O Deus da Máquina, capítulo XIX
Crédito e Depressões
Isabel Paterson
Como
a produção é executada ao longo do tempo, o crédito surge como
uma consequência natural. O crédito é moldado nos processos da
natureza. Quando um homem planta alguma coisa na expectativa de uma
colheita, está gastando bens e trabalho no presente para um retorno
no futuro, com o risco correspondente de perda. O próximo passo é
óbvio; um homem pode adiantar bens para outro em troca de um retorno
subsequente. Não existe nenhuma razão para supor que o dinheiro
tenha criado o crédito, embora eles possam ter se desenvolvido
simultaneamente. O dinheiro é o único meio pelo qual trocas
adiadas1
de bens podem ser realizadas sem crédito. Mas os homens concedem
crédito e não é possível convencê-los a deixar essa prática,
porque está em sua natureza. Em virtude de sua mente, o homem
trabalha através do tempo e do espaço. O impulso não é a
ganância, mas a faculdade criativa e expansiva. O risco adicional é
aceito por causa da extensão maior e mais rápida do poder sobre a
natureza.
Se
a humanidade desejasse ter o sistema de produção mais robusto
possível, o dinheiro real seria o meio adequado. Nesse caso, nunca
seria concedido crédito, nunca seriam feitos empréstimos. Todas as
transações em bens e em dinheiro seriam encerradas no ato,
incluindo o período mais curto possível para o pagamento do
trabalho. O dinheiro ainda cobre o tempo e a distância. Com esse
sistema, seria impossível haver pânico; e não haveria necessidade
de tempos difíceis, exceto na circunstância de uma colheita ruim.
Não se pode dizer que não haveria pobreza, porque os bens têm de
ser produzidos. Propostas para “abolir a pobreza”, ou garantir a
“liberdade da necessidade” ou a “liberdade do medo” são
apenas uma confusão de termos. Medo e necessidade são subjetivos; e
a pobreza é a ausência de riqueza. Se fosse prometido que, a partir
do momento do nascimento, ninguém devesse nunca carecer de roupas,
quem as produziria? Quem teria tal poder absoluto sobre todas as
outras pessoas? A única condição na qual não se pode passar pela
pobreza, pela necessidade ou pelo medo é a do rigor
mortis.
Os mortos não têm necessidades, nem medo. Com pessoas vivas,
produzindo e trocando bens em liberdade, as opiniões e os tempos são
variáveis que introduzem riscos. Tudo o que pode ser dito é que o
dinheiro é o meio seguro de estender trocas de bens para o futuro.
O
sistema de pagamento à vista em dinheiro nunca foi proposto por
nenhum teórico social, porque não exigiria nenhum controle, nenhuma
compulsão, nenhum emprego político, nem poder para o reformista.
Seria completamente restrito à competência do indivíduo, desde que
existisse dinheiro real. Ninguém é obrigado a conceder crédito. Os
homens podem se limitar a transações em dinheiro se desejarem, e
não o fazem. Durante a Idade Média, quando os juros sobre o
dinheiro eram estigmatizados como moralmente errados, os homens
faziam empréstimos a juros da mesma maneira, e pagavam taxas altas.
Os mercadores e as guildas de artesãos administravam silenciosamente
um sistema de crédito de longo alcance; a expectativa de receber se
baseava no poder privado e negativo, a recusa de continuar fazendo
negócios com um inadimplente.
Sem
crédito, é difícil imaginar como o sistema moderno de produção
de alta energia poderia ter sido criado. A acumulação de capital em
dinheiro nas somas necessárias seria quase impossível ou, pelo
menos, muito mais lenta. Embora enormes empresas tenham sido criadas
sem usar os diversos instrumentos modernos de crédito — como fez
Henry Ford — ainda assim, se não existisse um sistema de crédito,
com bancos para facilitar o pagamento de remessas de mercadorias para
lugares distantes, concentrar os depósitos de correntistas e dar
algum crédito local, os negócios não alcançariam essa dimensão.
Mesmo
sem crédito, perdas de capital podem acontecer. Invenções e
melhorias podem obsoletar os bens de capital anteriores; ou
experiências com novas invenções podem fracassar; e, finalmente,
iniciativas de capital necessariamente ultrapassam a demanda
imediata; criam um mercado. A energia procura uma passagem e o
julgamento humano nem sempre é adequado para direcioná-la. A
desonestidade é o menor dos fatores na perda generalizada de um
grande pânico e depressão; praticamente, só entra depois do fato.
Ou seja, os homens recorrem a truques fraudulentos quando empresas
que começaram honestamente estão falindo. Daí segue o espetáculo
nauseante de homens proeminentes falsificando registros contábeis e
gaguejando desculpas ridículas ou mentiras patentes quando
investigados. Não estou minimizando a desonestidade; é
imperativamente necessário que os culpados recebam uma punição
sumária e que as falhas resultem em rebaixamento profissional. O
ponto é que a desonestidade nunca é a causa primária de um colapso
de crédito. Mas ela causa um dano muito maior que as quantias
envolvidas, porque desvia a atenção da tarefa crucial de fazer a
produção voltar a funcionar. Além disso, a desonestidade confunde
a questão vital do lucro. Dá um pretexto para discussões enganosas
com essas frases sem sentido, como “produção para o uso e não
para o lucro”.
Produção
é
lucro; e lucro é produção. Não estão simplesmente relacionados;
são a mesma coisa. Quando um homem planta batatas, se não conseguir
de volta mais do que investiu, não
produziu nada.
Isso ficaria evidente se ele colocasse uma batata no solo hoje e
tirasse do solo a mesma batata amanhã; mas é exatamente a mesma
coisa que ele plantar uma batata e conseguir colher apenas uma
batata. Seu trabalho foi perdido. Então, se não possuir reservas da
produção anterior, passará fome, ou
alguém mais terá de alimentá-lo.
A objeção contra o lucro é o mesmo que um espectador, observando o
agricultor fazendo a colheita, dizer: “Você colocou só uma batata
e está colhendo uma dúzia. Você deve ter tomado as outras de
alguém; essas batatas extras não podem ser suas por direito.” Se
o lucro é condenado, deve-se supor que ter uma perda é admirável.
Ao contrário, é a perda que exige justificativas. O lucro se
justifica sozinho. Quando uma instituição não é administrada para
ter lucro, ela necessariamente é sustentada pelos produtores. Uma
das maneiras pelas quais os não produtores destroem gradativamente o
sistema de produção livre é convencendo os homens ricos a fazer
doações a fundações para o “trabalho social” ou para
“pesquisa” política ou econômica. Os argumentos que essas
pesquisas vão encontrar serão geralmente justificativas do
parasitismo, favorecendo a criação de mais sinecuras pela extensão
do poder político.
O
mais importante é reconhecer o que acontece quando o crédito entra
em colapso, causando uma “depressão”. O circuito de energia se
rompeu. Em muitos pontos ao longo da linha, a energia está vazando,
sendo perdida de alguma maneira. Quando os fios de uma usina elétrica
são derrubados por um ciclone, ocorre uma condição parecida, mas
causada por um acidente externo; e as medidas necessárias para
conserto são óbvias. Em um sistema de produção, a conexão da
energia é mais complexa e o rompimento tem causas internas, que dão
origem a entendimentos errôneos dos vários fatores e relações.
No
exemplo mais simples possível, se um homem tem de andar oito milhas
em duas horas para conseguir suprimentos que lhe darão energia
suficiente apenas para andar quatro milhas em uma hora, esse é um
trabalho inútil. Energia física real foi perdida, gasta no calor e
na matéria desperdiçada do esforço muscular. Mas, para efeitos
contábeis, a perda teria de ser computada em tempo ou milhagem. É
uma simplificação extrema, que assume que o homem é o sistema de
produção inteiro. Se ele usasse alguma ferramenta, seu custo e sua
depreciação deveriam ser incluídos. Assim, com um sistema de
produção superior, cada parte deve ser conservada por um excedente
de produção; mas o sistema como um todo ficou sem excedente
armazenado. Quando uma estrada de ferro é construída além das
necessidades, estendida “à frente do tempo” através de um
espaço onde não há tráfego suficiente para sustentá-la, é um
problema complexo descobrir a perda real
no circuito de energia. Quando e onde ela ocorre?2
Uma perda específica de um investidor não significa necessariamente
uma perda real no circuito de energia, nem mesmo um ganho para outra
pessoa; embora cada uma dessas suposições possa ser verdadeira numa
dada situação. Pode acontecer, em uma transação, que haja uma
perda real no circuito, uma perda do investidor original, e até uma
perda do comprador que assume os bens e os torna rentáveis; mas
nenhum desses fatores pode ser dado como certo. O tempo, o espaço e
o gerenciamento são as variáveis. Perdas reais
ocorrem através
do espaço e do tempo; e em objetos físicos. A
mesma perda engloba ambos os aspectos.
Materiais
são perecíveis porque, com o tempo, perdem sua forma e qualidade
úteis pelo desgaste ou por simples negligência. A energia cinética
de um circuito de produção pode se dissipar sem retorno de tantas
maneiras que seria tedioso enumerá-las. Pode ser convertida em
formas estáticas que são inúteis para o circuito; e, novamente,
isso pode ser apenas uma perda líquida ou tornar-se um peso morto,
causando uma perda contínua. (Se um arranha-céu é construído e
ninguém o ocupa, ele pode ser abandonado; isso seria uma perda
líquida; mas se é mantido a um custo mais alto que o retorno em
aluguéis, é uma perda contínua, um peso morto.)
Mas,
de todos os objetos usados em trocas, o
dinheiro real é o único fator no qual não pode haver perda.
É óbvio que, se uma peça de ouro de cinco dólares fosse de fato
perdida, caída por acidente e não encontrada novamente, uma parcela
de energia seria perdida com ela, a energia que foi gasta em minerar
e fundir o ouro, embora isso tenha sido compensado se a moeda foi
usada por algum tempo. E o ouro se desgasta lentamente. Mas não é
perecível como são quase todas as commodities; o tempo praticamente
não tem efeito sobre ele. Na prática, como a energia não pode ser
perdida no dinheiro ou por meio do dinheiro como objeto físico, é
ele quem registra as perdas em outros lugares, da mesma maneira como
facilita transferências, servindo como um medidor.
Portanto,
o dinheiro real nunca é e nem pode ser a causa de um colapso do
crédito. Mesmo assim, é invariavelmente escolhido como alvo nessas
ocasiões. O nível de inteligência, mais uma vez, se revela na
linguagem; é o pensamento animista de um selvagem que imagina um
“demônio do dinheiro”.3
A
noção de que deve haver algo errado com o dinheiro real porque ele
não paga automaticamente dívidas ruins é uma ilusão tão
completamente irracional que parece estar além do alcance das
evidências ou da lógica. Aparentemente, deriva do fato de que o
crédito, que é uma dívida, tem de ser computado em dinheiro. A
soma das dívidas então pode ser dez ou vinte ou mil vezes o total
de dinheiro real existente; porque o mesmo dinheiro pode pagar uma
série infinita de dívidas em sequência. Se vinte milhões de
alqueires de trigo fossem vendidos e somente dez milhões de
alqueires existissem, de fato não haveria trigo suficiente para
cumprir o contrato; mas, nesse caso, ninguém iria dizer que deve
haver algo errado com o trigo como commodity; muito menos que a
situação poderia ser resolvida chamando-se meio alqueire de trigo
de um alqueire. Certamente, se um homem se comprometeu a entregar o
trigo que espera adquirir e não consegue obtê-lo até o momento
combinado para a entrega, dificilmente alguém iria propor que o
trigo fosse tomado de outro homem que o possuísse, para completar
uma transação na qual o dono do trigo jamais entrou. Mas é o que é
feito com dinheiro em uma crise.
Provavelmente,
a causa subjacente de confusão é que o aumento de produção tende
a reduzir os preços. Se não o fizesse, a distribuição seria
impossível com esse aumento. Mas a condição inescapável pode, a
qualquer momento, resultar em uma perda temporária para os
produtores de uma dada commodity porque eles produziram mais. Um
plantador de trigo pode conseguir dois dólares por um alqueire em um
ano, por causa da quebra da safra, e apenas um dólar por alqueire no
ano seguinte, quando produziu o dobro de trigo. Ele acha que isso é
injusto; com os dois dólares, estava tudo bem, não importa quão
elevado tenha sido o lucro; mas um dólar não é suficiente. Por
outro lado, o comprador acha que não está recebendo o suficiente
por seu dinheiro quando paga dois dólares, embora não se importe de
pagar um dólar. Mas ambos estarão inclinados a acreditar que o
problema seja com o dinheiro; a quantidade deve ser inadequada.
Quando se trata de pagar uma dívida, ou seja, enfrentar as
consequências do crédito, o devedor e o credor estão igualmente
propensos a essa ilusão na mesma transação, ambos estando sujeitos
a perdas.
Em
um colapso de crédito, as empresas que são suficientemente sólidas
em si mesmas são duramente afetadas. Reservas de dinheiro são uma
precaução contra essas contingências; constituem baterias de
carga, pelas quais os negócios podem continuar funcionando até que
o longo circuito seja restabelecido a uma condição suficientemente
sadia. Mas o único teste praticável sobre onde o vazamento e a
perda ocorrem é que a remuneração cessa em algum lugar. A
liquidação mais rápida e mais drástica de um colapso de crédito
seria a solução melhor e mais justa, porque reconectaria mais
rapidamente o sistema de produção. Mas isso raramente é permitido.
Ao contrário, o poder político é chamado para tomar o dinheiro ou
depreciá-lo; o medidor é falsificado e se provoca um vazamento
geral em toda a linha. Depois disso, nenhuma recuperação genuína é
possível, a menos ou até que esse poder seja revogado e o vazamento
geral pare. Sob o Império Romano, depois que o governo interveio,
nunca houve recuperação. Foi o fim do Império e a Europa afundou
por séculos.
Deve-se
ter em mente que, mesmo no controle privado, um erro de julgamento em
um circuito de energia de alto potencial pode causar — e
efetivamente causa — vastas perturbações e perdas cumulativas na
economia. Vistos como um simples fenômeno físico, os efeitos em
tempos de paz são suficientemente espantosos. São mais aparentes
nas cidades, especialmente nas cidades americanas, porque estas são
realmente aparições dinâmicas. As cidades pré-industriais da
Europa eram, evidentemente, circuitos locais de energia, ligados ao
longo circuito; mas o potencial limitado permitia que tomassem a
forma de autênticas organizações sociais e políticas. Nenhuma
cidade americana jamais estabeleceu tal padrão. Desde o início, a
cidade americana sempre foi uma usina de energia de alto potencial,
um gerador de mais energia do que a forma tradicional poderia
abrigar. Conforme a energia fluiu para expandir a nação, deslocou e
transpôs cada aspecto do cenário cívico continuamente.
Uma
cidade, em sua origem, é um cruzamento; ou seja, marca a confluência
de correntes de energia e expande o fluxo. Desde tempos imemoriais, a
localização das cidades foi determinada por portos, rios e
estradas, sendo que um porto é o final de uma rota marítima. O
surgimento de ferrovias não alterou essa relação, mas confirmou os
fatores naturais no presente. Embora as ferrovias de certa maneira
tenham suplantado as hidrovias internas, continuaram seguindo o nível
da água na medida do possível e, portanto, não mudaram muito as
rotas comerciais anteriores. Uma vez que o direito de via tenha sido
obtido e a ferrovia instalada, o tráfego ficou preso à linha
férrea. Mas o próximo desenvolvimento nos transportes foi
essencialmente diferente. Seu efeito é exemplificado de maneira mais
notável em Nova York.
Possuindo
um porto, um rio e uma rota oceânica para a Europa, Nova York se
tornou naturalmente um grande terminal ferroviário. Com essas
vantagens, também era um centro financeiro. Significativamente, a
indústria automobilística se desenvolveu no interior do continente.
Nova York forneceu o capital líquido para promover a expansão
inédita dessa indústria.
Mas
os automóveis não ficam presos a uma via especial, como as
ferrovias; também não precisam de um terminal, como navios e trens.
Alguma coisa tinha acontecido, com o surgimento do automóvel, que
não foi percebido imediatamente; as rotas comerciais foram alteradas
em grande medida. No passado, quando as grandes rotas comerciais
foram bloqueadas ou deslocadas, as cidades e as regiões caíram em
declínio, como Veneza, os portos levantinos, as cidades hanseáticas;
mas a causa era evidente. Aconteceu com relação às rotas como
tais. Com o automóvel, a mudança aconteceu no veículo de
transporte; e o que ele fez foi diluir o tráfego e diminuir a
importância dos centros. Se o avião vai outra vez favorecer a
centralização ainda não podemos afirmar; o avião certamente está
preso a rotas estabelecidas, muito mais que o automóvel, porque
precisa de uma pista de pouso, mas ainda não sabemos se essa será
uma condição permanente. De qualquer maneira, a ferrovia construiu
grandes cidades e também facilitou a colonização de terras
selvagens; foi um fator ambivalente e, no conjunto, equilibrou a
economia. No desenvolvimento do sistema de produção de alta
energia, a ferrovia é o produto de uma imensa centralização de
energia (em dinheiro, capital líquido); por isso, sua ação deve
tender predominantemente no sentido contrário. A partir desse ponto,
o processo normal deveria ter sido principalmente de descentralização
e o automóvel apareceu de maneira apropriada. Outro sinal de
descentralização foi a diminuição do tamanho das unidades
geradoras de energia, os dínamos menores. Esses desdobramentos tem
um significado filosófico, social e político. O
automóvel é projetado para propriedade e uso individuais.
O curso dos eventos revela a verdadeira natureza e os processos do
capitalismo. O capitalismo não é coletivo e não pode ser levado a
nenhum sistema de coletivismo; é o sistema econômico do
individualismo. A era da energia só foi possível após uma
concentração preliminar de capital líquido sob controle privado, o
que o coletivismo jamais permitiria. Assim, algumas mentes
superficiais, como a de Marx, concluíram que o capitalismo tendia à
concentração da riqueza e à divisão de interesses de “classe”.
Mas o “interesse” do capitalismo é a distribuição. Todas as
invenções do homem têm o individualismo como finalidade, porque
brotam da função individual da inteligência, que é a fonte
criativa e produtiva. Sendo a liberdade a condição natural do
homem, as invenções que facilitam a mobilidade se tornam meios de
transporte individuais. Como ações cooperativas são úteis para o
desenvolvimento do indivíduo, o capitalismo é plenamente capaz de
realizar, por associação voluntária, operações vastas e
complexas de que o coletivismo é totalmente incapaz, e que são
autoliquidantes no limite de sua utilidade, se se permite que o
processo seja completado. Nenhuma sociedade coletivista pode permitir
a cooperação; essas sociedades se baseiam na compulsão; por isso,
permanecem estáticas.4
É
inevitável que ocorram erros de cálculo. Embora o automóvel, o
dínamo menor e outros sinais devessem servir de aviso suficiente de
que as grandes cidades americanas já haviam crescido demais, ninguém
leu as profecias. Em vez disso, quando o capital líquido dos lucros
da indústria automobilística fluiu de volta a Nova York, a corrente
foi dirigida para baixo das próprias fundações da cidade.
Expandiu-se em aço e pedra, uma projeção impressionante de
energia, nos últimos grandes arranha-céus, “maiores e melhores”,
o Chrysler Building, o Empire State Building, o Radio City. Isso teve
o efeito de uma explosão, estilhaçando os valores anteriores dos
imóveis. O lucro deveria ter sido usado para descentralizar a
indústria que o produziu e equilibrar indústria e agricultura; em
vez disso, foi jogado num curto-circuito.
Ainda
assim, esses erros custosos da economia capitalista de propriedade
privada poderiam ter sido absorvidos com prejuízos privados e então
esquecidos, se a agência política não tivesse sido chamada para
perpetuá-los e agravá-los. Em Nova York, prédios obsoletos
poderiam ter sido demolidos e seu espaço utilizado de maneira
lucrativa para estacionamentos, que eram tão necessários; com
alguma melhora no aspecto da cidade, ao permitirem mais luz, mais ar
e algumas árvores. Paradoxalmente, a concentração de edifícios
teria criado algum espaço. Os aluguéis teriam se ajustado para
baixo, como ocorreria num sistema de alta produção; e os valores
temporariamente perdidos teriam sido recuperados de maneira
permanente. Esse processo natural foi interrompido exatamente no
ponto em que ameaçava a cidade com uma paralisia permanente,
mantendo muitas pessoas em programas de auxílio, numa ociosidade
indesejada, no nível de subsistência, mantidas por impostos que são
uma carga pesada para a produção e que tendem a expulsar a
indústria.
Da
mesma maneira, quando as forças atuantes, incluindo a pressão
massiva dos sindicatos, tendiam a descentralizar as grandes
indústrias do Meio Oeste, a ação política interveio e forçou uma
centralização ainda maior.
O
risco de pânico e depressões é inerente ao sistema de alta
produção que usa crédito; assim como o risco de fome é inerente
ao sistema de baixa produção. Entre os dois, é óbvio que o da
alta produção é menos grave, o que toda a história demonstra.
Mas, em qualquer caso, a intervenção do poder político agrava em
muito os problemas. O século dezenove foi o primeiro da produção
de alta energia. Foi também o primeiro em que os homens não
pereceram de fome em grande número na Europa. A única exceção foi
a Grande Fome Irlandesa. Na Irlanda, o principal produto agrícola
foi atacado por uma praga e praticamente não havia desenvolvimento
industrial, porque o poder político não permitia que empresas
funcionassem livremente. Em outros lugares, depressões industriais
causaram grandes dificuldades, ou mesmo grandes privações, mas foi
possível evitar a fome absoluta em sua pior forma. E a privação
extrema se deveu à sobrevivência parcial da economia de status. Nos
Estados Unidos, houve diversas depressões pesadas e longas, “tempos
difíceis”. Praticamente nada foi feito pelo poder político sob o
pretexto de auxílio aos necessitados. Houve pobreza, homens vagando
pelo país procurando trabalho e vivendo de caridade. Mas os preços
das commodities estavam tão baixos, uma vez que nada os impediu de
cair até onde caíssem, que bastava bem pouco dinheiro para
sobreviver. Quando o colapso de crédito foi liquidado, a recuperação
foi tão rápida que a mudança pareceu fabulosa. A fronteira da
liberdade não havia sido fechada.
Existe
um curioso contraste entre a depressão da década de 1890 e a que
seguiu o crash de 1929, talvez uma lição para os pensadores
políticos. Há cem anos, Macaulay5
expressou preocupações de que a Constituição americana e os
direitos de propriedade seriam mais cedo ou mais tarde subvertidos
pelo voto popular, porque, em tempos de crise, aqueles que não têm
nada (“have nots”) votariam pela expropriação dos que têm
alguma coisa (“haves”). Pode-se supor que ele estava certo; mas o
que aconteceu? Na depressão da década de 1890, uma eleição
resolveu o assunto, com relação à moeda, a questão da “prata
livre”. Certamente, a maioria dos eleitores estava um tanto aflita.
O resultado foi apertado, embora a solidariedade do sul ao Partido
Democrata fosse toda contra o dinheiro real. Mas, na decisão
popular, o dinheiro real venceu. Novamente, em 1932, o voto popular
foi a favor da economia do governo, do dinheiro real e da redução
do poder político, embora o país estivesse sofrendo uma depressão
aguda.
Qual
foi a causa do pânico? Enormes empréstimos governamentais ao
exterior que não foram pagos; e a existência do sistema do Federal
Reserve, uma criação política, que tornou possível uma expansão
desordenada do crédito.
E
quem recebeu primeiro o auxílio federal?
De
maneira nenhuma foram os “have nots”. A clivagem real não
aconteceu nas linhas que Macaulay traçou, entre ricos e pobres. Foi
principalmente entre produtores e não-produtores. A primeira medida
de “alívio” foi a Reconstruction Finance Corporation; e o
primeiro valor pago por ela foi para o J. P. Morgan & Co. Foram
os ricos improdutivos que primeiro receberam auxílio governamental.
Sem isso, nenhuma medida de auxílio federal aos pobres teria sido
aprovada; e um trabalhador só aceitava auxílio em extrema
necessidade e com amargura; o que ele queria era um emprego. Vincent
Astor, que recebia uma renda elevada de aluguéis de terrenos
herdados, vendeu ao governo federal propriedades em bairros
miseráveis, que haviam sido exploradas até que não rendessem mais
nada. Possuindo navios, conseguiu subsídios de navegação.
Especuladores pressionavam pela expansão dos poderes do governo para
manter os valores inflados de suas ações, pela depreciação do
dinheiro e impedindo vendas “baixistas” no mercado, de maneira
que imensos blocos de ações a preços artificiais permaneciam no
mercado, impossibilitando uma recuperação normal. Para “salvar”
os especuladores das consequências de suas próprias apostas, todos
aqueles que não participaram do jogo foram penalizados. Leis foram
aprovadas contra o “entesouramento”, de maneira que o único ato
punido foi a prudência. Por esses meios, as reservas normais de
dinheiro, que poderiam restaurar a produção, se dissiparam. Da
mesma maneira, fazendeiros prudentes, competentes e solventes, que
tiravam seu sustento de suas fazendas, foram penalizados com cotas e
impostos sobre cotas para subsidiar a agricultura especulativa. Um
homem em Montana conseguiu US$ 30.000,00 do governo porque persistiu
em desperdiçar sementes de trigo numa terra árida durante a seca;
enquanto uma pobre viúva na Nova Inglaterra foi obrigada a pagar um
“imposto de processamento” porque criou um casal de porcos e os
transformou em bacon!
A
divisão foi traçada de maneira notável, entre o produtor e o
não-produtor, com Henry Ford e o Senador Couzens6.
Ford estava na produção; era contra a intervenção governamental.
Couzens, ex-sócio de Ford, já havia tirado sua fortuna do setor
produtivo e a colocado em títulos públicos isentos de impostos e
defendia a expropriação de dinheiro pelo governo.
Cada
vez que o sistema de produção tentava funcionar de maneira
saudável, os não-produtores invocavam o poder político para
fazê-lo parar. Por fim, a principal corrente de energia foi desviada
para o canal político.
Esse
processo já havia acontecido na Europa. Empréstimos imensos eram
feitos por meio de agências políticas para agências políticas; e
o dinheiro virava formas estáticas improdutivas: edifícios públicos
e “melhorias” municipais que não davam nenhum retorno. Então,
não havia emprego e o controle político forçou os trabalhadores a
irem para as fábricas de armamentos. Tanto na América quanto na
Europa, a energia mal direcionada foi projetada para cima; mas a
Europa não construiu arranha-céus. O que subiu foram os aviões
militares.
Um
avião é transportado por um jato de energia, assim como uma bola de
cortiça é transportada pelo jato de uma fonte. A energia é tirada
de um circuito do qual as cidades são o centro. E os aviões estão
varrendo as cidades da existência, com bombardeios. Por quanto tempo
poderão continuar no ar depois de destruírem a fonte e o circuito
que os elevaram aos céus?
Nada
disso era imprevisível e tudo foi previsto de alguma forma. Há
noventa anos, Herbert Spencer7
percebeu a tendência política. Ele disse: “Estamos sendo
rebarbarizados.” Spencer reconheceu o nível cultural que é
imposto pelo completo controle “social” do indivíduo. Mas não
percebeu que isso não pode ser imposto pacificamente a um sistema de
alta energia e que o processo fatalmente resultaria em explosão.
Se
um sistema financeiro não é sólido, isso só pode acontecer pela
possibilidade de excesso de concessão de crédito e pelo
papel-moeda. Um remédio verdadeiro só poderia consistir em limitar
essas faculdades. As “garantias” governamentais simplesmente
colocam a propriedade dos homens prudentes à disposição dos
especuladores em caso de perda. Não existe isso de “pânico de
dinheiro”; um pânico financeiro ocorre por causa do colapso de
crédito.
Nos
Estados Unidos, a consequência inevitável da extensão do poder
político sobre o dinheiro, com o sistema do Federal Reserve, foi
prevista com detalhada exatidão por Elihu Root8.
Ele escreveu: “Isto não é, de forma alguma, uma medida para criar
uma moeda elástica. Não cria uma moeda elástica. Cria uma moeda
expansiva, mas não elástica. Cria uma moeda que pode crescer,
sempre crescer, mas não uma moeda para a qual a lei contenha
qualquer medida que provoque a redução […] Com a reserva
inesgotável do Governo dos Estados Unidos fornecendo dinheiro fácil,
as vendas crescem, os negócios aumentam, mais empresas novas são
criadas, o espírito do otimismo permeia a comunidade. Os banqueiros
não estão isentos desse espírito. São humanos. Os membros do
Federal Reserve Board também não estão. São humanos. O mundo
inteiro segue uma onda crescente de otimismo. Todos estão ganhando
dinheiro. Todos estão enriquecendo. Isso cresce e cresce […] até
que, finalmente, alguém quebra […] e a estrutura inteira
desmorona. Não vejo nesta lei […] nenhuma influência interposta
por nós contra a ocorrência daqueles períodos de prosperidade
falsa e ilusória, que terminam inevitavelmente em ruína e
sofrimento. Porque os resultados mais terríveis do despertar das
pessoas desse sonho não se encontram nos bancos — não: nem mesmo
nas empresas. Encontram-se entre os milhões que perderam os meios de
ganhar o pão diário.”
Elihu
também era um dos profetas.
Mas
os resultados mais terríveis nem sempre se limitam a uma depressão
financeira; podem terminar em violência. Guerras civis acontecem
quando a energia cinética é bloqueada à força ou subvertida por
intervenção política. A ideia popular de revolução feita pelas
“massas” oprimidas por muito tempo numa penúria abjeta é
falaciosa. A escravidão jamais foi abolida por uma insurreição de
escravos, mas sim pelo esforço de homens livres. Existem “revoluções
palacianas”, nas quais o poder é tomado à força de um grupo por
outro, sem qualquer outra mudança; também existem guerras civis de
facções, quando uma forma de governo entra em colapso. Mas, no tipo
mais importante de guerra civil ou revolução — não são termos
idênticos, mas determinada guerra pode incluir ambos os elementos —
os dois lados têm reivindicações plausíveis de alguma autoridade
legítima; ambos são enérgicos, com um sistema de produção
operante envolvido na questão subjacente; e o grande número de
produtores resiste contra um novo aumento do poder governamental,
como aconteceu na Guerra Civil inglesa do século dezessete e na
Guerra de Independência Americana. Esta última começou como uma
guerra civil e terminou como uma revolução, estabelecendo uma nova
forma de governo para manter o princípio tradicional de autogoverno
representativo reivindicado. Assim, qualquer extensão dos poderes
governamentais e aumento de impostos sob o pretexto de “evitar uma
revolução” consegue apenas criar perigo, se ainda não existisse,
ou agravá-lo, se já existisse.
Ao
contrário, quando uma ditadura ganha força, isso acontece porque os
vários grupos lhe concedem o poder gradativamente, sem perceber onde
isso vai terminar. Os homens escravizam a si mesmos, forjando as
correntes elo a elo, normalmente exigindo proteção
como grupo.
Quando empresários pedem crédito ao governo, entregam o controle de
suas empresas. Quando trabalhadores pedem “negociações coletivas”
impostas, entregam sua própria liberdade. Quando grupos raciais são
reconhecidos por lei, podem ser discriminados por lei.
1
THE PROMISES MEN LIVE BY. De Harry Scherman. Random House. O
sr. Scherman cunhou a expressão “trocas adiadas”. (N. da A.)
2
Um especialista em transportes com amplo conhecimento geral e
experiência prática (Robert Selph Henry, assistente do presidente
da Associação de Ferrovias Americanas) sugeriu que as grandes
depressões de negócios do século dezenove aconteceram logo depois
de momentos em que a rápida expansão da infraestrutura de
transportes avançou além do desenvolvimento geral do país.
Qualquer desproporção nessa estrutura teria consequências diretas
em todo o sistema, de maneira previsível. Mas, enquanto o
financiamento vinha de capital empresarial privado, essa condição
se autocorrigia.
O
sr. Henry diz: “No caso das depressões anteriores, o novo sistema
de transporte, embora criado mais antes de ser viável
economicamente, com o tempo se justificou e se pagou, porque era
inerentemente muito mais eficiente e econômico que o sistema de
transportes anterior […] Isso já não foi verdade depois da
depressão de 1929 […] Uma possível razão para essa diferença é
que o novo sistema, (super-highways, melhorias nas hidrovias
internas, aeroportos federais, etc.) no qual mais dinheiro foi gasto
em duas décadas do que havia sido gasto com as ferrovias em mais de
um século, não cumpria essas condições. Sua manutenção e
operação não são mais baratas que as do sistema anterior, mas
tremendamente mais caras. Outra diferença importante é que,
enquanto mais de 98% do investimento em ferrovias veio de fundos
privados e, portanto, estava sujeito ao teste inescapável de
realidade econômica, aproximadamente 85% dos investimentos recentes
em transportes vieram de fundos públicos, que estão isentos
daquele teste extremo.”
Em
resumo, uma grande quantidade de energia vai para formas estáticas
e uma corrente contínua ainda vai para um fio-terra por meio dessas
formas. Não é apenas uma perda líquida, mas um vazamento
permanente. (N. da A.)
3
O ponto mais fraco de um sistema de crédito é que um lucro
presumido é contabilizado pela agência financeira (o banco
ou a corretora de investimento) quando uma dívida é feita, não
quando é paga. (N. da A.)
4
Paradoxalmente, embora o socialismo não tolere a livre iniciativa,
a estrutura política da livre iniciativa pode abrigar todo tipo de
associação cooperativa, na plena extensão de seu funcionamento
prático. O engenheiro elétrico socialista, Steinmetz,
trabalhando para a General Electric, não quis receber uma
compensação fixa, preferindo retirar todos os recursos que achou
que precisava; e seu desejo foi realizado, numa conta aberta — o
que seria impossível no socialismo! O acordo foi realizável nesse
caso simplesmente porque foi submetido à decisão privada e à
vontade das partes envolvidas.
Todos
os defeitos que podem ocorrer em um sistema de livre iniciativa são
características positivas e estabelecidas do coletivismo. Se o
coletivo (poder político) impede um homem de trabalhar, o que ele
pode fazer? Se um homem faz um trabalho ruim numa economia livre, o
comprador é o juiz; quem pode ter o direito de julgar no
socialismo? No pior caso, numa sociedade livre, os mais
desafortunados dependem de caridade; no coletivo, podem ser mortos.
(N. da A.)
5
Thomas Babington Macaulay (1800 - 1859): historiador e político
britânico. (N. do T.)
6
James J. Couzens (1872 - 1936): industrial e político, foi prefeito
de Detroit de 1919 a 1922 e senador pelo Estado de Michigan entre
1922 e 1936. Foi sócio de Henry Ford desde a fundação da Ford
Motor Company, em 1903 até 1919. (N. do T.)
7
Herbert Spencer (1820 - 1903): filósofo e cientista britânico. Foi
um importante pensador liberal clássico. (N. do
T.)
8
Elihu Root (1845 - 1937): advogado e político americano. Foi
Secretário da Guerra dos presidentes William McKinley e Theodore
Roosevelt, entre 1899 e 1904 e senador por Nova York. Ganhou o
Prêmio Nobel da Paz em 1912, por seus esforços para promover
negociações e cooperação entre nações em litígio. (N.
do T.)
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