sábado, 30 de novembro de 2013

As Emendas Fatais

O Deus da Máquina, capítulo XV
As Emendas Fatais
Isabel Paterson

Os Estados Unidos são a Era do Dínamo. Quando levaram o axioma do livre arbítrio da doutrina religiosa para a doutrina política, um Niágara de energia cinética foi liberado. O fluxo crescente precisa da máxima firmeza das bases, de força elástica na estrutura e que a ação e a forma sejam tão pouco obstrutivas quanto possível. Infelizmente, com exceção de duas, cada alteração na Constituição depois do Bill of Rights1 foi um retrocesso.

O teste pode ser aplicado a qualquer emenda por estas perguntas simples: A emenda nega direitos do indivíduo? Enfraquece as bases, debilitando os estados como entidades políticas? Aumenta o peso bruto ou contribui para uma distribuição imprópria do peso da superestrutura? Se a resposta para qualquer dessas perguntas for positiva, a emenda transforma a operação benéfica do sistema de alta energia em um perigo de igual magnitude.

Além disso, todos esses efeitos perniciosos interagem; uma emenda pode causar um duplo dano; e um prejuízo pode ensejar ou servir de pretexto para outro. Conforme a estrutura racha, cede ou treme, desorganizando a economia privada, o ataque alternado dos fervorosos emendadores será mais furioso. Há um aumento progressivo na frequência cronológica de emendas à Constituição. E as consequências finais são combinadas e cumulativas, mostrando seu resultado de uma vez, depois de um lapso de tempo, num desmoronamento geral. A situação também é agravada por um desvirtuamento simultâneo em decisões judiciais e por extensões do poder político por simples usurpação. Um ato de sedição é um exemplo dessa usurpação; não há autoridade para ele na Constituição. Houve protestos raivosos na primeira ocasião; hoje, é aceito casualmente, quase sem comentários, exceto pelas sugestões de ampliá-lo, frequentemente sob o comando dos supostos “liberais”.

Uma usurpação inicial há muito tempo esquecida, porém ainda em vigor, fez efeito depois de mais de um século, em 1933, com o confisco da propriedade privada em ouro. Quando John Jay era presidente da Suprema Corte, o primeiro a ocupar esse cargo e um dos autores de O Federalista, profundo conhecedor da natureza da Constituição, deu um veredito sustentando o direito do cidadão de processar o governo. Jay disse que a teoria, a origem e forma de governo dos Estados Unidos discordavam da ideia europeia sobre a questão do direito precedente do cidadão sobre o estado. Pela teoria americana, disse Jay, o governo é o agente do cidadão, tendo apenas autoridade delegada; e é absurdo sustentar que uma pessoa não possa processar seu agente. Depois disso, a posição de Jay foi vencida, embora não possa ser refutada. Mas, desde então, o cidadão ficou à mercê do governo nos Estados Unidos como se fosse súdito de um rei; não pode nem pleitear a reparação de injustiças do governo contra ele, sem permissão. E exatamente a primeira emenda (Artigo XI) depois do Bill of Rights estendeu essa prerrogativa usurpada aos diversos estados contra os cidadãos de outros estados. A emenda seguinte (XII) é técnica.

Sessenta e dois anos se passaram sem outras alterações, até que a única emenda benéfica foi criada, a Décima Terceira, que limita o poder político ao proibir a escravidão. A Décima Quarta Emenda confirmou a cidadania federal e os direitos civis dos cidadãos por toda a União. Mas teria sido melhor se o Bill of Rights tivesse sido explicitamente estendido para se aplicar aos governos estaduais. Se fosse dessa maneira, diversas questões posteriores não teriam sido encaminhadas a “poderes implícitos”, um subterfúgio ignóbil e perigoso.

A Décima Quinta Emenda perpetuou definitivamente o dano causado pelo Ato de Reconstrução. Privou os estados de um atributo indispensável de soberania, o poder exclusivo de determinar as qualificações dos eleitores, originalmente reservado a eles pela Constituição.

Qual o uso adequado de um poder necessário e qual a agência adequada para seu uso são questões inteiramente diferentes. O controle das fronteiras externas da nação pertence acertadamente ao governo federal, que é a organização que representa a extensão territorial plena. O governo federal claramente já praticou discriminação racial nas cotas de entrada. A regra adotada era moralmente errada; seria injustificável até para rejeitar refugiados. As grandes nações sempre foram liberais na admissão de pessoas. Contudo, é necessário que o governo federal tenha o poder sobre as fronteiras; caso contrário, a nação não continuaria existindo.

Para formar uma federação verdadeira e funcional, os estados componentes devem ceder o atributo da soberania sobre as fronteiras. Mas devem reter o controle legítimo sobre a admissão ao corpo político do estado, para se preservar como entidades políticas. É o poder de conceder o direito ao voto. Raça, cor da pele ou condição prévia de servidão são irrelevantes. Não deveriam desqualificar ninguém. As qualificações corretas são o local de residência, a lealdade e a propriedade real. Só se pode encontrar um princípio moral nesses requisitos. Se o direito ao voto exige alguma qualificação, ele é claramente condicional, não absoluto. Desde que as condições sejam práticas, elas devem se relacionar à função do instrumento. A ação é de extensão medida a partir de uma base permanente, portanto deve estar ligada à propriedade imóvel local. Capital líquido não serve.2 Essas qualificações são morais e materiais, estando todas dentro da competência do indivíduo; uma pessoa responsável pode atendê-las por sua própria escolha e seus próprios esforços. Mas é absolutamente necessário que o poder de designar as qualificações pertença aos estados. Se o governo federal tem o poder de determinar ou alterar qualquer detalhe, mesmo que negativamente, passa a ter o pleno poder final de determinar todos os requisitos a partir dos detalhes. E um defeito espalhado por toda a estrutura é muito mais grave que um erro localizado.

A interferência neste caso é por decomposição. Passaram-se quarenta anos antes que a decomposição das bases se tornasse totalmente visível; mas isso viabilizou o ataque seguinte, quando uma função nacional foi anulada, pela emenda do imposto de renda. Anteriormente, nenhum imposto direto ou pessoal podia ser estabelecido, exceto em proporção à população. Então, a ação seria equiparada em cada eleitor e representante. Se um imposto fosse proposto, cada um saberia que teria de pagar uma parcela proporcional; enquanto que, se alguma região fosse receber uma parcela extra de gastos (como em obras num rio ou num porto), sua influência seria muito maior que a de outras áreas. A inércia de massa é a função estabilizadora; é inerente a qualquer material pesado; mas é mais bem entendida quando fornecida separadamente, como em lastro. O peso (gravidade) é a força; seu uso está em relação constante com um centro de gravidade. Quando o interesse de cada eleitor deve ser praticamente o mesmo, o centro de gravidade é constante, mesmo que as partículas de lastro sejam móveis. Mas quando o governo federal passou a poder extrair impostos de um estado rico de maneira desproporcional à população para subornar um estado pobre com gastos desproporcionais à população, o equilíbrio desapareceu. O veto de inércia-massa se perdeu. (O peso, o interesse, a partir daí passou a ser um fator de desequilíbrio, como lastro líquido não compartimentado oscilando de um lado para outro, massa deslocada.)

Provavelmente, a maioria das pessoas não compreendeu que essas relações foram alteradas. Pensaram apenas, em termos simples, em taxar os ricos, talvez com uma expectativa vaga e infantil de que as receitas seriam “dadas aos pobres”. O dinheiro obtido dos ricos de qualquer forma que não seja salários nunca é dado aos pobres. Se for tomado por um assaltante comum, vai para o assaltante. Se for tomado por uma organização filantrópica, vai para a organização. Se for tomado pelo governo, vai para os políticos. O aumento da taxação dos ricos nem mesmo diminui a taxação dos pobres; acaba aumentando toda a taxação, expandindo-se gradualmente até que exproprie uma porção não apenas do último dólar de um homem pobre, mas do primeiro dólar que ele consiga ganhar. O imposto terá de ser pago antes mesmo que ele toque em seu ganho. A taxação atual sobre os salários, precisamente descrita como “a safadeza da seguridade social”3, não poderia ter sido imposta de acordo com a Constituição original; só é validada pela emenda do imposto de renda. Não há meios pelos quais “os ricos” possam ser taxados sem que isso acabe taxando “os pobres” de maneira muito mais pesada. E um imposto tende a aumentar todos os outros impostos, em vez de diminuí-los, porque os gastos governamentais vão para coisas que exigem manutenção e não geram retorno (edifícios públicos e empregos políticos). A energia cinética é convertida em formas estáticas, que então necessitam do desvio de mais energia cinética para carregar o peso morto.

O golpe formal e final para desconstituir os estados foi a Décima Sétima Emenda, que tirou a eleição dos senadores da Legislatura Estadual e a passou para o voto popular. Desde então, os estados não têm mais ligação com o governo federal; a representação em ambas as Casas do Congresso se apoia apenas na massa deslocada. A abdicação simultânea de ambas as Casas em 1933 foi o resultado. Elas não foram separadas à força, nem mesmo se desmantelaram, porque já não tinham nenhuma relação estrutural nem com a massa, nem entre si, nem com a superestrutura. Simplesmente, tinham parado de funcionar. O aparecimento imediato de uma burocracia imensa foi o fenômeno natural de uma nação sem estrutura.

Ao mesmo tempo e pela interação com esses eventos políticos, a economia produtiva foi distorcida e a energia desviada para o canal político. A Guerra Civil precipitou a sequência. A pilhagem dos estados sulistas derrotados (sob o comando de filantropos, como sempre em colaboração com trapaceiros), foi particularmente prejudicial porque o poder político procurou legitimar atos de extorsão. Canalhas eram imunes dentro da lei, enquanto homens honestos foram forçados a retroceder para modos de associação pré-legais primitivos: o chefe, o conselho informal e a posse comitatus.4 Não havia governo, apenas força. O controle moral havia sido desconectado. As pessoas continuavam vivendo pela ordem moral; não poderiam sobreviver de outra maneira. Mas a antiga e errônea identificação do governo com a força se tornou plausível novamente. Da mesma maneira, a política se tornou lucrativa.

De maneira geral, até a Guerra Civil, qualquer homem que desejasse honras políticas esperaria consegui-las à custa de perdas financeiras; vivia por seus meios privados. Apenas quando essa condição prevalece é que homens de inteligência, integridade e bom gosto — o caráter produtivo — se inclinarão a entrar na vida pública. Lord Acton se referia ao poder político quando disse: “Todo poder corrompe e o poder absoluto corrompe absolutamente.” O poder político tem esse efeito por sua relação com a produção. O homem produtivo tem consciência de que o gasto político é uma carga sobre a produção, gasto líquido. Não gosta de viver à custa dos outros. Se for obrigado a abdicar de ganhos particulares num valor maior do que recebe como remuneração por seu cargo, mesmo que não tenha certeza de que seu trabalho vale o que ganha, saberá que não procurou o cargo como um parasita. Deve-se observar que os homens que hoje recusam pagamento por posições de governo são, sem exceção, aqueles que estiveram mais ativamente envolvidos na produção, dirigentes industriais. Os antigos “trabalhadores sociais”, políticos profissionais e pessoas com ganhos imerecidos se destacam pela ânsia com que se prendem à folha de pagamento política, ou como mudam de posição política em troca de ganhos suplementares. Não têm nenhum objetivo na vida política exceto o parasitismo. A visão parasitária da política foi formulada inconscientemente quando começou a ser ouvida a discussão de que maiores salários, mordomias, mais ostentação em prédios públicos, embaixadas e uniformes precisariam ser fornecidos para manter a dignidade do cargo. Se uma posição é considerada de acordo com seu gasto ou ostentação, obviamente a dignidade e o valor intrínsecos estão faltando. Os embaixadores que temem que, em roupas ordinárias, possam ser confundidos com garçons provavelmente têm razão. Ninguém tomaria Franklin, Adams ou Jefferson por um criado.

É dessa inversão de valores que o homem produtivo se ressente. Além disso, ele sabe que será constantemente importunado por solicitações que não tem o direito de atender, por parasitas que nunca encontraria na vida produtiva. Por isso, os melhores homens só se acham na vida pública quando é perigoso, difícil e à custa deles próprios.

O custo e a ostentação do governo são sempre inversamente proporcionais à liberdade e à prosperidade dos cidadãos, como acontecia com a nação depauperada e a monarquia grandiosa de Luís XIV. Hoje, quando nossa agricultura enfrenta sérias dificuldades, o Departamento de Agricultura cresce como um fungo monstruoso. O imenso Departamento de Comércio cresceu quando o comércio internacional definhava e o comércio interno mergulhava na depressão.

Além disso, o poder político possui um efeito catraca; só funciona em uma direção, para aumentar a si mesmo. Ocorre uma transferência pela qual o poder não pode ser retraído depois que é concedido. No exemplo mais simples, um candidato a um cargo pode prometer aos eleitores que vai reduzir os impostos ou o número de cargos ou os poderes do cargo. Mas, uma vez que é eleito, pode usar os impostos, os ocupantes dos cargos ou os poderes para garantir sua reeleição; portanto, o motivo da promessa não funciona mais. Se cortar os gastos, ou o número de cargos ou a corrupção, certamente criará inimigos. Portanto, o motivo inverso, que o impele a descumprir sua promessa, é duplicado. O eleitor pode apenas evitar reelegê-lo; mas o próximo ocupante do cargo vai encontrar esses poderes aumentados e será ainda mais difícil livrar-se deles. A dificuldade de tomar de volta poderes uma vez concedidos se mostra na abolição da Emenda da Lei Seca; embora essa medida fosse exigida e apoiada pelo sentimento avassalador dos cidadãos, o artigo de abolição continha um dispositivo que mantinha inúmeros empregos federais; foi impossível fazer uma limpeza de todo o poder pernicioso usurpado. A Emenda da Lei Seca é uma afirmação de governo absoluto, a indicação da completa decomposição do corpo político. A emenda do “pato manco”5 é uma trivialidade que indica apenas a degradação da carta, um rabisco à margem.


1 O Bill of Rights é integralmente parte da Constituição original, sendo “o preço da ratificação”. É uma salvaguarda, em itens, de direitos do indivíduo e da soberania dos estados. A única objeção contra ele, na ocasião, foi que a enumeração de direitos individuais poderia ser interpretada como a limitação dos direitos aos pontos nomeados ou como uma afirmação de que o direito primário do indivíduo não é abrangente — a ideia europeia de “liberdades”, em vez da liberdade americana. O argumento parecia forçado; foi, na verdade, premonitório, porque ultimamente aquela exata perversão vem sendo proposta, numa paródia barata, com as expressões “liberdade da necessidade”, “liberdade do medo”, etc. Entretanto, é impossível criar um instrumento totalmente seguro e o Bill of Rights vem funcionando admiravelmente em sua aplicação prática. (N. da A.)
2 A propriedade e residência numa cabana de madeira com uma horta de batatas é uma qualificação legítima para o voto, enquanto a propriedade de todas as ações da Standard Oil Company não é. (N. da A.)
3 Em inglês, “the Social Security swindle”. (N. do T.)
4 Posse comitatus: Autoridade estabelecida pelo direito comum (common law) que permite que um xerife convoque qualquer cidadão fisicamente habilitado para auxiliá-lo a manter a paz ou capturar um criminoso. (N. do T.)
5 Emenda do pato manco: a Vigésima Emenda à Constituição dos Estados Unidos mudou o início e o final dos mandatos do presidente e do vice-presidente de 4 de março para 20 de janeiro e dos membros do Congresso de 4 de março para 3 de janeiro. O presidente em final de mandato é conhecido como “pato manco” (lame duck). (N. do T.)

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