terça-feira, 22 de abril de 2014

Crédito e Depressões

O Deus da Máquina, capítulo XIX
Crédito e Depressões
Isabel Paterson

Como a produção é executada ao longo do tempo, o crédito surge como uma consequência natural. O crédito é moldado nos processos da natureza. Quando um homem planta alguma coisa na expectativa de uma colheita, está gastando bens e trabalho no presente para um retorno no futuro, com o risco correspondente de perda. O próximo passo é óbvio; um homem pode adiantar bens para outro em troca de um retorno subsequente. Não existe nenhuma razão para supor que o dinheiro tenha criado o crédito, embora eles possam ter se desenvolvido simultaneamente. O dinheiro é o único meio pelo qual trocas adiadas1 de bens podem ser realizadas sem crédito. Mas os homens concedem crédito e não é possível convencê-los a deixar essa prática, porque está em sua natureza. Em virtude de sua mente, o homem trabalha através do tempo e do espaço. O impulso não é a ganância, mas a faculdade criativa e expansiva. O risco adicional é aceito por causa da extensão maior e mais rápida do poder sobre a natureza.

Se a humanidade desejasse ter o sistema de produção mais robusto possível, o dinheiro real seria o meio adequado. Nesse caso, nunca seria concedido crédito, nunca seriam feitos empréstimos. Todas as transações em bens e em dinheiro seriam encerradas no ato, incluindo o período mais curto possível para o pagamento do trabalho. O dinheiro ainda cobre o tempo e a distância. Com esse sistema, seria impossível haver pânico; e não haveria necessidade de tempos difíceis, exceto na circunstância de uma colheita ruim. Não se pode dizer que não haveria pobreza, porque os bens têm de ser produzidos. Propostas para “abolir a pobreza”, ou garantir a “liberdade da necessidade” ou a “liberdade do medo” são apenas uma confusão de termos. Medo e necessidade são subjetivos; e a pobreza é a ausência de riqueza. Se fosse prometido que, a partir do momento do nascimento, ninguém devesse nunca carecer de roupas, quem as produziria? Quem teria tal poder absoluto sobre todas as outras pessoas? A única condição na qual não se pode passar pela pobreza, pela necessidade ou pelo medo é a do rigor mortis. Os mortos não têm necessidades, nem medo. Com pessoas vivas, produzindo e trocando bens em liberdade, as opiniões e os tempos são variáveis que introduzem riscos. Tudo o que pode ser dito é que o dinheiro é o meio seguro de estender trocas de bens para o futuro.

O sistema de pagamento à vista em dinheiro nunca foi proposto por nenhum teórico social, porque não exigiria nenhum controle, nenhuma compulsão, nenhum emprego político, nem poder para o reformista. Seria completamente restrito à competência do indivíduo, desde que existisse dinheiro real. Ninguém é obrigado a conceder crédito. Os homens podem se limitar a transações em dinheiro se desejarem, e não o fazem. Durante a Idade Média, quando os juros sobre o dinheiro eram estigmatizados como moralmente errados, os homens faziam empréstimos a juros da mesma maneira, e pagavam taxas altas. Os mercadores e as guildas de artesãos administravam silenciosamente um sistema de crédito de longo alcance; a expectativa de receber se baseava no poder privado e negativo, a recusa de continuar fazendo negócios com um inadimplente.

Sem crédito, é difícil imaginar como o sistema moderno de produção de alta energia poderia ter sido criado. A acumulação de capital em dinheiro nas somas necessárias seria quase impossível ou, pelo menos, muito mais lenta. Embora enormes empresas tenham sido criadas sem usar os diversos instrumentos modernos de crédito — como fez Henry Ford — ainda assim, se não existisse um sistema de crédito, com bancos para facilitar o pagamento de remessas de mercadorias para lugares distantes, concentrar os depósitos de correntistas e dar algum crédito local, os negócios não alcançariam essa dimensão.

Mesmo sem crédito, perdas de capital podem acontecer. Invenções e melhorias podem obsoletar os bens de capital anteriores; ou experiências com novas invenções podem fracassar; e, finalmente, iniciativas de capital necessariamente ultrapassam a demanda imediata; criam um mercado. A energia procura uma passagem e o julgamento humano nem sempre é adequado para direcioná-la. A desonestidade é o menor dos fatores na perda generalizada de um grande pânico e depressão; praticamente, só entra depois do fato. Ou seja, os homens recorrem a truques fraudulentos quando empresas que começaram honestamente estão falindo. Daí segue o espetáculo nauseante de homens proeminentes falsificando registros contábeis e gaguejando desculpas ridículas ou mentiras patentes quando investigados. Não estou minimizando a desonestidade; é imperativamente necessário que os culpados recebam uma punição sumária e que as falhas resultem em rebaixamento profissional. O ponto é que a desonestidade nunca é a causa primária de um colapso de crédito. Mas ela causa um dano muito maior que as quantias envolvidas, porque desvia a atenção da tarefa crucial de fazer a produção voltar a funcionar. Além disso, a desonestidade confunde a questão vital do lucro. Dá um pretexto para discussões enganosas com essas frases sem sentido, como “produção para o uso e não para o lucro”.

Produção é lucro; e lucro é produção. Não estão simplesmente relacionados; são a mesma coisa. Quando um homem planta batatas, se não conseguir de volta mais do que investiu, não produziu nada. Isso ficaria evidente se ele colocasse uma batata no solo hoje e tirasse do solo a mesma batata amanhã; mas é exatamente a mesma coisa que ele plantar uma batata e conseguir colher apenas uma batata. Seu trabalho foi perdido. Então, se não possuir reservas da produção anterior, passará fome, ou alguém mais terá de alimentá-lo. A objeção contra o lucro é o mesmo que um espectador, observando o agricultor fazendo a colheita, dizer: “Você colocou só uma batata e está colhendo uma dúzia. Você deve ter tomado as outras de alguém; essas batatas extras não podem ser suas por direito.” Se o lucro é condenado, deve-se supor que ter uma perda é admirável. Ao contrário, é a perda que exige justificativas. O lucro se justifica sozinho. Quando uma instituição não é administrada para ter lucro, ela necessariamente é sustentada pelos produtores. Uma das maneiras pelas quais os não produtores destroem gradativamente o sistema de produção livre é convencendo os homens ricos a fazer doações a fundações para o “trabalho social” ou para “pesquisa” política ou econômica. Os argumentos que essas pesquisas vão encontrar serão geralmente justificativas do parasitismo, favorecendo a criação de mais sinecuras pela extensão do poder político.

O mais importante é reconhecer o que acontece quando o crédito entra em colapso, causando uma “depressão”. O circuito de energia se rompeu. Em muitos pontos ao longo da linha, a energia está vazando, sendo perdida de alguma maneira. Quando os fios de uma usina elétrica são derrubados por um ciclone, ocorre uma condição parecida, mas causada por um acidente externo; e as medidas necessárias para conserto são óbvias. Em um sistema de produção, a conexão da energia é mais complexa e o rompimento tem causas internas, que dão origem a entendimentos errôneos dos vários fatores e relações.

No exemplo mais simples possível, se um homem tem de andar oito milhas em duas horas para conseguir suprimentos que lhe darão energia suficiente apenas para andar quatro milhas em uma hora, esse é um trabalho inútil. Energia física real foi perdida, gasta no calor e na matéria desperdiçada do esforço muscular. Mas, para efeitos contábeis, a perda teria de ser computada em tempo ou milhagem. É uma simplificação extrema, que assume que o homem é o sistema de produção inteiro. Se ele usasse alguma ferramenta, seu custo e sua depreciação deveriam ser incluídos. Assim, com um sistema de produção superior, cada parte deve ser conservada por um excedente de produção; mas o sistema como um todo ficou sem excedente armazenado. Quando uma estrada de ferro é construída além das necessidades, estendida “à frente do tempo” através de um espaço onde não há tráfego suficiente para sustentá-la, é um problema complexo descobrir a perda real no circuito de energia. Quando e onde ela ocorre?2 Uma perda específica de um investidor não significa necessariamente uma perda real no circuito de energia, nem mesmo um ganho para outra pessoa; embora cada uma dessas suposições possa ser verdadeira numa dada situação. Pode acontecer, em uma transação, que haja uma perda real no circuito, uma perda do investidor original, e até uma perda do comprador que assume os bens e os torna rentáveis; mas nenhum desses fatores pode ser dado como certo. O tempo, o espaço e o gerenciamento são as variáveis. Perdas reais ocorrem através do espaço e do tempo; e em objetos físicos. A mesma perda engloba ambos os aspectos.

Materiais são perecíveis porque, com o tempo, perdem sua forma e qualidade úteis pelo desgaste ou por simples negligência. A energia cinética de um circuito de produção pode se dissipar sem retorno de tantas maneiras que seria tedioso enumerá-las. Pode ser convertida em formas estáticas que são inúteis para o circuito; e, novamente, isso pode ser apenas uma perda líquida ou tornar-se um peso morto, causando uma perda contínua. (Se um arranha-céu é construído e ninguém o ocupa, ele pode ser abandonado; isso seria uma perda líquida; mas se é mantido a um custo mais alto que o retorno em aluguéis, é uma perda contínua, um peso morto.)

Mas, de todos os objetos usados em trocas, o dinheiro real é o único fator no qual não pode haver perda. É óbvio que, se uma peça de ouro de cinco dólares fosse de fato perdida, caída por acidente e não encontrada novamente, uma parcela de energia seria perdida com ela, a energia que foi gasta em minerar e fundir o ouro, embora isso tenha sido compensado se a moeda foi usada por algum tempo. E o ouro se desgasta lentamente. Mas não é perecível como são quase todas as commodities; o tempo praticamente não tem efeito sobre ele. Na prática, como a energia não pode ser perdida no dinheiro ou por meio do dinheiro como objeto físico, é ele quem registra as perdas em outros lugares, da mesma maneira como facilita transferências, servindo como um medidor.

Portanto, o dinheiro real nunca é e nem pode ser a causa de um colapso do crédito. Mesmo assim, é invariavelmente escolhido como alvo nessas ocasiões. O nível de inteligência, mais uma vez, se revela na linguagem; é o pensamento animista de um selvagem que imagina um “demônio do dinheiro”.3

A noção de que deve haver algo errado com o dinheiro real porque ele não paga automaticamente dívidas ruins é uma ilusão tão completamente irracional que parece estar além do alcance das evidências ou da lógica. Aparentemente, deriva do fato de que o crédito, que é uma dívida, tem de ser computado em dinheiro. A soma das dívidas então pode ser dez ou vinte ou mil vezes o total de dinheiro real existente; porque o mesmo dinheiro pode pagar uma série infinita de dívidas em sequência. Se vinte milhões de alqueires de trigo fossem vendidos e somente dez milhões de alqueires existissem, de fato não haveria trigo suficiente para cumprir o contrato; mas, nesse caso, ninguém iria dizer que deve haver algo errado com o trigo como commodity; muito menos que a situação poderia ser resolvida chamando-se meio alqueire de trigo de um alqueire. Certamente, se um homem se comprometeu a entregar o trigo que espera adquirir e não consegue obtê-lo até o momento combinado para a entrega, dificilmente alguém iria propor que o trigo fosse tomado de outro homem que o possuísse, para completar uma transação na qual o dono do trigo jamais entrou. Mas é o que é feito com dinheiro em uma crise.

Provavelmente, a causa subjacente de confusão é que o aumento de produção tende a reduzir os preços. Se não o fizesse, a distribuição seria impossível com esse aumento. Mas a condição inescapável pode, a qualquer momento, resultar em uma perda temporária para os produtores de uma dada commodity porque eles produziram mais. Um plantador de trigo pode conseguir dois dólares por um alqueire em um ano, por causa da quebra da safra, e apenas um dólar por alqueire no ano seguinte, quando produziu o dobro de trigo. Ele acha que isso é injusto; com os dois dólares, estava tudo bem, não importa quão elevado tenha sido o lucro; mas um dólar não é suficiente. Por outro lado, o comprador acha que não está recebendo o suficiente por seu dinheiro quando paga dois dólares, embora não se importe de pagar um dólar. Mas ambos estarão inclinados a acreditar que o problema seja com o dinheiro; a quantidade deve ser inadequada. Quando se trata de pagar uma dívida, ou seja, enfrentar as consequências do crédito, o devedor e o credor estão igualmente propensos a essa ilusão na mesma transação, ambos estando sujeitos a perdas.

Em um colapso de crédito, as empresas que são suficientemente sólidas em si mesmas são duramente afetadas. Reservas de dinheiro são uma precaução contra essas contingências; constituem baterias de carga, pelas quais os negócios podem continuar funcionando até que o longo circuito seja restabelecido a uma condição suficientemente sadia. Mas o único teste praticável sobre onde o vazamento e a perda ocorrem é que a remuneração cessa em algum lugar. A liquidação mais rápida e mais drástica de um colapso de crédito seria a solução melhor e mais justa, porque reconectaria mais rapidamente o sistema de produção. Mas isso raramente é permitido. Ao contrário, o poder político é chamado para tomar o dinheiro ou depreciá-lo; o medidor é falsificado e se provoca um vazamento geral em toda a linha. Depois disso, nenhuma recuperação genuína é possível, a menos ou até que esse poder seja revogado e o vazamento geral pare. Sob o Império Romano, depois que o governo interveio, nunca houve recuperação. Foi o fim do Império e a Europa afundou por séculos.

Deve-se ter em mente que, mesmo no controle privado, um erro de julgamento em um circuito de energia de alto potencial pode causar — e efetivamente causa — vastas perturbações e perdas cumulativas na economia. Vistos como um simples fenômeno físico, os efeitos em tempos de paz são suficientemente espantosos. São mais aparentes nas cidades, especialmente nas cidades americanas, porque estas são realmente aparições dinâmicas. As cidades pré-industriais da Europa eram, evidentemente, circuitos locais de energia, ligados ao longo circuito; mas o potencial limitado permitia que tomassem a forma de autênticas organizações sociais e políticas. Nenhuma cidade americana jamais estabeleceu tal padrão. Desde o início, a cidade americana sempre foi uma usina de energia de alto potencial, um gerador de mais energia do que a forma tradicional poderia abrigar. Conforme a energia fluiu para expandir a nação, deslocou e transpôs cada aspecto do cenário cívico continuamente.

Uma cidade, em sua origem, é um cruzamento; ou seja, marca a confluência de correntes de energia e expande o fluxo. Desde tempos imemoriais, a localização das cidades foi determinada por portos, rios e estradas, sendo que um porto é o final de uma rota marítima. O surgimento de ferrovias não alterou essa relação, mas confirmou os fatores naturais no presente. Embora as ferrovias de certa maneira tenham suplantado as hidrovias internas, continuaram seguindo o nível da água na medida do possível e, portanto, não mudaram muito as rotas comerciais anteriores. Uma vez que o direito de via tenha sido obtido e a ferrovia instalada, o tráfego ficou preso à linha férrea. Mas o próximo desenvolvimento nos transportes foi essencialmente diferente. Seu efeito é exemplificado de maneira mais notável em Nova York.

Possuindo um porto, um rio e uma rota oceânica para a Europa, Nova York se tornou naturalmente um grande terminal ferroviário. Com essas vantagens, também era um centro financeiro. Significativamente, a indústria automobilística se desenvolveu no interior do continente. Nova York forneceu o capital líquido para promover a expansão inédita dessa indústria.

Mas os automóveis não ficam presos a uma via especial, como as ferrovias; também não precisam de um terminal, como navios e trens. Alguma coisa tinha acontecido, com o surgimento do automóvel, que não foi percebido imediatamente; as rotas comerciais foram alteradas em grande medida. No passado, quando as grandes rotas comerciais foram bloqueadas ou deslocadas, as cidades e as regiões caíram em declínio, como Veneza, os portos levantinos, as cidades hanseáticas; mas a causa era evidente. Aconteceu com relação às rotas como tais. Com o automóvel, a mudança aconteceu no veículo de transporte; e o que ele fez foi diluir o tráfego e diminuir a importância dos centros. Se o avião vai outra vez favorecer a centralização ainda não podemos afirmar; o avião certamente está preso a rotas estabelecidas, muito mais que o automóvel, porque precisa de uma pista de pouso, mas ainda não sabemos se essa será uma condição permanente. De qualquer maneira, a ferrovia construiu grandes cidades e também facilitou a colonização de terras selvagens; foi um fator ambivalente e, no conjunto, equilibrou a economia. No desenvolvimento do sistema de produção de alta energia, a ferrovia é o produto de uma imensa centralização de energia (em dinheiro, capital líquido); por isso, sua ação deve tender predominantemente no sentido contrário. A partir desse ponto, o processo normal deveria ter sido principalmente de descentralização e o automóvel apareceu de maneira apropriada. Outro sinal de descentralização foi a diminuição do tamanho das unidades geradoras de energia, os dínamos menores. Esses desdobramentos tem um significado filosófico, social e político. O automóvel é projetado para propriedade e uso individuais. O curso dos eventos revela a verdadeira natureza e os processos do capitalismo. O capitalismo não é coletivo e não pode ser levado a nenhum sistema de coletivismo; é o sistema econômico do individualismo. A era da energia só foi possível após uma concentração preliminar de capital líquido sob controle privado, o que o coletivismo jamais permitiria. Assim, algumas mentes superficiais, como a de Marx, concluíram que o capitalismo tendia à concentração da riqueza e à divisão de interesses de “classe”. Mas o “interesse” do capitalismo é a distribuição. Todas as invenções do homem têm o individualismo como finalidade, porque brotam da função individual da inteligência, que é a fonte criativa e produtiva. Sendo a liberdade a condição natural do homem, as invenções que facilitam a mobilidade se tornam meios de transporte individuais. Como ações cooperativas são úteis para o desenvolvimento do indivíduo, o capitalismo é plenamente capaz de realizar, por associação voluntária, operações vastas e complexas de que o coletivismo é totalmente incapaz, e que são autoliquidantes no limite de sua utilidade, se se permite que o processo seja completado. Nenhuma sociedade coletivista pode permitir a cooperação; essas sociedades se baseiam na compulsão; por isso, permanecem estáticas.4

É inevitável que ocorram erros de cálculo. Embora o automóvel, o dínamo menor e outros sinais devessem servir de aviso suficiente de que as grandes cidades americanas já haviam crescido demais, ninguém leu as profecias. Em vez disso, quando o capital líquido dos lucros da indústria automobilística fluiu de volta a Nova York, a corrente foi dirigida para baixo das próprias fundações da cidade. Expandiu-se em aço e pedra, uma projeção impressionante de energia, nos últimos grandes arranha-céus, “maiores e melhores”, o Chrysler Building, o Empire State Building, o Radio City. Isso teve o efeito de uma explosão, estilhaçando os valores anteriores dos imóveis. O lucro deveria ter sido usado para descentralizar a indústria que o produziu e equilibrar indústria e agricultura; em vez disso, foi jogado num curto-circuito.

Ainda assim, esses erros custosos da economia capitalista de propriedade privada poderiam ter sido absorvidos com prejuízos privados e então esquecidos, se a agência política não tivesse sido chamada para perpetuá-los e agravá-los. Em Nova York, prédios obsoletos poderiam ter sido demolidos e seu espaço utilizado de maneira lucrativa para estacionamentos, que eram tão necessários; com alguma melhora no aspecto da cidade, ao permitirem mais luz, mais ar e algumas árvores. Paradoxalmente, a concentração de edifícios teria criado algum espaço. Os aluguéis teriam se ajustado para baixo, como ocorreria num sistema de alta produção; e os valores temporariamente perdidos teriam sido recuperados de maneira permanente. Esse processo natural foi interrompido exatamente no ponto em que ameaçava a cidade com uma paralisia permanente, mantendo muitas pessoas em programas de auxílio, numa ociosidade indesejada, no nível de subsistência, mantidas por impostos que são uma carga pesada para a produção e que tendem a expulsar a indústria.

Da mesma maneira, quando as forças atuantes, incluindo a pressão massiva dos sindicatos, tendiam a descentralizar as grandes indústrias do Meio Oeste, a ação política interveio e forçou uma centralização ainda maior.

O risco de pânico e depressões é inerente ao sistema de alta produção que usa crédito; assim como o risco de fome é inerente ao sistema de baixa produção. Entre os dois, é óbvio que o da alta produção é menos grave, o que toda a história demonstra. Mas, em qualquer caso, a intervenção do poder político agrava em muito os problemas. O século dezenove foi o primeiro da produção de alta energia. Foi também o primeiro em que os homens não pereceram de fome em grande número na Europa. A única exceção foi a Grande Fome Irlandesa. Na Irlanda, o principal produto agrícola foi atacado por uma praga e praticamente não havia desenvolvimento industrial, porque o poder político não permitia que empresas funcionassem livremente. Em outros lugares, depressões industriais causaram grandes dificuldades, ou mesmo grandes privações, mas foi possível evitar a fome absoluta em sua pior forma. E a privação extrema se deveu à sobrevivência parcial da economia de status. Nos Estados Unidos, houve diversas depressões pesadas e longas, “tempos difíceis”. Praticamente nada foi feito pelo poder político sob o pretexto de auxílio aos necessitados. Houve pobreza, homens vagando pelo país procurando trabalho e vivendo de caridade. Mas os preços das commodities estavam tão baixos, uma vez que nada os impediu de cair até onde caíssem, que bastava bem pouco dinheiro para sobreviver. Quando o colapso de crédito foi liquidado, a recuperação foi tão rápida que a mudança pareceu fabulosa. A fronteira da liberdade não havia sido fechada.

Existe um curioso contraste entre a depressão da década de 1890 e a que seguiu o crash de 1929, talvez uma lição para os pensadores políticos. Há cem anos, Macaulay5 expressou preocupações de que a Constituição americana e os direitos de propriedade seriam mais cedo ou mais tarde subvertidos pelo voto popular, porque, em tempos de crise, aqueles que não têm nada (“have nots”) votariam pela expropriação dos que têm alguma coisa (“haves”). Pode-se supor que ele estava certo; mas o que aconteceu? Na depressão da década de 1890, uma eleição resolveu o assunto, com relação à moeda, a questão da “prata livre”. Certamente, a maioria dos eleitores estava um tanto aflita. O resultado foi apertado, embora a solidariedade do sul ao Partido Democrata fosse toda contra o dinheiro real. Mas, na decisão popular, o dinheiro real venceu. Novamente, em 1932, o voto popular foi a favor da economia do governo, do dinheiro real e da redução do poder político, embora o país estivesse sofrendo uma depressão aguda.

Qual foi a causa do pânico? Enormes empréstimos governamentais ao exterior que não foram pagos; e a existência do sistema do Federal Reserve, uma criação política, que tornou possível uma expansão desordenada do crédito.

E quem recebeu primeiro o auxílio federal?

De maneira nenhuma foram os “have nots”. A clivagem real não aconteceu nas linhas que Macaulay traçou, entre ricos e pobres. Foi principalmente entre produtores e não-produtores. A primeira medida de “alívio” foi a Reconstruction Finance Corporation; e o primeiro valor pago por ela foi para o J. P. Morgan & Co. Foram os ricos improdutivos que primeiro receberam auxílio governamental. Sem isso, nenhuma medida de auxílio federal aos pobres teria sido aprovada; e um trabalhador só aceitava auxílio em extrema necessidade e com amargura; o que ele queria era um emprego. Vincent Astor, que recebia uma renda elevada de aluguéis de terrenos herdados, vendeu ao governo federal propriedades em bairros miseráveis, que haviam sido exploradas até que não rendessem mais nada. Possuindo navios, conseguiu subsídios de navegação. Especuladores pressionavam pela expansão dos poderes do governo para manter os valores inflados de suas ações, pela depreciação do dinheiro e impedindo vendas “baixistas” no mercado, de maneira que imensos blocos de ações a preços artificiais permaneciam no mercado, impossibilitando uma recuperação normal. Para “salvar” os especuladores das consequências de suas próprias apostas, todos aqueles que não participaram do jogo foram penalizados. Leis foram aprovadas contra o “entesouramento”, de maneira que o único ato punido foi a prudência. Por esses meios, as reservas normais de dinheiro, que poderiam restaurar a produção, se dissiparam. Da mesma maneira, fazendeiros prudentes, competentes e solventes, que tiravam seu sustento de suas fazendas, foram penalizados com cotas e impostos sobre cotas para subsidiar a agricultura especulativa. Um homem em Montana conseguiu US$ 30.000,00 do governo porque persistiu em desperdiçar sementes de trigo numa terra árida durante a seca; enquanto uma pobre viúva na Nova Inglaterra foi obrigada a pagar um “imposto de processamento” porque criou um casal de porcos e os transformou em bacon!

A divisão foi traçada de maneira notável, entre o produtor e o não-produtor, com Henry Ford e o Senador Couzens6. Ford estava na produção; era contra a intervenção governamental. Couzens, ex-sócio de Ford, já havia tirado sua fortuna do setor produtivo e a colocado em títulos públicos isentos de impostos e defendia a expropriação de dinheiro pelo governo.

Cada vez que o sistema de produção tentava funcionar de maneira saudável, os não-produtores invocavam o poder político para fazê-lo parar. Por fim, a principal corrente de energia foi desviada para o canal político.

Esse processo já havia acontecido na Europa. Empréstimos imensos eram feitos por meio de agências políticas para agências políticas; e o dinheiro virava formas estáticas improdutivas: edifícios públicos e “melhorias” municipais que não davam nenhum retorno. Então, não havia emprego e o controle político forçou os trabalhadores a irem para as fábricas de armamentos. Tanto na América quanto na Europa, a energia mal direcionada foi projetada para cima; mas a Europa não construiu arranha-céus. O que subiu foram os aviões militares.

Um avião é transportado por um jato de energia, assim como uma bola de cortiça é transportada pelo jato de uma fonte. A energia é tirada de um circuito do qual as cidades são o centro. E os aviões estão varrendo as cidades da existência, com bombardeios. Por quanto tempo poderão continuar no ar depois de destruírem a fonte e o circuito que os elevaram aos céus?

Nada disso era imprevisível e tudo foi previsto de alguma forma. Há noventa anos, Herbert Spencer7 percebeu a tendência política. Ele disse: “Estamos sendo rebarbarizados.” Spencer reconheceu o nível cultural que é imposto pelo completo controle “social” do indivíduo. Mas não percebeu que isso não pode ser imposto pacificamente a um sistema de alta energia e que o processo fatalmente resultaria em explosão.

Se um sistema financeiro não é sólido, isso só pode acontecer pela possibilidade de excesso de concessão de crédito e pelo papel-moeda. Um remédio verdadeiro só poderia consistir em limitar essas faculdades. As “garantias” governamentais simplesmente colocam a propriedade dos homens prudentes à disposição dos especuladores em caso de perda. Não existe isso de “pânico de dinheiro”; um pânico financeiro ocorre por causa do colapso de crédito.

Nos Estados Unidos, a consequência inevitável da extensão do poder político sobre o dinheiro, com o sistema do Federal Reserve, foi prevista com detalhada exatidão por Elihu Root8. Ele escreveu: “Isto não é, de forma alguma, uma medida para criar uma moeda elástica. Não cria uma moeda elástica. Cria uma moeda expansiva, mas não elástica. Cria uma moeda que pode crescer, sempre crescer, mas não uma moeda para a qual a lei contenha qualquer medida que provoque a redução […] Com a reserva inesgotável do Governo dos Estados Unidos fornecendo dinheiro fácil, as vendas crescem, os negócios aumentam, mais empresas novas são criadas, o espírito do otimismo permeia a comunidade. Os banqueiros não estão isentos desse espírito. São humanos. Os membros do Federal Reserve Board também não estão. São humanos. O mundo inteiro segue uma onda crescente de otimismo. Todos estão ganhando dinheiro. Todos estão enriquecendo. Isso cresce e cresce […] até que, finalmente, alguém quebra […] e a estrutura inteira desmorona. Não vejo nesta lei […] nenhuma influência interposta por nós contra a ocorrência daqueles períodos de prosperidade falsa e ilusória, que terminam inevitavelmente em ruína e sofrimento. Porque os resultados mais terríveis do despertar das pessoas desse sonho não se encontram nos bancos — não: nem mesmo nas empresas. Encontram-se entre os milhões que perderam os meios de ganhar o pão diário.”

Elihu também era um dos profetas.

Mas os resultados mais terríveis nem sempre se limitam a uma depressão financeira; podem terminar em violência. Guerras civis acontecem quando a energia cinética é bloqueada à força ou subvertida por intervenção política. A ideia popular de revolução feita pelas “massas” oprimidas por muito tempo numa penúria abjeta é falaciosa. A escravidão jamais foi abolida por uma insurreição de escravos, mas sim pelo esforço de homens livres. Existem “revoluções palacianas”, nas quais o poder é tomado à força de um grupo por outro, sem qualquer outra mudança; também existem guerras civis de facções, quando uma forma de governo entra em colapso. Mas, no tipo mais importante de guerra civil ou revolução — não são termos idênticos, mas determinada guerra pode incluir ambos os elementos — os dois lados têm reivindicações plausíveis de alguma autoridade legítima; ambos são enérgicos, com um sistema de produção operante envolvido na questão subjacente; e o grande número de produtores resiste contra um novo aumento do poder governamental, como aconteceu na Guerra Civil inglesa do século dezessete e na Guerra de Independência Americana. Esta última começou como uma guerra civil e terminou como uma revolução, estabelecendo uma nova forma de governo para manter o princípio tradicional de autogoverno representativo reivindicado. Assim, qualquer extensão dos poderes governamentais e aumento de impostos sob o pretexto de “evitar uma revolução” consegue apenas criar perigo, se ainda não existisse, ou agravá-lo, se já existisse.

Ao contrário, quando uma ditadura ganha força, isso acontece porque os vários grupos lhe concedem o poder gradativamente, sem perceber onde isso vai terminar. Os homens escravizam a si mesmos, forjando as correntes elo a elo, normalmente exigindo proteção como grupo. Quando empresários pedem crédito ao governo, entregam o controle de suas empresas. Quando trabalhadores pedem “negociações coletivas” impostas, entregam sua própria liberdade. Quando grupos raciais são reconhecidos por lei, podem ser discriminados por lei.

1 THE PROMISES MEN LIVE BY. De Harry Scherman. Random House. O sr. Scherman cunhou a expressão “trocas adiadas”. (N. da A.)

2 Um especialista em transportes com amplo conhecimento geral e experiência prática (Robert Selph Henry, assistente do presidente da Associação de Ferrovias Americanas) sugeriu que as grandes depressões de negócios do século dezenove aconteceram logo depois de momentos em que a rápida expansão da infraestrutura de transportes avançou além do desenvolvimento geral do país. Qualquer desproporção nessa estrutura teria consequências diretas em todo o sistema, de maneira previsível. Mas, enquanto o financiamento vinha de capital empresarial privado, essa condição se autocorrigia.

O sr. Henry diz: “No caso das depressões anteriores, o novo sistema de transporte, embora criado mais antes de ser viável economicamente, com o tempo se justificou e se pagou, porque era inerentemente muito mais eficiente e econômico que o sistema de transportes anterior […] Isso já não foi verdade depois da depressão de 1929 […] Uma possível razão para essa diferença é que o novo sistema, (super-highways, melhorias nas hidrovias internas, aeroportos federais, etc.) no qual mais dinheiro foi gasto em duas décadas do que havia sido gasto com as ferrovias em mais de um século, não cumpria essas condições. Sua manutenção e operação não são mais baratas que as do sistema anterior, mas tremendamente mais caras. Outra diferença importante é que, enquanto mais de 98% do investimento em ferrovias veio de fundos privados e, portanto, estava sujeito ao teste inescapável de realidade econômica, aproximadamente 85% dos investimentos recentes em transportes vieram de fundos públicos, que estão isentos daquele teste extremo.”

Em resumo, uma grande quantidade de energia vai para formas estáticas e uma corrente contínua ainda vai para um fio-terra por meio dessas formas. Não é apenas uma perda líquida, mas um vazamento permanente. (N. da A.)

3 O ponto mais fraco de um sistema de crédito é que um lucro presumido é contabilizado pela agência financeira (o banco ou a corretora de investimento) quando uma dívida é feita, não quando é paga. (N. da A.)

4 Paradoxalmente, embora o socialismo não tolere a livre iniciativa, a estrutura política da livre iniciativa pode abrigar todo tipo de associação cooperativa, na plena extensão de seu funcionamento prático. O engenheiro elétrico socialista, Steinmetz, trabalhando para a General Electric, não quis receber uma compensação fixa, preferindo retirar todos os recursos que achou que precisava; e seu desejo foi realizado, numa conta aberta — o que seria impossível no socialismo! O acordo foi realizável nesse caso simplesmente porque foi submetido à decisão privada e à vontade das partes envolvidas.

Todos os defeitos que podem ocorrer em um sistema de livre iniciativa são características positivas e estabelecidas do coletivismo. Se o coletivo (poder político) impede um homem de trabalhar, o que ele pode fazer? Se um homem faz um trabalho ruim numa economia livre, o comprador é o juiz; quem pode ter o direito de julgar no socialismo? No pior caso, numa sociedade livre, os mais desafortunados dependem de caridade; no coletivo, podem ser mortos. (N. da A.)

5 Thomas Babington Macaulay (1800 - 1859): historiador e político britânico. (N. do T.)

6 James J. Couzens (1872 - 1936): industrial e político, foi prefeito de Detroit de 1919 a 1922 e senador pelo Estado de Michigan entre 1922 e 1936. Foi sócio de Henry Ford desde a fundação da Ford Motor Company, em 1903 até 1919. (N. do T.)

7 Herbert Spencer (1820 - 1903): filósofo e cientista britânico. Foi um importante pensador liberal clássico. (N. do T.)

8 Elihu Root (1845 - 1937): advogado e político americano. Foi Secretário da Guerra dos presidentes William McKinley e Theodore Roosevelt, entre 1899 e 1904 e senador por Nova York. Ganhou o Prêmio Nobel da Paz em 1912, por seus esforços para promover negociações e cooperação entre nações em litígio. (N. do T.)

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