domingo, 30 de dezembro de 2012

Que É Filosofar?, de Josef Pieper


Li, de ontem para hoje, um pequeno livro que encontrei num sebo, Que É Filosofar?, de Josef Pieper.

Pieper começa afirmando que filosofar é transcender o cotidiano, ultrapassar o mundo do trabalho e olhar para as coisas de uma maneira mais profunda, perguntando-se por quê, em vez de como. Assim, a filosofia se parece com a poesia, com a religião, com o arrebatamento erótico e com a experiência extrema da proximidade da morte.

Ele diz que uma característica distintiva do ser humano é o fato de se relacionar com a totalidade do ser, ao contrário dos animais, que só se relacionam com seu meio ambiente imediato. O homem é capaz de olhar para as coisas do cotidiano e enxergar o não-cotidiano, ou seja, admirar-se. Essa admiração é o princípio da filosofia.

Ao final, Pieper discute a relação entre filosofia e teologia. Aqui, encontro a mesma dificuldade que vi ao ler Crise e Utopia, de Martim Vasques da Cunha. Os dois autores possuem uma visão religiosa da filosofia. Tenho a impressão de que essa visão impõe pressupostos que dificultam o diálogo com quem não concorda com eles.

sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

A Viagem do Peregrino da Alvorada, de C. S. Lewis

Aproveitando férias, terminei de ler "A Viagem do Peregrino da Alvorada", de C. S. Lewis, para minha filha. Já lemos juntos "O Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupa" e "Príncipe Caspian", das Crônicas de Nárnia, "O Pequeno Príncipe", de Antoine de Saint-Exupéry e "Alice no País das Maravilhas" e "Através do Espelho", de Lewis Carroll.

Conforme o livro foi chegando ao fim, a ansiedade dela foi aumentando. Como vai terminar? Faltam poucas páginas e ainda tem tanta coisa para se resolver...

É um prazer infinito poder dividir com ela a paixão pelos livros.

Quero Liberdade (cap. VI), de Rose Wilder Lane

VI

Quando perguntei a mim mesma: “Sou verdadeiramente livre?”, comecei lentamente a entender a natureza do homem e da situação humana neste planeta. Entendi finalmente que todo ser humano é livre; que sou dotada pelo Criador de liberdade inalienável enquanto sou dotada de vida; de que minha liberdade é inseparável de minha vida, uma vez que a liberdade é a natureza de autocontrole do indivíduo. Minha liberdade é meu controle de minha energia vital, pelos usos sobre os quais, portanto, somente eu sou responsável.

Mas o exercício dessa liberdade é outra coisa, uma vez que, em qualquer uso de minha energia vital, encontro obstáculos. Alguns desses obstáculos, como o tempo, o espaço, as condições climáticas, são eternos na situação humana neste planeta. Alguns se impõem por si mesmos e vêm da minha própria ignorância das realidades. E, durante os anos em que morei na Europa, uma enorme quantidade de obstáculos foi impingida a mim pelo poder de polícia dos homens que governam os Estados europeus.

Considero que é uma verdade evidente por si mesma que todos os homens são dotados pelo Criador de uma liberdade inalienável, de autocontrole individual e de responsabilidade por pensamentos, palavras e atos, em qualquer situação. Até que ponto essa liberdade natural pode ser exercida depende da quantidade de coerção externa imposta sobre o indivíduo. Nenhum carcereiro pode obrigar um prisioneiro a falar ou agir contra a vontade dele, prisioneiro, mas correntes podem impedi-lo de agir e uma mordaça pode impedi-lo de falar.

Os americanos têm mais liberdade de pensamento, de escolha e de movimento que os outros povos jamais tiveram.

Não herdamos limitações de casta para restringir nossa gama de desejos e ambições à classe em que nascemos.

Não temos uma burocracia governamental para monitorar cada movimento nosso, para registrar quais amigos ligam para nossa casa e a que horas eles chegam e saem, para que a polícia esteja plenamente informada caso sejamos assassinados. Não temos funcionários públicos que, no interesse do recolhimento justo e equitativo dos impostos sobre a gasolina, param nosso carro e medem o conteúdo do tanque quando entramos numa cidade americana ou saímos dela.

Não somos obrigados, como são os europeus do continente, a levar o tempo todo um cartão de identificação emitido pela polícia, renovado e pago a intervalos regulares, onde consta nossa foto propriamente carimbada e nosso nome, idade, endereço, parentesco, religião e ocupação.

Os trabalhadores americanos não são classificados; não carregam cartões emitidos pela polícia onde os empregadores registram cada dia em que eles trabalham; não têm locais de diversão separados dos das classes mais altas e sua diversão não está sujeita a interrupções por policiais fazendo batidas para inspecionar seus cartões de trabalhadores, e agindo a partir da premissa de que qualquer trabalhador cujo cartão mostre que ele não trabalhou na semana anterior é um ladrão.

Em 1922, como correspondente estrangeira em Budapeste, acompanhei uma dessas batidas policiais. O Chefe de Polícia mostrava a um colega da Scotland Yard em visita à Hungria os mecanismos de seu trabalho. Saímos às dez da noite, com sessenta policiais que se moviam com a bela precisão dos soldados.

Cercaram uma área no bairro operário da cidade e vieram fechando o cerco, enquanto o Chefe explicava que essa era a rotina de sempre; todo o bairro era varrido dessa maneira a cada semana.

Aparecemos de repente nas entradas dos bares de operários, lugares sujos com serragem sobre o chão de terra, onde um músico tentava tristemente tirar música de uma rabeca barata e homens e mulheres em andrajos cinzentos sentavam-se em mesas descobertas e bebericavam economicamente cerveja ou café. Seu terror ao ver os uniformes era abjeto. Todos se levantavam e humildemente erguiam as mãos. Os policiais sorriam com o prazer peculiar dos seres humanos de posse de tão grande poder.

Vasculhavam os bolsos dos homens, zombando um pouco de um objeto ou outro. Achavam os cartões de trabalho, inspecionavam-nos, enfiavam de volta nos bolsos. Ao ouvir a abrupta liberação, os homens se deixavam cair nas cadeiras e enxugavam a testa.

Em toda parte, alguns cartões não passavam na inspeção. Nenhum empregador os havia carimbado nos últimos três dias; homens e mulheres eram levados ao camburão.

Aqui e ali, quando entrávamos, alguém tentava fugir pela porta dos fundos ou pela janela e caía, é claro, nas mãos da polícia. Podíamos ouvir os policiais rindo. O Chefe recebeu os cumprimentos do detetive britânico. Tudo foi feito com perfeição, ninguém escapou.

Várias mulheres protestavam freneticamente, chorando, implorando de joelhos, de maneira que quase tinham de ser carregadas para o camburão. Uma jovem lutou, gritando horrivelmente. Foram necessários dois policiais para contê-la; não eram brutos, mas quando ela mordeu as mãos que eles colocavam nos braços dela, um terceiro lhe deu um tapa no rosto. No camburão, ela continuou gritando como louca. Eu não entendia húngaro. O Chefe explicou que algumas mulheres resistiam a receber cartões de prostituta.

Quando uma empregada doméstica ficava vários dias sem trabalho, a polícia tomava o cartão que a identificava como trabalhadora e que permitia que ela trabalhasse; dava em troca um cartão de prostituta. Homens que não tinham trabalhado recentemente eram condenados a uma pena curta de prisão por roubo. Obviamente, dizia o Chefe, se não estavam trabalhando, eram prostitutas e ladrões; como poderiam subsistir de outra forma?

Talvez com suas economias? – sugeri.

Os trabalhadores só ganham o suficiente para viver cada dia, não têm como economizar, disse o Chefe. É claro, se por um acaso extraordinário algum deles ganhou um pouco de dinheiro honestamente e puder provar, o juiz irá soltá-lo.

Tendo vasculhado todos os bares, começamos a olhar as pensões. Morei em subúrbios em Nova York e São Francisco. Os americanos que não viram os subúrbios europeus não têm a menor ideia do que é um subúrbio.

Até o amanhecer, a polícia subia pelas pensões imundas e descia até seus porões, agitando a massa de esfarrapados e exigindo os cartões de identificação dessas pessoas de olhos arregalados. Não prendemos tantos desempregados lá, porque é mais caro dormir sob um teto que sentar num bar; o simples fato de que tinham abrigo indicava que trabalhavam. Mas a polícia era minuciosa e acordou todo mundo. Trabalhavam quietos e de bom humor; essa batida não tinha nada da violência de uma operação da polícia americana. Quando uma porta trancada não se abria, a polícia tentava todas as chaves-mestras disponíveis antes de arrombá-la.

O homem da Scotland Yard dizia: – Admirável, sir, admirável. Os sistemas policiais do continente são maravilhosos, realmente. Vocês tem controle absoluto aqui. – Então falou seu orgulho britânico, reprovativamente, como sempre fazia. – Nunca poderíamos fazer algo assim em Londres, vocês não sabem? A casa de um inglês é seu castelo, e tudo o mais. Temos de ter um mandado antes que possamos vasculhar recintos ou tocar na pessoa de alguém. Limitação irracional, sabe? Não temos nada parecido com o seu controle daqui do continente.

Foi a única busca policial de um bairro operário que presenciei na Europa. Não acredito que a sujeição ao controle governamental em outros lugares chegue ao ponto de forçar mulheres a se prostituir e pode ser que isso não aconteça mais na Hungria. Mas esse sistemático cerco e busca em bairros operários ocorria normalmente em toda a Europa, e sei que se considerava um fato real que o desemprego forçava as pessoas para além do limite entre a privação e o crime.

Como qualquer habitante da Europa, fui parada muitas vezes a caminho de casa por dois policiais educados que pediam para ver minha carteira de identidade. Era tão comum que não era preciso explicar. Sabia que meu bairro de classe média, plenamente respeitável, era cercado, simplesmente por questão de rotina policial, e todo mundo tinha que mostrar a identidade emitida pela polícia.

De todo modo, desconfio que a criminalidade não fosse menor nessa Europa controlada pela polícia que na América. Muitos crimes eram contados em parágrafos curtos com letra pequena em qualquer jornal. Não havia nenhum lugar numa cidade americana em que eu tivesse medo de ir sozinha à noite. Sempre houve muitos bairros de cidades europeias que eram realmente perigosos depois do pôr-do-sol, e vários tipos de criminosos que matariam qualquer homem, mulher ou criança bem vestidos, só para ficar com as roupas.

O mais terrível é que o motivo por trás de toda essa supervisão do indivíduo é um bom motivo, um motivo racional. Como poderia um governante manter a ordem social sem ela?

Existe certo instinto de método e autopreservação que permite que aglomerações de seres humanos livres saiam de um lugar de alguma maneira. Nenhuma multidão deixa um teatro com eficiência, nem sem desconforto, impaciência e tempo perdido, mas normalmente chegamos à calçada sem brigar. Ordem é outra coisa. Todo professor sabe que não dá para manter a ordem sem regras, supervisão e disciplina. É uma questão de grau; quanto mais rígida e autocrática a disciplina, maior a ordem. Toda ordem social genuína exige, como primeiro fundamento, a classificação, regulamentação e obediência dos indivíduos. Sendo os indivíduos o que são, infinitamente variados e cheios de vontades, a obediência tem de ser imposta.

A grande perda num ambiente de ordem social é de tempo e energia. Ficar sentado em salas de espera até que se possa entrar numa fila para chegar à mesa de um burocrata parece, para qualquer americano, uma perda mortal e viver nessa ordem social encurta a vida das pessoas. Também fora do escritório do burocrata, essa regulamentação pelo bem público constantemente obstrui toda ação. É tão impossível mover-se livremente na vida diária quanto ziguezaguear ou apressar o passo quando se segue uma procissão.

Na América, não existem decretos comerciais dificultando a atividade de cada balconista ou cliente, como acontece na França, de maneira que se gasta meia hora a mais em cada compra numa loja de departamentos. Os comerciantes franceses são tão inteligentes quanto os americanos, mas não podem instalar tubos de vácuo e um sistema ágil de contabilidade num caixa central. – Para quê? – eles perguntariam a você. Eles ainda seriam obrigados a registrar cada compra por escrito num livro, na presença do comprador e do vendedor, conforme decretou Napoleão.

Também era um decreto inteligente, quando Napoleão o emitiu. Os comerciantes franceses poderiam mudá-lo? – É muito engraçado – diziam eles sem nenhuma vontade de rir. O decreto estava emaranhado em cem anos de complicações burocráticas e, além disso, imagine quanto desemprego sua revogação causaria entre aqueles caixas cansados, molhando a pena na tinta especificada, registrando a data e hora numa nova linha e perguntando: – Seu nome, madame? – escrevendo. – Seu endereço? – escrevendo. – Pagou em dinheiro? – escrevendo. – Vai levar a compra consigo? Ah, certo. – escrevendo. – Ah, entendo. Um novelo de linha, de algodão, preta, qual o tamanho? – escrevendo. – E a senhora ofereceu em pagamento? Sim, um franco. – escrevendo. – Por um franco, veja, madame, dou-lhe cinquenta centavos de troco. Bem. Está satisfeita, madame?

Ninguém avaliava quanto desemprego isso causava às multidões de clientes esperando pacientemente todos os dias, nem se aqueles funcionários poderiam estar fazendo alguma coisa útil, que criasse riqueza, se nunca tivessem sido empregados daquela maneira. Napoleão quis impedir o desperdício da desorganização, da fraude e das brigas nos mercados de seu tempo. E conseguiu. O resultado é que uma parte muito grande da França ficou permanentemente estacionada no tempo de Napoleão. Se ele tivesse deixado os franceses desperdiçarem e brigarem e fraudarem e serem lesados, como os americanos faziam em seus mercados igualmente primitivos, as lojas de departamentos da França certamente teriam se tornado tão vivamente eficientes e economizadoras de tempo como as da América.

Ninguém que sonha com uma ordem social ideal e com uma economia planejada para eliminar o desperdício e a injustiça leva em consideração quanta energia, quanto da vida humana é desperdiçado administrando-se e seguindo-se a melhor das regulamentações. Ninguém leva em conta o quanto essa regulamentação se tornaria rígida, nem que ela teria de se tornar rígida e resistir a mudanças, porque seu objetivo subjacente é proteger os homens dos riscos do acaso e das mudanças causadas pelo passar do tempo.

Os americanos, em nosso país, nunca experimentaram a disciplina de uma ordem social. Falamos de uma ordem social melhor quando, de fato, não sabemos o que é ordem social. Dizemos que há algo errado com nosso sistema quando, de fato, não temos sistema. Usamos frases aprendidas da Europa, sem conceber seu significado na experiência real vivida.

Na América, não temos nem mesmo treinamento militar universal, a base da ordem social que mostra a todo cidadão do sexo masculino que ele é submisso ao Estado e subtrai dele alguns anos de juventude, enfraquecendo, portanto, o poder militar de todas as nações que o adotaram.

Um contrato de aluguel de apartamento na América é valido a partir do momento em que é assinado; não é necessário levá-lo à polícia para ser carimbado, nem registrar uma cópia na coletoria de impostos, de maneira que, para fins fiscais, nossa renda seja considerada dez vezes maior que o aluguel que pagamos. Na teoria econômica, não há dúvida de que não é adequado pagar um aluguel maior que 10 por cento do que ganhamos e talvez seja economicamente justo que alguém tão extravagante a ponto de pagar mais seja punido pelos impostos. Nunca se consegue vencer com argumentos os motivos por trás das burocracias europeias; invariavelmente, os motivos são excelentes.

Um americano pode olhar o mundo a sua volta e pegar o que quiser, se conseguir. Só a lei penal e seu caráter, habilidade e sorte o limitam.

É o que os europeus querem dizer quando, depois de alguns dias neste país, exclamam: “Vocês são tão livres aqui!” Para um americano que volta depois de morar muito tempo no exterior, o mais infinito alívio é poder ir de um hotel a outro, de uma cidade a outra, poder entrar correndo numa loja e comprar um carretel de linha, resolver às três e meia tomar o trem das quatro, comprar um carro se tiver o dinheiro ou o crédito e dirigi-lo para onde bem entender, tudo sem ter que relatar absolutamente nada ao governo.

Mas qualquer pessoa para quem liberdade é a liberdade de ganhar seu sustento se possível, como sempre foi meu caso, sabe que essa independência é outro nome para responsabilidade.

Os pioneiros americanos expressaram isso de maneira clara e direta. Eles dizem: “Fuce, porco, ou morra”1.

Não pode haver uma terceira alternativa para o leitão que sai do chiqueiro, para ir onde quiser e fazer o que preferir. Liberdade individual é responsabilidade individual. Quem quer que tome decisões é responsável pelos resultados. Quando os homens comuns eram escravos e servos, obedeciam e eram alimentados, mas morriam aos milhares por pragas e fome. Homens livres pagam sua liberdade ao deixar aquela segurança falsa e ilusória.

A questão é se a liberdade pessoal vale o terrível esforço, o peso nunca aliviado e os riscos, os inevitáveis riscos, de depender de si mesmo.http://www.libertarianismo.org/index.php/biblioteca/234-rose-wilder-lane/1074-quero-liberdade



1 Em inglês, “Root, hog, or die”. Expressão idiomática comum nos Estados Unidos a partir do século XIX, que quer dizer que as pessoas devem depender de si mesmas.

sábado, 22 de dezembro de 2012

Um Discurso Inaugural, de Joseph Brodsky

Senhoras e senhores da Turma de 1984:
Por mais ousados ou cautelosos que vocês decidam ser, no decorrer de suas vidas estão destinados a entrar em contato físico direto com aquilo que é conhecido como o Mal. Não estou me referindo aqui a um elemento do romance gótico, mas, para dizer o mínimo, a uma realidade social palpável que vocês não têm como controlar. Por mais que sejam pessoas de boa índole ou lancem mão de cálculos precisos, não há como evitar este encontro. De fato, quanto mais calculistas e cuidadosos formos, maior será a probabilidade deste encontro, e mais forte seu impacto. A estrutura da vida é tal que aquilo que vemos como o Mal é capaz de uma presença bastante difundida, mesmo porque tem a tendência de aparecer sob o disfarce do bem. Vocês nunca irão vê-lo atravessando a soleira de suas portas e se anunciando: “Olá, eu sou o Mal!”. Isto, é claro, indica sua natureza secundária, mas o consolo que poderíamos extrair desta observação é obliterado pela frequência com que se manifesta.



Uma medida prudente a tomar, portanto, seria submeter suas noções de bem ao escrutínio mais meticuloso possível, percorrendo, por assim dizer, todo o seu guarda-roupa, verificando quais dos seus trajes poderiam caber num estranho. É claro que isso pode se transformar em uma ocupação em tempo integral, e talvez devesse mesmo. Vocês ficariam surpreendidos com a quantidade de coisas que consideram suas e boas, mas que poderiam ser facilmente usadas, sem muitos ajustes, por seus inimigos. Podem até começar a se perguntar se ele não seria as suas próprias imagens no espelho, pois o mais interessante a respeito do Mal é ele ser inteiramente humano. Para colocar o problema em termos amenos, posso dizer que nada pode ser virado e usado do avesso com mais facilidade do que nossas noções de justiça social, consciência cívica, um futuro melhor, etc. Um dos sinais mais seguros de perigo neste caso é o número daqueles que compartilham suas opiniões, não tanto porque a unanimidade tem o hábito de degenerar em uniformidade, mas devido à probabilidade – implícita nos grandes números – de que os sentimentos nobres sejam falsos.

Da mesma forma, a defesa mais segura contra o Mal é o extremo individualismo, a originalidade de pensamento, a singularidade, e até mesmo – se quiserem – a excentricidade. Ou seja, algo que não possa ser fingido, falsificado, imitado; algo que nem mesmo um impostor experiente seja capaz de copiar. Alguma coisa, em outras palavras, que não possa ser compartilhada, como, por exemplo, sua própria pele: nem mesmo por uma minoria. O Mal tem loucura pela solidez. Ele sempre procura os grandes números, o granito confiante, a pureza ideológica, os exércitos bem treinados e os orçamentos bem equilibrados. Presumivelmente, sua atração por essas coisas tem a ver com sua insegurança inata, mas, de novo, esta compreensão nos vale pouco como consolo quando o Mal triunfa.

E ele triunfa: em muitas partes do mundo, e dentro de nós mesmos. Dados seu volume e intensidade, dado em especial o cansaço daqueles que a ele se opõem, hoje o Mal pode ser encarado não como uma categoria ética, mas como um fenômeno físico que não se mede mais em partículas, mas na escala dos mapas geográficos. Assim, a razão pela qual estou falando com vocês a respeito disso não tem nada a ver com o fato de que são jovens, em pleno frescor, e estão diante de uma folha em branco. Não, a folha está escura de sujeira, e é difícil acreditar seja na capacidade ou na disposição que terão para limpá-la. Meu objetivo é apenas sugerir a vocês um modo de resistência que pode lhes ser útil algum dia; um modo que pode ajudá-los a emergir do confronto com o Mal talvez menos manchados, se não necessariamente mais triunfantes do que seus precursores. Estou pensando, é claro, no famoso expediente de oferecer a outra face.

Estou supondo que, de um modo ou de outro, vocês já ouviram falar nas interpretações desse versículo do Sermão da Montanha feitas por Leon Tolstoi, Mahatma Gandhi, Martin Luther King Jr. e muitos outros. Em outras palavras, estou supondo que vocês conhecem o conceito de resistência não violenta, ou passiva, cujo princípio fundamental é retribuir o mal com o bem, ou seja, de não responder na mesma moeda. O fato de o mundo de hoje ser como é sugere, no mínimo, que este conceito está longe de ser universalmente aceito. Há duas razões para esta impopularidade. Primeiro, para que seja posto em ação é necessária certa margem de democracia. E é precisamente disto que carecem 86% do globo. Segundo, o senso comum diz às vítimas que a única coisa que podem ganhar ao oferecer a outra face e não responder na mesma moeda é, no máximo, uma vitória moral, isto é, algo de muito imaterial. A relutância natural em expor mais uma parte de seus corpos a um golpe é justificada pela suspeita de que este tipo de conduta só faz provocar e fortalecer o Mal; de que a vitória moral pode ser confundida com impunidade pelo adversário.

Mas há outras razões, mais graves, para ficarmos desconfiados. Se o primeiro golpe recebido não deixar a vítima nocauteada, ela pode perceber que oferecer a outra face equivale a manipular o sentimento de culpa do ofensor, para não falar de seu carma. A própria vitória moral pode não ser tão moral assim, não só porque o sofrimento muitas vezes tem um aspecto narcisista, mas também porque torna a vítima superior, isto é, melhor que seu inimigo. No entanto, por pior que seja seu inimigo, o fato crucial é que ele é humano, e embora sejamos incapazes de amar o próximo como a nós mesmos, ainda assim sabemos que o Mal cria raízes quando um homem começa a pensar que é melhor que outro. (E é por isso que vocês são atingidos primeiro na face direita.) Na melhor das hipóteses, portanto, o que se pode ganhar oferecendo a outra face para o inimigo é a satisfação de chamar a atenção deste último para a futilidade de seu gesto. “Veja bem”, diz a outra face, “o que você está golpeando é apenas a carne. Não sou eu. Você não pode esmagar minha alma.” O problema desse tipo de atitude é que o inimigo pode resolver aceitar o desafio.



Vinte anos atrás, a seguinte cena ocorreu num dos inúmeros pátios de prisão do norte da Rússia. Às sete horas da manhã, a porta de uma das celas foi escancarada e, na soleira, apareceu um guarda, que disse a seus prisioneiros: “Cidadãos! O coletivo dos guardas desta prisão desafia vocês, os prisioneiros, para uma competição socialista para ver quem racha mais toras da lenha acumulada um nosso pátio”. Nessas regiões, não existe aquecimento central, e a polícia local, digamos assim, impõe a todas as madeireiras da região uma taxa equivalente a 10% de sua produção. No momento que estou descrevendo, o pátio da prisão parecia uma verdadeira serraria: as pilhas tinham de dois a três andares de altura, reduzindo a proporções diminutas o quadrilátero da própria prisão, que tinha apenas um andar. A necessidade de começar a rachar aquela lenha era evidente, embora competições socialistas desse tipo já tivessem ocorrido antes. “E se eu me recusar a tomar parte?”, perguntou um dos prisioneiros. “Bem, neste caso fica sem as refeições”, respondeu o guarda.

Machados foram entregues aos prisioneiros, e começou a atividade. Tanto prisioneiros quanto guardas se aplicavam seriamente ao trabalho, e ao meio-dia todos eles, sobretudo os prisioneiros, sempre subnutridos, estavam exaustos. Anunciou-se uma pausa e todos se sentaram para comer: menos o sujeito que tinha feito a pergunta. Ele continuou a brandir seu machado. Tanto os prisioneiros como os guardas trocaram piadas a respeito dele, algo sobre os judeus sempre terem sido considerados espertos, mas aquele… e assim por diante. Depois da pausa, reiniciaram o trabalho, embora com um pouco menos de energia, Às quatro horas, os guardas foram embora, porque seu turno acabava ali; um pouco depois, os prisioneiros também pararam de trabalhar. Mas o machado daquele homem continuava subindo e descendo. Várias vezes lhe disseram que parasse, mas ele não atendia. Parecia que tinha adquirido certo ritmo que não queria interromper; ou seria o ritmo que tinha se apossado dele?

Aos outros, ele dava a impressão de um autômato. Às cinco horas, às seis, o machado continuava subindo e descendo. Tanto os guardas quanto os prisioneiros o observavam agora atentamente, e a expressão sardônica em seus rostos foi aos poucos sendo substituída primeiro pelo espanto, e depois pelo horror. Às sete e meia o homem parou, voltou cambaleando para sua cela e caiu adormecido. Durante o resto de sua estada naquela prisão, nunca mais se formulou um desafio de competição socialista entre guardas e prisioneiros, embora a lenha continuasse a se acumular em pilhas no pátio.


Acho que aquele sujeito só foi capaz de passar doze horas seguidas rachando lenha porque naquela época era bastante jovem. Tinha apenas 24 anos. Era só um pouco mais velho do que vocês são agora. No entanto, acho que pode ter havido outra razão para seu comportamento daquele dia. É bem possível que aquele jovem – justamente por ser jovem – tenha se lembrado do texto do Sermão da Montanha melhor do que Gandhi ou Tolstoi. O Filho do Homem tinha o hábito de falar em tríades, e o jovem pode ter-se lembrado de que aquele importante versículo não acaba em:

            mas se alguém te ferir na tua face direita, oferece-lhe também a outra

mas continua, sem ponto e nem vírgula:

            e ao que quer demandar-te em juízo, e tirar-te a tua túnica, larga-lhe também a capa. E se qualquer te obrigar a ir carregado mil passos, vai com ele ainda mais outros dois mil.

Citados na íntegra, estes versículos têm na verdade muito pouco a ver com a resistência não violenta ou passiva, com os princípios de não responder na mesma moeda e de retribuir ao mal com o bem. O significado dessas linhas é tudo menos passivo, porque sugere que o mal pode acabar ficando absurdo pelo excesso; sugere que devemos tornar o mal absurdo, fazendo com que suas exigências se tornem minúsculas diante do volume de nossa obediência a elas, depreciando o sofrimento que nos causam. Este tipo de atitude deixa a vítima numa posição muito ativa, a posição de agressor mental. E a vitória que se pode conquistar neste caso não é moral, mas existencial. A outra face não se limita a manipular o sentimento de culpa do inimigo (sentimento que ele é perfeitamente capaz de aplacar), mas submete seus sentidos e suas faculdades à falta de sentido de todo o empreendimento: do mesmo modo como toda forma de produção em massa.

Quero lembrar que não estamos tratando aqui de uma situação que envolva uma luta justa, em condições de igualdade. Estamos falando de situações nas quais nos encontramos desde o início em uma posição inevitavelmente inferior, em que não temos a possibilidade de reagir lutando, em que as chances nos são esmagadoramente desfavoráveis. Em outras palavras, estamos falando das horas escuras de nossas vidas, nas quais nosso sentimento de superioridade moral em relação ao inimigo não nos dá alívio, nas quais este inimigo já foi longe demais para ainda se envergonhar ou sentir saudades dos escrúpulos que abandonou, nas quais só temos à nossa disposição nossa face, nossa túnica, nossa capa e um par de pés que ainda é capaz de caminhar mil ou dois mil passos.

Numa situação desse tipo, há pouco espaço para manobras táticas. Assim, virar a outra face deve ser uma decisão consciente, fria, deliberada. Suas possibilidades de vitória, por mais escassas que sejam, dependem totalmente da consciência que vocês tenham ou não do que estão fazendo. Ao avançarem o rosto com a face voltada para o inimigo, vocês devem saber que isto é apenas o início de sua provação, bem como do versículo – e devem ser capazes de se ver durante toda a sequência, através de todos os três versículos do Sermão da Montanha. De outro modo, uma frase entendida fora do contexto pode deixá-los inutilizados.


Basear nossa ética num versículo citado incorretamente equivale a cortejar o fracasso, ou então a nos transformar em burgueses mentais que decidiram entregar-se ao supremo conforto: o conforto de suas convicções. Nos dois casos (dos quais o último, culminando na filiação a movimentos marcados pelas boas intenções e a organizações sem fins lucrativos, é o menos palatável), isto resulta em ceder terreno ao Mal, em retardar a compreensão de suas fraquezas. Porque o Mal, volto a lembrar, é apenas humano.

A ética baseada neste versículo mal citado não mudou nada na Índia pós-Gandhi, exceto a cor de seus governantes. Do ponto de vista do homem faminto, porém, pouco importa quem provoque a sua fome. Admito que ele possa até preferir que seja um homem branco o responsável por seu triste estado, mesmo por que deste modo pode parecer que o mal social vem de outro lugar, e é menos eficiente, talvez, do que um sofrimento que lhe fosse infligido por seus semelhantes. Com um estrangeiro no poder, ainda sobra lugar para a esperança, para a fantasia.

Da mesma forma, na Rússia pós-Tolstoi, a ética baseada neste versículo mal citado minou boa parte da vontade da nação em seu confronto com um Estado policial. O que aconteceu já é muito bem conhecido: seis décadas virando a outra face transformaram a nação num imenso hematoma, e hoje o Estado, cansado de sua violência, limita-se a cuspir nesta face. Bem como na face de todo o mundo. Em outras palavras, se vocês quiserem secularizar o cristianismo, se quiserem traduzir os ensinamentos de Cristo em termos políticos, precisam de algo mais do que o palavrório moderno da política: precisam do texto original – pelo menos em suas mentes, se não houver lugar para ele em seus corações. Já que Ele era menos um homem bom do que um espírito divino, é fatal insistir em Sua bondade em detrimento de Sua metafísica.

Devo admitir que às vezes me sinto um tanto mal quando falo sobre essas coisas: porque virar ou não virar a outra face é, afinal, uma questão de foro íntimo. O confronto sempre ocorre em termos individuais, de um contra um. É sempre a sua pele, a sua túnica e a sua capa, e suas pernas, que terão que sofrer as consequências. Aconselhar, quanto mais insistir, sobre a maneira como cada um deve usar essas propriedades é, se não inteiramente errado, pelo menos indecente. Tudo o que pretendo fazer aqui, assim, é apagar de suas mentes um clichê que tanto mal fez a tantos e rendeu tão pouco. Também gostaria de instilar em vocês a ideia de que, enquanto continuarem tendo suas peles, suas túnicas, suas capas e seus pés, ainda não foram derrotados, por menores que sejam suas possibilidades.

Existe, porém, uma razão maior para sentirmos certo constrangimento em discutir essas questões em público, e não é apenas a relutância natural que vocês possam sentir em considerar a si mesmos, tão jovens, como vítimas em potencial. Não, na verdade é apenas a sobriedade, que nos faz antecipar que também entre vocês surgirão alguns vilões – e é má estratégia divulgar os segredos da resistência diante do inimigo em potencial. O que talvez nos livre da acusação de traição ou, pior ainda, de projetar o status quo tático para o futuro, é a esperança de que a vítima sempre será mais inventiva, mais original em seu pensamento, mais empreendedora que o vilão. Daí a possibilidade de que a vítima venha a triunfar.

(Williams College, 1984)

Tradução: Sergio FlaksmanO original pode ser encontrado aqui: http://www.nybooks.com/articles/archives/1984/aug/16/a-commencement-address/

Quero Liberdade (cap. V), de Rose Wilder Lane

V

Quando voltei da União Soviética, não era mais comunista, porque acreditava na liberdade pessoal. Como todos os americanos, tinha como certa a liberdade individual na qual nasci. Parecia-me tão necessária e inevitável como o ar que respiro; parecia ser o elemento natural em que os seres humanos vivem.

A ideia de que pudesse perdê-la nunca havia nem remotamente me ocorrido. E não podia imaginar que multidões de seres humanos pudessem voluntariamente viver sem ela.

Aconteceu que passei muitos anos em países da Europa e da Ásia ocidental, de maneira que finalmente aprendi um pouco, não só sobre as palavras que os vários povos usam, mas sobre o real significado dessas palavras. Nenhuma palavra, é claro, pode ser traduzida de maneira exata para outra língua; as palavras que usamos são os símbolos mais toscos para seus significados e supor que palavras como “guerra”, “glória”, “justiça”, “liberdade”, “lar” signifiquem a mesma coisa em duas línguas é um erro.

Em toda parte, na Europa, encontrei os fatos vivos das castas medievais e da estática ordem social medieval. Vi-os resistindo, e resistindo encarniçadamente, à liberdade individual e à revolução industrial.

É impossível conhecer a França sem saber que os franceses têm necessidade de ordem, disciplina, da limitação das formas tradicionais, da regulação burocrática das vidas humanas por um poder policial centralizado e que a impetuosa democracia francesa não é um grito pela liberdade individual, mas uma insistência de que as classes mais altas não explorem tão severamente as classes mais baixas.

Vi, na Alemanha e na Áustria, ovelhas espalhadas e sem liderança, correndo de um lado para outro, sentindo falta da segurança perdida do rebanho e do pastor.

Resistindo passo a passo, fui finalmente obrigada a admitir a meus amigos italianos que havia visto o espírito da Itália reviver sob Mussolini. E parecia-me que esse reflorescimento baseava-se na separação entre a liberdade individual e a revolução industrial, cuja causa e origem era a liberdade individual. Disse que na Itália, assim como na Rússia, uma ordem econômica controlada, planejada e essencialmente medieval estava colhendo os frutos da revolução industrial enquanto destruía sua raiz, a liberdade do indivíduo.

– Por que você quer falar sobre os direitos dos indivíduos! – explicavam os italianos, impacientes afinal. – Um indivíduo não é nada. Como indivíduos, não temos importância nenhuma. Vou morrer, você vai morrer, milhões vão viver e morrer, mas a Itália nunca morre. A Itália é importante. Nada importa, exceto a Itália.

Essa rejeição do eu como um indivíduo era, eu sabia, o espírito que animava os membros do Partido Comunista. Eu ouvia que era o espírito que começava a animar a Rússia. Era o espírito do fascismo, o espírito que indubitavelmente reviveu a Itália. Dezenas, centenas de pequenos incidentes revelavam isso.

Em 1920, a Itália era um pulgueiro de mendigos e ladrões. Eles caíam sobre o estrangeiro e o devoravam. Não havia momento em que a bagagem pudesse ser deixada desguardada; toda conta era cobrada a mais; e nenhum serviço, por menor que fosse, deixava de vir acompanhado da conta; os táxis desviavam para ruas sem movimento e os barcos paravam no meio do caminho para os navios, para que os motoristas e barqueiros pudessem, pelo medo, forçar os tímidos passageiros a pagar duas vezes. Cada passo na Itália era uma discussão e uma briga.

Em 1927, meu carro quebrou depois do anoitecer, na beira de uma pequena aldeia italiana. Três homens – um garçom, um foguista e um chofer uniformizado de viajantes ricos que dormiam na estalagem – trabalharam a noite toda no motor. Quando começou a funcionar suavemente no gelado amanhecer, os três se recusaram a aceitar qualquer pagamento. Americanos numa situação semelhante teriam recusado por cordialidade humana e orgulho pessoal. Os italianos diziam firmemente:  – No, signora. Fizemos pela Itália. – Isso era típico. Os italianos não estavam mais centrados em si mesmos, mas naquela criação mítica de sua imaginação em que despejavam suas vidas: a Itália, a Itália imortal.

Comecei finalmente a questionar o valor dessa liberdade pessoal que me parecera tão inerentemente correto. Via como era raro, como era novo o reconhecimento dos direitos humanos. Da Bretanha até Basra, refleti sobre as ruínas das civilizações brilhantes onde povos jamais vislumbraram a ideia de que os homens nascem livres. Em sessenta séculos de história humana, essa ideia foi um elemento da fé religiosa judaica, cristã e muçulmana, mas nunca tinha sido usada como um princípio político.

Era um princípio político apenas para uns poucos homens na terra, havia menos de dois séculos. A Ásia não a conhecia. A África não a conhecia. A Europa nunca a aceitou completamente e agora a estava repelindo.

sábado, 15 de dezembro de 2012

Quero Liberdade (cap. IV), de Rose Wilder Lane


IV

Na Rússia, então, nossa esperança tinha se realizado; a revolução econômica tinha acontecido. O Partido Comunista capturara o poder com o grito: “Todo poder aos conselhos!”

O capitalismo de estado da Rússia e as tímidas tentativas de livre empresa foram destruídos e o povo controlava a riqueza nacional. Ou melhor: na realidade, um homem sincero e extremamente capaz – Lênin – estava no poder, devotado à estupenda tarefa de reduzir multidões de seres humanos à ordem econômica eficiente, o que esse homem e seus seguidores honestamente acreditavam que fosse o máximo bem-estar material daquelas multidões.

E o que eu via não era uma extensão da liberdade humana, mas o estabelecimento da tirania numa base nova, amplamente estendida e mais profunda.

A novidade histórica do governo soviético era sua razão de ser. Outros governos existiam para manter a paz entre seus súditos ou para arrecadar dinheiro deles ou para usá-los no comércio e na guerra para a glória dos homens que os governavam. Mas o governo soviético existia para fazer o bem a seu povo, quer ele gostasse disso ou não.

E eu sentia que, de todas as tiranias às quais os homens foram submetidos, aquela tirania seria a mais implacável e a mais dolorosa de suportar. Existe algum refúgio para a liberdade sob outras tiranias, uma vez que são menos completas e não são tão armadas de virtude sem remorsos. Mas eu não conseguia identificar nenhum tipo de refúgio contra a benevolência no poder econômico.

Todos os relatos sobre a União Soviética que ouvi desde então confirmaram essa opinião. E ouço apenas relatos dos seus amigos, já que acredito que os comunistas são quem melhor entende o que ocorre lá.

Há vinte e sete anos, os homens que dirigem o país labutam prodigiosamente para criar precisamente a sociedade com a qual sonhamos: uma sociedade em que a insegurança, a pobreza e a desigualdade econômica são impossíveis.

Por esse fim, suprimiram a liberdade pessoal; liberdade de movimento, de escolha do trabalho, liberdade de manifestação pessoal no modo de vida, liberdade de expressão, liberdade de consciência.

Dado seu objetivo, não vejo como poderiam ter feito diferente. A extração de comida da terra e do mar, a produção de bens a partir de matérias-primas reunidas, e seu armazenamento, troca, transporte, distribuição e consumo por vastas multidões de seres humanos são atividades tão intricadamente inter-relacionadas e interdependentes que o controle eficiente de qualquer parte delas exige o controle do todo. Nenhum homem pode controlar multidões de homens assim sem coerção e essa coerção precisa aumentar com o tempo.

Precisa aumentar, porque os seres humanos são naturalmente diversos. É da natureza humana fazer a mesma coisa de maneiras diferentes, perder tempo e energia mudando a forma das coisas, experimentar, inventar, cometer erros, abandonar o passado numa variedade infinita de direções. Plantas e animais repetem a rotina, mas homens que não são reprimidos irão ao futuro como exploradores de um novo país e a exploração é sempre perdulária. Grandes quantidades de exploradores não conseguem nada e muitos se perdem. A coerção econômica é, portanto, constantemente ameaçada pela obstinação humana. Ela precisa constantemente superar essa obstinação, esmagar todos os impulsos de egotismo e independência, destruir a variedade de desejos e comportamentos humanos. O poder econômico centralizado, esforçando-se por planejar e controlar os processos econômicos de uma nação moderna, existe sob a necessidade ou de fracassar ou de se tornar o poder absoluto sobre cada área da vida humana.

Não importa o que acontece aos indivíduos – diz o comunista. – O indivíduo não é nada. A única coisa que importa é o Estado coletivista.

A esperança comunista de igualdade econômica na União Soviética repousa hoje na morte de todos os homens e mulheres que são indivíduos. Uma nova geração, eles me dizem, já está sendo forjada e educada assim, de maneira que está sendo criada de fato uma massa humana; milhões de homens e mulheres jovens que possuem, de verdade, a psicologia de uma colmeia de abelhas, de um formigueiro.

Isso não me parece tão inacreditável quanto já pareceu. Pode já existir uma colmeia humana na Rússia. Não seria a única na história; existiu Esparta.

Existiu Esparta, imutável em suas rígidas formas de comportamento e pensamento padronizados, até que foi destruída por um inimigo externo. Existe a colmeia de abelhas, estática, imutável através de incontáveis gerações de indivíduos que repetem incessantemente o mesmo padrão de ações devotadas ao bem de todos. Se não há progresso na vida, isso não é vida; é um tipo de morte animada e respirando.http://www.libertarianismo.org/index.php/biblioteca/234-rose-wilder-lane/1074-quero-liberdade

sábado, 8 de dezembro de 2012

Terminei de ler "À Sombra das Moças em Flor"

Desde o ano passado, estou lendo pela segunda vez "Em Busca do Tempo Perdido", de Marcel Proust. Terminei agora o segundo volume, "À Sombra das Moças em Flor". Não é uma leitura fácil, não dá para ler em qualquer lugar, com barulho ou de maneira apressada. Porém, é muito recompensadora. Os personagens são muito bem construídos, as situações são interessantes, engraçadas, e o livro apresenta uma rica visão filosófica da vida e da condição humana. Entre os temas trabalhados por Proust estão o impacto das revoluções tecnológicas na vida das pessoas (a fotografia, o telefone, o automóvel, o avião) e o sentido da arte. Recomendo muitíssimo.

Aqui vai mais um trecho, do final do segundo volume:

"E, em suma, é uma forma como outra qualquer de resolver o problema da existência, o de aproximar bastante as coisas e as pessoas que de longe nos pareceram belas e misteriosas, para nos darmos conta de que não têm mistério nem beleza; é uma das higienes entre as quais se pode optar, uma higiene que talvez não seja muito recomendável, mas que nos proporciona uma certa calma para passar a vida e também para nos resignarmos à morte, uma vez que nos permite não lamentar coisa alguma, convencendo-nos que alcançamos o melhor e que o melhor não é grande coisa."

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

Quero Liberdade (cap. III), de Rose Wilder Lane

III

A imagem da revolução econômica como o passo final para a liberdade se mostrou falsa tão logo eu me fiz essa pergunta. Porque, na realidade, o Estado e o Governo não podem existir. São conceitos abstratos, suficientemente úteis em seus lugares, como a teoria dos números negativos é útil na matemática. Na experiência real vivida, entretanto, é impossível subtrair alguma coisa de nada; quando uma bolsa está vazia, está vazia. Não pode conter menos dez dólares. Nesse mesmo plano de realidade, não existe Estado, não existe Governo. O que existe de fato é um homem, ou alguns homens, no poder sobre muitos outros homens.

A Reforma reduziu o poder do Estado – os padres – de maneira que o homem comum passou a ser livre para pensar e falar como quisesse. A revolução política reduziu ou destruiu o poder do Estado – os reis – de maneira que o homem comum ficou mais próximo de ser livre para fazer o que quisesse. Mas esta revolução econômica concentrava o poder econômico nas mãos do Estado – os comissários – de maneira que a vida e os meios de subsistência do homem comum estavam outra vez dominados por ditadores.

Todos os avanços na direção da liberdade pessoal que haviam sido ganhos pela revolução religiosa e pela revolução política foram perdidos pela reação econômica coletivista.

Quando analisei esses fatos, vi que não podia ser de outra maneira. A aldeia comunista era possível porque lá uns poucos homens, cara a cara, lutavam cada um por seu interesse próprio, até que daquele conflito se chegasse a um equilíbrio razoavelmente satisfatório. A mesma coisa acontece dentro de toda família. Mas o governo de centenas de milhões de homens é outra coisa. O tempo e o espaço impedem uma luta pessoal de tantas vontades, cada pessoa em um encontro pessoal com cada outra, chegando a uma decisão comum. O governo de multidões de homens fica necessariamente nas mãos de poucos.

Os americanos criticavam Lênin porque ele não estabeleceu uma república. Se ele tivesse feito isso, o fato de que poucos homens governavam a Rússia não teria mudado.

O governo representativo não pode expressar a vontade da massa de pessoas porque não existe massa de pessoas. O Povo é uma ficção, assim como o Estado. Não se consegue obter a Vontade da Massa, mesmo entre uma dúzia de pessoas que querem fazer um piquenique. A única massa humana com uma vontade comum é uma turba e essa vontade é uma insanidade temporária. Na realidade, a população de um país é uma multidão de seres humanos diferentes com uma infinita variedade de objetivos e desejos e vontades flutuantes.

Numa república, essa população decide de tempos em tempos, por maioria, qual dos candidatos a um cargo público poderá usar o poder de polícia do Estado. De tempos em tempos, uma ação da maioria pode mudar os métodos pelos quais os homens chegam ao poder, a extensão desse poder ou em que termos eles podem mantê-lo. Mas a maioria não governa; não pode governar; no máximo, age como um freio sobre os governantes. Qualquer governo de multidões de homens, em qualquer lugar, em qualquer tempo, necessariamente é um homem ou uns poucos homens no poder. Não há como escapar desse fato.

Uma república não é possível na União Soviética porque o objetivo de seus governantes é econômico. O poder econômico é diferente do poder político.

A política é uma questão de princípios gerais que, uma vez adotados, podem permanecer inalterados indefinidamente; princípios como, por exemplo, de que o governo deriva seus justos poderes do consentimento dos governados. Desses princípios são extraídas regras gerais, como “No taxation without representation1. Essas regras são encarnadas na legislação que restringe ou limita o poder político, como: “O direito exclusivo de cobrar impostos pertence ao Congresso e apenas o Congresso pode gastar o dinheiro recolhido de impostos”. Esta aplicação mais concreta do princípio político não afeta os detalhes íntimos da vida do indivíduo. Podemos descuidadamente permitir que o Congresso faça o que bem entender, podemos deixar de reagir quando ele quiser tomar uma medida que nos afeta, podemos resmungar quando temos de tomar um empréstimo para pagar os impostos ou podemos perder nossa casa ou fazenda se não conseguirmos e, mesmo assim, a liberdade pessoal de escolha ainda é nossa.

A economia, entretanto, não se preocupa com princípios abstratos e leis gerais, mas com coisas materiais; trata diretamente com vagões reais carregados de carvão, colheitas reais de grãos, produção real de fábricas. O poder econômico em ação está sujeito a uma infinidade de crises imprevisíveis que afetam as coisas materiais; está sujeito às secas, a tempestades, a enchentes, a terremotos e pestes, à moda, a doenças, a insetos, a falhas mecânicas e ao desgaste do maquinário. E a economia participa dos pequenos detalhes da existência de uma pessoa – sua alimentação, bebida, trabalho, diversão e hábitos pessoais.

Governantes econômicos devem decidir sobre questões como: quantos metros de tecido devem ser usados num vestido de mulher? Batons devem ser permitidos? Existe valor econômico no chiclete? Há um ponto de vista perfeitamente válido segundo o qual toda a indústria de fumo é um desperdício econômico.

Todo o sistema de circulação da economia é afetado pelo número de pessoas que lavam atrás das orelhas. Esse assunto tão pessoal afeta a importação e produção de óleos vegetais; o uso de gordura de animais de fazenda; a manufatura de produtos químicos: perfumes, corantes; a construção ou o fechamento de fábricas de sabão, com consequentes mudanças no emprego nessas fábricas e no negócio da construção civil e indústrias pesadas e na demanda por matérias-primas e por trabalho na sua produção; e nos fretes e no uso de combustíveis, com seus efeitos sobre minas, campos de petróleo e transportes. Já falamos do sabão. Considere agora as toalhas de rosto que podem ou não ser usadas para lavar atrás das orelhas, com todos os efeitos dessa decisão sobre plantações de algodão ou linho e o trabalho, no campo e nas fábricas; descaroçadores de algodão e seus subprodutos das sementes de algodão: óleo, fertilizante ou alimento para o gado; e máquinas de fiação e tecelagem e suas demandas sobre a indústria do aço.

Todos esses fatores econômicos, e muitos outros, mudam se os hábitos pessoais de higiene mudam. Uma dieta de Hollywood ou uma paixão por quebra-cabeças têm resultados prodigiosos nos lugares mais remotos e inesperados. O fato de a criança, faminta ao voltar da escola, comer pão com manteiga ou doces é um assunto de importância econômica internacional.

O controle centralizado da economia sobre multidões de seres humanos precisa, portanto, ser contínuo e flexível de uma maneira sobre-humana, além de ser autocrático. Um governo assim precisa de um fluxo rápido de decretos emitidos apressadamente para responder em tempo a eventos que somem no passado, antes que possam ser relatados, organizados, analisados e considerados e será obrigado a usar a coerção. No esforço de ser bem-sucedido, o controle terá de se tornar rigoroso e minucioso sobre pequenos detalhes da vida individual, de uma maneira que ninguém aceitaria sem coerção. Não pode ser submetido a verificações, revogações e remoções de pessoas no poder que as maiorias podem provocar nas repúblicas.

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Quero Liberdade (cap. II), de Rose Wilder Lane

II

Eu estava na Rússia transcaucasiana na ocasião, bebendo chá com cerejas em conserva e tentando segurar ao mesmo tempo uma pelota de açúcar entre os dentes. É difícil. Minha roliça anfitriã russa e seu marido tranquilo, de barba dourada, sorriam para mim e algumas crianças de bochechas redondas fitavam maravilhadas a americana. A casa deles tinha um século de idade e era charmosa. Havia imagens penduradas nas paredes grossas, mais brancas que a neve. Colchões de penas circundavam o nicho de camas do grande fogão de tijolos, que também era caiado. Todos os tecidos eram bordados. O colarinho do meu anfitrião e o vestido de sua mulher eram obras de arte. Havia uma máquina de costura americana e um orgulhoso samovar.

A aldeia era comunista, é claro. Sempre tinha sido comunista. A única fonte de riqueza era a terra e nunca tinha ocorrido a esses camponeses que a terra podia ser propriedade de alguém.

Essas planícies da Geórgia russa são muito parecidas com as de Illinois. Os russos chegaram lá como pioneiros, por volta da mesma época em que os americanos estavam entrando em Illinois. Vieram do mesmo jeito, a pé, chuchando os bois que puxavam as lentas carroças pelas pradarias sem estradas. Diligentes, frugais, afáveis e eminentemente sensatos, os russos avançaram em grupos, se estabeleceram em aldeias, cultivaram a boa terra em comum e prosperaram.

Em Illinois, todo colono pagou pela sua terra. Não havia terra de graça para os americanos até 1862. Na Rússia, a terra era de graça. Cada aldeia cultivava tanto quanto precisasse. Dentro da aldeia, cada família cultivava uma área pré-determinada. Quando, no curso dos eventos naturais, o tamanho das famílias se alterava de maneira que a divisão de terras não mais fosse satisfatória, todos os camponeses se reuniam e discutiam uma nova divisão. Isso acontecia a cada mais ou menos dez anos, dependendo dos nascimentos, casamentos e mortes.

Essas pessoas nunca foram oprimidas por donos de terras; a maioria deles não tinha conhecido donos de terras e nenhum tinha tido qualquer contato real com o governo do czar. Estavam acostumados a pagar a um coletor de impostos, uma vez por ano, no outono, um décimo da produção anual dos campos de grãos. O coletor vinha a cavalo pela planície, recolhia os impostos em carros de boi e ia embora. Os rapazes ocasionalmente iam para a guerra, normalmente alguma pequena guerra particular contra uma aldeia tártara. A maioria desses russos era de cristãos primitivos, contrários à guerra; eles haviam vindo ou sido obrigados a sair da antiga Rússia por que não mandariam seus filhos para os exércitos do czar. Mas depois de um século, sua oposição havia se enfraquecido; os jovens às vezes tinham disposição suficiente para se alistar para a guerra. Assim, ocasionalmente, um militar cavalgava até a aldeia, alguns jovens iam embora com ele e, quando alguns retornavam meses ou anos depois, traziam notícias de onde haviam estado e o que haviam feito e visto.

Tinha diante de mim o espetáculo de um país virgem, terra de graça, solo rico, para onde os pioneiros tinham levado o comunismo. Eles viviam lá havia cem anos, sem serem perturbados. Encontrei entre esses camponeses muitos velhos que me perguntavam o que tinha acontecido em meu país quando morreu o czar do mundo. Encontrei jovens que tinham estado em campos alemães de prisioneiros, e que explicavam aos vizinhos de olhos arregalados que eu vinha da América, uma terra fabulosa onde você podia escrever uma carta e pedir qualquer coisa – comida, cigarros, meias, fósforos, açúcar, até um casaco – e chegaria.

E eles não eram estúpidos, de maneira nenhuma. Eram os melhores fazendeiros e criadores de gado, eram bons mecânicos; as mulheres eram ótimas donas de casa e cozinheiras. Tinham mente aberta e gostavam de fazer experiências. Uma aldeia tinha contratado um suíço, por um bom salário, e construído um chalé suíço para ele e sua família; sua tarefa era melhorar a raça de vacas leiteiras e produzir queijo na fábrica da aldeia. Havia uma aldeia de duas milhas de comprimento e uma rua de largura, iluminada por eletricidade da usina elétrica da aldeia; as mulheres de lá não lavavam a roupa no rio, mas numa lavanderia comunitária.

A colheita tinha sido boa naquele ano; o gado estava gordo, os celeiros transbordavam, e em todos os sótãos havia pilhas de abóboras vermelho-douradas. É claro que não havia mendigos no vilarejo. Todos trabalhavam e – se o clima permitisse – qualquer um que trabalhasse era alimentado com abundância. Nenhum comunista poderia ter desejado uma prova melhor do valor prático do comunismo que o próspero bem-estar daqueles aldeões.

Os bolcheviques estavam no poder havia cerca de quatro anos e os impostos na aldeia não haviam subido, nem os jovens haviam sido convocados ao exército em maior quantidade que durante o regime do czar. Essas aldeias dependiam muito pouco de Tiflis, a cidade mais próxima, mas até Tiflis estava então revivendo por causa da NEP, a Nova Política Econômica de Lênin, uma pausa temporária para o capitalismo respirar.

Meu anfitrião me deixou perplexa com a força com que disse que não gostava do novo governo. Eu mal podia acreditar que alguém que foi comunista a vida toda, com abundantes provas do sucesso do comunismo em volta de nós, se opunha a um governo comunista. Ele repetia que não gostava dele: – Não! Não!

Sua queixa era a interferência governamental nos assuntos da aldeia. Ele protestava contra a burocracia crescente que estava tirando mais e mais homens do trabalho produtivo. Ele previa caos e sofrimento resultantes da centralização do poder econômico em Moscou. Não eram suas palavras, mas era o que ele queria dizer.

Isto, eu disse a mim mesma, é a oposição de uma mente camponesa a novas ideias, grandes demais para o seu entendimento. É minha pequena oportunidade de espalhar um pouco de luz. Eu compreendia um pouco de russo, mas não podia falar bem e, com a ajuda do meu intérprete, expliquei em palavras simples o paralelo entre as terras da aldeia, como fontes de riqueza, e todas as fontes de riqueza. Desenhei para ele uma figura da Grande Rússia, até seus cantos mais remotos, desfrutando a igualdade, a paz e a prosperidade dividida com justiça que existiam na sua aldeia. Ele balançou a cabeça com tristeza.

– É grande demais – ele disse. – Grande demais. E o topo é pequeno demais. Não vai funcionar. Em Moscou há apenas homens e o homem não é Deus. Um homem só tem uma cabeça de homem e cem cabeças juntas não fazem uma grande cabeça. Não. Só Deus pode ter a Rússia inteira em sua mente.

Um ocidental entre russos frequentemente acha que eles são todos meio loucos. Em outros momentos, seu misticismo se parece com puro bom senso. É bem verdade que muitas cabeças não fazem uma grande cabeça; na verdade, fazem uma sessão do Congresso. O que então, perguntei atordoada a mim mesma, é o Estado? O Estado Comunista – ele existe? Ele pode existir?

Hoje, gostaria de saber se aquela casa ancestral e aquela aldeia já foram varridas do solo da Rússia para dar lugar à fazenda comunal, cultivada em três turnos diários de oito horas, arada por tratores e com a colheita feita por colheitadeiras, iluminada à noite por enormes refletores. Será que meu anfitrião e sua esposa comem num salão de jantar comunal e dormem em barracas comunais agora?

Certamente, o padrão de vida deles era primitivo. Em cem anos, não havia mudado. Eles não tinham luz elétrica nem encanamento. Tomavam banho, suponho, uma vez por semana na casa de banho da aldeia e talvez isso não fosse higiênico. Quantos germes havia na água que eles bebiam ninguém sabia. Não havia tela em suas janelas. Suas estradas poeirentas viravam sem dúvida um lamaçal sem fundo no tempo chuvoso. Não tinham automóveis nem cavalos; apenas carros de boi. Seu padrão de vida, numa palavra, era o mesmo daqueles pioneiros de Illinois de cem anos atrás. Possivelmente, seu padrão de vida já subiu. Deve vir um tempo em que todo dente na Rússia seja escovado três vezes ao dia e toda criança alimentada com espinafre.

Mas, se isso for feito com o povo da antiga Rússia, não será feito por eles, mas para eles. E quem o fará? O Estado?

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