O Deus da Máquina, capítulo XV
As Emendas Fatais
Isabel Paterson
Os
Estados Unidos são a Era do Dínamo. Quando levaram o axioma do
livre arbítrio da doutrina religiosa para a doutrina política, um
Niágara de energia cinética foi liberado. O fluxo crescente precisa
da máxima firmeza das bases, de força elástica na estrutura e que
a ação e a forma sejam tão pouco obstrutivas quanto possível.
Infelizmente, com exceção de duas, cada alteração na Constituição
depois do Bill of Rights1
foi um retrocesso.
O
teste pode ser aplicado a qualquer emenda por estas perguntas
simples: A emenda nega direitos do indivíduo? Enfraquece as bases,
debilitando os estados como entidades políticas? Aumenta o peso
bruto ou contribui para uma distribuição imprópria do peso da
superestrutura? Se a resposta para qualquer dessas perguntas for
positiva, a emenda transforma a operação benéfica do sistema de
alta energia em um perigo de igual magnitude.
Além
disso, todos esses efeitos perniciosos interagem; uma emenda pode
causar um duplo dano; e um prejuízo pode ensejar ou servir de
pretexto para outro. Conforme a estrutura racha, cede ou treme,
desorganizando a economia privada, o ataque alternado dos fervorosos
emendadores será mais furioso. Há um aumento progressivo na
frequência cronológica de emendas à Constituição. E as
consequências finais são combinadas e cumulativas, mostrando seu
resultado de uma vez, depois de um lapso de tempo, num desmoronamento
geral. A situação também é agravada por um desvirtuamento
simultâneo em decisões judiciais e por extensões do poder político
por simples usurpação. Um ato de sedição é um exemplo dessa
usurpação; não há autoridade para ele na Constituição. Houve
protestos raivosos na primeira ocasião; hoje, é aceito casualmente,
quase sem comentários, exceto pelas sugestões de ampliá-lo,
frequentemente sob o comando dos supostos “liberais”.
Uma
usurpação inicial há muito tempo esquecida, porém ainda em vigor,
fez efeito depois de mais de um século, em 1933, com o confisco da
propriedade privada em ouro. Quando John Jay era presidente da
Suprema Corte, o primeiro a ocupar esse cargo e um dos autores de O
Federalista,
profundo conhecedor da natureza da Constituição, deu um veredito
sustentando o direito do cidadão de processar o governo. Jay disse
que a teoria, a origem e forma de governo dos Estados Unidos
discordavam da ideia europeia sobre a questão do direito precedente
do cidadão sobre o estado. Pela teoria americana, disse Jay, o
governo é o agente do cidadão, tendo apenas autoridade delegada; e
é absurdo sustentar que uma pessoa não possa processar seu agente.
Depois disso, a posição de Jay foi vencida, embora não possa ser
refutada. Mas, desde então, o cidadão ficou à mercê do governo
nos Estados Unidos como se fosse súdito de um rei; não pode nem
pleitear a reparação de injustiças do governo contra ele, sem
permissão. E exatamente a primeira emenda (Artigo XI) depois do Bill
of Rights estendeu essa prerrogativa usurpada aos diversos estados
contra os cidadãos de outros estados. A emenda seguinte (XII) é
técnica.
Sessenta
e dois anos se passaram sem outras alterações, até que a única
emenda benéfica foi criada, a Décima Terceira, que limita o poder
político ao proibir a escravidão. A Décima Quarta Emenda confirmou
a cidadania federal e os direitos civis dos cidadãos por toda a
União. Mas teria sido melhor se o Bill of Rights tivesse sido
explicitamente estendido para se aplicar aos governos estaduais. Se
fosse dessa maneira, diversas questões posteriores não teriam sido
encaminhadas a “poderes implícitos”, um subterfúgio ignóbil e
perigoso.
A
Décima Quinta Emenda perpetuou definitivamente o dano causado pelo
Ato de Reconstrução. Privou os estados de um atributo indispensável
de soberania, o poder exclusivo de determinar as qualificações dos
eleitores, originalmente reservado a eles pela Constituição.
Qual
o uso adequado de um poder necessário e qual a agência adequada
para seu uso são questões inteiramente diferentes. O controle das
fronteiras externas da nação pertence acertadamente ao governo
federal, que é a organização que representa a extensão
territorial plena. O governo federal claramente já praticou
discriminação racial nas cotas de entrada. A regra adotada era
moralmente errada; seria injustificável até para rejeitar
refugiados. As grandes nações sempre foram liberais na admissão de
pessoas. Contudo, é necessário que o governo federal tenha o poder
sobre as fronteiras; caso contrário, a nação não continuaria
existindo.
Para
formar uma federação verdadeira e funcional, os estados componentes
devem ceder o atributo da soberania sobre as fronteiras. Mas devem
reter o controle legítimo sobre a admissão ao corpo político do
estado, para se preservar como entidades políticas. É o poder de
conceder o direito ao voto. Raça, cor da pele ou condição prévia
de servidão são irrelevantes. Não deveriam desqualificar ninguém.
As qualificações corretas são o local de residência, a lealdade e
a propriedade real. Só se pode encontrar um princípio moral nesses
requisitos. Se o direito ao voto exige alguma qualificação, ele é
claramente condicional, não absoluto. Desde que as condições sejam
práticas, elas devem se relacionar à função do instrumento. A
ação é de extensão medida a partir de uma base permanente,
portanto deve estar ligada à propriedade imóvel local. Capital
líquido não serve.2
Essas qualificações são morais e materiais, estando todas dentro
da competência do indivíduo; uma pessoa responsável pode
atendê-las por sua própria escolha e seus próprios esforços. Mas
é absolutamente necessário que o poder de designar as qualificações
pertença aos estados. Se o governo federal tem o poder de determinar
ou alterar qualquer detalhe, mesmo que negativamente, passa a ter o
pleno poder final de determinar todos os requisitos a partir dos
detalhes. E um defeito espalhado por toda a estrutura é muito mais
grave que um erro localizado.
A
interferência neste caso é por decomposição. Passaram-se quarenta
anos antes que a decomposição das bases se tornasse totalmente
visível; mas isso viabilizou o ataque seguinte, quando uma função
nacional foi anulada, pela emenda do imposto de renda. Anteriormente,
nenhum imposto direto ou pessoal podia ser estabelecido, exceto em
proporção à população. Então, a ação seria equiparada em cada
eleitor e representante. Se um imposto fosse proposto, cada um
saberia que teria de pagar uma parcela proporcional; enquanto que, se
alguma região fosse receber uma parcela extra de gastos (como em
obras num rio ou num porto), sua influência seria muito maior que a
de outras áreas. A inércia de massa é a função estabilizadora; é
inerente a qualquer material pesado; mas é mais bem entendida quando
fornecida separadamente, como em lastro. O peso (gravidade) é a
força; seu uso está em relação constante com um centro de
gravidade. Quando o interesse de cada eleitor deve ser praticamente o
mesmo, o centro de gravidade é constante, mesmo que as partículas
de lastro sejam móveis. Mas quando o governo federal passou a poder
extrair impostos de um estado rico de maneira desproporcional à
população para subornar um estado pobre com gastos desproporcionais
à população, o equilíbrio desapareceu. O veto de inércia-massa
se perdeu. (O peso, o interesse, a partir daí passou a ser um fator
de desequilíbrio, como lastro líquido não compartimentado
oscilando de um lado para outro, massa deslocada.)
Provavelmente,
a maioria das pessoas não compreendeu que essas relações foram
alteradas. Pensaram apenas, em termos simples, em taxar os ricos,
talvez com uma expectativa vaga e infantil de que as receitas seriam
“dadas aos pobres”. O dinheiro obtido dos ricos de qualquer forma
que não seja salários nunca é dado aos pobres. Se for tomado por
um assaltante comum, vai para o assaltante. Se for tomado por uma
organização filantrópica, vai para a organização. Se for tomado
pelo governo, vai para os políticos. O aumento da taxação dos
ricos nem mesmo diminui a taxação dos pobres; acaba aumentando toda
a taxação, expandindo-se gradualmente até que exproprie uma porção
não apenas do último dólar de um homem pobre, mas do primeiro
dólar que ele consiga ganhar. O imposto terá de ser pago antes
mesmo que ele toque em seu ganho. A taxação atual sobre os
salários, precisamente descrita como “a safadeza da seguridade
social”3,
não poderia ter sido imposta de acordo com a Constituição
original; só é validada pela emenda do imposto de renda. Não há
meios pelos quais “os ricos” possam ser taxados sem que isso
acabe taxando “os pobres” de maneira muito mais pesada. E um
imposto tende a aumentar todos os outros impostos, em vez de
diminuí-los, porque os gastos governamentais vão para coisas que
exigem manutenção e não geram retorno (edifícios públicos e
empregos políticos). A energia cinética é convertida em formas
estáticas, que então necessitam do desvio de mais energia cinética
para carregar o peso morto.
O
golpe formal e final para desconstituir os estados foi a Décima
Sétima Emenda, que tirou a eleição dos senadores da Legislatura
Estadual e a passou para o voto popular. Desde então, os estados não
têm mais ligação com o governo federal; a representação em ambas
as Casas do Congresso se apoia apenas na massa deslocada. A abdicação
simultânea de ambas as Casas em 1933 foi o resultado. Elas não
foram separadas à força, nem mesmo se desmantelaram, porque já não
tinham nenhuma relação estrutural nem com a massa, nem entre si,
nem com a superestrutura. Simplesmente, tinham parado de funcionar. O
aparecimento imediato de uma burocracia imensa foi o fenômeno
natural de uma nação sem estrutura.
Ao
mesmo tempo e pela interação com esses eventos políticos, a
economia produtiva foi distorcida e a energia desviada para o canal
político. A Guerra Civil precipitou a sequência. A pilhagem dos
estados sulistas derrotados (sob o comando de filantropos, como
sempre em colaboração com trapaceiros), foi particularmente
prejudicial porque o poder político procurou legitimar atos de
extorsão. Canalhas eram imunes dentro da lei, enquanto homens
honestos foram forçados a retroceder para modos de associação
pré-legais primitivos: o chefe, o conselho informal e a posse
comitatus.4
Não havia governo, apenas força. O controle moral havia sido
desconectado. As pessoas continuavam vivendo pela ordem moral; não
poderiam sobreviver de outra maneira. Mas a antiga e errônea
identificação do governo com a força se tornou plausível
novamente. Da mesma maneira, a política se tornou lucrativa.
De
maneira geral, até a Guerra Civil, qualquer homem que desejasse
honras políticas esperaria consegui-las à custa de perdas
financeiras; vivia por seus meios privados. Apenas quando essa
condição prevalece é que homens de inteligência, integridade e
bom gosto — o caráter produtivo — se inclinarão a entrar na
vida pública. Lord Acton se referia ao poder político quando disse:
“Todo poder corrompe e o poder absoluto corrompe absolutamente.”
O poder político tem esse efeito por sua relação com a produção.
O homem produtivo tem consciência de que o gasto político é uma
carga sobre a produção, gasto líquido. Não gosta de viver à
custa dos outros. Se for obrigado a abdicar de ganhos particulares
num valor maior do que recebe como remuneração por seu cargo, mesmo
que não tenha certeza de que seu trabalho vale o que ganha, saberá
que não procurou o cargo como um parasita. Deve-se observar que os
homens que hoje recusam pagamento por posições de governo são, sem
exceção, aqueles que estiveram mais ativamente envolvidos na
produção, dirigentes industriais. Os antigos “trabalhadores
sociais”, políticos profissionais e pessoas com ganhos imerecidos
se destacam pela ânsia com que se prendem à folha de pagamento
política, ou como mudam de posição política em troca de ganhos
suplementares. Não têm nenhum objetivo na vida política exceto o
parasitismo. A visão parasitária da política foi formulada
inconscientemente quando começou a ser ouvida a discussão de que
maiores salários, mordomias, mais ostentação em prédios públicos,
embaixadas e uniformes precisariam ser fornecidos para manter a
dignidade do cargo. Se uma posição é considerada de acordo com seu
gasto ou ostentação, obviamente a dignidade e o valor intrínsecos
estão faltando. Os embaixadores que temem que, em roupas ordinárias,
possam ser confundidos com garçons provavelmente têm razão.
Ninguém tomaria Franklin, Adams ou Jefferson por um criado.
É
dessa inversão de valores que o homem produtivo se ressente. Além
disso, ele sabe que será constantemente importunado por solicitações
que não tem o direito de atender, por parasitas que nunca
encontraria na vida produtiva. Por isso, os melhores homens só se
acham na vida pública quando é perigoso, difícil e à custa deles
próprios.
O
custo e a ostentação do governo são sempre inversamente
proporcionais à liberdade e à prosperidade dos cidadãos, como
acontecia com a nação depauperada e a monarquia grandiosa de Luís
XIV. Hoje, quando nossa agricultura enfrenta sérias dificuldades, o
Departamento de Agricultura cresce como um fungo monstruoso. O imenso
Departamento de Comércio cresceu quando o comércio internacional
definhava e o comércio interno mergulhava na depressão.
Além
disso, o poder político possui um efeito catraca; só funciona em
uma direção, para aumentar a si mesmo. Ocorre uma transferência
pela qual o poder não pode ser retraído depois que é concedido. No
exemplo mais simples, um candidato a um cargo pode prometer aos
eleitores que vai reduzir os impostos ou o número de cargos ou os
poderes do cargo. Mas, uma vez que é eleito, pode usar os impostos,
os ocupantes dos cargos ou os poderes para garantir sua reeleição;
portanto, o motivo da promessa não funciona mais. Se cortar os
gastos, ou o número de cargos ou a corrupção, certamente criará
inimigos. Portanto, o motivo inverso, que o impele a descumprir sua
promessa, é duplicado. O eleitor pode apenas evitar reelegê-lo; mas
o próximo ocupante do cargo vai encontrar esses poderes aumentados e
será ainda mais difícil livrar-se deles. A dificuldade de tomar de
volta poderes uma vez concedidos se mostra na abolição da Emenda da
Lei Seca; embora essa medida fosse exigida e apoiada pelo sentimento
avassalador dos cidadãos, o artigo de abolição continha um
dispositivo que mantinha inúmeros empregos federais; foi impossível
fazer uma limpeza de todo o poder pernicioso usurpado. A Emenda da
Lei Seca é uma afirmação de governo absoluto, a indicação da
completa decomposição do corpo político. A emenda do “pato
manco”5
é uma trivialidade que indica apenas a degradação da carta, um
rabisco à margem.
1
O Bill of Rights é integralmente parte da Constituição original,
sendo “o preço da ratificação”. É uma salvaguarda, em itens,
de direitos do indivíduo e da soberania dos estados. A única
objeção contra ele, na ocasião, foi que a enumeração de
direitos individuais poderia ser interpretada como a limitação dos
direitos aos pontos nomeados ou como uma afirmação de que o
direito primário do indivíduo não é abrangente — a ideia
europeia de “liberdades”, em vez da liberdade americana. O
argumento parecia forçado; foi, na verdade, premonitório, porque
ultimamente aquela exata perversão vem sendo proposta, numa paródia
barata, com as expressões “liberdade da necessidade”,
“liberdade do medo”, etc. Entretanto, é impossível criar um
instrumento totalmente seguro e o Bill of Rights vem funcionando
admiravelmente em sua aplicação prática. (N. da A.)
2
A propriedade e residência numa cabana de madeira com uma horta de
batatas é uma qualificação legítima para o voto, enquanto a
propriedade de todas as ações da Standard Oil Company não é. (N.
da A.)
3
Em inglês, “the Social Security swindle”. (N. do T.)
4
Posse comitatus:
Autoridade estabelecida pelo direito comum (common
law) que permite que um xerife
convoque qualquer cidadão fisicamente habilitado para auxiliá-lo a
manter a paz ou capturar um criminoso. (N. do T.)
5
Emenda do pato manco: a Vigésima Emenda à
Constituição dos Estados Unidos mudou o início e o final dos
mandatos do presidente e do vice-presidente de 4 de março para 20
de janeiro e dos membros do Congresso de 4 de março para 3 de
janeiro. O presidente em final de mandato é conhecido como “pato
manco” (lame
duck). (N. do T.)
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