10 Gottfried Wilhelm von Leibniz (1646 - 1716): matemático e filósofo alemão. Desenvolveu o cálculo infinitesimal, ao mesmo tempo que Isaac Newton e de maneira independente. Junto com Descartes e Spinoza, foi um dos grandes defensores do racionalismo, acreditando que as conclusões são produzidas aplicando-se a razão a primeiros princípios e definições, em vez de se usarem evidências empíricas. (N. do T.)

11 Jorge III (1738 - 1820): Rei da Grã-Bretanha de 1760 a 1820. Terceiro rei britânico da Dinastia de Hanover, foi o primeiro monarca dessa linhagem nascido no país e que tinha o inglês como língua materna. Durante seu reinado ocorreram diversos conflitos militares, como a Guerra dos Sete Anos, a Revolução Americana e guerras contra a França revolucionária e napoleônica. No final da vida, sofreu de uma doença mental recorrente e depois permanente. A partir de 1810, seu filho Jorge, Príncipe de Gales, foi declarado regente. (N. do T.)

12 Frederico II, o Grande (1712 - 1786): Rei da Prússia entre 1740 e 1786. Patrono de artistas e filósofos, foi um dos propositores do absolutismo esclarecido. Um encontro com Johann Sebastian Bach, em 1747, fez com que Bach escrevesse, em homenagem ao rei, a Oferenda Musical. Tinha uma amizade turbulenta com Voltaire. (N. do T.)

13 Catarina II, a Grande (1729 - 1796): Imperatriz da Rússia entre 1762 e 1796. Exemplo notável de déspota esclarecida, foi correspondente de Voltaire, Diderot e d'Alembert. (N. do T.)

14 Anne Louise Germaine de Staël-Holstein (1766 - 1817): literata francesa. Tornou-se grande opositora de Napoleão. (N. do T.)

15 Alexandre I da Rússia (1777 - 1825): Imperador da Rússia entre 1801 e 1825. Na primeira metade de seu reinado, tentou introduzir reformas liberais. Na segunda metade, tornou-se cada vez mais arbitrário, revogando a maior parte das reformas anteriores. (N. do T.)

16 Anne-Robert-Jacques Turgot, Barão de Laune (1727 – 1781): economista e estadista francês. (N. do T.)

17 Imperatriz Eugênia de Montijo, esposa de Napoleão III. (N. do T.)

18 Imperador Maximiliano I do México (1832 - 1867): Único monarca do Segundo Império mexicano, entre 1864 e 1867. Irmão mais novo do imperador austríaco Francisco José I, Maximiliano foi convidado por Napoleão III a estabelecer uma monarquia no México. Chegou lá com um exército francês e, apoiado por monarquistas mexicanos, declarou-se imperador. Poucos países reconheceram seu governo. As forças do presidente Benito Juárez lutaram para restabelecer a república e, com auxílio dos Estados Unidos, derrubaram o Império. Maximiliano foi preso e executado. (N. do T.)

19 Edmund Burke (1729 - 1797): político e filósofo britânico. Foi membro da Câmara dos Comuns entre 1765 e 1780. É considerado o fundador filosófico do conservadorismo moderno. Sua obra mais importante é Reflexões sobre a Revolução na França, na qual previu, num momento inicial dos acontecimentos, que a Revolução Francesa iria resultar em violência descontrolada, em opressão governamental extrema e num futuro governo militar. (N. do T.)

20 Juggernaut, em inglês coloquial, é uma força literal ou metafórica considerada impiedosamente destrutiva e irresistível. O termo é uma referência ao carro templo Ratha Yatra, que se acreditava erroneamente que esmagasse os devotos sob suas rodas. Deriva-se do sânscrito Jagannatha, “senhor do mundo”, um dos nome de Krishna. (N. do T.)

21 Os coletores de impostos na França patrocinaram os proponentes de sistemas políticos rígidos, como os fisiocratas e outros teóricos absolutistas que causaram o Terror. Consequentemente, pelo menos alguns dos coletores de impostos foram enforcados em postes de luz quando o Terror se espalhou — mas só alguns. (N. da A.)

22 Se a linguagem deve ter algum significado, é por causa das distinções. Roma forneceu a forma e o significado da República com a palavra; e os gregos da democracia. O modelo de organização de Platão é o coletivo espartano, um Estado Absoluto militar democrático. A distinção entre uma República e uma Democracia é evidente pelas palavras; democracia significa literalmente o governo do povo, um conceito que não admite qualquer limitação no poder político. República significa uma organização que trata de assuntos que se referem ao público, implicando assim que existem também assuntos privados, uma esfera de vida social e pessoal, com a qual o governo não está e não deve estar envolvido; estabelece um limite ao poder político. Os fatos, em cada caso, corresponderam ao significado das palavras. (N. da A.)

23 Henry Brooks Adams (1838 - 1918): historiador americano. Propôs uma teoria da história baseada na Segunda Lei da Termodinâmica e no princípio da entropia. (N. do T.)

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