sábado, 30 de novembro de 2013

O Deus da Máquina, capítulo XV

O capítulo XV de O Deus da Máquina (As Emendas Fatais) descreve como sucessivas emendas à Constituição dos Estados Unidos foram gradativamente desvirtuando os princípios estabelecidos pelos Founding Fathers.

A Décima Primeira Emenda proibiu que um Estado fosse contestado na justiça por cidadãos de outros Estados. A Décima Terceira Emenda é a única que Isabel Paterson considera realmente benéfica: aboliu a escravidão. A Décima Quarta confirmou a cidadania federal e os direitos civis dos cidadãos por toda a União, mas isso foi feito apelando-se para um subterfúgio perigoso. É uma das partes da Constituição que dá mais origem a litígios, sendo a base da decisão sobre o aborto em 1973, no caso Roe v. Wade e também da confirmação da eleição de Bush em 2000, no caso Bush v. Gore.

A Décima Quinta Emenda tirou dos Estados o poder de determinar as qualificações dos seus eleitores. A justificativa para isso é que os Estados do sul não davam aos negros o direito ao voto. Isabel afirma que, embora seja evidente que esse critério era imoral e absurdo, tirar dos Estados essa prerrogativa fez com que eles deixassem de existir como entidades políticas.

O golpe final para desconstituir os Estados foi a Décima Sétima Emenda, que que tirou a eleição dos senadores da Legislatura Estadual e a passou para o voto popular. Isabel diz que, desde então, os Estados não têm mais ligação com o governo federal.

As Emendas Fatais

O Deus da Máquina, capítulo XV
As Emendas Fatais
Isabel Paterson

Os Estados Unidos são a Era do Dínamo. Quando levaram o axioma do livre arbítrio da doutrina religiosa para a doutrina política, um Niágara de energia cinética foi liberado. O fluxo crescente precisa da máxima firmeza das bases, de força elástica na estrutura e que a ação e a forma sejam tão pouco obstrutivas quanto possível. Infelizmente, com exceção de duas, cada alteração na Constituição depois do Bill of Rights1 foi um retrocesso.

O teste pode ser aplicado a qualquer emenda por estas perguntas simples: A emenda nega direitos do indivíduo? Enfraquece as bases, debilitando os estados como entidades políticas? Aumenta o peso bruto ou contribui para uma distribuição imprópria do peso da superestrutura? Se a resposta para qualquer dessas perguntas for positiva, a emenda transforma a operação benéfica do sistema de alta energia em um perigo de igual magnitude.

Além disso, todos esses efeitos perniciosos interagem; uma emenda pode causar um duplo dano; e um prejuízo pode ensejar ou servir de pretexto para outro. Conforme a estrutura racha, cede ou treme, desorganizando a economia privada, o ataque alternado dos fervorosos emendadores será mais furioso. Há um aumento progressivo na frequência cronológica de emendas à Constituição. E as consequências finais são combinadas e cumulativas, mostrando seu resultado de uma vez, depois de um lapso de tempo, num desmoronamento geral. A situação também é agravada por um desvirtuamento simultâneo em decisões judiciais e por extensões do poder político por simples usurpação. Um ato de sedição é um exemplo dessa usurpação; não há autoridade para ele na Constituição. Houve protestos raivosos na primeira ocasião; hoje, é aceito casualmente, quase sem comentários, exceto pelas sugestões de ampliá-lo, frequentemente sob o comando dos supostos “liberais”.

Uma usurpação inicial há muito tempo esquecida, porém ainda em vigor, fez efeito depois de mais de um século, em 1933, com o confisco da propriedade privada em ouro. Quando John Jay era presidente da Suprema Corte, o primeiro a ocupar esse cargo e um dos autores de O Federalista, profundo conhecedor da natureza da Constituição, deu um veredito sustentando o direito do cidadão de processar o governo. Jay disse que a teoria, a origem e forma de governo dos Estados Unidos discordavam da ideia europeia sobre a questão do direito precedente do cidadão sobre o estado. Pela teoria americana, disse Jay, o governo é o agente do cidadão, tendo apenas autoridade delegada; e é absurdo sustentar que uma pessoa não possa processar seu agente. Depois disso, a posição de Jay foi vencida, embora não possa ser refutada. Mas, desde então, o cidadão ficou à mercê do governo nos Estados Unidos como se fosse súdito de um rei; não pode nem pleitear a reparação de injustiças do governo contra ele, sem permissão. E exatamente a primeira emenda (Artigo XI) depois do Bill of Rights estendeu essa prerrogativa usurpada aos diversos estados contra os cidadãos de outros estados. A emenda seguinte (XII) é técnica.

Sessenta e dois anos se passaram sem outras alterações, até que a única emenda benéfica foi criada, a Décima Terceira, que limita o poder político ao proibir a escravidão. A Décima Quarta Emenda confirmou a cidadania federal e os direitos civis dos cidadãos por toda a União. Mas teria sido melhor se o Bill of Rights tivesse sido explicitamente estendido para se aplicar aos governos estaduais. Se fosse dessa maneira, diversas questões posteriores não teriam sido encaminhadas a “poderes implícitos”, um subterfúgio ignóbil e perigoso.

A Décima Quinta Emenda perpetuou definitivamente o dano causado pelo Ato de Reconstrução. Privou os estados de um atributo indispensável de soberania, o poder exclusivo de determinar as qualificações dos eleitores, originalmente reservado a eles pela Constituição.

Qual o uso adequado de um poder necessário e qual a agência adequada para seu uso são questões inteiramente diferentes. O controle das fronteiras externas da nação pertence acertadamente ao governo federal, que é a organização que representa a extensão territorial plena. O governo federal claramente já praticou discriminação racial nas cotas de entrada. A regra adotada era moralmente errada; seria injustificável até para rejeitar refugiados. As grandes nações sempre foram liberais na admissão de pessoas. Contudo, é necessário que o governo federal tenha o poder sobre as fronteiras; caso contrário, a nação não continuaria existindo.

Para formar uma federação verdadeira e funcional, os estados componentes devem ceder o atributo da soberania sobre as fronteiras. Mas devem reter o controle legítimo sobre a admissão ao corpo político do estado, para se preservar como entidades políticas. É o poder de conceder o direito ao voto. Raça, cor da pele ou condição prévia de servidão são irrelevantes. Não deveriam desqualificar ninguém. As qualificações corretas são o local de residência, a lealdade e a propriedade real. Só se pode encontrar um princípio moral nesses requisitos. Se o direito ao voto exige alguma qualificação, ele é claramente condicional, não absoluto. Desde que as condições sejam práticas, elas devem se relacionar à função do instrumento. A ação é de extensão medida a partir de uma base permanente, portanto deve estar ligada à propriedade imóvel local. Capital líquido não serve.2 Essas qualificações são morais e materiais, estando todas dentro da competência do indivíduo; uma pessoa responsável pode atendê-las por sua própria escolha e seus próprios esforços. Mas é absolutamente necessário que o poder de designar as qualificações pertença aos estados. Se o governo federal tem o poder de determinar ou alterar qualquer detalhe, mesmo que negativamente, passa a ter o pleno poder final de determinar todos os requisitos a partir dos detalhes. E um defeito espalhado por toda a estrutura é muito mais grave que um erro localizado.

A interferência neste caso é por decomposição. Passaram-se quarenta anos antes que a decomposição das bases se tornasse totalmente visível; mas isso viabilizou o ataque seguinte, quando uma função nacional foi anulada, pela emenda do imposto de renda. Anteriormente, nenhum imposto direto ou pessoal podia ser estabelecido, exceto em proporção à população. Então, a ação seria equiparada em cada eleitor e representante. Se um imposto fosse proposto, cada um saberia que teria de pagar uma parcela proporcional; enquanto que, se alguma região fosse receber uma parcela extra de gastos (como em obras num rio ou num porto), sua influência seria muito maior que a de outras áreas. A inércia de massa é a função estabilizadora; é inerente a qualquer material pesado; mas é mais bem entendida quando fornecida separadamente, como em lastro. O peso (gravidade) é a força; seu uso está em relação constante com um centro de gravidade. Quando o interesse de cada eleitor deve ser praticamente o mesmo, o centro de gravidade é constante, mesmo que as partículas de lastro sejam móveis. Mas quando o governo federal passou a poder extrair impostos de um estado rico de maneira desproporcional à população para subornar um estado pobre com gastos desproporcionais à população, o equilíbrio desapareceu. O veto de inércia-massa se perdeu. (O peso, o interesse, a partir daí passou a ser um fator de desequilíbrio, como lastro líquido não compartimentado oscilando de um lado para outro, massa deslocada.)

Provavelmente, a maioria das pessoas não compreendeu que essas relações foram alteradas. Pensaram apenas, em termos simples, em taxar os ricos, talvez com uma expectativa vaga e infantil de que as receitas seriam “dadas aos pobres”. O dinheiro obtido dos ricos de qualquer forma que não seja salários nunca é dado aos pobres. Se for tomado por um assaltante comum, vai para o assaltante. Se for tomado por uma organização filantrópica, vai para a organização. Se for tomado pelo governo, vai para os políticos. O aumento da taxação dos ricos nem mesmo diminui a taxação dos pobres; acaba aumentando toda a taxação, expandindo-se gradualmente até que exproprie uma porção não apenas do último dólar de um homem pobre, mas do primeiro dólar que ele consiga ganhar. O imposto terá de ser pago antes mesmo que ele toque em seu ganho. A taxação atual sobre os salários, precisamente descrita como “a safadeza da seguridade social”3, não poderia ter sido imposta de acordo com a Constituição original; só é validada pela emenda do imposto de renda. Não há meios pelos quais “os ricos” possam ser taxados sem que isso acabe taxando “os pobres” de maneira muito mais pesada. E um imposto tende a aumentar todos os outros impostos, em vez de diminuí-los, porque os gastos governamentais vão para coisas que exigem manutenção e não geram retorno (edifícios públicos e empregos políticos). A energia cinética é convertida em formas estáticas, que então necessitam do desvio de mais energia cinética para carregar o peso morto.

O golpe formal e final para desconstituir os estados foi a Décima Sétima Emenda, que tirou a eleição dos senadores da Legislatura Estadual e a passou para o voto popular. Desde então, os estados não têm mais ligação com o governo federal; a representação em ambas as Casas do Congresso se apoia apenas na massa deslocada. A abdicação simultânea de ambas as Casas em 1933 foi o resultado. Elas não foram separadas à força, nem mesmo se desmantelaram, porque já não tinham nenhuma relação estrutural nem com a massa, nem entre si, nem com a superestrutura. Simplesmente, tinham parado de funcionar. O aparecimento imediato de uma burocracia imensa foi o fenômeno natural de uma nação sem estrutura.

Ao mesmo tempo e pela interação com esses eventos políticos, a economia produtiva foi distorcida e a energia desviada para o canal político. A Guerra Civil precipitou a sequência. A pilhagem dos estados sulistas derrotados (sob o comando de filantropos, como sempre em colaboração com trapaceiros), foi particularmente prejudicial porque o poder político procurou legitimar atos de extorsão. Canalhas eram imunes dentro da lei, enquanto homens honestos foram forçados a retroceder para modos de associação pré-legais primitivos: o chefe, o conselho informal e a posse comitatus.4 Não havia governo, apenas força. O controle moral havia sido desconectado. As pessoas continuavam vivendo pela ordem moral; não poderiam sobreviver de outra maneira. Mas a antiga e errônea identificação do governo com a força se tornou plausível novamente. Da mesma maneira, a política se tornou lucrativa.

De maneira geral, até a Guerra Civil, qualquer homem que desejasse honras políticas esperaria consegui-las à custa de perdas financeiras; vivia por seus meios privados. Apenas quando essa condição prevalece é que homens de inteligência, integridade e bom gosto — o caráter produtivo — se inclinarão a entrar na vida pública. Lord Acton se referia ao poder político quando disse: “Todo poder corrompe e o poder absoluto corrompe absolutamente.” O poder político tem esse efeito por sua relação com a produção. O homem produtivo tem consciência de que o gasto político é uma carga sobre a produção, gasto líquido. Não gosta de viver à custa dos outros. Se for obrigado a abdicar de ganhos particulares num valor maior do que recebe como remuneração por seu cargo, mesmo que não tenha certeza de que seu trabalho vale o que ganha, saberá que não procurou o cargo como um parasita. Deve-se observar que os homens que hoje recusam pagamento por posições de governo são, sem exceção, aqueles que estiveram mais ativamente envolvidos na produção, dirigentes industriais. Os antigos “trabalhadores sociais”, políticos profissionais e pessoas com ganhos imerecidos se destacam pela ânsia com que se prendem à folha de pagamento política, ou como mudam de posição política em troca de ganhos suplementares. Não têm nenhum objetivo na vida política exceto o parasitismo. A visão parasitária da política foi formulada inconscientemente quando começou a ser ouvida a discussão de que maiores salários, mordomias, mais ostentação em prédios públicos, embaixadas e uniformes precisariam ser fornecidos para manter a dignidade do cargo. Se uma posição é considerada de acordo com seu gasto ou ostentação, obviamente a dignidade e o valor intrínsecos estão faltando. Os embaixadores que temem que, em roupas ordinárias, possam ser confundidos com garçons provavelmente têm razão. Ninguém tomaria Franklin, Adams ou Jefferson por um criado.

É dessa inversão de valores que o homem produtivo se ressente. Além disso, ele sabe que será constantemente importunado por solicitações que não tem o direito de atender, por parasitas que nunca encontraria na vida produtiva. Por isso, os melhores homens só se acham na vida pública quando é perigoso, difícil e à custa deles próprios.

O custo e a ostentação do governo são sempre inversamente proporcionais à liberdade e à prosperidade dos cidadãos, como acontecia com a nação depauperada e a monarquia grandiosa de Luís XIV. Hoje, quando nossa agricultura enfrenta sérias dificuldades, o Departamento de Agricultura cresce como um fungo monstruoso. O imenso Departamento de Comércio cresceu quando o comércio internacional definhava e o comércio interno mergulhava na depressão.

Além disso, o poder político possui um efeito catraca; só funciona em uma direção, para aumentar a si mesmo. Ocorre uma transferência pela qual o poder não pode ser retraído depois que é concedido. No exemplo mais simples, um candidato a um cargo pode prometer aos eleitores que vai reduzir os impostos ou o número de cargos ou os poderes do cargo. Mas, uma vez que é eleito, pode usar os impostos, os ocupantes dos cargos ou os poderes para garantir sua reeleição; portanto, o motivo da promessa não funciona mais. Se cortar os gastos, ou o número de cargos ou a corrupção, certamente criará inimigos. Portanto, o motivo inverso, que o impele a descumprir sua promessa, é duplicado. O eleitor pode apenas evitar reelegê-lo; mas o próximo ocupante do cargo vai encontrar esses poderes aumentados e será ainda mais difícil livrar-se deles. A dificuldade de tomar de volta poderes uma vez concedidos se mostra na abolição da Emenda da Lei Seca; embora essa medida fosse exigida e apoiada pelo sentimento avassalador dos cidadãos, o artigo de abolição continha um dispositivo que mantinha inúmeros empregos federais; foi impossível fazer uma limpeza de todo o poder pernicioso usurpado. A Emenda da Lei Seca é uma afirmação de governo absoluto, a indicação da completa decomposição do corpo político. A emenda do “pato manco”5 é uma trivialidade que indica apenas a degradação da carta, um rabisco à margem.


1 O Bill of Rights é integralmente parte da Constituição original, sendo “o preço da ratificação”. É uma salvaguarda, em itens, de direitos do indivíduo e da soberania dos estados. A única objeção contra ele, na ocasião, foi que a enumeração de direitos individuais poderia ser interpretada como a limitação dos direitos aos pontos nomeados ou como uma afirmação de que o direito primário do indivíduo não é abrangente — a ideia europeia de “liberdades”, em vez da liberdade americana. O argumento parecia forçado; foi, na verdade, premonitório, porque ultimamente aquela exata perversão vem sendo proposta, numa paródia barata, com as expressões “liberdade da necessidade”, “liberdade do medo”, etc. Entretanto, é impossível criar um instrumento totalmente seguro e o Bill of Rights vem funcionando admiravelmente em sua aplicação prática. (N. da A.)
2 A propriedade e residência numa cabana de madeira com uma horta de batatas é uma qualificação legítima para o voto, enquanto a propriedade de todas as ações da Standard Oil Company não é. (N. da A.)
3 Em inglês, “the Social Security swindle”. (N. do T.)
4 Posse comitatus: Autoridade estabelecida pelo direito comum (common law) que permite que um xerife convoque qualquer cidadão fisicamente habilitado para auxiliá-lo a manter a paz ou capturar um criminoso. (N. do T.)
5 Emenda do pato manco: a Vigésima Emenda à Constituição dos Estados Unidos mudou o início e o final dos mandatos do presidente e do vice-presidente de 4 de março para 20 de janeiro e dos membros do Congresso de 4 de março para 3 de janeiro. O presidente em final de mandato é conhecido como “pato manco” (lame duck). (N. do T.)

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

O Cavalo e Seu Menino, de C. S. Lewis

Terminei de ler, com a minha filha, O Cavalo e Seu Menino, de C. S. Lewis. É o quinto livro de Crônicas de Nárnia que lemos juntos.

É difícil descrever o quanto é especial a experiência de ler com ela. Às vezes, ela se empolga com a história. Às vezes, faz exatamente a pergunta que um personagem vai fazer. Às vezes, para entender melhor uma situação, tenta imitar como seria o gesto, o salto, a dança dos personagens. A imaginação, o vocabulário, a cultura se enriquecem.

E o texto das Crônicas de Nárnia é cheio de questionamentos morais. Essa atitude é boa ou ruim? Qual a motivação desse personagem? Os heróis de Lewis têm fraquezas, erram, julgam-se melhores do que são. São oportunidades para refletirmos.


Não preciso concordar sempre com o autor. Se ele pensa uma coisa e eu penso o contrário, isso também é motivo para conversar com minha filha. Não sou perfeito, o autor não é perfeito, ninguém é perfeito.

O enredo não importa muito. Crianças, animais falantes, fugas, travessias, batalhas. O que importa realmente é o fato de vivermos juntos essas aventuras.

sábado, 23 de novembro de 2013

O Deus da Máquina, capítulo XIV


O capítulo XIV de O Deus da Máquina (A Virgem e o Dínamo) analisa a evolução do pensamento europeu a partir da existência das colônias na América e, posteriormente, dos Estados Unidos. Para Isabel Paterson, esses fenômenos foram profundamente mal interpretados e resultaram, num primeiro momento, na Revolução Francesa, no Terror e na explosão napoleônica. Sua manifestação plena deu-se no século XX, com o comunismo, o nazismo e a Segunda Guerra Mundial. Isabel escreve durante esse conflito.

A partir dos avanços científicos na Física e na Astronomia, os europeus regrediram para um pensamento mecanicista que havia sido suplantando pelo Cristianismo. Deus seria um matemático e Newton e Descartes seus profetas. Daí a acreditar que o homem é um mecanismo foi um passo.

Nesse ponto, houve pensadores que imaginaram que, se as restrições artificiais da sociedade fossem abolidas, o homem-mecanismo funcionaria de maneira perfeita, como foi projetado. A pergunta que esses pensadores não responderam, porque não tem resposta, foi: como um mecanismo absolutamente natural (o homem) foi capaz de desenvolver e impor a si mesmo restrições artificiais contrárias à sua natureza? Esses pensadores clamavam por um legislador supremo, um Euclides das ciências sociais, que descobriria e imporia as bases da harmonia social. Queriam um ditador. Napoleão foi a resposta. Isabel Paterson rastreia alguns precursores de Napoleão, candidatos a "déspotas esclarecidos".

Os três principais sonhos de Estado Absoluto são a "Politeia" de Platão (traduzida erroneamente como "A República"), a Utopia de Thomas More e a Terra Prometida sem nome de Marx. Isabel diz sobre eles: "Platão era um literato; seu senso artístico de forma estava inquieto e ele tentou compensar isso com um planejamento rigoroso. More era um homem inteligente e um sábio; ele rotulou sua criação francamente pelo que era: Utopia significa Lugar Nenhum. Marx era um tolo; ofereceu seu esquema como uma previsão do futuro."

Ela conclui com uma reflexão do historiador americano Henry Adams. Ele considerava que a Virgem Maria simbolizava o melhor do mundo antigo e o dínamo representava a modernidade. Qual a relação entre os dois? A resposta dela, que Adams não encontrou, é que a Virgem Maria de alguma forma representa o livre arbítrio. E, por meio dessa liberdade, o homem é capaz de perseguir seus questionamentos intelectuais e produzir invenções.

A Virgem e o Dínamo

O Deus da Máquina, capítulo XIV
A Virgem e o Dínamo
Isabel Paterson



Era certo que os Estados Unidos afetariam a mente da Europa, porque eram uma projeção da experiência e das esperanças europeias, postas à prova em supostas condições naturais, como um caso de teste contra a tradição. Os primeiros colonos trouxeram a este país suas habilidades e ferramentas, artes e letras, teologia, moral e ciência, seus costumes e leis; mas deixaram para trás quase todo o aparato de imposição das leis. Não trouxeram a economia fechada nem a religião sacramental; e a natureza fornecia recursos suficientes contra que sobrou de autoridade oficial. Podemos assumir que qualquer coisa que tenha sobrevivido por si mesma foi validada. A liberdade emergiu e triunfou.

Uma crítica sutil disse: “A Declaração da Independência tirou da Europa sua base moral”.1 A frase é perfeita; a Europa não foi colocada em uma nova base. A ideia americana jamais chegou à Europa (como, em circunstâncias semelhantes, a ideia da lei romana nunca foi compreendida na Ásia). Em vez disso, os fenômenos resultantes foram profundamente mal interpretados, acabando adaptados a uma teoria europeia divergente. As consequências físicas dessa discrepância moral se tornaram evidentes imediatamente na Revolução Francesa, com o Terror e a explosão napoleônica; mas o efeito pleno foi adiado até este século. Em um passo, os Estados Unidos causaram a atual explosão e desintegração da Europa. Nenhuma parcela desse dano foi feita por inimizade. Pelo contrário, enquanto persistiu o antagonismo indicado pela Doutrina Monroe2, a Europa tinha uma chance de se ajustar. A amizade da América, que despejou uma torrente de energia, foi fatal.

Enquanto os Estados Unidos estavam começando a existir como um punhado de colônias alegremente desprezadas, algo estranho aconteceu no pensamento europeu; por causa da ciência, ele retrocedeu ao determinismo nas esferas social e política.

O livre arbítrio como doutrina positiva era a afirmação original do Cristianismo. A morte é o único evento inevitável em toda vida humana; portanto, foi tomada pelo mundo pagão como prova definitiva de que “o destino de cada homem está marcado em sua testa”. Quando a morte passou a ser considerada um evento no tempo que emanciparia a alma da temporalidade para uma esfera mais ampla, o livre arbítrio passou a fazer parte da fé. (As principais heresias do Cristianismo sempre pularam de volta para o fatalismo.)3 O Cristianismo tendeu para Roma como seu centro de organização, porque no sistema político romano o livre arbítrio era considerado legítimo, não em uma margem precária, mas como o princípio operativo, em contraste com o determinismo de massa da democracia grega ou o beco sem saída do despotismo asiático.

Mas os mil anos de regime de status na Europa, apesar da modificação preservada pela Igreja, cultivaram em seus súditos uma fadiga profunda. Era difícil esquecer a queda do Império Romano, uma vez que os homens lutaram inutilmente para mantê-lo funcionando; seu fracasso fez com que perdessem a confiança em suas próprias capacidades e habilidades. A figura do Nobre Selvagem sinaliza o descrédito do governo de status, mas apenas por negação. A fusão gradual entre Igreja e Estado — que ocorreu tanto nos países católicos como nos protestantes — tirou da Igreja sua função de oposição à administração secular e facilitou o surgimento do Estado Absoluto. Ao mesmo tempo, a explicação de Galileu para o sistema solar, à primeira vista, levou a uma filosofia mecanicista. A ciência aplicada à invenção mecânica parecia confirmar essa implicação; e foi levada a especulações sobre as relações sociais, incluindo a economia política. No conjunto, o livre arbítrio praticamente desapareceu do contexto intelectual da Europa.

Não de maneira consciente, mas no fundo de sua mente, os europeus sentiam que haviam tentado tanto a política como a religião e nenhuma “funcionava”. Esse é o sentido sugerido das reflexões aparentemente sem opinião de Montaigne. Ele não chegou à conclusão, mas parou no ponto de inflexão. Nunca atacava nem a Igreja nem o Estado diretamente; procurava, em vez disso, um desvio; sua aparência exterior de conformidade era uma fuga tácita. Quando disse que, se fosse acusado de roubar as torres de Notre Dame, fugiria do país antes de tentar defender sua inocência num tribunal, a conclusão é evidente: não era possível ter justiça pela lei. A atitude é legítima como um ponto de partida para uma investigação, mas racionalmente deveria levar a um exame do sistema legal existente e dos corretos axiomas do direito, um caminho que seria trilhado em seguida com resultados úteis. O que Montaigne fez foi montar, pedaço por pedaço, fragmentos de evidências do comportamento humano a partir dos quais o homem “natural” pudesse ser sintetizado. Mas ele também nunca disse isso; embora suas evidências tendam a indicar primordialmente que o homem é um produto do ambiente. Mais tarde, quando a teoria do homem “natural” foi formulada, a teoria mecanicista do universo havia conquistado credibilidade na filosofia europeia. Deus era um matemático; Descartes e Newton eram Seus profetas. Na verdade, Descartes admitia que o homem era uma exceção em sua filosofia matemática, estando “continuamente em contato com a Ideia Divina”, mas os cartesianos de uma geração posterior chegaram a afirmar que os animais eram meras máquinas, incapazes de sentir dor.4 Um passo a mais e o homem estritamente “natural” também foi reduzido a um mecanismo nesse universo mecanicista.

Nesse ponto, alguns pensadores sociais afirmaram que, se as restrições artificiais da sociedade fossem abolidas, o homem como mecanismo funcionaria perfeitamente e precisamente conforme projetado. Mas não tentaram explicar como um mecanismo absolutamente natural num universo estritamente mecanicista poderia ter desenvolvido e imposto restrições “artificiais” a si mesmo, contrárias à sua própria natureza e maquinaria. Quando a questão foi colocada, como pôde a escola rigidamente mecanicista negar que “o que quer que seja, é o certo”, porque não poderia ser de outra maneira? Porém, se eles desejavam mudar a “sociedade”, deveriam supor que alguma coisa estava errada com ela. Naquele momento, foram obrigados a ignorar essa dificuldade; e, quando Marx avançou contra ela mais tarde com seu materialismo dialético, sua suposta solução simplesmente asfixiou a questão, postulando que algumas partes do mecanismo poderiam obedecer o conselho da merluza ao caracol5, e mover-se um pouco mais rápido se quisessem, ou retardar-se, se fossem teimosas. A máquina universal absoluta e perfeita tinha uma propensão a ficar maluca.

Enquanto isso, é extraordinário que os colonos ingleses na América, de origem puritana, que eram fatalistas por religião, defendessem o livre arbítrio em seus assuntos seculares, contra a corrente da Europa. Mas foi o que eles fizeram. Foram capazes de alcançar essa façanha intelectual restringindo a predestinação a seu significado exato e literal de um destino final, céu ou inferno. Nesta terra, haviam conseguido chegar à América por seu próprio esforço, confrontando a autoridade ou escapando dela. Então, superaram as enormes dificuldades da terra selvagem, acabando por estabelecer um governo local. Portanto, tinham fundamentos para acreditar no livre arbítrio político ou temporal; e, em boa hora, provaram essa convicção, com a grande demonstração que foi a revolução. (Não estou dizendo que somente os puritanos ou seus descendentes contribuíram para esse resultado; mas fizeram sua parte, ao passo que, na Europa, homens que eram originalmente da mesma fé concordaram que a doutrina determinista servisse ao Estado Absoluto.)

A filosofia mecanicista é uma importação muito posterior na América; e é completamente importada. Não decorre de nosso maquinário e absolutamente não criou a era das máquinas. Quando os americanos começaram a inventá-las e usá-las, eram da firme opinião de que produziam e faziam funcionar aqueles dispositivos a seu bel-prazer, sem nenhuma bobagem de que as máquinas “determinavam” ou “criavam” coisa nenhuma. Máquinas, para um americano, ainda são uma expressão do livre arbítrio. É difícil para um americano viajar num carro como mero passageiro; mentalmente, ele o dirige.

Mas o que os europeus queriam era algo que funcionasse e fizesse a humanidade funcionar junto, sem precisar de mais nada dos homens exceto sua submissão passiva. Recusando-se a reconhecer que até mesmo a vida de um selvagem exige uma adaptação voluntária e extremamente ativa, os europeus se imaginaram abaixo da selvageria. A “Natureza” se personificou no “despotismo esclarecido”; antes do final do século 18, a Europa estava pedindo abertamente por um ditador.

A pista central para o programa de reforma dos filósofos era sua fé na lei natural… Tudo o que era necessário para destravar o milênio era um legislador supremo, um Euclides das ciências sociais, que descobriria e formularia os princípios naturais da harmonia social. As generalizações matemáticas que formaram as bases da física foram propostas por poucos pensadores audazes, e parecia uma suposição razoável que as leis fundamentais da sociedade humana fossem, da mesma maneira, descobertas por algum gênio inspirado, em vez de por uma assembleia parlamentar.”6

Apesar de falarem em nome da ciência, não se deram ao trabalho de usar o método científico de definição de termos; usavam as palavras monarquia, democracia e república de maneira permutável e da forma mais conveniente para qualquer ditador que pudesse se aproveitar de sua oferta. Napoleão foi a resposta. “Ao deixar indefinida a forma ideal de governo, possibilitaram que Napoleão unisse as tradições republicana e monárquica numa fórmula de despotismo democrático.”

Napoleão foi a criação dos planejadores acadêmicos. Mas não foi, de modo algum, a primeira tentativa, embora normalmente seus predecessores não sejam reconhecidos. A consorte de Jorge II7, a Rainha Carolina, defendia a mesma doutrina e acreditava que estava colocando-a em prática, sem o conhecimento de seus súditos, com Walpole8 como seu agente. Mas nenhum dano ocorreu, uma vez que Walpole precisava de que suas políticas fossem executadas pelo Parlamento. O método indireto, pelo qual Carolina manipulava Jorge e Walpole manipulava Carolina, simplesmente completou a transferência de poder da Coroa para os Comuns, embora a aristocracia agrária ainda retivesse, durante o processo de transição, a maior parte dos cargos executivos. A fonte da ideia de “despotismo benevolente” para Carolina foi a avó de Jorge II, a Eleitriz Sofia9, que a aprendeu com Leibniz10. Por outro caminho, a mesma ideia foi passada para Jorge III11, que tentou encarná-la como o “Rei Patriota”. Seus esforços bem-intencionados eram incompreensíveis e exasperadores para os ingleses, que não tinham dissociado a razão do senso comum; e quando Jorge tornou-se certificadamente louco, ninguém se surpreendeu.

Mas, no continente, foi em concordância com essa teoria de um legislador autocrático inexplicavelmente incumbido de ministrar a “lei natural” que Voltaire se aproximou de Frederico, o Grande12, e Diderot de Catarina, a Grande13; e Madame de Staël14 estava ansiosa por adular Napoleão e disse a Alexandre da Rússia15: “Seu caráter, Majestade, é uma constituição.” Atribui-se a Turgot16 a frase: “Deem-me cinco anos de despotismo e a França será livre.” Uma vez que a França já tinha tido cem anos de despotismo e não era livre, parece que a única objeção que os filósofos tinham contra os Bourbons é que eles não foram suficientemente despóticos. Esta é a vanguarda dos modernos “progressistas”.

A Europa nunca desistiu dessa fantasia do deus ex machina; ela reaparece a cada reviravolta dos eventos. Revela-se nas palavras da Imperatriz Eugênia17, falando do Império efêmero de Maximiliano18, no México, quando ela disse que Maximiliano deveria ter estabelecido uma ditadura no padrão daquela de Napoleão III, “uma ditadura que trouxesse liberdade e um homem suficientemente capaz para manter as duas lado a lado”. As palavras não significam absolutamente nada; ela falava por força do hábito. O próprio Maximiliano explicou que “precisava de uma grande força para impor reformas e melhorias; o povo aqui tem de ser obrigado ao que é bom”. Sua imperatriz Carlota, quando enlouqueceu, sonhava que Maximiliano era “rei da terra e soberano do universo”.

Durante a Revolução Francesa, Burke19 comentou sobre os monarquistas franceses exilados na Inglaterra que, exceto por declarações de afeto às pessoas do Rei e da Rainha da França, esses refugiados aristocráticos “falavam como jacobinos”. Obviamente, eles não estavam conscientes disso; e Burke diria a verdade se acrescentasse que os jacobinos, em companhia da maioria dos revolucionários europeus dos séculos 18 e 19, falavam como monarquistas absolutistas. O slogan dos cartistas ingleses era: “Poder político nosso meio, felicidade social nosso fim”. A “ditadura do proletariado” de Marx, a partir da qual “o Estado se desmancharia”, foi uma repetição posterior. A versão atual desse disparate fatal foi ecoada por um jornalista americano depois de uma visita à Rússia comunista; na versão dele, “a Rússia está lançando as bases de uma sociedade evolucionária, que vai passar por estágios previstos e planejados de crescimento, por meio do industrialismo, de uma ditadura política absoluta para a liberdade, democracia e paz… Uma cultura científica, não uma cultura moral.” O massacre e a inanição de milhões de pessoas, escolhidas como vítimas especificamente por causa de seu caráter produtivo e inteligência livre, foi o resultado de longo prazo da teoria mecanicista do universo. E o séquito do Juggernaut20 sagrado forma uma procissão notável: Frederico, Catarina, Carolina, Madame de Staël, os dois Jorges, os dois Napoleões, Eugênia, Carlota, Marx, Lênin e uma trilha servil de jornalistas.

Enquanto isso, John Stuart Mill, declarando-se o paladino da liberdade, vendeu-a baratinho outra vez para a “sociedade”. Ou seja, admitiu que a liberdade pessoal só se justifica se servir ao bem coletivo. Então, se for possível formular um argumento plausível que negue que ela sirva — e tal argumento parecerá plausível porque não existe bem comum —, obviamente a escravidão será correta.

Os sonhos persistentes da humanidade são juventude e beleza eternas e poder absoluto. Os dois primeiros devem ser buscados por si mesmos, uma vez que não podem ser disfarçados por um pretexto moral. Nas mitologias mais antigas, são imaginados como presentes dos deuses para alguns mortais afortunados. Com a aurora da ciência, a esperança foi transferida para a expectativa de um Elixir da Vida, a ser descoberto pela pesquisa. Nenhum desses desejos pode fazer grande mal. O Bispo Berkeley, o filósofo, estava misteriosamente convencido de que a água de alcatrão era uma panaceia para quase todos os males do corpo. Pode-se adivinhar porque ele dotou essa prescrição irrelevante de tais propriedades mágicas; ele não tinha um motivo mais profundo. O ponto significativo não é simplesmente que a água de alcatrão não pode fazer o que Berkeley acreditava que podia. Nada pode. O que ele desejava é irrealizável na natureza das coisas. Existem drogas mortíferas mas não existe um elixir da vida para o corpo físico. Mesmo assim, esse desejo tem uma inteligência residual, que leva a resultados benéficos na melhoria da saúde e da beleza por meio do estudo racional da biologia e da higiene.

Na mecânica, imaginou-se uma impossibilidade semelhante, um Moto Perpétuo. Aqui, a ciência genuína enfrenta uma dificuldade, até aqui não resolvida, em definir o que é energia ou descobrir suas propriedades definitivas. A ciência estrita é confinada a medições; suas descobertas têm de ser quantitativas. Trabalhando com matéria inorgânica, a ciência postula a Segunda Lei da Termodinâmica, que diz que a energia “decai”, pela conversão de uma manifestação cinética para estática. Os dois aspectos da energia são exemplificados num homem andando, movido pela energia cinética e colidindo contra uma parede de pedra, onde encontra energia estática. A parede tem resistência, que é mensurável em termos de energia pela força necessária para rompê-la; e a energia cinética, reciprocamente, é medida pelo que ela pode mover, em forma estática.

Agora, se considerarmos que a energia do universo inteiro, pela qual ele se move, está completamente definida em teros de suas propriedade manifestas por meio da matéria inorgânica, a energia universal deve existir numa quantidade fixa; e deve também estar sujeita à Segunda Lei da Termodinâmica, pela qual o universo inteiro está fadado a “decair” finalmente, e tornar-se uma massa escura, congelada e imóvel, absolutamente estática, e permanecer assim para todo o sempre. Certamente, a Segunda Lei da Termodinâmica é válida com respeito à energia utilizada por meio de materiais inanimados; a engenharia e a mecânica devem ser governadas por este princípio para chegarem a resultados. Mas, se assumíssemos que o mesmo princípio governasse a energia universal como tal — em vez de ser simplesmente uma fase de sua transmissão através de certos elementos inorgânicos — ele evocaria um fenômeno inicial, a “partida” do mecanismo universal em primeiro lugar, pela existência primária de uma quantidade fixa de energia cinética: como ou de onde a hipótese não pode pretender explicar e nem mesmo contemplar.

A hipótese religiosa na natureza do universo é, na verdade, muito mais racional, postulando um Primeiro Princípio (Deus), a Fonte de energia, que não “decai”, não é mensurável e se apresenta às nossas faculdades racionais tanto em aspectos eternos como temporais, pelos fenômenos mensuráveis da matéria inorgânica e pela própria faculdade racional, que é de ordem não mensurável, indicando um elemento divino no homem, a alma imortal. A partir desse Primeiro Princípio, o universo não precisa decair; as fases dos elementos inorgânicos que estão sujeitas à Segunda Lei da Termodinâmica seriam secundárias em relação ao Primeiro Princípio Criativa que completa o circuito eterno, se renovando eternamente, por meio de outros processos nos quais o homem ainda não penetrou.

Agora, a partida do “motoperpétuo”, de maneira confusa, está se aproximando do absurdo da visão mecanicista estritamente quantitativa do universo, que implica que, de alguma maneira, a maquinaria cósmica foi configurada em potencial e, então, posta em movimento com uma dada quantidade de energia cinética que devemos supor que já “estava lá”; depois disso, continuou funcionando “por si mesma”, sem nenhum suprimento posterior, e deve continuar assim até que decaia totalmente, pela exaustão da quantidade. Assim, a partida do moto perpétuo, aproximando-se do suposto problema, admite que seu mecanismo precisa ser iniciado pela introdução normal de energia de uma fonte externa. Depois disso, diz-se, ele continuará funcionando por si mesmo indefinidamente.

Essas são a alegação e a exigência feitas por todos os que prometem a felicidade final por meio de um despotismo inicial. Poucos anos de força externa, a ditadura do proletariado ou da elite, governo absoluto — e, então, nada mais de esforço, nada mais de necessidade de inteligência, uma máquina funcionando continuamente — até o fim. A teoria do comunismo marxista é exatamente a da Máquina de Moto Perpétuo, ponto por ponto, porque ela estipula que o sistema produtivo criado pela livre iniciativa é um pré-requisito, que será tomado pela máquina comunista.

Assim, o sonho de poder também é suscetível a duas interpretações, uma incalculavelmente benéfica e a outra viciosa, causa de miséria infinita. Quando direcionado ao domínio da natureza, o ordenamento da matéria inorgânica pelo conhecimento da lei natural, é criativo, não apenas em bens materiais mas no enriquecimento da personalidade humana. O desenvolvimento mais recente ocorre porque no homem, o ser pensante, a razão é o atributo individualizante. Observadores argutos descobriram que povos primitivos, como os esquimós, manifestam uma psicologia “coletiva”, a tal ponto que, em ações em grupo, a consciência da individualidade fica obscurecida. A razão envolvida na ação se funde com o instinto pelo hábito. Não é a ação conjunta nem o pensamento semelhante em termos racionais conscientes que induzem essa “unidade” coletiva; é o fato de não pensar naquele dado momento. O exercício do intelecto no raciocínio abstrato leva os homens inteligentes a conclusões semelhantes por meio de sequências lógicas e, ao mesmo tempo, desenvolve sua individualidade; porque pensar é uma função individual.

Portanto, o coletivista, para alcançar seu objetivo, o estado ou sociedade coletivos, busca o único tipo de organização, a agência política, que é diretamente proibitória e tende a fazer com que os homens parem de pensar. Esta é a interpretação maligna do sonho de poder sua perversão na luxúria por poder sobre outros homens, em vez do domínio da natureza.

A luxúria pelo poder é muito facilmente disfarçada sob motivos humanitários ou filantrópicos. Apela naturalmente a pessoas que sentem um desconforto emocional pelos infortúnios dos outros, misturado a uma ânsia por aprovação imerecida, ainda mais se não são produtivas.21 Uma criança amável, que deseja um milhão de dólares vai normalmente “pretender” distribuir metade de sua riqueza ilusória. A guinada do motivo se mostra pelo fato de que seria igualmente fácil desejar que essa sorte inesperada fosse diretamente para os outros, sem se imaginar como intermediária de sua felicidade. A criança pode imaginar que ganha o dinheiro trabalhando, embora mesmo assim a imaginação também pudesse incluir os outros ganhando dinheiro trabalhando; mas, como regra, o dinheiro viria de um suprimento indeterminado disponível sem esforço e já existente — uma máquina de motoperpétuo. A criança nem se dá conta de que pessoas que precisam de ajuda também podem imaginar por si mesmas um milhão de dólares. A gratificação dupla, das necessidades pessoais e do poder por “fazer o bem”, é estipulada inocentemente. Levada aos anos adultos, essa auto glorificação ingênua se transforma em ódio positivo a qualquer sugestão de que as pessoas ajudem a si mesmas por seu próprio esforço individual, por meios não-políticos que não impliquem em poder sobre outros, sem um aparato compulsório. O ódio tem um motivo profundo por trás de si; é verdade que nada, exceto meios políticos pode produzir adulação pública imerecida. Perguntemos como uma pessoa completamente desprovida de talento, habilidade, realizações, sabedoria, beleza, charme ou mesmo da capacidade prática de ganhar a vida com um trabalho rotineiro pode se tornar objeto de atenção bajulatória, ser saudada com aplauso e ter suas mais medíocres futilidades apreciadas — obviamente, a única resposta é uma posição política. Uma grande fortuna privada pode granjear um círculo privado de sicofantas; mas apenas o decreto imperial poderia dar a Nero uma audiência para seu canto ou arrebatar aplausos da multidão para Calígula.

Mas o sonho racionalizado do Estado Absoluto tem uma implicação histórica especial em sua repetição. Os períodos em que se cristalizou na literatura são imensamente significativos.

Os três mais famosos esquemas de papel desse tipo são a “Politeia”, ou o estado ideal, de Platão, traduzida erroneamente como “A República”22, a Utopia de Thomas More e a Terra Prometida sem nome de Marx, que surgiria depois da destruição do capitalismo. O que elas têm em comum em sua forma é que todas são finais; são arranjos nos quais os seres humanos se encaixam como partes especializadas de um padrão. Suas relações sociais e econômicas não admitem nem a ordem biologicamente natural mas matematicamente irregular e entrelaçada da família, nem a faculdade criativa imprevisível do indivíduo. A fôrma é colocada para impedir variação ou mudança. São sociedades estáticas. Platão e More fizeram o indivíduo súdito da organização cívica e Marx o fez súdito da indústria mecanizada.

Mas o que elas têm em comum com respeito a época em que foram imaginadas revela seu significado verdadeiro. Cada uma marca uma era em que novos desenvolvimentos já haviam ocorrido que tornaram impossível uma sociedade estática. Os homens que escreveram esses sonhos eram sismógrafos. Sentiram a mudança iminente, como se a terra se mexesse sob seus pés; e sua mente procurou refúgio numa fantasia de um mundo não sujeito à mudança. Platão viveu numa época em que os gregos formulavam os princípios básicos da ciência. Sir Thomas More viveu nos anos perigosos do Renascimento, o reviver da ciência. Marx testemunhou a revolução industrial, a aplicação da ciência. As três fantasias são reações da Era da Energia.

Platão era um literato; seu senso artístico de forma estava inquieto e ele tentou compensar isso com um planejamento rigoroso. More era um homem inteligente e um sábio; ele rotulou sua criação francamente pelo que era: Utopia significa Lugar Nenhum. Marx era um tolo; ofereceu seu esquema como uma previsão do futuro.

É por meio desse modelo imposto de mecanismo que a Europa observou os Estados Unidos desde o início; a estultificação não poderia ir além. O princípio da harmonia social é a liberdade, os direitos do indivíduo; essa é a lei natural do homem, que os Estados Unidos descobriram e formularam, antes da Revolução Francesa.

Henry Adams23, que testemunhou a Era da Energia depois que ela já havia avançado muito, passou a vida empenhado em descobrir a ligação entre o último século da Idade Média e a moderna explosão de energia nas aplicações cinéticas. Ele encontrou a pista, analisou-a e deixou-a escapar. Qual a relação, perguntou ele, entre a Virgem e o Dínamo? Sua pergunta não era irreverente nem irrelevante. Adams percebeu que depois que a majestade da Lei Divina foi estabelecida na filosofia medieval por lógica rigorosa, a imagem da Virgem tornou-se mais proeminente na religião, como objeto de honras e petições. Reconheceu que isso se devia ao fato de que a Virgem representava um elemento não constrangido, graça ou misericórdia, que implica no livre arbítrio do homem, disponível para decisões contínuas. Então, o homem não estaria preso a uma sequência determinada de maneira irrevogável, como é o caso de uma máquina. O homem não é uma máquina. Mas, nesse ponto, Henry Adams não percebeu que é pela liberdade da vontade pessoal que o homem é capaz de perseguir seus questionamentos intelectuais e produzir suas invenções. Essa é a gênese do dínamo. Construído de acordo com as leis da mecânica, o dínamo é determinístico; ou seja, deixado a si mesmo, ele para. Então, se ele vai funcionar, deve ser pela vontade e inteligência do homem. Uma economia de máquinas não pode funcionar por uma filosofia mecanicista.


1 FROM THESE ROOTS. De Mary Colum (N. da A.)

2 A Doutrina Monroe foi uma política americana estabelecida em 1823 pelo presidente James Monroe. Segundo ela, qualquer esforço de nações europeias para colonizar novas terras ou interferir em Estados na América do Norte ou do Sul seria considerado um ato de agressão, exigindo intervenção dos Estados Unidos. Porém, os Estados Unidos não interfeririam em colônias europeias existentes nem em conflitos internos na Europa. (N. do T.)

3 Essa tendência pode não ser evidente à primeira vista, mas é consequência de uma aberração secundária da lógica. A doutrina mais ampla do Cristianismo engloba tanto a Lei Divina como a lei natural agindo sobre um princípio geral superior e um Intercessor para moderar a justiça com a misericórdia, em consideração à imperfeição humana e ao esforço humano na direção da verdade e do bem. O salto para o fatalismo pode ocorrer nas duas direções; o dualismo explícito da heresia maniqueísta entregou este mundo ao domínio do mal; por outro lado, o unitarismo absoluto pode ser interpretado como uma visão mecanicista do universo. Mesmo a visão jansenista da doutrina da graça faz com que a graça se torne uma compulsão, em vez de uma oportunidade de libertação pela escolha e aceitação. (N. da A.)

4 Foi relatado sobre um grupo de cartesianos em Port Royal (o centro jansenista): “Eles espancavam seus cães sem remorso e riam daqueles que sentiam pena dos animais quando estes ganiam. 'Puro mecanismo', respondiam, dizendo que os ganidos e gritos eram resultado de uma pequena mola escondida dentro deles, que eram totalmente destituídos de sensações.” Seguindo essa opinião, eles vivissectavam animais para estudar a circulação do sangue. Esses eram extremistas. Um pesquisador moderado protestaria dizendo que era necessário apenas que uma pessoa observasse seus cães de espeto [Em inglês, turnspit dogs. Pequenos cães criados e treinados para correr dentro de uma roda que girava um espeto de carne enquanto esta era assada. Normalmente, as pessoas tinham pares de cães, para que trabalhassem alternadamente. Os cães de espeto foram extintos no século 19. (N. do T)] — um, preguiçoso, se esconderia quando fosse sua hora de trabalhar, enquanto o outro iria atrás do delinquente e o traria para executar sua tarefa — para perceber que a questão envolvia algo mais que mecanismo… Quando Berkeley se perdeu em um labirinto de argumentos sobre se alguma coisa existia objetivamente, o Dr. Johnson fez um apelo semelhante ao senso comum, com exasperação compreensível, chutando uma pedra como refutação. Foi uma resposta concludente; subjetivo é o meu pé. O subjetivo é inconcebível sem o objetivo. (N. da A.)

5 Referência ao primeiro verso do poema nonsense A Quadrilha da Lagosta, em Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll. (N. do T)

6 EUROPE AND THE FRENCH IMPERIUM. De Geoffrey Bruun. (N. da A.)

7 Jorge II (1683 - 1760): Rei da Grã-Bretanha de 1727 a 1760. Foi o último rei britânico nascido fora do país. Nasceu e foi criado na Alemanha. (N. do T.)

8 Robert Walpole (1676 - 1745): estadista britânico, considerado normalmente o primeiro homem a ser Primeiro-Ministro do Reino Unido. Esse cargo ainda não existia, mas pode-se dizer que Walpole o ocupava de facto por causa de sua influência com o Gabinete. (N. do T.)

9 Sofia de Hanover (1630 - 1714): casada com o Eleitor de Hanover. Foi declarada herdeira do trono inglês, embora nunca tenha estado nos domínios da Grã-Bretanha. Morreu menos de dois meses antes de poder se tornar rainha, e o trono passou a seu filho Jorge I. Mecenas das artes, patrocinou os filósofos Gottfried Leibniz e John Toland. (N. do T.)

10 Gottfried Wilhelm von Leibniz (1646 - 1716): matemático e filósofo alemão. Desenvolveu o cálculo infinitesimal, ao mesmo tempo que Isaac Newton e de maneira independente. Junto com Descartes e Spinoza, foi um dos grandes defensores do racionalismo, acreditando que as conclusões são produzidas aplicando-se a razão a primeiros princípios e definições, em vez de se usarem evidências empíricas. (N. do T.)

11 Jorge III (1738 - 1820): Rei da Grã-Bretanha de 1760 a 1820. Terceiro rei britânico da Dinastia de Hanover, foi o primeiro monarca dessa linhagem nascido no país e que tinha o inglês como língua materna. Durante seu reinado ocorreram diversos conflitos militares, como a Guerra dos Sete Anos, a Revolução Americana e guerras contra a França revolucionária e napoleônica. No final da vida, sofreu de uma doença mental recorrente e depois permanente. A partir de 1810, seu filho Jorge, Príncipe de Gales, foi declarado regente. (N. do T.)

12 Frederico II, o Grande (1712 - 1786): Rei da Prússia entre 1740 e 1786. Patrono de artistas e filósofos, foi um dos propositores do absolutismo esclarecido. Um encontro com Johann Sebastian Bach, em 1747, fez com que Bach escrevesse, em homenagem ao rei, a Oferenda Musical. Tinha uma amizade turbulenta com Voltaire. (N. do T.)

13 Catarina II, a Grande (1729 - 1796): Imperatriz da Rússia entre 1762 e 1796. Exemplo notável de déspota esclarecida, foi correspondente de Voltaire, Diderot e d'Alembert. (N. do T.)

14 Anne Louise Germaine de Staël-Holstein (1766 - 1817): literata francesa. Tornou-se grande opositora de Napoleão. (N. do T.)

15 Alexandre I da Rússia (1777 - 1825): Imperador da Rússia entre 1801 e 1825. Na primeira metade de seu reinado, tentou introduzir reformas liberais. Na segunda metade, tornou-se cada vez mais arbitrário, revogando a maior parte das reformas anteriores. (N. do T.)

16 Anne-Robert-Jacques Turgot, Barão de Laune (1727 – 1781): economista e estadista francês. (N. do T.)

17 Imperatriz Eugênia de Montijo, esposa de Napoleão III. (N. do T.)

18 Imperador Maximiliano I do México (1832 - 1867): Único monarca do Segundo Império mexicano, entre 1864 e 1867. Irmão mais novo do imperador austríaco Francisco José I, Maximiliano foi convidado por Napoleão III a estabelecer uma monarquia no México. Chegou lá com um exército francês e, apoiado por monarquistas mexicanos, declarou-se imperador. Poucos países reconheceram seu governo. As forças do presidente Benito Juárez lutaram para restabelecer a república e, com auxílio dos Estados Unidos, derrubaram o Império. Maximiliano foi preso e executado. (N. do T.)

19 Edmund Burke (1729 - 1797): político e filósofo britânico. Foi membro da Câmara dos Comuns entre 1765 e 1780. É considerado o fundador filosófico do conservadorismo moderno. Sua obra mais importante é Reflexões sobre a Revolução na França, na qual previu, num momento inicial dos acontecimentos, que a Revolução Francesa iria resultar em violência descontrolada, em opressão governamental extrema e num futuro governo militar. (N. do T.)

20 Juggernaut, em inglês coloquial, é uma força literal ou metafórica considerada impiedosamente destrutiva e irresistível. O termo é uma referência ao carro templo Ratha Yatra, que se acreditava erroneamente que esmagasse os devotos sob suas rodas. Deriva-se do sânscrito Jagannatha, “senhor do mundo”, um dos nome de Krishna. (N. do T.)

21 Os coletores de impostos na França patrocinaram os proponentes de sistemas políticos rígidos, como os fisiocratas e outros teóricos absolutistas que causaram o Terror. Consequentemente, pelo menos alguns dos coletores de impostos foram enforcados em postes de luz quando o Terror se espalhou — mas só alguns. (N. da A.)

22 Se a linguagem deve ter algum significado, é por causa das distinções. Roma forneceu a forma e o significado da República com a palavra; e os gregos da democracia. O modelo de organização de Platão é o coletivo espartano, um Estado Absoluto militar democrático. A distinção entre uma República e uma Democracia é evidente pelas palavras; democracia significa literalmente o governo do povo, um conceito que não admite qualquer limitação no poder político. República significa uma organização que trata de assuntos que se referem ao público, implicando assim que existem também assuntos privados, uma esfera de vida social e pessoal, com a qual o governo não está e não deve estar envolvido; estabelece um limite ao poder político. Os fatos, em cada caso, corresponderam ao significado das palavras. (N. da A.)

23 Henry Brooks Adams (1838 - 1918): historiador americano. Propôs uma teoria da história baseada na Segunda Lei da Termodinâmica e no princípio da entropia. (N. do T.)

domingo, 10 de novembro de 2013

Audaces Fortuna Juvat, de Márcia Sabino

Terminei de ler o livro de minha amiga Márcia Sabino, Audaces Fortuna Juvat. É um romance de 320 páginas, ambientado na Itália do Renascimento.

Toda vez que um amigo escreve um livro, sinto uma inveja imensa. Parabéns, Márcia. Gostaria de ter o seu talento.

domingo, 27 de outubro de 2013

O Deus da Máquina, capítulo XIII

No capítulo XIII de O Deus da Máquina (Escravidão, o Defeito na Estrutura), Isabel Paterson aponta o grave defeito que corrompeu os planos dos Founding Fathers dos Estados Unidos, a escravidão.
Como não tiveram a coragem de abolir a escravidão desde o início do país, perderam a chance de declarar a liberdade como o direito universal do qual se origina a autoridade. Permitindo que, por sua autonomia, um estado pudesse tirar a liberdade de um homem, estava aberta a possibilidade de tirar a liberdade de qualquer homem. Além disso, a Constituição incluiu uma cláusula de extradição, escrita com eufemismos para não usar as palavras "escravo" ou "escravidão", que obrigava os estados livres a devolverem aos estados escravagistas os escravos que fugissem e cruzassem suas fronteiras.
Como resultado da Guerra Civil, os Atos de Reconstrução eliminaram completa e definitivamente a figura autônoma dos estados. Embora os Atos tenham sido concebidos para punir e sujeitar os estados do sul, na prática, todos os estados se sujeitaram a uma extensão inaudita do poder federal sobre eles.

Escravidão, o Defeito na Estrutura

O Deus da Máquina, capítulo XIII
Escravidão, o Defeito na Estrutura
Isabel Paterson

As três grandes ideias foram reunidas afinal sem obstáculos; a alma individual e imortal, exercendo o autogoverno pela lei e livre para buscar o conhecimento por meio da razão. Depois de dois mil anos, os recursos da ciência foram liberados para a aplicação produtiva. A Declaração da Independência e a Constituição foram os instrumentos temporais desse evento. Mas, em seu projeto original, a Constituição teve de admitir um defeito primordial, uma contradição irreconciliável. A escravidão era uma instituição existente. Qualquer que fosse a forma de governo adotada pela União, ela devia extinguir a escravidão ab initio (como um fato oposto à ordem moral do universo) ou tolerá-la, desviando-se dessa declaração axiomática. Aqui, a forma federal, que é indispensável para a estabilidade, infelizmente admitiu um expediente ambíguo. Foi possível, temporariamente, deixar a escravidão para a jurisdição estadual. Sem dúvida, a opinião dos donos de escravos estava lastreada em sua posse iníqua; mas havia também um pretexto plausível para o adiamento. Havia um temor sincero de que os negros, muitos recém-trazidos da África, pudessem constituir um ônus e um perigo se libertados imediatamente. Não havia então a questão do voto, resolvida pela qualificação de propriedade. Apenas a dificuldade de assimilar à vida moderna, fora de uma relação servil, pessoas trazidas das selvas. Ninguém sabia exatamente como isso poderia ser feito, se por educação gradual dos negros ou se eles deveriam ser mandados de volta para a África. Enquanto isso, como o governo federal deve controlar as fronteiras externas, tinha autoridade para proibir a importação de escravos do exterior, e essa intenção foi indicada indiretamente. O sentimento implícito era contrário à escravidão. Por outro lado, a escravidão fez com que fosse incluída uma cláusula na Constituição provendo a extradição de escravos que fugissem cruzando fronteiras estaduais. Que o assunto era embaraçoso, observa-se pela linguagem; as palavras escravo e escravidão não são usadas. A expressão é uma “pessoa mantida em serviço ou trabalho”. (Na época, a descrição incluiria aprendizes brancos livres durante o período de aprendizado.) Escravos então eram pessoas, pelo menos; e também eram contados como pessoas na distribuição proporcional para a Câmara dos Deputados. Mas permanecia o fato inegável de que eram escravos; e a Constituição não os declarava livres por direito. O dano permanente infligido pela inclusão da escravidão é que ela corrompeu o princípio sobre qual a nova nação se criou. A emancipação pelos senhores de escravos como um ato de generosidade ou pelos estados como um ato de autoridade não poderia jamais equivaler a iniciar com a liberdade como o direito universal do qual a autoridade se origina. Além disso, a continuidade da escravidão tornava impossível que o Bill of Rights limitasse os governos estaduais como fazia com o governo federal. A existência da escravidão necessariamente prejudica o exercício dos direitos dos homens livres. Se o poder do estado faz de um homem um escravo, evidentemente ele o priva de sua liberdade de expressão e reunião, de segurança pessoal e do direito à propriedade; portanto, fica difícil proibir que esses abusos sejam cometidos contra qualquer pessoa. A suposta diferença entre “direitos humanos” e “direitos de propriedade” é uma confusão verbal; direitos de propriedade são direitos humanos. A questão verdadeira é entre o individual e o coletivo. Os únicos argumentos apresentados para defender a escravidão apelam para o coletivo, seja raça ou estado, para autoridade e coação; ao passo que, se os direitos são inerentes ao indivíduo, nenhum homem pode ser propriedade e todos os homens devem ter o direito de ter propriedade. Esse defeito moral causou um defeito estrutural, como não poderia deixar de acontecer. A lógica foi invalidada, de maneira que qualquer discussão era menos que uma futilidade. Os estados escravagistas alegavam que sua soberania de estados era suficiente para fazer de um homem um escravo. Então, a mesma soberania num estado livre deveria libertar qualquer pessoa que cruzasse a fronteira. Mas a cláusula de extradição negava esse atributo; porque a extradição de um escravo como tal é completamente diferente da extradição de um criminoso. O criminoso não se torna menos culpado depois que cruza a fronteira, ao passo que se presume que o escravo se torna livre; ao devolvê-lo, o estado livre é obrigado a violar sua própria lei básica.[1] É verdade que os estados livres aceitaram a condição injusta, para começo de conversa; a união parecia tão desejável que eles capitularam sobre esse ponto. Os estados escravagistas podiam dizer que os estados livres poderiam ter e poderiam extraditar escravos se quisessem. Porém, todos os estados tinham lutado por liberdade. Ambos os lados comprometeram irreversivelmente sua posição moral. Se os estados livres diziam que a escravidão era errada, continuariam a encorajá-la ou denunciariam a Constituição? Mas os estados escravagistas deviam amparar seu pleito na Constituição e a Constituição estava aberta para revisões. Se uma revisão chegasse a acontecer, eles aceitariam a mudança? O conflito ficou suspenso, enquanto permanecia a esperança de que a escravidão fosse gradualmente extinta. Mesmo assim, desde o início havia uma apreensão sobre a permanência da União. Isso ficou evidente no processo contra a nebulosa conspiração Burr-Blennerhasset[2], que foi uma energia tão forte na direção oeste que ninguém sabia exatamente qual era a intenção, nem mesmo os supostos conspiradores. O impulso continuaria até alcançar o Rio Grande e a Costa do Pacífico, chegar a Puget Sound e saltar para o Alasca. E a premonição estava certa; rasgou a nação no meio. Mas onde estava o verdadeiro ponto fraco? A menos que a questão seja colocada nos termos relevantes, não pode existir resposta. Embora a Guerra Civil tenha ocorrido há mais de setenta anos, a controvérsia continua aberta; o rompimento se deu por causa da escravidão, dos direitos dos estados ou da clivagem entre uma economia agrária e outra industrial? Os estados exigiram soberania em excesso? Se exigiriam, foi por causa da escravidão? A divisão dos poderes soberanos entre um governo federal e seus estados componentes não é uma questão simples; o passado está cheio dos destroços de ligas e federações. A questão completa da soberania é complexa demais. Na prática, sempre existe uma margem de discussão. A soberania territorial é delimitada por fronteiras. Essa é a virtude do nacionalismo; é uma restrição espacial do poder político, uma última salvaguarda para o indivíduo, uma chance de fugir da tirania local. O avanço do “internacionalismo” sempre implica num correspondente prejuízo à liberdade pessoal; mas isso é feito tirando-se a soberania de toda parte. A soberania se sustenta na nação; seus poderes são exercidos pelo governo. De ordinário, todos os poderes estipulados são considerados força num governo; e a ausência de qualquer poder no governo é considerada um grau de fraqueza. A verdade é que poderes que são essencialmente impróprios, porque contrários à ordem moral do universo, são fraquezas; e, da mesma forma, poderes concedidos a uma agência inapropriada. Impõem peso, estresse ou pressão de maneira que nenhuma estrutura consegue suportar. Quando está em questão um governo “fraco” ou “forte”, a conotação habitual dos termos se relaciona apenas à superestrutura; e o procedimento comum é mais centralização de poderes, que é o mesmo que um aumento no volume da superestrutura e um maior desvio de energia para ela. Além das forças e proporções corretas, isso é fatal; a menos que a resistência da base seja maior que o peso ou esforço da superestrutura, o conjunto vai desmoronar. Governos fracos são aqueles que não possuem uma oposição adequada e com instrumentos legítimos a partir das bases regionais e do veto de massa. A incompetência absoluta do governo é finalmente alcançada por aquilo que se chama de poder político absoluto, seja sob o nome de democracia ou de sincero despotismo.[3] Então, tanto os estados como o governo federal eram fracos demais, por exigirem poderes impróprios ou a distribuição imprópria de um poder legítimo. O último erro anulou um atributo vital da soberania, sua dimensão espacial. A menos que essa diferença entre poderes estipulados e força intrínseca seja entendida, não é possível uma discussão relevante sobre o assunto. A função dos estados numa federação é fornecer bases e estrutura vertical; essa função é estática. Espera-se que eles resistam contra pressões de cima, que tendem a separá-los, curvá-los para fora. De maneira estrita, não é possível que uma parte de uma fundação ou das estruturas verticais sobre ela tenha força estática em excesso, verdadeira autonomia local. Uma estrutura desmorona por sua fraqueza, não por sua força. Se ela se rompe violentamente, deve ser por pressões e estresses desbalanceados. Isso pode ocorrer por bases desiguais, conexões cruzadas defeituosas, ou uma superestrutura excessiva distribuída desigualmente. Se a escravidão não tivesse sido admitida na Constituição por tolerância, seu projeto original seria maravilhosamente sólido; mas sua inclusão introduziu os três tipos de defeito. Primeiro, tornou as bases desiguais. Com isso, causou pressões cruzadas desbalanceadas, já que a cláusula de extradição de escravos dava aos estados escravagistas um ponto de pressão sobre os estados livres. E, no longo prazo, a escravidão tornou-se uma desculpa para acrescentar peso excessivo à superestrutura e distribuí-lo desigualmente. Assim, todas as três causas alegadas da Guerra Civil fazem parte dessa única causa. E, como coroação dos males, mais uma vez o problema aparente mascarou o problema real. O problema aparente era a preservação da União. Mas a condição antecedente da união federal é a existência de estados. O problema real era a preservação dos estados. Se isso não fosse possível, a União deveria ou se desintegrar ou se solidificar numa massa. Se a estrutura é defeituosa, o fato de que ela é o melhor que os construtores puderam fazer, ou pensaram que poderiam fazer, não vai evitar as consequências físicas. Mas, como os assuntos humanos pertencem ao reino da lei moral, que é de uma ordem mais elevada que a lei mecânica, o resultado pode confundir todas as probabilidades mensuráveis. Uma vez que uma máquina foi concebida, é possível calcular seu desempenho. Mas não é possível estimar previamente quais máquinas o homem pode inventar. As máquinas não possuem existência ativa independente e, sendo criações da mente humana, o sistema em que operam deve corresponder à natureza do movedor primordial. É um clichê popular hoje em dia que o motor de combustão interna produziu ou exigiu de alguma maneira um novo princípio de organização política. Isso é ridículo. O próprio homem é um motor de combustão interna; ele é o determinante e seus dispositivos são apenas múltiplos de suas próprias capacidades e poderes. O motor de combustão interna aumentou o volume de produção e de energia num longo circuito que já existia, isso é tudo. As relações não se alteram. A linha de transmissão necessária é a mesma: a propriedade privada. A condição necessária dos seres humanos é a mesma: a liberdade. A única mudança é de grau, que pode envolver apenas um requisito de mais do mesmo, segurança absoluta da propriedade privada, liberdade pessoal plena e bases regionais firmemente autônomas para uma estrutura federal. Por essa razão, o potencial de uma nação não pode ser avaliado quantitativamente. Consiste em ideias abstratas, nos axiomas de relações humanas expressos na organização, não na riqueza material computada em uma determinada data. A Guerra Civil exemplifica esse princípio. Nos primeiros anos da República, todos os fatores mensuráveis eram preponderantemente favoráveis aos estados escravagistas do sul. Eles tinham amplos e variados recursos naturais. Seus principais produtos agrícolas, algodão e tabaco, tinham forte demanda no mercado mundial, gerando dinheiro e crédito. O prestígio legado por seus grandes estadistas era um patrimônio político. Praticamente, tinham o governo federal, a riqueza e a alavancagem legal. O norte tinha o empreendedorismo pessoal de uma população livre. Conforme a indústria do norte prosperava, parecia contribuir para a dominância do sul, pelo comércio e invenções que aumentavam os lucros dos donos de escravos e permitiam que eles estendessem o território escravagista. Essa aparência era ilusória. Subitamente, a economia livre se expandiu e começou a ocupar um território maior que a área reservada para a escravidão. A riqueza e o poder dos estados livres aumentavam em progressão geométrica, dobrando e redobrando. Logo antes da Guerra Civil, William Tecumseh Sherman[4] advertiu seus amigos sulistas a não provocarem a guerra, dizendo que uma economia agrária não pode competir com uma economia industrial num conflito armado. Mas a verdade é que o sul também não era uma verdadeira economia agrária; não tinha economia própria de nenhum tipo, não possuindo um gerador para o circuito local. Olhando além dos acasos de uma guerra específica, era incapaz de se tornar uma nação independente naquelas condições. O sul perdeu a Guerra Civil, como era fatal que acontecesse; e a questão da soberania dos estados foi descartada como uma tecnicalidade, deixada de lado pelo veredito sobre a escravidão. Ao recorrerem a guerra, os estados escravagistas cometeram o erro moral de repudiar um contrato depois de obter vantagens especiais por meio dele. O governo federal estava claramente obrigado a se defender da agressão e do separatismo. Tendo recebido sua autoridade por delegação, não teria o direito de abandonar suas funções delegadas, a menos que fosse legitimamente dissolvido pelos mesmos meios que o instituíram. O benefício da união para todos os estados é tão avassaladoramente evidente que sua dissolução, então ou agora, assume o aspecto de insânia violenta; mas se os eventos fossem descritos como puros fenômenos, um observador inteligente perceberia que deve ter havido algum defeito na estrutura, como numa casa que desmorona. Assim, a operação e as consequências do Ato de Reconstrução[5] devem levantar sérias dúvidas de que pudesse haver autoridade moral para perpetuar pela força uma união de origem voluntária. Também não é justificável alterar os termos de um contrato quando uma das partes está sendo coagida. Sendo feita à força, a estrutura reconstruída ainda continha um defeito físico correspondente ao defeito moral. O Ato de Reconstrução era a evidência imediata; varreu os estados como entidades políticas. Embora o Ato fosse transitório e tenha deixado de existir no tempo, o dano estava feito. Na organização política, o ato específico implicou num poder continuado. Mesmo que seja denominado como exceção, como expediente temporário, foi estabelecida a regra de que tais expedientes podem ser usados. Os estados do norte não poderiam consentir com qualquer extensão do poder federal sobre os estados do sul sem se sujeitarem à imposição do mesmo poder sobre eles no futuro. Não foi a libertação dos escravos que extinguiu a soberania dos estados. A liberdade é uma pré-condição, um universal, que a Constituição deveria ter reconhecido como primária. A destruição foi feita pela usurpação dos poderes dos estados pelo governo federal como que por direito de conquista. Se o governo federal lutou e venceu uma guerra de conquista, então os estados do norte e do sul perderam essa guerra. No lugar de genuínas bases regionais, a Guerra Civil resultou numa divisão artificial com interesses faccionários que iriam inevitavelmente tentar usar o poder federal para ganhar vantagens partidárias. E, nessa lição, os estados do oeste tiveram seu primeiro treinamento político.


[1] Nações civilizadas não permitem a extradição de criminosos políticos, porque o delito é estritamente local; um estado que entrega um refugiado político está assim atuando como agente do outro estado, em detrimento de sua própria soberania; ao passo que, ao extraditar um criminoso, atua como agente da justiça. (N. da A.)

[2] Em 1807, o ex-vice-presidente dos Estados Unidos, Aaron Burr, foi acusado de traição pelo presidente Thomas Jefferson. Ele havia reunido uma expedição de cerca 80 homens, baseada na ilha particular de um rico anglo-irlandês chamado Harman Blennerhasset. O objetivo declarado da expedição era colonizar uma área na Louisiana. A acusação contra ele nunca foi muito clara, e ele foi absolvido. (N. do T.)
[3] Exemplificados no colapso do velho regime na França, na Rússia czarista, na Turquia, etc. (N. da A.)
[4] General do exército da União na Guerra Civil Americana. (N. do T.)
[5] Os Atos de Reconstrução foram as condições impostas aos estados confederados para que fossem readmitidos na União. (N. do T.)