terça-feira, 22 de abril de 2014

O Deus da Máquina, capítulo XIX

No capítulo XIX de O Deus da Máquina, Crédito e Depressões, Isabel Paterson mostra que dar e tomar crédito são impulsos naturais do ser humano. A expansão da faculdade criativa que o crédito permite vale mais que o risco. Se a humanidade não desejasse correr nenhum risco, jamais concederia crédito e isso evitaria completamente as depressões. Mas não é o que ocorre.

Ela diz que o colapso de crédito não é causado pela corrupção. Normalmente, a desonestidade aparece depois que o problema já está instalado, quando dirigentes de empresas abaladas pela crise recorrem à contabilidade criativa para tentar salvá-las. A desonestidade desvia o foco do problema principal e dá oportunidade para que surjam discussões infrutíferas com argumentos vazios. Por exemplo, há quem diga: “Produção para o uso e não para o lucro.” Bem, se algo for produzido e não for usado, não há lucro. E a produção e o lucro são exatamente a mesma coisa. Produzir é criar algo que não existia antes. Isso que é criado é o lucro.

Em um colapso de crédito, mesmo as empresas sólidas são duramente afetadas. Se possuem reservas de dinheiro, podem continuar funcionando até que o circuito seja razoavelmente restabelecido. A liquidação mais rápida e mais drástica das empresas insolventes seria a solução melhor e mais justa, porque reconectaria mais rapidamente o sistema de produção. Mas isso raramente é permitido. Ao contrário, o poder político é chamado para tomar o dinheiro ou depreciá-lo; o medidor é falsificado e se provoca um vazamento geral em toda a linha.

O capitalismo não é coletivo e não pode ser levado a nenhum sistema de coletivismo; é o sistema econômico do individualismo. A era da energia só foi possível após uma concentração de capital privado, o que o coletivismo jamais permitiria. Isabel Paterson diz que isso levou algumas mentes superficiais, como a de Marx, a concluir que o capitalismo tendia à concentração da riqueza e à divisão de interesses de “classe”. Mas o “interesse” do capitalismo é a distribuição. Como ações cooperativas são úteis para o desenvolvimento do indivíduo, o capitalismo é plenamente capaz de realizar, por associação voluntária, operações cooperativas vastas e complexas de que o coletivismo é totalmente incapaz. Essa operações se encerram quando deixam de ser úteis. Nenhuma sociedade coletivista pode permitir a cooperação; essas sociedades se baseiam na compulsão; por isso, permanecem estáticas.

Crédito e Depressões

O Deus da Máquina, capítulo XIX
Crédito e Depressões
Isabel Paterson

Como a produção é executada ao longo do tempo, o crédito surge como uma consequência natural. O crédito é moldado nos processos da natureza. Quando um homem planta alguma coisa na expectativa de uma colheita, está gastando bens e trabalho no presente para um retorno no futuro, com o risco correspondente de perda. O próximo passo é óbvio; um homem pode adiantar bens para outro em troca de um retorno subsequente. Não existe nenhuma razão para supor que o dinheiro tenha criado o crédito, embora eles possam ter se desenvolvido simultaneamente. O dinheiro é o único meio pelo qual trocas adiadas1 de bens podem ser realizadas sem crédito. Mas os homens concedem crédito e não é possível convencê-los a deixar essa prática, porque está em sua natureza. Em virtude de sua mente, o homem trabalha através do tempo e do espaço. O impulso não é a ganância, mas a faculdade criativa e expansiva. O risco adicional é aceito por causa da extensão maior e mais rápida do poder sobre a natureza.

Se a humanidade desejasse ter o sistema de produção mais robusto possível, o dinheiro real seria o meio adequado. Nesse caso, nunca seria concedido crédito, nunca seriam feitos empréstimos. Todas as transações em bens e em dinheiro seriam encerradas no ato, incluindo o período mais curto possível para o pagamento do trabalho. O dinheiro ainda cobre o tempo e a distância. Com esse sistema, seria impossível haver pânico; e não haveria necessidade de tempos difíceis, exceto na circunstância de uma colheita ruim. Não se pode dizer que não haveria pobreza, porque os bens têm de ser produzidos. Propostas para “abolir a pobreza”, ou garantir a “liberdade da necessidade” ou a “liberdade do medo” são apenas uma confusão de termos. Medo e necessidade são subjetivos; e a pobreza é a ausência de riqueza. Se fosse prometido que, a partir do momento do nascimento, ninguém devesse nunca carecer de roupas, quem as produziria? Quem teria tal poder absoluto sobre todas as outras pessoas? A única condição na qual não se pode passar pela pobreza, pela necessidade ou pelo medo é a do rigor mortis. Os mortos não têm necessidades, nem medo. Com pessoas vivas, produzindo e trocando bens em liberdade, as opiniões e os tempos são variáveis que introduzem riscos. Tudo o que pode ser dito é que o dinheiro é o meio seguro de estender trocas de bens para o futuro.

O sistema de pagamento à vista em dinheiro nunca foi proposto por nenhum teórico social, porque não exigiria nenhum controle, nenhuma compulsão, nenhum emprego político, nem poder para o reformista. Seria completamente restrito à competência do indivíduo, desde que existisse dinheiro real. Ninguém é obrigado a conceder crédito. Os homens podem se limitar a transações em dinheiro se desejarem, e não o fazem. Durante a Idade Média, quando os juros sobre o dinheiro eram estigmatizados como moralmente errados, os homens faziam empréstimos a juros da mesma maneira, e pagavam taxas altas. Os mercadores e as guildas de artesãos administravam silenciosamente um sistema de crédito de longo alcance; a expectativa de receber se baseava no poder privado e negativo, a recusa de continuar fazendo negócios com um inadimplente.

Sem crédito, é difícil imaginar como o sistema moderno de produção de alta energia poderia ter sido criado. A acumulação de capital em dinheiro nas somas necessárias seria quase impossível ou, pelo menos, muito mais lenta. Embora enormes empresas tenham sido criadas sem usar os diversos instrumentos modernos de crédito — como fez Henry Ford — ainda assim, se não existisse um sistema de crédito, com bancos para facilitar o pagamento de remessas de mercadorias para lugares distantes, concentrar os depósitos de correntistas e dar algum crédito local, os negócios não alcançariam essa dimensão.

Mesmo sem crédito, perdas de capital podem acontecer. Invenções e melhorias podem obsoletar os bens de capital anteriores; ou experiências com novas invenções podem fracassar; e, finalmente, iniciativas de capital necessariamente ultrapassam a demanda imediata; criam um mercado. A energia procura uma passagem e o julgamento humano nem sempre é adequado para direcioná-la. A desonestidade é o menor dos fatores na perda generalizada de um grande pânico e depressão; praticamente, só entra depois do fato. Ou seja, os homens recorrem a truques fraudulentos quando empresas que começaram honestamente estão falindo. Daí segue o espetáculo nauseante de homens proeminentes falsificando registros contábeis e gaguejando desculpas ridículas ou mentiras patentes quando investigados. Não estou minimizando a desonestidade; é imperativamente necessário que os culpados recebam uma punição sumária e que as falhas resultem em rebaixamento profissional. O ponto é que a desonestidade nunca é a causa primária de um colapso de crédito. Mas ela causa um dano muito maior que as quantias envolvidas, porque desvia a atenção da tarefa crucial de fazer a produção voltar a funcionar. Além disso, a desonestidade confunde a questão vital do lucro. Dá um pretexto para discussões enganosas com essas frases sem sentido, como “produção para o uso e não para o lucro”.

Produção é lucro; e lucro é produção. Não estão simplesmente relacionados; são a mesma coisa. Quando um homem planta batatas, se não conseguir de volta mais do que investiu, não produziu nada. Isso ficaria evidente se ele colocasse uma batata no solo hoje e tirasse do solo a mesma batata amanhã; mas é exatamente a mesma coisa que ele plantar uma batata e conseguir colher apenas uma batata. Seu trabalho foi perdido. Então, se não possuir reservas da produção anterior, passará fome, ou alguém mais terá de alimentá-lo. A objeção contra o lucro é o mesmo que um espectador, observando o agricultor fazendo a colheita, dizer: “Você colocou só uma batata e está colhendo uma dúzia. Você deve ter tomado as outras de alguém; essas batatas extras não podem ser suas por direito.” Se o lucro é condenado, deve-se supor que ter uma perda é admirável. Ao contrário, é a perda que exige justificativas. O lucro se justifica sozinho. Quando uma instituição não é administrada para ter lucro, ela necessariamente é sustentada pelos produtores. Uma das maneiras pelas quais os não produtores destroem gradativamente o sistema de produção livre é convencendo os homens ricos a fazer doações a fundações para o “trabalho social” ou para “pesquisa” política ou econômica. Os argumentos que essas pesquisas vão encontrar serão geralmente justificativas do parasitismo, favorecendo a criação de mais sinecuras pela extensão do poder político.

O mais importante é reconhecer o que acontece quando o crédito entra em colapso, causando uma “depressão”. O circuito de energia se rompeu. Em muitos pontos ao longo da linha, a energia está vazando, sendo perdida de alguma maneira. Quando os fios de uma usina elétrica são derrubados por um ciclone, ocorre uma condição parecida, mas causada por um acidente externo; e as medidas necessárias para conserto são óbvias. Em um sistema de produção, a conexão da energia é mais complexa e o rompimento tem causas internas, que dão origem a entendimentos errôneos dos vários fatores e relações.

No exemplo mais simples possível, se um homem tem de andar oito milhas em duas horas para conseguir suprimentos que lhe darão energia suficiente apenas para andar quatro milhas em uma hora, esse é um trabalho inútil. Energia física real foi perdida, gasta no calor e na matéria desperdiçada do esforço muscular. Mas, para efeitos contábeis, a perda teria de ser computada em tempo ou milhagem. É uma simplificação extrema, que assume que o homem é o sistema de produção inteiro. Se ele usasse alguma ferramenta, seu custo e sua depreciação deveriam ser incluídos. Assim, com um sistema de produção superior, cada parte deve ser conservada por um excedente de produção; mas o sistema como um todo ficou sem excedente armazenado. Quando uma estrada de ferro é construída além das necessidades, estendida “à frente do tempo” através de um espaço onde não há tráfego suficiente para sustentá-la, é um problema complexo descobrir a perda real no circuito de energia. Quando e onde ela ocorre?2 Uma perda específica de um investidor não significa necessariamente uma perda real no circuito de energia, nem mesmo um ganho para outra pessoa; embora cada uma dessas suposições possa ser verdadeira numa dada situação. Pode acontecer, em uma transação, que haja uma perda real no circuito, uma perda do investidor original, e até uma perda do comprador que assume os bens e os torna rentáveis; mas nenhum desses fatores pode ser dado como certo. O tempo, o espaço e o gerenciamento são as variáveis. Perdas reais ocorrem através do espaço e do tempo; e em objetos físicos. A mesma perda engloba ambos os aspectos.

Materiais são perecíveis porque, com o tempo, perdem sua forma e qualidade úteis pelo desgaste ou por simples negligência. A energia cinética de um circuito de produção pode se dissipar sem retorno de tantas maneiras que seria tedioso enumerá-las. Pode ser convertida em formas estáticas que são inúteis para o circuito; e, novamente, isso pode ser apenas uma perda líquida ou tornar-se um peso morto, causando uma perda contínua. (Se um arranha-céu é construído e ninguém o ocupa, ele pode ser abandonado; isso seria uma perda líquida; mas se é mantido a um custo mais alto que o retorno em aluguéis, é uma perda contínua, um peso morto.)

Mas, de todos os objetos usados em trocas, o dinheiro real é o único fator no qual não pode haver perda. É óbvio que, se uma peça de ouro de cinco dólares fosse de fato perdida, caída por acidente e não encontrada novamente, uma parcela de energia seria perdida com ela, a energia que foi gasta em minerar e fundir o ouro, embora isso tenha sido compensado se a moeda foi usada por algum tempo. E o ouro se desgasta lentamente. Mas não é perecível como são quase todas as commodities; o tempo praticamente não tem efeito sobre ele. Na prática, como a energia não pode ser perdida no dinheiro ou por meio do dinheiro como objeto físico, é ele quem registra as perdas em outros lugares, da mesma maneira como facilita transferências, servindo como um medidor.

Portanto, o dinheiro real nunca é e nem pode ser a causa de um colapso do crédito. Mesmo assim, é invariavelmente escolhido como alvo nessas ocasiões. O nível de inteligência, mais uma vez, se revela na linguagem; é o pensamento animista de um selvagem que imagina um “demônio do dinheiro”.3

A noção de que deve haver algo errado com o dinheiro real porque ele não paga automaticamente dívidas ruins é uma ilusão tão completamente irracional que parece estar além do alcance das evidências ou da lógica. Aparentemente, deriva do fato de que o crédito, que é uma dívida, tem de ser computado em dinheiro. A soma das dívidas então pode ser dez ou vinte ou mil vezes o total de dinheiro real existente; porque o mesmo dinheiro pode pagar uma série infinita de dívidas em sequência. Se vinte milhões de alqueires de trigo fossem vendidos e somente dez milhões de alqueires existissem, de fato não haveria trigo suficiente para cumprir o contrato; mas, nesse caso, ninguém iria dizer que deve haver algo errado com o trigo como commodity; muito menos que a situação poderia ser resolvida chamando-se meio alqueire de trigo de um alqueire. Certamente, se um homem se comprometeu a entregar o trigo que espera adquirir e não consegue obtê-lo até o momento combinado para a entrega, dificilmente alguém iria propor que o trigo fosse tomado de outro homem que o possuísse, para completar uma transação na qual o dono do trigo jamais entrou. Mas é o que é feito com dinheiro em uma crise.

Provavelmente, a causa subjacente de confusão é que o aumento de produção tende a reduzir os preços. Se não o fizesse, a distribuição seria impossível com esse aumento. Mas a condição inescapável pode, a qualquer momento, resultar em uma perda temporária para os produtores de uma dada commodity porque eles produziram mais. Um plantador de trigo pode conseguir dois dólares por um alqueire em um ano, por causa da quebra da safra, e apenas um dólar por alqueire no ano seguinte, quando produziu o dobro de trigo. Ele acha que isso é injusto; com os dois dólares, estava tudo bem, não importa quão elevado tenha sido o lucro; mas um dólar não é suficiente. Por outro lado, o comprador acha que não está recebendo o suficiente por seu dinheiro quando paga dois dólares, embora não se importe de pagar um dólar. Mas ambos estarão inclinados a acreditar que o problema seja com o dinheiro; a quantidade deve ser inadequada. Quando se trata de pagar uma dívida, ou seja, enfrentar as consequências do crédito, o devedor e o credor estão igualmente propensos a essa ilusão na mesma transação, ambos estando sujeitos a perdas.

Em um colapso de crédito, as empresas que são suficientemente sólidas em si mesmas são duramente afetadas. Reservas de dinheiro são uma precaução contra essas contingências; constituem baterias de carga, pelas quais os negócios podem continuar funcionando até que o longo circuito seja restabelecido a uma condição suficientemente sadia. Mas o único teste praticável sobre onde o vazamento e a perda ocorrem é que a remuneração cessa em algum lugar. A liquidação mais rápida e mais drástica de um colapso de crédito seria a solução melhor e mais justa, porque reconectaria mais rapidamente o sistema de produção. Mas isso raramente é permitido. Ao contrário, o poder político é chamado para tomar o dinheiro ou depreciá-lo; o medidor é falsificado e se provoca um vazamento geral em toda a linha. Depois disso, nenhuma recuperação genuína é possível, a menos ou até que esse poder seja revogado e o vazamento geral pare. Sob o Império Romano, depois que o governo interveio, nunca houve recuperação. Foi o fim do Império e a Europa afundou por séculos.

Deve-se ter em mente que, mesmo no controle privado, um erro de julgamento em um circuito de energia de alto potencial pode causar — e efetivamente causa — vastas perturbações e perdas cumulativas na economia. Vistos como um simples fenômeno físico, os efeitos em tempos de paz são suficientemente espantosos. São mais aparentes nas cidades, especialmente nas cidades americanas, porque estas são realmente aparições dinâmicas. As cidades pré-industriais da Europa eram, evidentemente, circuitos locais de energia, ligados ao longo circuito; mas o potencial limitado permitia que tomassem a forma de autênticas organizações sociais e políticas. Nenhuma cidade americana jamais estabeleceu tal padrão. Desde o início, a cidade americana sempre foi uma usina de energia de alto potencial, um gerador de mais energia do que a forma tradicional poderia abrigar. Conforme a energia fluiu para expandir a nação, deslocou e transpôs cada aspecto do cenário cívico continuamente.

Uma cidade, em sua origem, é um cruzamento; ou seja, marca a confluência de correntes de energia e expande o fluxo. Desde tempos imemoriais, a localização das cidades foi determinada por portos, rios e estradas, sendo que um porto é o final de uma rota marítima. O surgimento de ferrovias não alterou essa relação, mas confirmou os fatores naturais no presente. Embora as ferrovias de certa maneira tenham suplantado as hidrovias internas, continuaram seguindo o nível da água na medida do possível e, portanto, não mudaram muito as rotas comerciais anteriores. Uma vez que o direito de via tenha sido obtido e a ferrovia instalada, o tráfego ficou preso à linha férrea. Mas o próximo desenvolvimento nos transportes foi essencialmente diferente. Seu efeito é exemplificado de maneira mais notável em Nova York.

Possuindo um porto, um rio e uma rota oceânica para a Europa, Nova York se tornou naturalmente um grande terminal ferroviário. Com essas vantagens, também era um centro financeiro. Significativamente, a indústria automobilística se desenvolveu no interior do continente. Nova York forneceu o capital líquido para promover a expansão inédita dessa indústria.

Mas os automóveis não ficam presos a uma via especial, como as ferrovias; também não precisam de um terminal, como navios e trens. Alguma coisa tinha acontecido, com o surgimento do automóvel, que não foi percebido imediatamente; as rotas comerciais foram alteradas em grande medida. No passado, quando as grandes rotas comerciais foram bloqueadas ou deslocadas, as cidades e as regiões caíram em declínio, como Veneza, os portos levantinos, as cidades hanseáticas; mas a causa era evidente. Aconteceu com relação às rotas como tais. Com o automóvel, a mudança aconteceu no veículo de transporte; e o que ele fez foi diluir o tráfego e diminuir a importância dos centros. Se o avião vai outra vez favorecer a centralização ainda não podemos afirmar; o avião certamente está preso a rotas estabelecidas, muito mais que o automóvel, porque precisa de uma pista de pouso, mas ainda não sabemos se essa será uma condição permanente. De qualquer maneira, a ferrovia construiu grandes cidades e também facilitou a colonização de terras selvagens; foi um fator ambivalente e, no conjunto, equilibrou a economia. No desenvolvimento do sistema de produção de alta energia, a ferrovia é o produto de uma imensa centralização de energia (em dinheiro, capital líquido); por isso, sua ação deve tender predominantemente no sentido contrário. A partir desse ponto, o processo normal deveria ter sido principalmente de descentralização e o automóvel apareceu de maneira apropriada. Outro sinal de descentralização foi a diminuição do tamanho das unidades geradoras de energia, os dínamos menores. Esses desdobramentos tem um significado filosófico, social e político. O automóvel é projetado para propriedade e uso individuais. O curso dos eventos revela a verdadeira natureza e os processos do capitalismo. O capitalismo não é coletivo e não pode ser levado a nenhum sistema de coletivismo; é o sistema econômico do individualismo. A era da energia só foi possível após uma concentração preliminar de capital líquido sob controle privado, o que o coletivismo jamais permitiria. Assim, algumas mentes superficiais, como a de Marx, concluíram que o capitalismo tendia à concentração da riqueza e à divisão de interesses de “classe”. Mas o “interesse” do capitalismo é a distribuição. Todas as invenções do homem têm o individualismo como finalidade, porque brotam da função individual da inteligência, que é a fonte criativa e produtiva. Sendo a liberdade a condição natural do homem, as invenções que facilitam a mobilidade se tornam meios de transporte individuais. Como ações cooperativas são úteis para o desenvolvimento do indivíduo, o capitalismo é plenamente capaz de realizar, por associação voluntária, operações vastas e complexas de que o coletivismo é totalmente incapaz, e que são autoliquidantes no limite de sua utilidade, se se permite que o processo seja completado. Nenhuma sociedade coletivista pode permitir a cooperação; essas sociedades se baseiam na compulsão; por isso, permanecem estáticas.4

É inevitável que ocorram erros de cálculo. Embora o automóvel, o dínamo menor e outros sinais devessem servir de aviso suficiente de que as grandes cidades americanas já haviam crescido demais, ninguém leu as profecias. Em vez disso, quando o capital líquido dos lucros da indústria automobilística fluiu de volta a Nova York, a corrente foi dirigida para baixo das próprias fundações da cidade. Expandiu-se em aço e pedra, uma projeção impressionante de energia, nos últimos grandes arranha-céus, “maiores e melhores”, o Chrysler Building, o Empire State Building, o Radio City. Isso teve o efeito de uma explosão, estilhaçando os valores anteriores dos imóveis. O lucro deveria ter sido usado para descentralizar a indústria que o produziu e equilibrar indústria e agricultura; em vez disso, foi jogado num curto-circuito.

Ainda assim, esses erros custosos da economia capitalista de propriedade privada poderiam ter sido absorvidos com prejuízos privados e então esquecidos, se a agência política não tivesse sido chamada para perpetuá-los e agravá-los. Em Nova York, prédios obsoletos poderiam ter sido demolidos e seu espaço utilizado de maneira lucrativa para estacionamentos, que eram tão necessários; com alguma melhora no aspecto da cidade, ao permitirem mais luz, mais ar e algumas árvores. Paradoxalmente, a concentração de edifícios teria criado algum espaço. Os aluguéis teriam se ajustado para baixo, como ocorreria num sistema de alta produção; e os valores temporariamente perdidos teriam sido recuperados de maneira permanente. Esse processo natural foi interrompido exatamente no ponto em que ameaçava a cidade com uma paralisia permanente, mantendo muitas pessoas em programas de auxílio, numa ociosidade indesejada, no nível de subsistência, mantidas por impostos que são uma carga pesada para a produção e que tendem a expulsar a indústria.

Da mesma maneira, quando as forças atuantes, incluindo a pressão massiva dos sindicatos, tendiam a descentralizar as grandes indústrias do Meio Oeste, a ação política interveio e forçou uma centralização ainda maior.

O risco de pânico e depressões é inerente ao sistema de alta produção que usa crédito; assim como o risco de fome é inerente ao sistema de baixa produção. Entre os dois, é óbvio que o da alta produção é menos grave, o que toda a história demonstra. Mas, em qualquer caso, a intervenção do poder político agrava em muito os problemas. O século dezenove foi o primeiro da produção de alta energia. Foi também o primeiro em que os homens não pereceram de fome em grande número na Europa. A única exceção foi a Grande Fome Irlandesa. Na Irlanda, o principal produto agrícola foi atacado por uma praga e praticamente não havia desenvolvimento industrial, porque o poder político não permitia que empresas funcionassem livremente. Em outros lugares, depressões industriais causaram grandes dificuldades, ou mesmo grandes privações, mas foi possível evitar a fome absoluta em sua pior forma. E a privação extrema se deveu à sobrevivência parcial da economia de status. Nos Estados Unidos, houve diversas depressões pesadas e longas, “tempos difíceis”. Praticamente nada foi feito pelo poder político sob o pretexto de auxílio aos necessitados. Houve pobreza, homens vagando pelo país procurando trabalho e vivendo de caridade. Mas os preços das commodities estavam tão baixos, uma vez que nada os impediu de cair até onde caíssem, que bastava bem pouco dinheiro para sobreviver. Quando o colapso de crédito foi liquidado, a recuperação foi tão rápida que a mudança pareceu fabulosa. A fronteira da liberdade não havia sido fechada.

Existe um curioso contraste entre a depressão da década de 1890 e a que seguiu o crash de 1929, talvez uma lição para os pensadores políticos. Há cem anos, Macaulay5 expressou preocupações de que a Constituição americana e os direitos de propriedade seriam mais cedo ou mais tarde subvertidos pelo voto popular, porque, em tempos de crise, aqueles que não têm nada (“have nots”) votariam pela expropriação dos que têm alguma coisa (“haves”). Pode-se supor que ele estava certo; mas o que aconteceu? Na depressão da década de 1890, uma eleição resolveu o assunto, com relação à moeda, a questão da “prata livre”. Certamente, a maioria dos eleitores estava um tanto aflita. O resultado foi apertado, embora a solidariedade do sul ao Partido Democrata fosse toda contra o dinheiro real. Mas, na decisão popular, o dinheiro real venceu. Novamente, em 1932, o voto popular foi a favor da economia do governo, do dinheiro real e da redução do poder político, embora o país estivesse sofrendo uma depressão aguda.

Qual foi a causa do pânico? Enormes empréstimos governamentais ao exterior que não foram pagos; e a existência do sistema do Federal Reserve, uma criação política, que tornou possível uma expansão desordenada do crédito.

E quem recebeu primeiro o auxílio federal?

De maneira nenhuma foram os “have nots”. A clivagem real não aconteceu nas linhas que Macaulay traçou, entre ricos e pobres. Foi principalmente entre produtores e não-produtores. A primeira medida de “alívio” foi a Reconstruction Finance Corporation; e o primeiro valor pago por ela foi para o J. P. Morgan & Co. Foram os ricos improdutivos que primeiro receberam auxílio governamental. Sem isso, nenhuma medida de auxílio federal aos pobres teria sido aprovada; e um trabalhador só aceitava auxílio em extrema necessidade e com amargura; o que ele queria era um emprego. Vincent Astor, que recebia uma renda elevada de aluguéis de terrenos herdados, vendeu ao governo federal propriedades em bairros miseráveis, que haviam sido exploradas até que não rendessem mais nada. Possuindo navios, conseguiu subsídios de navegação. Especuladores pressionavam pela expansão dos poderes do governo para manter os valores inflados de suas ações, pela depreciação do dinheiro e impedindo vendas “baixistas” no mercado, de maneira que imensos blocos de ações a preços artificiais permaneciam no mercado, impossibilitando uma recuperação normal. Para “salvar” os especuladores das consequências de suas próprias apostas, todos aqueles que não participaram do jogo foram penalizados. Leis foram aprovadas contra o “entesouramento”, de maneira que o único ato punido foi a prudência. Por esses meios, as reservas normais de dinheiro, que poderiam restaurar a produção, se dissiparam. Da mesma maneira, fazendeiros prudentes, competentes e solventes, que tiravam seu sustento de suas fazendas, foram penalizados com cotas e impostos sobre cotas para subsidiar a agricultura especulativa. Um homem em Montana conseguiu US$ 30.000,00 do governo porque persistiu em desperdiçar sementes de trigo numa terra árida durante a seca; enquanto uma pobre viúva na Nova Inglaterra foi obrigada a pagar um “imposto de processamento” porque criou um casal de porcos e os transformou em bacon!

A divisão foi traçada de maneira notável, entre o produtor e o não-produtor, com Henry Ford e o Senador Couzens6. Ford estava na produção; era contra a intervenção governamental. Couzens, ex-sócio de Ford, já havia tirado sua fortuna do setor produtivo e a colocado em títulos públicos isentos de impostos e defendia a expropriação de dinheiro pelo governo.

Cada vez que o sistema de produção tentava funcionar de maneira saudável, os não-produtores invocavam o poder político para fazê-lo parar. Por fim, a principal corrente de energia foi desviada para o canal político.

Esse processo já havia acontecido na Europa. Empréstimos imensos eram feitos por meio de agências políticas para agências políticas; e o dinheiro virava formas estáticas improdutivas: edifícios públicos e “melhorias” municipais que não davam nenhum retorno. Então, não havia emprego e o controle político forçou os trabalhadores a irem para as fábricas de armamentos. Tanto na América quanto na Europa, a energia mal direcionada foi projetada para cima; mas a Europa não construiu arranha-céus. O que subiu foram os aviões militares.

Um avião é transportado por um jato de energia, assim como uma bola de cortiça é transportada pelo jato de uma fonte. A energia é tirada de um circuito do qual as cidades são o centro. E os aviões estão varrendo as cidades da existência, com bombardeios. Por quanto tempo poderão continuar no ar depois de destruírem a fonte e o circuito que os elevaram aos céus?

Nada disso era imprevisível e tudo foi previsto de alguma forma. Há noventa anos, Herbert Spencer7 percebeu a tendência política. Ele disse: “Estamos sendo rebarbarizados.” Spencer reconheceu o nível cultural que é imposto pelo completo controle “social” do indivíduo. Mas não percebeu que isso não pode ser imposto pacificamente a um sistema de alta energia e que o processo fatalmente resultaria em explosão.

Se um sistema financeiro não é sólido, isso só pode acontecer pela possibilidade de excesso de concessão de crédito e pelo papel-moeda. Um remédio verdadeiro só poderia consistir em limitar essas faculdades. As “garantias” governamentais simplesmente colocam a propriedade dos homens prudentes à disposição dos especuladores em caso de perda. Não existe isso de “pânico de dinheiro”; um pânico financeiro ocorre por causa do colapso de crédito.

Nos Estados Unidos, a consequência inevitável da extensão do poder político sobre o dinheiro, com o sistema do Federal Reserve, foi prevista com detalhada exatidão por Elihu Root8. Ele escreveu: “Isto não é, de forma alguma, uma medida para criar uma moeda elástica. Não cria uma moeda elástica. Cria uma moeda expansiva, mas não elástica. Cria uma moeda que pode crescer, sempre crescer, mas não uma moeda para a qual a lei contenha qualquer medida que provoque a redução […] Com a reserva inesgotável do Governo dos Estados Unidos fornecendo dinheiro fácil, as vendas crescem, os negócios aumentam, mais empresas novas são criadas, o espírito do otimismo permeia a comunidade. Os banqueiros não estão isentos desse espírito. São humanos. Os membros do Federal Reserve Board também não estão. São humanos. O mundo inteiro segue uma onda crescente de otimismo. Todos estão ganhando dinheiro. Todos estão enriquecendo. Isso cresce e cresce […] até que, finalmente, alguém quebra […] e a estrutura inteira desmorona. Não vejo nesta lei […] nenhuma influência interposta por nós contra a ocorrência daqueles períodos de prosperidade falsa e ilusória, que terminam inevitavelmente em ruína e sofrimento. Porque os resultados mais terríveis do despertar das pessoas desse sonho não se encontram nos bancos — não: nem mesmo nas empresas. Encontram-se entre os milhões que perderam os meios de ganhar o pão diário.”

Elihu também era um dos profetas.

Mas os resultados mais terríveis nem sempre se limitam a uma depressão financeira; podem terminar em violência. Guerras civis acontecem quando a energia cinética é bloqueada à força ou subvertida por intervenção política. A ideia popular de revolução feita pelas “massas” oprimidas por muito tempo numa penúria abjeta é falaciosa. A escravidão jamais foi abolida por uma insurreição de escravos, mas sim pelo esforço de homens livres. Existem “revoluções palacianas”, nas quais o poder é tomado à força de um grupo por outro, sem qualquer outra mudança; também existem guerras civis de facções, quando uma forma de governo entra em colapso. Mas, no tipo mais importante de guerra civil ou revolução — não são termos idênticos, mas determinada guerra pode incluir ambos os elementos — os dois lados têm reivindicações plausíveis de alguma autoridade legítima; ambos são enérgicos, com um sistema de produção operante envolvido na questão subjacente; e o grande número de produtores resiste contra um novo aumento do poder governamental, como aconteceu na Guerra Civil inglesa do século dezessete e na Guerra de Independência Americana. Esta última começou como uma guerra civil e terminou como uma revolução, estabelecendo uma nova forma de governo para manter o princípio tradicional de autogoverno representativo reivindicado. Assim, qualquer extensão dos poderes governamentais e aumento de impostos sob o pretexto de “evitar uma revolução” consegue apenas criar perigo, se ainda não existisse, ou agravá-lo, se já existisse.

Ao contrário, quando uma ditadura ganha força, isso acontece porque os vários grupos lhe concedem o poder gradativamente, sem perceber onde isso vai terminar. Os homens escravizam a si mesmos, forjando as correntes elo a elo, normalmente exigindo proteção como grupo. Quando empresários pedem crédito ao governo, entregam o controle de suas empresas. Quando trabalhadores pedem “negociações coletivas” impostas, entregam sua própria liberdade. Quando grupos raciais são reconhecidos por lei, podem ser discriminados por lei.

1 THE PROMISES MEN LIVE BY. De Harry Scherman. Random House. O sr. Scherman cunhou a expressão “trocas adiadas”. (N. da A.)

2 Um especialista em transportes com amplo conhecimento geral e experiência prática (Robert Selph Henry, assistente do presidente da Associação de Ferrovias Americanas) sugeriu que as grandes depressões de negócios do século dezenove aconteceram logo depois de momentos em que a rápida expansão da infraestrutura de transportes avançou além do desenvolvimento geral do país. Qualquer desproporção nessa estrutura teria consequências diretas em todo o sistema, de maneira previsível. Mas, enquanto o financiamento vinha de capital empresarial privado, essa condição se autocorrigia.

O sr. Henry diz: “No caso das depressões anteriores, o novo sistema de transporte, embora criado mais antes de ser viável economicamente, com o tempo se justificou e se pagou, porque era inerentemente muito mais eficiente e econômico que o sistema de transportes anterior […] Isso já não foi verdade depois da depressão de 1929 […] Uma possível razão para essa diferença é que o novo sistema, (super-highways, melhorias nas hidrovias internas, aeroportos federais, etc.) no qual mais dinheiro foi gasto em duas décadas do que havia sido gasto com as ferrovias em mais de um século, não cumpria essas condições. Sua manutenção e operação não são mais baratas que as do sistema anterior, mas tremendamente mais caras. Outra diferença importante é que, enquanto mais de 98% do investimento em ferrovias veio de fundos privados e, portanto, estava sujeito ao teste inescapável de realidade econômica, aproximadamente 85% dos investimentos recentes em transportes vieram de fundos públicos, que estão isentos daquele teste extremo.”

Em resumo, uma grande quantidade de energia vai para formas estáticas e uma corrente contínua ainda vai para um fio-terra por meio dessas formas. Não é apenas uma perda líquida, mas um vazamento permanente. (N. da A.)

3 O ponto mais fraco de um sistema de crédito é que um lucro presumido é contabilizado pela agência financeira (o banco ou a corretora de investimento) quando uma dívida é feita, não quando é paga. (N. da A.)

4 Paradoxalmente, embora o socialismo não tolere a livre iniciativa, a estrutura política da livre iniciativa pode abrigar todo tipo de associação cooperativa, na plena extensão de seu funcionamento prático. O engenheiro elétrico socialista, Steinmetz, trabalhando para a General Electric, não quis receber uma compensação fixa, preferindo retirar todos os recursos que achou que precisava; e seu desejo foi realizado, numa conta aberta — o que seria impossível no socialismo! O acordo foi realizável nesse caso simplesmente porque foi submetido à decisão privada e à vontade das partes envolvidas.

Todos os defeitos que podem ocorrer em um sistema de livre iniciativa são características positivas e estabelecidas do coletivismo. Se o coletivo (poder político) impede um homem de trabalhar, o que ele pode fazer? Se um homem faz um trabalho ruim numa economia livre, o comprador é o juiz; quem pode ter o direito de julgar no socialismo? No pior caso, numa sociedade livre, os mais desafortunados dependem de caridade; no coletivo, podem ser mortos. (N. da A.)

5 Thomas Babington Macaulay (1800 - 1859): historiador e político britânico. (N. do T.)

6 James J. Couzens (1872 - 1936): industrial e político, foi prefeito de Detroit de 1919 a 1922 e senador pelo Estado de Michigan entre 1922 e 1936. Foi sócio de Henry Ford desde a fundação da Ford Motor Company, em 1903 até 1919. (N. do T.)

7 Herbert Spencer (1820 - 1903): filósofo e cientista britânico. Foi um importante pensador liberal clássico. (N. do T.)

8 Elihu Root (1845 - 1937): advogado e político americano. Foi Secretário da Guerra dos presidentes William McKinley e Theodore Roosevelt, entre 1899 e 1904 e senador por Nova York. Ganhou o Prêmio Nobel da Paz em 1912, por seus esforços para promover negociações e cooperação entre nações em litígio. (N. do T.)

sexta-feira, 11 de abril de 2014

Produção é lucro; e lucro é produção

«Produção é lucro; e lucro é produção. Não estão simplesmente relacionados; são a mesma coisa. Quando um homem planta batatas, se não conseguir de volta mais do que investiu, ele não produziu nada. Isso ficaria evidente caso ele colocasse uma batata no solo hoje e tirasse do solo a mesma batata amanhã; mas é exatamente a mesma coisa que ele plantar uma batata e conseguir colher apenas uma batata. Seu trabalho foi perdido; então, ele passará fome, ou alguém mais terá de alimentá-lo, se ele não possuir reservas da produção anterior. A objeção contra o lucro é o mesmo que um espectador, observando o agricultor fazendo a colheita, dizer: “Você colocou só uma batata e está colhendo uma dúzia. Você deve ter tomado as outras de alguém; essas batatas extras não podem ser suas por direito.” Se o lucro é condenado, deve-se supor que sofrer uma perda é admirável. Ao contrário, é a perda que exige justificativas. O lucro se justifica sozinho. Quando uma instituição não é administrada para ter lucro, ela necessariamente é sustentada pelos produtores. Uma das maneiras pelas quais os não-produtores destroem gradativamente o sistema de produção livre é convencendo os homens ricos a fazer doações a fundações para o “trabalho social” ou para “pesquisa” política ou econômica. Os argumentos buscados por essas pesquisas serão geralmente justificativas do parasitismo, que favorecerão a criação de mais sinecuras pela extensão do poder político.»

Isabel Paterson
O Deus da Máquina
Capítulo XIX - Crédito e Depressões
1943

terça-feira, 8 de abril de 2014

A Anábase, de Xenofonte

Acabei de ler a Anábase, de Xenofonte. É uma história de aventura sensacional, muito bem escrita, sobre um fato verídico e épico. Um exército grego de dez mil homens, encurralado na Mesopotâmia, tentando voltar para a Grécia e enfrentando inimigos em cada lugar por onde passou, além de todo tipo de dificuldades.

No ano 401 AC, o rei da Pérsia era Artaxerxes. Seu irmão Ciro desejava tomar o trono e juntou um exército de centenas de milhares de soldados, incluindo cerca de dez mil mercenários gregos. Xenofonte, que não era soldado, resolveu acompanhar a missão, convidado por um dos generais. Na primeira batalha entre as tropas de Ciro e de Artaxerxes, ao lado do Rio Tigre, Ciro é morto. Os gregos, perseguidos pelos persas, marcham para o norte e conseguem sair dos domínios de Artaxerxes. Porém, em quase todos os lugares por onde passam, o povo local tenta se defender do exército invasor. Para conseguir provisões, os gregos em geral tem de pilhar o que conseguem. Em alguns lugares, os habitantes negociam com os gregos e vendem ou cedem provisões em troca de não serem atacados.

A cada momento surge um problema diferente, que precisa ser resolvido com inteligência. Os gregos também vão aprendendo com seus erros, mas cada erro custa muito caro. Xenofonte narra a história em terceira pessoa e se descreve como um líder natural, o grande herói que propõe as melhores ideias e age sempre com grande virtude. Algumas vezes, é incompreendido ou tem de enfrentar a ingratidão dos soldados. Não sabemos se foi assim mesmo que aconteceu, mas a narrativa é empolgante.

Comprei as obras completas de Xenofonte por menos de R$7,00, em inglês e em grego aqui. Não encontrei nenhuma tradução para o português do Brasil. Fiquei tentado a fazer a minha.

Conforme ia lendo, contava partes da história para minha filha, de 8 anos, e meu filho, de 5. Ele disse que os persas se chamavam assim porque perseguiam os gregos. Quando viu o busto de Xenofonte na capa do livro, perguntou se o Xenofonte era uma pedra. Depois, disse que iria desenhar a Anábase. Comprei um caderno de desenho para cada um de nós três. Minha filha desenhou a batalha entre os gregos e os carduquianos. Essas coisas não têm preço.

domingo, 6 de abril de 2014

Mentiram (e muito) para mim, de Flavio Quintela

Neste ano de 2014, está acontecendo uma onda de lançamentos de livros interessantes. Acabou de sair Mentiram (e muito) para mim, de Flavio Quintela. É um inventário das principais mentiras influentes que nos são apresentadas continuamente como se fossem as mais evidentes e indiscutíveis verdades.
O livro é pequeno, 168 páginas. A análise que ele faz sobre o quadro partidário brasileiro entre o impeachment de Collor e os preparativos para a eleição de 2014 é primorosa. Também achei muito relevante a afirmação de que, na América escravagista, menos de cinco por cento dos brancos foram proprietários de escravos, e mais de vinte por cento dos negros livres possuíam pelo menos um escravo. Pena que ele não explicite qual a fonte dessa informação.
Um detalhe agradável é que ele usa a ortografia de antes da última reforma. Também preciso adotar essa prática.
Ao final do livro, há uma bibliografia recomendada muito boa. Gostei especialmente das indicações de “Eles Mudaram a Imprensa”, de Alzira Alves de Abreu (2003) e de “The naked communist”, de Cleon W. Skousen e Arnold Friberg (2011).
O prefácio é de Paulo Eduardo Martins e a orelha do livro, de Rodrigo Constantino. Esses textos podem ser lidos aqui, no blog do autor.
Aqui vai a lista de capítulos:
I. Começam a mentir desde muito cedo para nós: a mais-valia
II. A mentira mais voraz: a de que a própria verdade não existe
III. Mentiram de novo: a festa da democracia brasileira
IV. Mentindo sobre ideologia: não existe mais direita ou esquerda
V. Mentirinha: o PSDB é um partido de direita
VI. Amplas mentiras: a maldade da Direita
VII. Mentindo sobre Hitler: o nazismo é de extrema direita
VIII. Mentira de lobo mau: nem toda esquerda quer o comunismo
IX. Cínicos mentirosos: o comunismo ainda não existiu na Terra
X. A mentira do bonzinho: o esquerdista se preocupa com os pobres e oprimidos
XI. Mentira que ninguém mais agüenta: bandido é vítima da sociedade
XII. Nem o diabo acredita nesta mentira: sou um cristão socialista
XIII. A mentira mais contada de todas: o golpe militar de 1964
XIV. Auto-engano ou mentira proposital: a mídia é direitista
XV. Algo que exala mentira: o sistema educacional brasileiro
XVI. Mentira em letras góticas sobre pele de carneiro: diploma
XVII. Mentiras que atravessam gerações: dívida histórica
XVIII. Mentira tripla: o bolsa-família foi criado pelo PT, é bom e tira as pessoas da miséria
XIX. Mentira boba? Nem tanto: Deus é brasileiro
XX. Verdades

Como disse Edmund Burke, “Para que o mal triunfe basta que os bons fiquem de braços cruzados.”

sábado, 5 de abril de 2014

O Deus da Máquina, capítulo XVIII

No capítulo XVIII de O Deus da Máquina, Por que Dinheiro Real é Indispensável, Isabel Paterson faz uma crítica feroz ao que ela chama de fiat money, dinheiro criado pelo governo, cujo valor não é lastreado em nada. A expressão vem da Bíblia em latim, na qual Deus, quando cria a luz, diz: Fiat lux, faça-se a luz.

Este livro foi escrito em 1943, antes dos Acordos de Breton Woods, de 1944, que estabeleceram regras para as relações comerciais e financeiras no mundo. Provavelmente, Isabel não imaginou que pudesse acontecer o Choque de Nixon, de 1971, que cancelou unilateralmente a conversibilidade do dólar em ouro. Desde essa data, todo o dinheiro do mundo é fiat money.

Isabel lembra que autoridades britânicas, querendo criar fiat money, perguntaram a Sir Isaac Newton por que a libra monetária tinha de ser uma quantidade fixa de metal precioso. Newton respondeu: Cavalheiros, na matemática aplicada, é necessário descrever a unidade.

Ela se espanta com o fato de que autoridades tenham seguido o programa de ruína proposto pelos inimigos da civilização e cita John Maynard Keynes, que disse: “Lenin estava certo. Não existe um meio mais sutil e eficaz de subverter a base existente da sociedade que perverter a moeda. O processo leva todas as forças escondidas das leis econômicas para o lado da destruição.

O ouro é adequado para ser usado como dinheiro porque é durável, divisível, incorruptível, fácil de levar, difícil de imitar e é encontrado na natureza em quantidade suficiente, porém limitada. Seu valor não foi estabelecido arbitrariamente, por fiat. Um rublo de ouro cunhado pelos czares tem hoje o mesmo o valor que tinha em 1917, embora o último czar tenha sido fuzilado em um porão.

Ao criar uma moeda fictícia e que perde valor conforme passa o tempo, o governo toma diretamente o dinheiro dos trabalhadores. Embora eles recebam o mesmo valor nominal, esse dinheiro compra menos bens do que comprava antes. Pior que isso, o trabalhador se vê privado de um repositório de valor. Ele não pode poupar esse dinheiro que se desvaloriza para usar no futuro.

Por fim, Isabel Paterson analisa o funcionamento da economia alemã sob Hitler. Algumas pessoas na época diziam que os alemães haviam libertado as máquinas das amarras financeiras e que a Alemanha ganharia a guerra porque possuía uma economia industrial e lutava contra inimigos que possuíam uma economia financeira. Isabel responde a essas pessoas dizendo que máquinas não podem ser escravizadas ou libertadas, esse termos se aplicam apenas a seres humanos. O que a Alemanha fez, de fato, foi roubar seus futuros inimigos, tomando empréstimos, comprando a crédito e não pagando. A Rússia comunista também fez isso. Uma economia industrial também é uma economia financeira. Mas a economia da Alemanha nazista era simplesmente uma fraude.

Por que Dinheiro Real É Indispensável

O Deus da Máquina, capítulo XVIII
Por que Dinheiro Real É Indispensável
Isabel Paterson


Moeda de ouro russa de 10 rublos, cunhada em 1898,
com a efígie do Czar Nicolau II.
Outra afirmação sobre a propriedade revela o nível mental primitivo dos coletivistas: a proposta de “abolir a herança de propriedade”. Uma vez que a propriedade é constituída de objetos tangíveis,1 só existem duas maneiras pelas quais a herança poderia ser abolida. Os objetos seriam destruídos ou declarados como não sendo mais propriedade, tendo seu uso impedido. A terra de um homem morto voltaria a ser selvagem. Povos primitivos ou bárbaros algumas vezes adotaram esse caminho, quando os bens e posses do falecido eram enterrados com ele e sua cabana queimada, ou quando o navio do viking se transformava em sua pira funerária, ou acampamentos antes ocupados eram abandonados.

O que os coletivistas pretendem dizer (mas não dizem, porque, se enunciassem explicitamente, não conseguiriam a simpatia de qualquer pessoa racional) é que, na ocasião da morte de um proprietário, o governo deveria tomar todas as propriedades que ele possuísse: uma expropriação gradativa que acabaria por confiscar todos os bens existentes no país depois de decorrido o tempo de vida natural de um ser humano. Nenhuma justificativa moral ou inteligível pode ser apresentada para explicar por que Hitler, Stalin ou qualquer outro governante deveria herdar o produto das economias, do trabalho e do cuidado de cada homem, em vez de a herança ir para sua mulher, seus filhos, ou qualquer pessoa a quem ele desejasse legá-lo; mas essa é a proposta. A morte e os impostos chegam de mãos dadas.

Os economistas que defendem o fiat money2 (papel-moeda não resgatável em ouro), ou então um sinal aritmético que chamam de “commodity dollar” (talvez porque não seja nem uma commodity nem um dólar),3 estão abaixo do nível mental dos selvagens. O selvagem usa os números, mas não chegou ao conceito abstrato. O defensor do fiat money se esqueceu de como usar os números.

Financistas e autoridades do Tesouro Britânico da época de Sir Isaac Newton perguntaram a ele por que a libra monetária tinha de ser uma quantidade fixa de metal precioso. Por que, na verdade, devia consistir de metal precioso, ou ter qualquer realidade objetiva? Uma vez que o papel-moeda já era aceito, por que não se emitirem notas que nunca seriam resgatadas? A razão pela qual a pergunta foi feita fornece a resposta; o governo estava altamente endividado e esperava encontrar uma maneira segura de ser desonesto. Mas Newton foi questionado como matemático, não como filósofo moral. Ele respondeu: “Cavalheiros, na matemática aplicada, é necessário descrever a unidade.” Papel-moeda não pode ser descrito matematicamente como dinheiro. Um dólar é uma determinada massa de ouro; isso é uma descrição matemática, por medição (massa). Um pedaço de papel com certas dimensões (comprimento, largura e espessura ou, em vez disso, massa) é um dólar? É claro que não. Um pedaço de papel de tamanho definido, mesmo com numerais e palavras de certo tamanho estampadas com uma dada quantidade de tinta, é um dólar? Não.

Moeda de ouro austríaca de 1915.
Aceitaram a palavra de Newton, possivelmente admitindo que o maior matemático de seu tempo devesse conhecer os fundamentos de sua ciência. Mas o fato de que aqueles homens educados ignoravam a primeira regra pela qual conduziam seu próprio negócio, comércio e finanças, e o fato adicional de que a resposta de Newton foi esquecida tantas vezes desde então, apesar das consequências desastrosas que isso trouxe a cada vez, indicam um gravíssimo problema na civilização.

A matemática é o idioma mundial da era da energia. Seu uso se estende muito além do uso do latim na Idade Média; além de expressar relações internacionais, também é o instrumento do pensamento prático e da comunicação na vida diária. Qualquer um que opere máquinas tem de pensar em relações matemáticas — tempo, velocidade, distância. Os homens que organizam e executam as tarefas práticas que fazem a civilização moderna funcionar — sejam motoristas de caminhão ou aviadores, mecânicos na linha de montagem, engenheiros ou gerentes industriais — pensam corretamente na linguagem prática da civilização moderna enquanto estão trabalhando. Se, com relação a seu trabalho, regredissem por um dia ao nível primitivo de inteligência, ao final desse dia o país inteiro seria um cenário de destroços.

Mas, se aqueles a quem foi confiada a direção geral e a organização política de um vasto sistema que depende completamente do conhecimento correto e do uso da linguagem matemática realmente não sabem, ou não entendem, a afirmação mais elementar nessa linguagem, como pode o sistema funcionar? Se os políticos e os financistas não acreditarem nem na lógica nem nas evidências de uma regra tão primária quanto dois mais dois são quatro, o que irá convencê-los?

A linguagem verbal de uma civilização avançada também é um instrumento de precisão. Quando as palavras são usadas sem definição exata, não pode haver comunicação além do nível primitivo. Se aqueles que supostamente expressam ou influenciam a “opinião pública”, os escritores, economistas, sociólogos e pedagogos, usam os conceitos da selvageria para pensar, qual pode ser o resultado?

O que é mais espantoso é que, quando os inimigos da civilização declararam abertamente sua intenção de destruí-la, de por em colapso o circuito de alta energia da Sociedade de Contrato, e explicaram como pretendiam fazê-lo, aqueles que serão destruídos executaram deliberadamente o programa de ruína. A ameaça explícita foi citada por John Maynard Keynes4: “Lenin estava certo. Não existe um meio mais sutil e eficaz de subverter a base existente da sociedade que perverter a moeda. O processo leva todas as forças escondidas das leis econômicas para o lado da destruição.”

Moedas de ouro búlgaras, cunhadas em 1912.
Os requisitos de uma moeda confiável são simples. Se cinco maçãs são trocadas por uma libra de queijo e o queijo por duas jardas de algodão e o algodão por dois galões de batatas e as batatas por duas horas de trabalho, por qual medida comum podemos computar esses itens diversos? Cada um deles vale o mesmo que qualquer outro e todos juntos valem cinco vezes o que vale cada um; mas não significa nada dizer que cada um vale um ou que todos juntos valem cinco. Um o quê? Cinco o quê? Coisas que são iguais a uma mesma coisa são iguais entre si. Como os itens podem ser trocados entre si, devem ser iguais; mas em que termos? Não em libras, jardas ou horas; são iguais em valor. Então, o que se deseja é uma unidade de valor para computá-los. Qualquer desses itens poderia ser escolhido como unidade de valor, se a sequência de transações fosse considerada encerrada no ato. Mas são bens perecíveis e foram considerados como quantidades fixas. O comércio comum precisa continuar numa sequência infinita através do tempo e da distância, incluir quantidades variáveis de matérias-primas existentes na natureza, o trabalho aplicado a elas e o uso final, consumo ou posse inativa.

Portanto, o que se deseja é um meio de troca, algo pelo qual tudo o mais possa ser trocado, de maneira que participe de todas as transações como a unidade de valor, e sirva para um número indeterminado de transações, um uso infinito. Se a libra de queijo tivesse sido trocada por certa massa de metal precioso, um dólar, e o dólar por duas jardas de tecido e, então, novamente, por dois galões de batatas e, novamente, por duas horas de trabalho e, outra vez, por cinco maçãs, cada item valeria um dólar e todos juntos valeriam cinco dólares. Se todos os bens fossem consumidos, o dólar permaneceria, para dar continuidade à sequência de trocas. Além disso, se um homem que possuísse bens perecíveis, digamos maçãs, não quisesse nenhum outro bem imediatamente, poderia trocar suas maçãs por dinheiro, e o dinheiro manteria o valor, permitindo que ele comprasse uma saca de farinha no ano seguinte; embora o trigo que se transformou na farinha ainda não tivesse sido plantado quando o homem vendeu as maçãs. É esse o uso do dinheiro. Facilita a troca imediata; é um repositório de valor; e permite que trocas sejam feitas através do tempo no longo circuito de energia.

O uso das coisas depende de suas qualidades intrínsecas. Queijo é comestível. Couro é usado para sapatos porque é maleável, resistente e durável. Portanto, o material a ser usado como dinheiro deve ser durável, divisível, incorruptível, fácil de levar, difícil de imitar e encontrado na natureza em quantidade suficiente, porém limitada. Somente os metais preciosos atendem a esses requisitos intrínsecos. Nunca existe “dinheiro suficiente” na Sociedade de Status. A economia livre produz seu dinheiro assim como produz aço, indo a campo e procurando, desenterrando o minério do chão. Não é por acaso que a oferta de dinheiro real aumentou conforme aumentou a produção de bens; os métodos avançados de produção permitiram que o metal fosse obtido com lucro a partir do minério bruto de baixo valor. De qualquer maneira, a quantidade de ouro disponível é sempre limitada.

O valor do ouro não foi nem é estabelecido por fiat, da mesma maneira que o valor do queijo, ou do algodão ou do couro não foram determinados por fiat. Se uma moeda de ouro da República Romana fosse desenterrada hoje, teria seu valor original mantido, embora a República Romana tenha perecido há dois mil anos. O mesmo para um rublo de ouro russo cunhado pelos czares ou uma moeda de ouro da Alemanha ou da França datadas de antes de 1914, embora o último czar tenha sido fuzilado num porão, o último imperador alemão tenha fugido do país e morrido no exílio e a França tenha sofrido invasão e conquista. Mas o papel-moeda da Rússia, da Alemanha ou da França de antes de 1914 hoje é inútil.

Um dólar é uma quantidade determinada de ouro. Não é questão de opinião; é assim por definição e por lei, estatuto federal. Todo o ouro mantido pelo governo pertence por direito e por lei aos cidadãos individuais, que o colocaram lá como depósito originalmente; assim como o dinheiro numa conta bancária privada pertence ao depositante. Uma cédula de dólar é um certificado de depósito, um recibo de armazém dado em troca de um dólar. O valor está no metal depositado, assim como o valor indicado em qualquer recibo de armazém é expresso nos bens que ele registra. Se os bens não existem, ou são destruídos, ou não serão entregues, o papel não tem valor. Foi o que aconteceu na Alemanha quando o papel-moeda era impresso embora não houvesse ouro para resgatá-lo; e uma carroça cheia de papel-moeda não era suficiente para comprar um ovo. Cheques também não são dinheiro; são promessas de pagamento em dinheiro. Se assim não fosse, qualquer um poderia fazer um cheque e obter bens em troca de nada.

Se alguém disser que qualquer coisa serve como dinheiro, desde que as pessoas aceitem, vamos perguntar por que as pessoas não aceitam “qualquer coisa”? Ofereça ao homem que diz “qualquer coisa serve como dinheiro” um punhado de pedrinhas em pagamento de uma dívida.

A necessidade absoluta de dinheiro real, com sua unidade em metal precioso, para qualquer sequência extensa de trocas, foi provada exatamente pelos teóricos que afirmaram que isso é mera convenção e pela nação cujos agentes ainda divulgam propaganda, para convencer outras nações que ela deseja destruir, de que uma “moeda gerenciada”, que consiste unicamente em papel pintado, é tão boa quanto o dinheiro real ou até melhor que ele. Os comunistas e outros defensores da propriedade governamental alegaram, por mais de um século, que vales-trabalho seriam o meio de trocas “justo” e que o dinheiro real era um dispositivo capitalista para explorar os trabalhadores. Então, experimentaram seu próprio plano na Rússia comunista e não conseguiram fazê-lo funcionar nem mesmo usando o terror e a fome. Não porque o povo não aceitasse os “vales-trabalho”; os pobres coitados foram obrigados a aceitá-los; simplesmente, não é possível fazer a aplicação necessária da aritmética aos bens e ao trabalho sem dinheiro real. Na matemática aplicada, é necessário descrever a unidade. A Rússia comunista teve de voltar à unidade ouro.

Por que nem mesmo o trabalho escravo e a transferência forçada de bens podem ser executados com vales-trabalho no lugar de dinheiro real? Basta seguir as transações até o final para descobrir por quê. Na verdade, se um único dono de escravos possuísse terra com recursos naturais para suprir todas as necessidades e escravos para realizar todo o trabalho de produção, poderia distribuir os escravos como quisesse, mas não precisaria de vales-trabalho. Mas suponhamos que dez homens, escravos ou livres, devam trabalhar para cultivar trigo em determinado campo. É perfeitamente possível dividir o produto pelos vales correspondentes ao número de horas de trabalho. Então, suponhamos que outros dez homens trabalhem no campo ao lado, cultivando beterrabas; a mesma divisão pode ser feita. E uma porção de uma hora-trabalho de trigo poderia ser trocada por uma porção de uma hora-trabalho de beterrabas. Mas a quantidade de trigo ou beterrabas que um vale de uma hora-trabalho representa foi estabelecida apenas para produtos determinados em campos determinados naquela safra. Em outros campos, beterrabas ou trigo cultivados por outros grupos resultariam em diferentes quantidades por hora-trabalho. Além disso, quando o trigo fosse para o moinho ou as beterrabas para a fábrica de açúcar, mais horas de trabalho teriam de ser incluídas, sem contar as horas de trabalho representadas pelo maquinário. Então, qual a quantidade de bens que um vale de uma hora-trabalho poderia representar? O plano inteiro é impossível. Somente um coletivista poderia ser tão idiota para imaginar um sistema assim. Na matemática aplicada, é necessário descrever a unidade. Com uma unidade de valor de ouro, horas de trabalho e material e depreciação do maquinário e tudo que faz parte do processo inteiro podem ser calculados por uma medida comum; e devem ser calculados de alguma maneira, para permitir que qualquer coisa seja levada do campo para a fábrica e dali para a loja; assim, os preços dos bens mostrarão o que pode ser comprado por qualquer quantia em dinheiro determinada.

Mas se o papel-moeda não é realmente resgatado quando solicitado em dinheiro real (ouro), se o cidadão não tem como recuperar a posse de sua propriedade quando apresenta o certificado de depósito, porque os ocupantes imediatos dos cargos políticos, membros do governo, se recusam a obedecer à lei (como têm se recusado), então que diferença faz se o ouro realmente existe ou não? Que diferença faria se todo o ouro do mundo desaparecesse completamente, se dissolvesse no ar, ou fosse afundado em um ponto desconhecido no meio do oceano? Ou, se só existisse um dólar de ouro para ser descrito como a unidade de trocas, isso não serviria?

Existe nessa pergunta — que tem sido feita por gente que não deveria cair nesse truque — uma premissa implícita de que o confisco e sequestro do ouro pelos governos não faz ou não precisa “fazer diferença nenhuma”. Se isso é verdade, porque os governos confiscam o ouro? A menos que essa ação seja atribuída a um tipo de estupidez criminosa, semelhante a de desocupados de rua que roubam coisas aleatoriamente, obviamente isso deve fazer diferença.

Provavelmente, a maioria das pessoas não percebe a diferença entre suspender temporariamente o pagamento do ouro e confiscar o ouro; embora a diferença seja a mesma entre um banco suspender seus pagamentos e um banqueiro tirar do bolso de um depositante o que sobrou lá depois que o banco quebrou. Quando o dinheiro é depositado em um banco, existe o risco contingente de que o banco não consiga pagar imediatamente quando solicitado. Isso é moratória. O banco possui ativos que podem ser vendidos para pagar os depositantes. O cidadão que possui uma nota de dólar tem dinheiro real depositado no governo. Alguém levou minério de ouro à Casa da Moeda; por lei, ele tem o direito de receber moedas na mesma quantidade menos uma pequena porcentagem correspondente ao custo de cunhagem. Mas em vez de levar o dólar real, alguém aceitou um certificado de depósito. O governo nunca foi dono de ouro nenhum; recebeu permissão de guardá-lo até que fosse solicitado. Como o governo também toma emprestadas grandes quantias em títulos e gasta o dinheiro, se muitas pessoas quiserem seu dinheiro de volta ao mesmo tempo, o governo não será capaz de pagar; estará em moratória. O governo não possui ativos para cobrir suas dívidas; a propriedade governamental não renderia muito dinheiro se fosse vendida, porque não é produtiva; e, além disso, o credor não tem como solicitar o pagamento ao sacador ou endossante. A contingência da suspensão dos pagamentos em ouro pelo governo é inevitável enquanto for permitido aos governos emitir papel-moeda e tomar dinheiro emprestado. São poderes intrinsecamente perigosos; mas há duvidas de que essa questão ainda será analisada de maneira inteligente; ou, pelo menos, isso só vai acontecer enquanto os homens aprenderem a pensar de maneira mais corajosa. No presente, considera-se como um fato que os governos devem ter esses poderes, assim como antigamente se considerava que os reis e os nobres deviam ter certos poderes que foram abolidos nas repúblicas. Seja como for, se os governos confiscam o ouro, isso faz diferença imediatamente. A existência desse monopólio do ouro, mantido à força, é o que tornou inevitável a Segunda Guerra Mundial. Ele permite que governos como o da Alemanha e o da Rússia subvertam a economia privada, transformando-a numa máquina de guerra e deixando impotentes os cidadãos. O método pelo qual o objetivo clandestino é alcançado é uma abstração permanente do valor do dinheiro e um aumento da dívida nacional por meio de empréstimos bancários.5

Outra vez, que diferença faz se o ouro existe ou não, uma vez que foi expropriado pelo governo?

Tomemos os governos como testemunhas. Mesmo na Rússia, quando os comunistas diziam que o ouro era mera convenção e que não o usariam, tomaram o cuidado de confiscar o ouro mesmo assim. O pretexto oferecido pelos teóricos do papel-moeda é que as pessoas simplesmente estão acostumadas ao ouro e insistem em usá-lo apenas por hábito; portanto, é necessário tomá-lo das pessoas para o bem delas. É claro que nenhum governo conseguiria tomar posse de todo o ouro do mundo, afundá-lo no mar e fechar todas as minas de ouro; mas um governo conseguiria proibir o ouro, afundar todo o ouro que houvesse no país e impedir a entrada de mais. Seria muito mais fácil fazer isso que proibir o álcool, porque o ouro não pode ser fabricado. Por que o governo guarda o ouro, depois de tê-lo tomado à força de seus proprietários?

Porque o dinheiro de verdade é indispensável; os valores de troca, os preços, são estabelecidos pela quantidade total de ouro existente. De maneira aproximada, se houvesse em uma troca cinquenta libras de açúcar e dez libras de manteiga, cinco libras de açúcar seriam dadas em troca de uma libra de manteiga; uma quantidade dividida pela outra. Como o ouro é o meio de troca, as quantidades de bens são divididas pela quantidade de ouro (dólares), para encontrar o preço. O processo no comércio geral é imensamente complicado pelos diversos tipos de bens, a oferta e a demanda variáveis, as distâncias que acrescentam custo de transporte, e as trocas assíncronas; mas a quantidade total de ouro é sempre o determinante dos preços, pela comparação de quantidades. Se só existisse um único dólar de ouro, ele não poderia ser usado como a unidade de valor, porque não haveria um número para ser o divisor. Quantas notas de papel deveriam ser impressas? Uma? Uma quantidade ilimitada? Não haveria um número adequado. Se os sonhos antigos dos alquimistas fossem realizados, de maneira que o ouro pudesse ser fabricado em quantidade ilimitada, ele também teria se tornado inútil como meio de trocas.

Houve uma vez um governo que realmente proibiu o ouro e não guardou nenhum metal consigo, na crença de que o ouro era ruim para o povo. Foi o governo de Esparta. Mas os espartanos acreditavam que conforto, conveniência e atividade eram ruins e que o trabalho era ignóbil. Os espartanos usavam o ferro como moeda, porque ninguém seria capaz de carregar uma quantidade suficiente de ferro para o comércio geral. A intenção era manter a nação pobre, manter os cidadãos no nível da economia de subsistência. O plano foi um completo sucesso. É exatamente o que a proibição do ouro produz; reduz a nação a um nível paralisado de pobreza e a mantém nessa condição. Mas os governantes de Esparta também desejavam permanecer pobres eles mesmos. Não usufruíam mais luxo que qualquer outro espartano; não mais que os próprios escravos que faziam o trabalho. Mas, mesmo em Esparta, onde a comida era distribuída pelo governo num sopão geral, alguma coisa precisou ser usada como dinheiro e esse material teve de ter valor intrínseco.

Os déspotas modernos não desejam ser eles mesmos pobres. Desejam arrebatar todo o luxo que uma economia industrial pode fornecer. O que desejam é manter pobres os produtores, tomando deles o produto e distribuindo de volta uma pequena parcela para subsistência. É por isso que os governos confiscam e guardam o ouro.

Quando o papel-moeda é desvalorizado, a diferença tem de vir de algum lugar; e o principal corte é nos salários. O fato é que qualquer gasto governamental pesado tem de ser tomado do salário dos trabalhadores; não há outra fonte possível. Mas a desvalorização da moeda sai dos salários imediatamente; seja o que for que um trabalhador recebe em seu envelope de pagamento, esse valor simplesmente vai comprar muito menos bens. De maneira recíproca, o aumento da produção eleva os salários mesmo que o valor em dinheiro seja o mesmo; ele vai comprar mais.

Além da perda imediata, o trabalhador deixa de ter um repositório de valor. Não importa o quanto ele ganhe, não conseguirá economizar uma parte para o futuro, se o dinheiro estiver em papel-moeda que se desvaloriza. O dinheiro real é o único meio pelo qual o trabalhador pode ter alguma independência. É por isso que faz diferença os governos confiscarem o ouro. Isso torna o trabalhador impotente. Ele só pode viver com o que ganha no momento, com a expectativa de ganhar cada vez menos, conforme passa o tempo. Em nenhum lugar do mundo, nenhum trabalhador ficou em melhor situação depois que o governo confiscou o dinheiro real. Isso é verdade até para os trabalhadores de alta renda nos Estados Unidos; se o trabalhador possui bens, eles estão se desvalorizando — seu carro, por exemplo — e ele não sabe quando ou como poderá comprar outro. Se ele tem um seguro, não sabe que quantia será efetivamente paga por ele.

Numa economia de livre iniciativa, os produtos colocados inicialmente no mercado como artigos de luxo tendem continuamente a chegar ao alcance de todos e passam então a ser considerados necessidades. Esse é um benefício da existência de fortunas privadas consideráveis, que devem ser investidas para gerar receitas, o que significa aumentar a produção. A margem restante será gasta em coisas inventadas recentemente que ainda são caras, mas capazes de ser melhoradas e produzidas a um custo menor. O processo completo é mais evidente no caso do desenvolvimento dos automóveis de uso geral. Contada em detalhes, a história tem elementos de comédia. Primeiramente, vários inventores e engenheiros montaram um aparelho grande e desajeitado que ninguém iria querer, a não ser para satisfazer seu interesse pela mecânica. Então, o automóvel foi “aperfeiçoado” e se transformou num artigo de luxo; ou seja, ainda era caro, inconveniente e sem utilidade prática, porque não havia estradas adequadas, postos de combustível ou oficinas mecânicas; o carro tinha grandes chances de deixar seu dono na mão a uma grande distância de casa, sendo ridicularizado. Esses eram carros para diversão! Compradores ricos pagavam pelo período de experimentação, primeiro entrando com o capital (do qual uma parcela enorme sumia sem retorno), e então comprando os carros. Em seguida, vários homens inventivos pensaram que podiam fazer carros mais baratos. Nesse processo, aqueles que investiam tempo e dinheiro eram impelidos a continuar, na esperança de conseguir retorno. Assim, os ricos apoiaram a indústria nascente, até que os carros fossem suficientemente bons para pessoas de renda moderada. Quando o carro barato passou a ser produzido em massa, o fabricante percebeu que teria de ter um grande mercado correspondente. Para o trabalhador comprar um carro, os salários deveriam ser maiores. O fabricante aumentou o salário voluntariamente, e assim forçou outros empregadores a fazer o mesmo. Onde, nessa sequência, algum governo poderia provocar o mesmo estímulo? Em lugar nenhum. Mas que isso, se a moeda tivesse sido desvalorizada naquele período, o processo teria parado, porque o aumento nos salários reais era necessário, em conjunto com a redução de custos materiais. Num dado momento, a maior parte do capital do fabricante de uma indústria em crescimento é a sua matéria-prima; se ele não puder repor o estoque pelo mesmo custo, terá de elevar o preço do produto. Ao mesmo tempo, se o custo aumenta pela desvalorização da moeda, os salários reais caem, e o mercado acaba; ninguém tem dinheiro para comprar o produto. A produção tem de parar.

Mas a mais perigosa falácia envolvendo dinheiro apresentada recentemente pretende encontrar um argumento válido no jogo de guerra alemão. Foi expressa de diversas maneiras, mas a formulação a seguir engloba todos os pontos relevantes.

Ela diz que a Alemanha está “vencendo a guerra porque luta usando uma economia industrial e de engenharia”, enquanto os Aliados “lutam usando uma economia financeira”.6 Também diz que “Thorstein Veblen7 sabia tudo sobre” essa economia e que “na Alemanha, Walther Rathenau8 tentou colocá-la em prática” primeiro. Chamam esse processo de “tirar o pesado pé financeiro dos freios e deixar o maquinário produtivo funcionar livremente… Máquinas libertadas sempre vencerão o dinheiro libertado.”

O nível mental de selvageria é mais uma vez evidente pelos termos usados: são animistas. Um selvagem poderia, ao ver uma máquina motorizada, pensar que fosse um tipo de gênio em uma garrafa, uma criatura escravizada. Mas a ideia não tem sentido. Uma máquina não pode nem ser escravizada, nem libertada; esses termos se aplicam apenas a seres humanos. É verdade, entretanto, que Rathenau fez tudo o que pôde para organizar a Alemanha, de maneira que ela fosse obrigada a ir à guerra, querendo ou não. (Rathenau pensava que somente o governo deveria ter tanto poder. O poder que ele ajudou a dar ao governo expropriou, exilou e matou judeus na Alemanha; eles devem seu infortúnio, em grande parte, a alguém de sua própria raça. É pouco provável que esse fato seja reconhecido algum dia.)

Mas de que tipo de economia a Alemanha de fato está vivendo?

Todos os recursos que a Alemanha usa na guerra foram produzidos por uma economia financeira. O maquinário foi inventado numa economia financeira; a Alemanha foi equipada com fábricas, a ciência da Química foi desenvolvida, técnicos foram treinados por uma economia financeira. Enquanto se preparava para a guerra, a Alemanha pegou emprestado todo o dinheiro que pôde, comprou a crédito todos os bens que pôde e não pagou. Esses recursos foram roubados das economias financeiras. A ação dos governos estrangeiros foi o que permitiu que a Alemanha roubasse em tão grande escala. Por três anos seguidos, a Alemanha “comprou” a produção anual de lã da África do Sul, pela intervenção do governo sul-africano que “financiou” o negócio; a lã se transformou em uniformes para o exército alemão; e a Alemanha nunca pagou. Foi um prejuízo completo para os produtores que acharam que o governo estava patrocinando um bom negócio para eles!

Os nazistas assumiram o controle de uma economia que possuía agricultura e indústria, ambas usando maquinário e dinheiro. O governo comunista na Rússia fez o mesmo. Além disso, na Rússia, todo o maquinário moderno havia sido fornecido por economias financeiras estrangeiras e pago (até quando foi pago) em ouro. Em ambas, Alemanha e Rússia, dinheiro real ainda é usado; e ambos os lados combatem usando a produção de uma economia financeira. Que tipo de economia eles criaram?

Se um bandido rende o dono de um automóvel ameaçando-o com um revólver, leva o carro e sai dirigindo, e então consegue gasolina, manutenção e o que mais precisar pelos mesmos meios, de que tipo de economia ele está vivendo? Se um número suficiente de bandidos tomasse a economia inteira da mesma maneira, mas “legalizasse” esse ato chantageando tribunais e legislaturas; e se também “pagassem” pelo que tomaram em papel-moeda, na quantia que quisessem, que tipo de economia isso seria?

Em uma usina elétrica, existe um gerador e outros equipamentos para a conversão e transmissão de energia. Pode ser uma hidrelétrica ou uma termoelétrica; no segundo caso, o fornecimento de combustível deve ser contínuo e, em qualquer caso, existe a manutenção. Conforme a energia é utilizada, o medidor registra para onde ela vai. Os consumidores pagam por ela; e o dinheiro traz de volta os suprimentos necessários; os valores em dinheiro também são uma métrica. Um selvagem, observando que as operações são executadas com a preocupação constante com esses dois registros, poderia dizer: Por que vocês não tiram os medidores e param de se preocupar com o dinheiro? Assim vocês poderiam usar toda a energia que quisessem. Liberem o gênio da garrafa, em vez de pará-lo como vocês fazem, aqui e ali; tudo está preso.

Uma pessoa desonesta poderia introduzir fios ocultos para roubar parte da corrente sem indicação do medidor; ou poderia fazer lançamentos falsos nas contas financeiras.

Que tipo de economia seria esse?

Uma economia industrial e de engenharia é uma economia financeira. Não pode funcionar de outra maneira. Um bandido obviamente pode dirigir um carro roubado por algum tempo, mas isso não significa que ele desenvolveu uma economia de engenharia. Ele está vivendo de uma parte roubada do capital de uma economia industrial, de engenharia e financeira. A Alemanha está vivendo do capital roubado do exterior, e do capital da Europa, saqueado pela força militar. A Rússia está vivendo do capital confiscado da indústria que existia quando os comunistas tomaram o poder e do maquinário fornecido por economias livres no exterior, particularmente os Estados Unidos. Parte dele foi paga em dinheiro; parte foi simplesmente dada à Rússia, à custa da economia livre.

Quando os índios conseguiam armas de fogo com os homens brancos e usavam essas armas para conseguir comida caçando, de que tipo de economia eles viviam? Quando os militares turcos confiscaram os lucros dos comerciantes e o produto dos fazendeiros conquistados para usá-los na guerra, de que tipo de economia estavam vivendo? Seria uma economia militar? É claro que não. Era uma economia agrícola e comercial. Eles usaram os lucros para a guerra e por algum tempo foram vitoriosos; mas estavam consumindo o capital e a economia decaiu.

A ideia de Veblen, como citado, era que “a associação de engenheiros, apoiada pelas legiões concentradas e calejadas dos trabalhadores da indústria, deveria proibir a propriedade privada do maquinário de produção e fazê-lo funcionar em sua capacidade máxima”.

Como? Eles assumiriam o controle das máquinas existentes? Mas por que eles deveriam fazer isso? Máquinas existentes tem vida curta. Teriam de ser substituídas em pouco tempo. Se pudessem ser substituídas — novas máquinas construídas — sem preocupação com o dinheiro, qual a vantagem de roubar máquinas usadas? Por que os “engenheiros e as legiões concentradas e calejadas” não fariam o que precisassem — sem dinheiro? Não existe moto perpétuo; eles precisariam dar a partida. Depois disso, é claro que tudo continuaria funcionando. O que é mais curioso é que mesmo que esse absurdo seja admitido, não há dúvida de que o plano poderia ser iniciado com uma pequena quantia de dinheiro. Henry Ford tinha muito pouco dinheiro quando começou. Será que a “associação de engenheiros e legiões concentradas e calejadas” juntos não seria mais esperta que um único mecânico de meia idade, numa cidadezinha de Michigan?

A verdade é que não são. Nenhum grupo é tão inteligente quanto um indivíduo. Nenhum grupo, enquanto grupo, tem inteligência nenhuma; toda a inteligência está nos indivíduos.

E o dinheiro é o meio pelo qual a inteligência dos indivíduos pode ser reunida em livre cooperação, em grandes empresas produtivas. O dinheiro é o único meio pelo qual as máquinas podem ser inventadas ou usadas. O que os engenheiros e operários podem conseguir sob a propriedade estatal (que é a única maneira de proibir a propriedade privada) é construir as pirâmides, pesadas e inúteis massas de rocha empilhadas como memorial dos Veblens de uma era antiga. Heródoto conta, centenas de anos mais tarde, que “os egípcios detestavam tanto a memória daqueles reis (construtores das pirâmides) que não gostavam nem mesmo de mencionar seus nomes”.

Mesmo antes da rendição completa da Alemanha ao poder do governo, técnicos e engenheiros alemães não conseguiam se igualar a seus colegas nos Estados Unidos na pesquisa e desenvolvimento de recursos naturais. (Os Estados Unidos eram a grande economia financeira do mundo, com terras e bens no mercado.) Propriedade privada, dinheiro, liberdade, engenharia e indústria formam um único sistema; são os componentes de um longo circuito de alto potencial de energia. E quando um elemento é retirado, o restante necessariamente desmorona, para de funcionar.

1 A propriedade em direitos autorais se refere a objetos tangíveis, reproduções; com os direitos autorais de uma música, o direito também se efetiva quando essa música é tocada em troca de remuneração, sendo a remuneração tangível. (N. da A.)

2 Fiat money: dinheiro cujo valor vem de uma lei ou regulação governamental. O termo deriva da expressão latina fiat (“faça-se”). Depois da Segunda Guerra Mundial, o acordo de Bretton Woods estabeleceu um sistema mundial de moedas lastreado no dólar americano, enquanto o dólar americano era lastreado em ouro. Richard Nixon aboliu o lastro em ouro do dólar em 1971. Desde então, todas as moedas de reserva tornaram-se fiat money, inclusive o dólar e o euro. (N. do T.)

3 O “commodity dólar” supostamente é determinado por uma equação de trocas numa “escala deslizante” para um dado período. Qualquer que seja o processo, se fosse aplicado, unidades quantitativas fixas de medida teriam de ser usadas; e quantidades de bens de diferentes tipos só poderiam ser consideradas equivalentes a uma unidade fixa de valor, um dólar real. Aparentemente, a ideia era variar o conteúdo hipotético do dólar periodicamente pela equação encontrada nas trocas anteriores; talvez, somente com papel-moeda em circulação. É impossível extrair um sentido lógico dessa teoria. Se todas as unidades de medida são, em primeiro lugar, determinadas arbitrariamente, embora agora fixadas por lei, obviamente podem ser alteradas por lei. O mesmo comprimento de algodão poderia ser chamado de uma polegada num dia, um pé no dia seguinte, e uma jarda no outro; a mesma quantidade de metal precioso poderia ser denominada dez centavos hoje e um dólar amanhã. Mas o resultado líquido seria que números usados em dias diferentes não significam a mesma coisa; e alguém teria um pesado prejuízo. O argumento apresentado para um “commodity dólar” era que um dólar real, de quantidade fixa, não compra sempre a mesma quantidade de bens. É evidente que não. Se não houvesse um meio de valor, se não houvesse dinheiro, uma jarda de algodão ou uma libra de queijo também não seriam trocados por uma quantidade fixa invariante de nenhum outro bem. Foi dito que um dólar sempre deveria comprar a mesma quantidade de qualquer descrição de bens. Não comprará e não pode comprar. Isso só poderia acontecer se o mesmo número de dólares e as mesmas quantidades de bens de todos os tipos estivessem sempre existindo para serem trocados, sempre na mesma proporção da demanda; se considerarmos que existe produção e consumo, ambos devem ser sempre iguais, para que um compense o outro. O dinheiro é a equação num sistema de produção e trocas. Foi sugerido (por Muriel Rukeyser, em “Willard Gibbs: American Genius”) que o Professor Irving Fisher, um dos principais defensores do “commodity dólar”, tentou aplicar à economia o método Gibbs de Análise Vetorial (aplicado na Regra de Fase à Termodinâmica “para interpretar fenômenos físicos”). Mas a Análise Vetorial ou a Regra de Fase não mudam nenhuma unidade de medida. A própria Muriel Rukeyser cita uma grande autoridade no assunto, Dr. W. R. Whitney (da General Electric), que se refere a “esse grupo de expressões matemático-físicas de fatos medidos, que Gibbs coordenou de maneira tão científica”. A unidade fixa de medida para os fatos é um pré-requisito da teoria de Análise Vetorial; e a correta aplicação do método depende necessariamente das mesmas unidades de medida sendo mantidas por todo o tempo. Se a unidade de medida mudasse entre as operações, seria impossível passar de um conjunto de cálculos para o seguinte. A falácia do “commodity dólar” foi completamente desmascarada há alguns anos. (N. da A.)

4 John Maynard Keynes (1883 - 1946): economista britânico que fundou a escola de pensamento econômico chamada keynesianismo, caracterizada por forte intervenção do governo na economia, controle governamental do valor da moeda e tentativas governamentais de induzir o crescimento econômico por meio da redução das taxas de juros e desestímulo à poupança (N. do T.).

5 Quando a França quebrou por causa da Bolha do Mississípi, “os agentes da Mississipi Company foram investidos do poder de fazer buscas nas casas e confiscar todo o dinheiro cunhado que encontrassem… Também foram impostas multas pesadas. É espantoso que as pessoas tenham suportado essa opressão com tanta paciência.” (Saint-Simon) (N. da A.)

6 Carl Dreher (que também cita Dorothy Thompson) na Harper's Magazine. (N. da A.)

7 Thorstein Veblen (1857 – 1929): economista e sociólogo americano. Foi um crítico popular do capitalismo e defendia a propriedade estatal da indústria. (N. do T.)

8 Walther Rathenau (1867 – 1922): industrial, político, escritor e estadista alemão, foi Ministro das Relações Exteriores da Alemanha durante a República de Weimar. (N. do T.)