O Deus da Máquina, capítulo XIV
A Virgem e o Dínamo
Isabel Paterson
Era certo
que os Estados Unidos afetariam a mente da Europa, porque eram uma
projeção da experiência e das esperanças europeias, postas à
prova em supostas condições naturais, como um caso de teste contra
a tradição. Os primeiros colonos trouxeram a este país suas
habilidades e ferramentas, artes e letras, teologia, moral e ciência,
seus costumes e leis; mas deixaram para trás quase todo o aparato de
imposição das leis. Não trouxeram a economia fechada nem a
religião sacramental; e a natureza fornecia recursos suficientes
contra que sobrou de autoridade oficial. Podemos assumir que qualquer
coisa que tenha sobrevivido por si mesma foi validada. A liberdade
emergiu e triunfou.
Uma crítica
sutil disse: “A Declaração da Independência tirou da Europa sua
base moral”.
A frase é perfeita; a Europa não foi colocada em uma nova base. A
ideia americana jamais chegou à Europa (como, em circunstâncias
semelhantes, a ideia da lei romana nunca foi compreendida na Ásia).
Em vez disso, os fenômenos resultantes foram profundamente mal
interpretados, acabando adaptados a uma teoria europeia divergente.
As consequências físicas dessa discrepância moral se tornaram
evidentes imediatamente na Revolução Francesa, com o Terror e a
explosão napoleônica; mas o efeito pleno foi adiado até este
século. Em um passo, os Estados Unidos causaram a atual explosão e
desintegração da Europa. Nenhuma parcela desse dano foi feita por
inimizade. Pelo contrário, enquanto persistiu o antagonismo indicado
pela Doutrina Monroe,
a Europa tinha uma chance de se ajustar. A amizade da América, que
despejou uma torrente de energia, foi fatal.
Enquanto os
Estados Unidos estavam começando a existir como um punhado de
colônias alegremente desprezadas, algo estranho aconteceu no
pensamento europeu; por causa da ciência, ele retrocedeu ao
determinismo nas esferas social e política.
O livre
arbítrio como doutrina positiva era a afirmação original do
Cristianismo. A morte é o único evento inevitável em toda vida
humana; portanto, foi tomada pelo mundo pagão como prova definitiva
de que “o destino de cada homem está marcado em sua testa”.
Quando a morte passou a ser considerada um evento no tempo que
emanciparia a alma da temporalidade para uma esfera mais ampla, o
livre arbítrio passou a fazer parte da fé. (As principais heresias
do Cristianismo sempre pularam de volta para o fatalismo.)
O Cristianismo tendeu para Roma como seu centro de organização,
porque no sistema político romano o livre arbítrio era considerado
legítimo, não em uma margem precária, mas como o princípio
operativo, em contraste com o determinismo de massa da democracia
grega ou o beco sem saída do despotismo asiático.
Mas os mil
anos de regime de status na Europa, apesar da modificação
preservada pela Igreja, cultivaram em seus súditos uma fadiga
profunda. Era difícil esquecer a queda do Império Romano, uma vez
que os homens lutaram inutilmente para mantê-lo funcionando; seu
fracasso fez com que perdessem a confiança em suas próprias
capacidades e habilidades. A figura do Nobre Selvagem sinaliza o
descrédito do governo de status, mas apenas por negação. A fusão
gradual entre Igreja e Estado — que ocorreu tanto nos países
católicos como nos protestantes — tirou da Igreja sua função de
oposição à administração secular e facilitou o surgimento do
Estado Absoluto. Ao mesmo tempo, a explicação de Galileu para o
sistema solar, à primeira vista, levou a uma filosofia mecanicista.
A ciência aplicada à invenção mecânica parecia confirmar essa
implicação; e foi levada a especulações sobre as relações
sociais, incluindo a economia política. No conjunto, o livre
arbítrio praticamente desapareceu do contexto intelectual da Europa.
Não de
maneira consciente, mas no fundo de sua mente, os europeus sentiam
que haviam tentado tanto a política como a religião e nenhuma
“funcionava”. Esse é o sentido sugerido das reflexões
aparentemente sem opinião de Montaigne. Ele não chegou à
conclusão, mas parou no ponto de inflexão. Nunca atacava nem a
Igreja nem o Estado diretamente; procurava, em vez disso, um desvio;
sua aparência exterior de conformidade era uma fuga tácita. Quando
disse que, se fosse acusado de roubar as torres de Notre Dame,
fugiria do país antes de tentar defender sua inocência num
tribunal, a conclusão é evidente: não era possível ter justiça
pela lei. A atitude é legítima como um ponto de partida para uma
investigação, mas racionalmente deveria levar a um exame do sistema
legal existente e dos corretos axiomas do direito, um caminho que
seria trilhado em seguida com resultados úteis. O que Montaigne fez
foi montar, pedaço por pedaço, fragmentos de evidências do
comportamento humano a partir dos quais o homem “natural” pudesse
ser sintetizado. Mas ele também nunca disse isso; embora suas
evidências tendam a indicar primordialmente que o homem é um
produto do ambiente. Mais tarde, quando a teoria do homem “natural”
foi formulada, a teoria mecanicista do universo havia conquistado
credibilidade na filosofia europeia. Deus era um matemático;
Descartes e Newton eram Seus profetas. Na verdade, Descartes admitia
que o homem era uma exceção em sua filosofia matemática, estando
“continuamente em contato com a Ideia Divina”, mas os cartesianos
de uma geração posterior chegaram a afirmar que os animais eram
meras máquinas, incapazes de sentir dor.
Um passo a mais e o homem estritamente “natural” também foi
reduzido a um mecanismo nesse universo mecanicista.
Nesse ponto,
alguns pensadores sociais afirmaram que, se as restrições
artificiais da sociedade fossem abolidas, o homem como mecanismo
funcionaria perfeitamente e precisamente conforme projetado. Mas não
tentaram explicar como um mecanismo absolutamente natural num
universo estritamente mecanicista poderia ter desenvolvido e imposto
restrições “artificiais” a si mesmo, contrárias à sua própria
natureza e maquinaria. Quando a questão foi colocada, como pôde a
escola rigidamente mecanicista negar que “o que quer que seja, é o
certo”, porque não poderia ser de outra maneira? Porém, se eles
desejavam mudar a “sociedade”, deveriam supor que alguma coisa
estava errada com ela. Naquele momento, foram obrigados a ignorar
essa dificuldade; e, quando Marx avançou contra ela mais tarde com
seu materialismo dialético, sua suposta solução simplesmente
asfixiou a questão, postulando que algumas partes do mecanismo
poderiam obedecer o conselho da merluza ao caracol,
e mover-se um pouco mais rápido se quisessem, ou retardar-se, se
fossem teimosas. A máquina universal absoluta e perfeita tinha uma
propensão a ficar maluca.
Enquanto
isso, é extraordinário que os colonos ingleses na América, de
origem puritana, que eram fatalistas por religião, defendessem o
livre arbítrio em seus assuntos seculares, contra a corrente da
Europa. Mas foi o que eles fizeram. Foram capazes de alcançar essa
façanha intelectual restringindo a predestinação a seu significado
exato e literal de um destino final, céu ou inferno. Nesta terra,
haviam conseguido chegar à América por seu próprio esforço,
confrontando a autoridade ou escapando dela. Então, superaram as
enormes dificuldades da terra selvagem, acabando por estabelecer um
governo local. Portanto, tinham fundamentos para acreditar no livre
arbítrio político ou temporal; e, em boa hora, provaram essa
convicção, com a grande demonstração que foi a revolução. (Não
estou dizendo que somente os puritanos ou seus descendentes
contribuíram para esse resultado; mas fizeram sua parte, ao passo
que, na Europa, homens que eram originalmente da mesma fé
concordaram que a doutrina determinista servisse ao Estado Absoluto.)
A filosofia
mecanicista é uma importação muito posterior na América; e é
completamente importada. Não decorre de nosso maquinário e
absolutamente não criou a era das máquinas. Quando os americanos
começaram a inventá-las e usá-las, eram da firme opinião de que
produziam e faziam funcionar aqueles dispositivos a seu bel-prazer,
sem nenhuma bobagem de que as máquinas “determinavam” ou
“criavam” coisa nenhuma. Máquinas, para um americano, ainda são
uma expressão do livre arbítrio. É difícil para um americano
viajar num carro como mero passageiro; mentalmente, ele o dirige.
Mas o que os
europeus queriam era algo que funcionasse e fizesse a humanidade
funcionar junto, sem precisar de mais nada dos homens exceto sua
submissão passiva. Recusando-se a reconhecer que até mesmo a vida
de um selvagem exige uma adaptação voluntária e extremamente
ativa, os europeus se imaginaram abaixo da selvageria. A “Natureza”
se personificou no “despotismo esclarecido”; antes do final do
século 18, a Europa estava pedindo abertamente por um ditador.
“A pista
central para o programa de reforma dos filósofos era sua fé na lei
natural… Tudo o que era necessário para destravar o milênio era
um legislador supremo, um Euclides das ciências sociais, que
descobriria e formularia os princípios naturais da harmonia social.
As generalizações matemáticas que formaram as bases da física
foram propostas por poucos pensadores audazes, e parecia uma
suposição razoável que as leis fundamentais da sociedade humana
fossem, da mesma maneira, descobertas por algum gênio inspirado, em
vez de por uma assembleia parlamentar.”
Apesar de
falarem em nome da ciência, não se deram ao trabalho de usar o
método científico de definição de termos; usavam as palavras
monarquia, democracia e república de maneira permutável e da forma
mais conveniente para qualquer ditador que pudesse se aproveitar de
sua oferta. Napoleão foi a resposta. “Ao deixar indefinida a forma
ideal de governo, possibilitaram que Napoleão unisse as tradições
republicana e monárquica numa fórmula de despotismo democrático.”
Napoleão
foi a criação dos planejadores acadêmicos. Mas não foi, de modo
algum, a primeira tentativa, embora normalmente seus predecessores
não sejam reconhecidos. A consorte de Jorge II,
a Rainha Carolina, defendia a mesma doutrina e acreditava que estava
colocando-a em prática, sem o conhecimento de seus súditos, com
Walpole
como seu agente. Mas nenhum dano ocorreu, uma vez que Walpole
precisava de que suas políticas fossem executadas pelo Parlamento. O
método indireto, pelo qual Carolina manipulava Jorge e Walpole
manipulava Carolina, simplesmente completou a transferência de poder
da Coroa para os Comuns, embora a aristocracia agrária ainda
retivesse, durante o processo de transição, a maior parte dos
cargos executivos. A fonte da ideia de “despotismo benevolente”
para Carolina foi a avó de Jorge II, a Eleitriz Sofia,
que a aprendeu com Leibniz.
Por outro caminho, a mesma ideia foi passada para Jorge III,
que tentou encarná-la como o “Rei Patriota”. Seus esforços
bem-intencionados eram incompreensíveis e exasperadores para os
ingleses, que não tinham dissociado a razão do senso comum; e
quando Jorge tornou-se certificadamente louco, ninguém se
surpreendeu.
Mas, no
continente, foi em concordância com essa teoria de um legislador
autocrático inexplicavelmente incumbido de ministrar a “lei
natural” que Voltaire se aproximou de Frederico, o Grande,
e Diderot de Catarina, a Grande;
e Madame de Staël
estava ansiosa por adular Napoleão e disse a Alexandre da Rússia:
“Seu caráter, Majestade, é uma constituição.” Atribui-se a
Turgot
a frase: “Deem-me cinco anos de despotismo e a França será
livre.” Uma vez que a França já tinha tido cem anos de despotismo
e não era livre, parece que a única objeção que os filósofos
tinham contra os Bourbons é que eles não foram suficientemente
despóticos. Esta é a vanguarda dos modernos “progressistas”.
A Europa
nunca desistiu dessa fantasia do deus ex machina; ela reaparece a
cada reviravolta dos eventos. Revela-se nas palavras da Imperatriz
Eugênia,
falando do Império efêmero de Maximiliano,
no México, quando ela disse que Maximiliano deveria ter estabelecido
uma ditadura no padrão daquela de Napoleão III, “uma ditadura que
trouxesse liberdade e um homem suficientemente capaz para manter as
duas lado a lado”. As palavras não significam absolutamente nada;
ela falava por força do hábito. O próprio Maximiliano explicou que
“precisava de uma grande força para impor reformas e melhorias; o
povo aqui tem de ser obrigado ao que é bom”. Sua imperatriz
Carlota, quando enlouqueceu, sonhava que Maximiliano era “rei da
terra e soberano do universo”.
Durante a
Revolução Francesa, Burke
comentou sobre os monarquistas franceses exilados na Inglaterra que,
exceto por declarações de afeto às pessoas do Rei e da Rainha da
França, esses refugiados aristocráticos “falavam como jacobinos”.
Obviamente, eles não estavam conscientes disso; e Burke diria a
verdade se acrescentasse que os jacobinos, em companhia da maioria
dos revolucionários europeus dos séculos 18 e 19, falavam como
monarquistas absolutistas. O slogan dos cartistas ingleses era:
“Poder político nosso meio, felicidade social nosso fim”. A
“ditadura do proletariado” de Marx, a partir da qual “o Estado
se desmancharia”, foi uma repetição posterior. A versão atual
desse disparate fatal foi ecoada por um jornalista americano depois
de uma visita à Rússia comunista; na versão dele, “a Rússia
está lançando as bases de uma sociedade evolucionária, que vai
passar por estágios previstos e planejados de crescimento, por meio
do industrialismo, de uma ditadura política absoluta para a
liberdade, democracia e paz… Uma cultura científica, não uma
cultura moral.” O massacre e a inanição de milhões de pessoas,
escolhidas como vítimas especificamente por causa de seu caráter
produtivo e inteligência livre, foi o resultado de longo prazo da
teoria mecanicista do universo. E o séquito do Juggernaut
sagrado forma uma procissão notável: Frederico, Catarina, Carolina,
Madame de Staël, os dois Jorges, os dois Napoleões, Eugênia,
Carlota, Marx, Lênin e uma trilha servil de jornalistas.
Enquanto
isso, John Stuart Mill, declarando-se o paladino da liberdade,
vendeu-a baratinho outra vez para a “sociedade”. Ou seja, admitiu
que a liberdade pessoal só se justifica se servir ao bem coletivo.
Então, se for possível formular um argumento plausível que negue
que ela sirva — e tal argumento parecerá plausível porque não
existe bem comum —, obviamente a escravidão será correta.
Os sonhos
persistentes da humanidade são juventude e beleza eternas e poder
absoluto. Os dois primeiros devem ser buscados por si mesmos, uma vez
que não podem ser disfarçados por um pretexto moral. Nas mitologias
mais antigas, são imaginados como presentes dos deuses para alguns
mortais afortunados. Com a aurora da ciência, a esperança foi
transferida para a expectativa de um Elixir da Vida, a ser descoberto
pela pesquisa. Nenhum desses desejos pode fazer grande mal. O Bispo
Berkeley, o filósofo, estava misteriosamente convencido de que a
água de alcatrão era uma panaceia para quase todos os males do
corpo. Pode-se adivinhar porque ele dotou essa prescrição
irrelevante de tais propriedades mágicas; ele não tinha um motivo
mais profundo. O ponto significativo não é simplesmente que a água
de alcatrão não pode fazer o que Berkeley acreditava que podia.
Nada pode. O que ele desejava é irrealizável na natureza das
coisas. Existem drogas mortíferas mas não existe um elixir da vida
para o corpo físico. Mesmo assim, esse desejo tem uma inteligência
residual, que leva a resultados benéficos na melhoria da saúde e da
beleza por meio do estudo racional da biologia e da higiene.
Na mecânica,
imaginou-se uma impossibilidade semelhante, um Moto Perpétuo. Aqui,
a ciência genuína enfrenta uma dificuldade, até aqui não
resolvida, em definir o que é energia ou descobrir suas propriedades
definitivas. A ciência estrita é confinada a medições; suas
descobertas têm de ser quantitativas. Trabalhando com matéria
inorgânica, a ciência postula a Segunda Lei da Termodinâmica, que
diz que a energia “decai”, pela conversão de uma manifestação
cinética para estática. Os dois aspectos da energia são
exemplificados num homem andando, movido pela energia cinética e
colidindo contra uma parede de pedra, onde encontra energia estática.
A parede tem resistência, que é mensurável em termos de energia
pela força necessária para rompê-la; e a energia cinética,
reciprocamente, é medida pelo que ela pode mover, em forma estática.
Agora, se
considerarmos que a energia do universo inteiro, pela qual ele se
move, está completamente definida em teros de suas propriedade
manifestas por meio da matéria inorgânica, a energia universal deve
existir numa quantidade fixa; e deve também estar sujeita à Segunda
Lei da Termodinâmica, pela qual o universo inteiro está fadado a
“decair” finalmente, e tornar-se uma massa escura, congelada e
imóvel, absolutamente estática, e permanecer assim para todo o
sempre. Certamente, a Segunda Lei da Termodinâmica é válida com
respeito à energia utilizada por meio de materiais inanimados; a
engenharia e a mecânica devem ser governadas por este princípio
para chegarem a resultados. Mas, se assumíssemos que o mesmo
princípio governasse a energia universal como tal — em vez de ser
simplesmente uma fase de sua transmissão através de certos
elementos inorgânicos — ele evocaria um fenômeno inicial, a
“partida” do mecanismo universal em primeiro lugar, pela
existência primária de uma quantidade fixa de energia cinética:
como ou de onde a hipótese não pode pretender explicar e nem mesmo
contemplar.
A hipótese
religiosa na natureza do universo é, na verdade, muito mais
racional, postulando um Primeiro Princípio (Deus), a Fonte de
energia, que não “decai”, não é mensurável e se apresenta às
nossas faculdades racionais tanto em aspectos eternos como temporais,
pelos fenômenos mensuráveis da matéria inorgânica e pela própria
faculdade racional, que é de ordem não mensurável, indicando um
elemento divino no homem, a alma imortal. A partir desse Primeiro
Princípio, o universo não precisa decair; as fases dos elementos
inorgânicos que estão sujeitas à Segunda Lei da Termodinâmica
seriam secundárias em relação ao Primeiro Princípio Criativa que
completa o circuito eterno, se renovando eternamente, por meio de
outros processos nos quais o homem ainda não penetrou.
Agora, a
partida do “motoperpétuo”, de maneira confusa, está se
aproximando do absurdo da visão mecanicista estritamente
quantitativa do universo, que implica que, de alguma maneira, a
maquinaria cósmica foi configurada em potencial e, então, posta em
movimento com uma dada quantidade de energia cinética que devemos
supor que já “estava lá”; depois disso, continuou funcionando
“por si mesma”, sem nenhum suprimento posterior, e deve continuar
assim até que decaia totalmente, pela exaustão da quantidade.
Assim, a partida do moto perpétuo, aproximando-se do suposto
problema, admite que seu mecanismo precisa ser iniciado
pela introdução normal de energia de uma fonte externa. Depois
disso, diz-se, ele continuará funcionando por si mesmo
indefinidamente.
Essas são a
alegação e a exigência feitas por todos os que prometem a
felicidade final por meio de um despotismo inicial. Poucos anos de
força externa, a ditadura do proletariado ou da elite, governo
absoluto — e, então, nada mais de esforço, nada mais de
necessidade de inteligência, uma máquina funcionando continuamente
— até o fim. A teoria do comunismo marxista é exatamente a da
Máquina de Moto Perpétuo, ponto por ponto, porque ela estipula que
o sistema produtivo criado pela livre iniciativa é um pré-requisito,
que será tomado pela máquina comunista.
Assim, o
sonho de poder também é suscetível a duas interpretações, uma
incalculavelmente benéfica e a outra viciosa, causa de miséria
infinita. Quando direcionado ao domínio da natureza, o ordenamento
da matéria inorgânica pelo conhecimento da lei natural, é
criativo, não apenas em bens materiais mas no enriquecimento da
personalidade humana. O desenvolvimento mais recente ocorre porque no
homem, o ser pensante, a razão é o atributo
individualizante. Observadores argutos
descobriram que povos primitivos, como os esquimós, manifestam uma
psicologia “coletiva”, a tal ponto que, em ações em grupo, a
consciência da individualidade fica obscurecida. A razão envolvida
na ação se funde com o instinto pelo hábito. Não é a ação
conjunta nem o pensamento semelhante em termos racionais conscientes
que induzem essa “unidade” coletiva; é o
fato de não pensar naquele dado momento. O
exercício do intelecto no raciocínio abstrato leva os homens
inteligentes a conclusões semelhantes por meio de sequências
lógicas e, ao mesmo tempo, desenvolve sua individualidade; porque
pensar é uma função individual.
Portanto, o
coletivista, para alcançar seu objetivo, o estado ou sociedade
coletivos, busca o único tipo de organização, a agência política,
que é diretamente proibitória e tende a fazer com que os homens
parem de pensar. Esta é a interpretação maligna do sonho de poder
sua perversão na luxúria por poder sobre outros homens, em vez do
domínio da natureza.
A luxúria
pelo poder é muito facilmente disfarçada sob motivos humanitários
ou filantrópicos. Apela naturalmente a pessoas que sentem um
desconforto emocional pelos infortúnios dos outros, misturado a uma
ânsia por aprovação imerecida, ainda mais se não são
produtivas.
Uma criança amável, que deseja um milhão de dólares vai
normalmente “pretender” distribuir metade de sua riqueza
ilusória. A guinada do motivo se mostra pelo fato de que seria
igualmente fácil desejar que essa sorte inesperada fosse diretamente
para os outros, sem se imaginar como intermediária de sua
felicidade. A criança pode imaginar que ganha o dinheiro
trabalhando, embora mesmo assim a imaginação também pudesse
incluir os outros ganhando dinheiro trabalhando; mas, como regra, o
dinheiro viria de um suprimento indeterminado disponível sem esforço
e já existente — uma máquina de motoperpétuo. A criança nem se
dá conta de que pessoas que precisam de ajuda também podem imaginar
por si mesmas um milhão de dólares. A gratificação dupla, das
necessidades pessoais e do poder por “fazer o bem”, é estipulada
inocentemente. Levada aos anos adultos, essa auto glorificação
ingênua se transforma em ódio positivo a qualquer sugestão de que
as pessoas ajudem a si mesmas por seu próprio esforço individual,
por meios não-políticos que não impliquem em poder sobre outros,
sem um aparato compulsório. O ódio tem um motivo profundo por trás
de si; é verdade que nada, exceto meios
políticos pode produzir adulação pública
imerecida. Perguntemos como uma pessoa completamente desprovida de
talento, habilidade, realizações, sabedoria, beleza, charme ou
mesmo da capacidade prática de ganhar a vida com um trabalho
rotineiro pode se tornar objeto de atenção bajulatória, ser
saudada com aplauso e ter suas mais medíocres futilidades apreciadas
— obviamente, a única resposta é uma posição política. Uma
grande fortuna privada pode granjear um círculo privado de sicofantas; mas apenas o decreto imperial poderia dar a Nero uma
audiência para seu canto ou arrebatar aplausos da multidão para
Calígula.
Mas o sonho
racionalizado do Estado Absoluto tem uma implicação histórica
especial em sua repetição. Os períodos em que se cristalizou na
literatura são imensamente significativos.
Os três
mais famosos esquemas de papel desse tipo são a “Politeia”, ou o
estado ideal, de Platão, traduzida erroneamente como “A
República”,
a Utopia de Thomas More e a Terra Prometida sem nome de Marx, que
surgiria depois da destruição do capitalismo. O que elas têm em
comum em sua forma é que todas são finais; são arranjos nos quais
os seres humanos se encaixam como partes especializadas de um padrão.
Suas relações sociais e econômicas não admitem nem a ordem
biologicamente natural mas matematicamente irregular e entrelaçada
da família, nem a faculdade criativa imprevisível do indivíduo. A
fôrma é colocada para impedir variação ou mudança. São
sociedades estáticas. Platão e More fizeram o indivíduo súdito da
organização cívica e Marx o fez súdito da indústria mecanizada.
Mas o que
elas têm em comum com respeito a época em que foram imaginadas
revela seu significado verdadeiro. Cada uma marca uma era em que
novos desenvolvimentos já haviam ocorrido que
tornaram impossível uma sociedade estática.
Os homens que escreveram esses sonhos eram sismógrafos. Sentiram a
mudança iminente, como se a terra se mexesse sob seus pés; e sua
mente procurou refúgio numa fantasia de um mundo não sujeito à
mudança. Platão viveu numa época em que os gregos formulavam os
princípios básicos da ciência. Sir Thomas More viveu nos anos
perigosos do Renascimento, o reviver da ciência. Marx testemunhou a
revolução industrial, a aplicação da ciência. As três fantasias
são reações da Era da Energia.
Platão era
um literato; seu senso artístico de forma estava inquieto e ele
tentou compensar isso com um planejamento rigoroso. More era um homem
inteligente e um sábio; ele rotulou sua criação francamente pelo
que era: Utopia significa Lugar Nenhum. Marx era um tolo; ofereceu
seu esquema como uma previsão do futuro.
É por meio
desse modelo imposto de mecanismo que a Europa observou os Estados
Unidos desde o início; a estultificação não poderia ir além. O
princípio da harmonia social é a liberdade, os direitos do
indivíduo; essa é a lei natural do homem, que os Estados Unidos
descobriram e formularam, antes da Revolução Francesa.
Henry
Adams,
que testemunhou a Era da Energia depois que ela já havia avançado
muito, passou a vida empenhado em descobrir a ligação entre o
último século da Idade Média e a moderna explosão de energia nas
aplicações cinéticas. Ele encontrou a pista, analisou-a e deixou-a
escapar. Qual a relação, perguntou ele, entre a Virgem e o Dínamo?
Sua pergunta não era irreverente nem irrelevante. Adams percebeu que
depois que a majestade da Lei Divina foi estabelecida na filosofia
medieval por lógica rigorosa, a imagem da Virgem tornou-se mais
proeminente na religião, como objeto de honras e petições.
Reconheceu que isso se devia ao fato de que a Virgem representava um
elemento não constrangido, graça ou misericórdia, que implica no
livre arbítrio do homem, disponível para decisões contínuas.
Então, o homem não estaria preso a uma sequência determinada de
maneira irrevogável, como é o caso de uma máquina. O homem não é
uma máquina. Mas, nesse ponto, Henry Adams não percebeu que é pela
liberdade da vontade pessoal que o homem é capaz de perseguir seus
questionamentos intelectuais e produzir suas invenções. Essa é a
gênese do dínamo. Construído de acordo com as leis da mecânica, o
dínamo é determinístico; ou seja, deixado a si mesmo, ele para.
Então, se ele vai funcionar, deve ser pela vontade e inteligência
do homem. Uma economia de máquinas não pode
funcionar por uma filosofia mecanicista.