O Deus da Máquina, capítulo XX
O Humanitário com a Guilhotina
Isabel Paterson
A
maior parte dos males do mundo é causada por boas pessoas, e não
por acidente, lapso ou omissão. É o resultado de ações
deliberadas, feitas com longa perseverança, que essas pessoas
acreditam fazer motivadas por altos ideais e almejando fins
virtuosos. Pode-se provar que isso é verdade; não poderia ser
diferente. A porcentagem de pessoas positivamente mal-intencionadas,
viciosas ou depravadas é necessariamente pequena, porque nenhuma
espécie poderia sobreviver se seus membros fossem habitual e
conscientemente predispostos a prejudicar uns aos outros. A
destruição é tão fácil que mesmo uma minoria com intenções
persistentemente más conseguiria em pouco tempo exterminar a maioria
incauta de pessoas de boa vontade. Assassinato, roubo, pilhagem e
destruição estão facilmente ao alcance de todos os indivíduos a
qualquer momento. Se supusermos que só podem ser evitados pelo medo
ou pela força, se todos os homens possuíssem uma mentalidade
maligna, o que temeriam, ou quem imporia a força contra eles?
Certamente, se fosse computado todo o mal causado por criminosos
obstinados, concluiríamos que a quantidade de homicídios e a
extensão dos danos e perdas é desprezível na soma total de mortes
e devastação produzidas contra os seres humanos por seus pares.
Portanto, é óbvio que, em períodos em que milhões são
massacrados, pratica-se a tortura, impõe-se a fome e a opressão se
torna uma política, como ocorre hoje em grande parte do mundo e como
ocorreu com frequência no passado, isso deve ser por ordem de muitas
e muitas pessoas boas, e mesmo por sua ação direta, pelo que elas
consideram que seja um objetivo justo. Quando não são os
executantes imediatos, são culpados de aprovar, de criar
justificativas ou ainda de esconder fatos com o silêncio e com
discussões diversionistas.
É
óbvio que isso não poderia acontecer sem causa ou razão. E deve
ficar claro, no trecho acima, que “boas pessoas” significa “boas
pessoas”: pessoas que não agiriam por sua própria intenção
consciente com o objetivo de ferir seus semelhantes, e não
propiciariam tais atos, nem por perversão, nem para obter benefícios
pessoais para si mesmas. Boas pessoas desejam o bem a seus
semelhantes e desejam guiar suas próprias ações de acordo com
isso. Além disso, não quero deduzir nenhuma “transmutação de
valores”, que confunda o bem e o mal, nem sugerir que o bem produz
o mal, ou que não há diferença entre o bem e o mal, ou entre
pessoas bem e mal-intencionadas; nem tampouco que as virtudes das
boas pessoas não são realmente virtudes.
Então,
deve haver um erro muito grave nos meios pelos quais elas buscam
alcançar seus fins. Deve haver mesmo um erro em seus axiomas
primários, que permitem que elas continuem usando tais meios. Alguma
coisa está terrivelmente errada no método, em algum lugar. O que é?
É
certo que os massacres cometidos de tempos em tempos por bárbaros
que invadem regiões estabelecidas ou as crueldades caprichosas de
tiranos assumidos não perfazem um décimo dos horrores perpetrados
por governantes com boas intenções.
Conforme
a história chegou até nós, os antigos egípcios eram escravizados
pelo Faraó por meio de um esquema benevolente de “celeiros sempre
normais”. Era feita uma provisão contra a fome; e então as
pessoas eram forçadas a trocar suas propriedades e sua liberdade por
essas reservas que haviam sido tomadas de sua própria produção. A
dureza desumana dos antigos espartanos era praticada em nome de um
ideal cívico de virtude.
Os
primeiros cristãos foram perseguidos por razões de estado, o
bem-estar coletivo; e resistiram em nome do direito à personalidade,
porque cada um possuía uma alma individual. Aqueles que foram mortos
por Nero por pura diversão foram poucos, comparados aos executados
pelos imperadores posteriores, por razões estritamente “morais”.
Gilles de Retz1,
que assassinava crianças para satisfazer uma perversão abominável,
não matou mais de cinquenta ou sessenta. Cromwell2
ordenou o massacre de trinta mil pessoas de uma vez, incluindo
crianças de colo, em nome da justiça. Mesmo as brutalidades de
Pedro, o Grande3,
tinham como pretexto um plano para beneficiar seus súditos.
A
guerra atual começou com um tratado perjurado entre duas nações
poderosas (Rússia e Alemanha), que dizia que elas poderiam esmagar
seus vizinhos menores com impunidade. Esse tratado foi quebrado por
um ataque-surpresa contra o companheiro conspirador. Essa guerra
teria sido impossível sem o poder político interno que, em ambos os
casos, foi tomado com o pretexto de se fazer o bem à nação. As
mentiras, a violência, as matanças em massa foram praticadas
primeiro contra o povo de ambas as nações por seu respectivo
governo.
Pode ser dito, e pode ser verdade, que em ambos os casos os
detentores do poder são hipócritas viciosos; que seu objetivo
consciente era maligno desde o início; mesmo assim, não poderiam
ter chegado ao poder de forma alguma, exceto com
o consentimento e o auxílio de boas pessoas.
O regime comunista na Rússia foi estabelecido prometendo terra aos
camponeses, em termos que os que prometeram sabiam que eram
mentirosos. Tendo conseguido o poder, os comunistas tiraram dos
camponeses a terra que eles já possuíam; e exterminaram aqueles que
resistiram. Isso foi feito de maneira planejada e deliberada; e a
mentira foi elogiada como “engenharia social” por admiradores
socialistas na América. Se isso é engenharia, vender minério falso
é engenharia. Toda a população da Rússia foi submetida à coerção
e ao terror; milhares foram assassinados sem julgamento; milhões
foram mortos em trabalho forçado ou pela fome, em cativeiro. Da
mesma maneira, toda a população da Alemanha foi submetida à
coerção e ao terror, pelos mesmos meios. Com a guerra, russos em
campos alemães de prisioneiros e alemães em campos russos de
prisioneiros não sofreram nada pior e não tiveram um destino
diferente de seus compatriotas que, em grandes quantidades, sofreram
e continuam sofrendo abusos infligidos por seu próprio governo em
seu próprio país. Se existe alguma mínima diferença, é que são
submetidos não à vingança de inimigos declarados, mas à
proclamada benevolência de seus compatriotas. As nações
conquistadas da Europa, sob os calcanhares russos ou alemães, estão
simplesmente vivenciando o que os russos e os alemães sofrem há
anos, sob seus próprios regimes nacionais.
Além
disso, as principais figuras políticas hoje no poder na Europa,
incluindo aqueles que venderam seu país ao invasor, são
socialistas, ex-socialistas e comunistas; homens cujo credo era o bem
coletivo.
Com
tudo isso completamente demonstrado, temos o peculiar espetáculo em
que o homem que condenou milhões de seus compatriotas à fome é
admirado por filantropos cujo objetivo declarado é garantir que
todas as pessoas do mundo tenham um litro de leite. Um profissional
graduado do trabalho beneficente viajou metade do mundo para tentar
uma entrevista com esse mestre de seu ofício e para escrever
rapsódias se conseguisse tal privilégio. Para se manterem em seus
cargos, com o objetivo declarado de fazer o bem, semelhantes
idealistas acolhem o apoio político de corruptores, cafetões
condenados e assassinos profissionais. A afinidade entre esses tipos
se revela invariavelmente quando surge a ocasião. Mas qual é a
ocasião?
Por
que a filosofia humanitária da Europa do século dezoito prenuncia o
Reino do Terror? Não foi por acaso; é consequência da premissa, do
objetivo e dos meios propostos originalmente. O objetivo é fazer o
bem aos outros como uma justificativa primária
da existência. Os meios são o poder da coletividade. A premissa é
de que o “bem” é coletivo.
A
raiz da questão é ética, filosófica e religiosa, envolvendo a
relação do homem com o universo, da faculdade criativa do homem com
seu Criador. A divergência fatal ocorre em não se reconhecer a
norma da vida humana. Obviamente, há uma grande parcela de dor e
aflição que acompanha a existência. A pobreza, a doença e os
acidentes são possibilidades que, mesmo que reduzidas a um mínimo,
não podem ser completamente eliminadas dos riscos que a humanidade
deve enfrentar. Mas não são condições desejáveis, para serem
provocadas ou perpetuadas. Naturalmente, as crianças têm pais,
enquanto a maioria dos adultos tem boa saúde durante a maior parte
da vida e possui uma atividade útil que lhe dá o sustento. Essa é
a norma e a ordem natural. Doenças são marginais. Podem ser
aliviadas por um excedente marginal de produção; caso contrário,
absolutamente nada poderia ser feito. Portanto, não se pode supor
que o produtor exista apenas para o bem do não-produtor, o saudável
para o bem do doente, o competente para o bem do incompetente; ou
qualquer pessoa simplesmente para o bem de outra. (A consequência
lógica, se considerarmos que uma pessoa existe apenas para o bem de
outra, era realizada por sociedades semibárbaras, quando a viúva ou
os seguidores de um homem morto eram enterrados vivos em sua
sepultura.)
As
grandes religiões, que também são grandes sistemas intelectuais,
sempre reconheceram as condições da ordem natural. Prescrevem a
caridade, a benevolência, como uma obrigação moral, a ser cumprida
com o excedente do produtor. Ou seja, as religiões consideram a
caridade secundária
à produção,
pela razão inescapável de que sem produção não haveria nada para
ser dado. Consequentemente, determinam a regra mais severa, para ser
adotada voluntariamente apenas, para aqueles que desejam devotar sua
vida completamente aos trabalhos de caridade, por contribuições.
Isso sempre é considerado uma vocação especial, porque não
poderia ser um modo geral de vida. Uma vez que o esmoler4
tem de obter dos produtores os fundos ou bens que distribui, não
pode ter nenhuma autoridade para comandar; deve pedir. Quando subtrai
seu sustento dessas esmolas, não deve pegar mais que o necessário
para a mera subsistência. Como prova de sua vocação, deve até
renunciar à felicidade de uma vida familiar, se quiser receber a
aprovação religiosa formal. Nunca deverá receber conforto para si
mesmo a partir da miséria dos outros.
As
ordens religiosas sustentaram hospitais, criaram órfãos,
distribuíram comida. Parte dessas esmolas era distribuída
incondicionalmente, de maneira que não pudesse haver coerção sob o
manto da caridade. Não é decente obrigar um homem a perder sua alma
em troca de pão. Essa é a real diferença entre a caridade
prescrita em nome de Deus e aquela feita por princípios humanitários
ou filantrópicos. Se os doentes eram curados, os famintos
alimentados, os órfãos cuidados até crescerem, isso certamente era
bom e o bem não pode ser computado em termos simplesmente físicos;
mas a intenção dessas ações era guiar os beneficiários durante
um período de aflição e devolvê-los à norma se possível. Se os
aflitos pudessem ajudar a si mesmos em parte, tanto melhor. Se não
pudessem, o fato era reconhecido. Mas a maioria das ordens religiosas
fazia um esforço simultâneo para serem produtivas, de forma que
pudessem dar seu próprio excedente, além de distribuir doações.
Quando realizavam trabalho produtivo, como construir, dar aulas por
um preço razoável, plantar ou desenvolver indústrias e artes
suplementares, os resultados eram duradouros, não apenas nos
produtos em si, mas na ampliação do conhecimento e nos métodos
avançados, de maneira que, no longo prazo, elevavam o padrão de
bem-estar. E deve ser observado que esses resultados duradouros se
originavam do auto
aperfeiçoamento.
O
que um ser humano pode realmente fazer por outro? Ele pode doar, a
partir de seus próprios fundos e de seu próprio tempo, qualquer
coisa que tenha de sobra. Mas não pode conceder capacidades que a
natureza tenha negado ao outro; nem entregar seus meios de
subsistência sem tornar-se ele mesmo dependente. Se dá o que ganha,
precisa ganhar antes.
Sem dúvida, ele tem direito a uma vida doméstica, se puder
sustentar esposa e filhos. Deve, portanto, reservar o suficiente para
si e para sua família, para continuar a produção. Nenhuma pessoa,
mesmo que sua renda seja de dez milhões de dólares por ano, pode
cuidar de cada caso de necessidade do mundo. Mas, supondo que não
possua meios próprios, e ainda imagine que possa fazer com que
“ajudar os outros” seja o seu objetivo primário
e modo normal de vida, o que é a doutrina central do credo
humanitário, como ele vai por isso em prática? Foram publicadas
listas dos Casos Mais Necessitados, certificadas
por fundações de caridade seculares que pagam polpudos salários a
seus funcionários. Os necessitados foram investigados, mas não
ajudados. Das doações recebidas, os funcionários pagam primeiro a
si mesmos. Isso é embaraçoso até para a costumeira cara-de-pau do
filantropo profissional. Mas como escapar de confessá-lo? Se o
filantropo pudesse comandar
os meios do produtor, em vez de pedir uma parcela, poderia exigir o
crédito pela produção, estando em posição de dar ordens ao
produtor. Então, poderia culpar o produtor por não cumprir as
ordens de produzir mais.
Se
o objetivo primário do filantropo, sua justificação de vida, é
ajudar os outros, seu bem final exige
que os outros estejam necessitados.
Sua felicidade é a outra face da miséria deles. Se deseja ajudar a
“humanidade”, toda a humanidade tem de estar em necessidade. O
humanitário deseja ser uma causa primária na vida dos outros. Não
pode admitir nem a ordem divina nem a ordem natural, pelas quais os
homens têm o poder de ajudar a si mesmos. O humanitário se coloca
no lugar de Deus.
Mas
ele tem de encarar dois fatos desagradáveis; primeiro, os
competentes não precisam de sua ajuda; e, segundo, que a maioria das
pessoas, se não for pervertida, positivamente não quer que o
humanitário venha lhe “fazer bem”. Quando se diz que todos devem
viver primordialmente pelos outros, qual é o caminho exato a ser
seguido? Cada pessoa deve fazer exatamente o que qualquer outra
pessoa queira que ela faça, sem limites ou reservas? E somente o que
os outros querem que ela faça? E se várias pessoas fizerem pedidos
conflitantes? O plano é inviável. Talvez, então, ela deva fazer
apenas o que é de fato “bom” para os outros. Mas será que esses
outros sabem o que é bom para si mesmos? Não, isso é descartado
pela mesma dificuldade. Então, será que A fará o que acha que é
bom para B, e B o que acha que é bom para A? Ou será que A deve
aceitar apenas o que acha que é bom para B, e vice-versa? Mas isso é
absurdo. É claro que o que o humanitário realmente propõe é que
ele
fará o que acha que é bom para todos. É nesse ponto que o
humanitário instala a guilhotina.
Que
tipo de mundo o humanitário vislumbra, que lhe permite plena
capacidade de ação? Só poderia ser um mundo cheio de filas de pão
e hospitais, no qual ninguém retivesse o poder natural do ser humano
de ajudar a si mesmo ou de resistir a que as coisas sejam feitas por
ele. E é exatamente o mundo que o humanitário cria quando consegue.
Quando um humanitário deseja fazer com que todos tenham um litro de
leite, é evidente que não possui o leite e não pode produzi-lo por
si mesmo. Se não fosse assim, porque estaria simplesmente desejando?
Além disso, se tivesse de fato uma quantidade suficiente de leite
para conceder um litro a cada pessoa, mas seus potenciais
beneficiários conseguissem produzir leite por si mesmos, diriam:
Não, obrigado. Então, como o humanitário pode conseguir ter todo o
leite para distribuir e que todos estejam precisando de leite?
Só
existe uma maneira, que é usar o poder político em sua plena
extensão. Assim, o humanitário sente a máxima gratificação
quando visita ou ouve falar de um país no qual todos são
dependentes de cartões de racionamento. Onde a subsistência é
mantida por doações estatais, aquilo a que se aspira foi alcançado,
uma necessidade geral e um poder superior para “aliviá-la”. O
humanitário em teoria é o terrorista em ação.
As
boas pessoas concedem o poder que ele pede porque aceitaram sua falsa
premissa. O avanço da ciência deu a essa premissa uma
plausibilidade ilusória, com o aumento da produção. Já que existe
o suficiente para todos, porque os “necessitados” não podem ser
sustentados primeiro e a questão ser assim resolvida
permanentemente?
Se,
neste ponto, for perguntado como se define “necessitado” e de que
origem e com que poder esse sustento seria dado a eles, pessoas de
bom coração exclamariam indignadas: “Isso é se preocupar com
ninharias. Estreite-se a definição até o limite, mas existirá um
mínimo irredutível no qual não se pode negar que um homem que está
com fome, maltrapilho e sem abrigo é um necessitado. A origem do
alívio só pode ser os meios daqueles que não estão assim
necessitados. O poder já existe; se pode existir um direito de
cobrar impostos para sustentar exércitos, marinhas, polícia local,
construção de estradas ou qualquer outro objetivo imaginável, sem
dúvida deve existir um direito mais forte de cobrar impostos para a
preservação da própria vida.”
Muito
bem; tomemos um caso específico. Nos tempos difíceis da década de
1890, um jovem jornalista de Chicago estava preocupado com as
privações terríveis dos desempregados. Ele tentou acreditar que
qualquer homem que desejasse trabalhar honestamente conseguiria
encontrar um emprego; mas, para ter certeza, investigou alguns casos.
Por exemplo, um jovem de uma fazenda, onde a família talvez tivesse
o suficiente para comer, mas precisava de tudo o mais; o garoto
chegou a Chicago procurando emprego e certamente aceitaria qualquer
tipo de trabalho, mas não havia nada. Suponhamos que tenha voltado
para casa mendigando; havia outros que estavam a meio continente ou a
um oceano de casa. Não podiam voltar, por nenhum tipo de esforço
próprio; não há o que discutir a respeito. Simplesmente não
tinham como. Dormiam em becos, esperavam por rações escassas nos
sopões; e sofriam amargamente. Mais uma coisa; entre esses
desempregados havia algumas pessoas, é impossível dizer quantas,
que eram excepcionalmente empreendedoras, talentosas ou competentes;
e foi isso que as colocou naquela situação. Haviam se livrado da
dependência em um momento particularmente arriscado; fizeram uma
aposta alta. Extremos se encontravam entre os desempregados; os
extremos da iniciativa corajosa, do completo azar e da absoluta
imprudência e incompetência. Um ferreiro que trabalhava perto da
Ponte do Brooklin e deu dez centavos a um pobre para que ele pagasse
a passagem pela ponte não poderia imaginar que estivesse investindo
na imortalidade, na pessoa de um futuro Poeta Laureado da Inglaterra.
Mas o pobre era John Masefield5.
Assim, não se pense que os necessitados sejam sempre “pessoas sem
mérito”. Havia também pessoas no campo, em regiões afetadas pela
seca ou por pragas, que passaram por dificuldades terríveis e teriam
literalmente passado fome se não tivessem recebido ajuda. Também
não receberam muito e foi de maneira inconstante. Mas todos lutaram
pela fantástica recuperação do país inteiro.
Poderia
ter havido dificuldades muito maiores que a simples pobreza na linha
de subsistência, se não fosse pela ajuda entre vizinhos, que não
foi chamada de caridade. As pessoas sempre doam muito, se possuem; é
um impulso humano, do qual o humanitário se aproveita, para seu
próprio objetivo. Qual é o problema de institucionalizar esse
impulso natural em uma agência política?
Muito
bem; teria o garoto da fazenda feito alguma coisa errada quando saiu
de lá, onde tinha o suficiente para comer, e foi para Chicago pela
possibilidade de conseguir um emprego?
Se
a resposta for sim, então deve existir um poder legítimo que o
impeça de deixar a fazenda sem
permissão.
O poder feudal fazia isso. Não podia impedir as pessoas de passar
fome; simplesmente as obrigava a passar fome exatamente onde
nasceram.
Mas,
se a resposta for não, o garoto da fazenda não fez nada de errado,
ele tinha o direito de correr aquele risco, então, o que exatamente
pode ser feito para assegurar que ele não terá má sorte quando
chegar ao destino que escolheu? Será que um emprego deve estar
disponível para qualquer pessoa, em qualquer lugar para onde decida
ir? Isso é absurdo. Não pode ser feito. Ela tem direito a algum
tipo de assistência, quando chegar lá, desde que decida ficar; ou,
pelo menos, a uma passagem de volta para casa? É igualmente absurdo.
A demanda seria infinita; nenhuma abundância de produção
conseguiria cobri-la.
Mas,
e as pessoas empobrecidas pela seca? Elas não poderiam receber
assistência política? Mas deve haver condições. Deveriam receber
enquanto estiverem necessitadas, enquanto permanecerem onde estão?
(Não podem ser custeadas para uma viagem por tempo indeterminado.) É
exatamente o que foi feito nos últimos anos; e isso vem mantendo os
recebedores de assistência juntos, há sete anos, em lugares
miseráveis, perdendo tempo, trabalho e sementes no deserto.
A
verdade é que qualquer método proposto para cuidar da necessidade
marginal e das privações ocasionais da vida humana,
estabelecendo-se uma carga fixa permanente sobre a produção, seria
adotado com satisfação por aqueles que hoje se opõe a esse tipo de
medida, se
isso fosse viável.
Eles se opõem porque a ideia é inviável pela natureza das coisas.
São pessoas que já criaram todos os expedientes parciais possíveis,
na forma de seguros privados; sabem exatamente onde está a
armadilha, porque tiveram de enfrentá-la quando tentaram garantir
provisões para seus próprios dependentes.
O
obstáculo insuperável é que é absolutamente impossível obter
qualquer coisa da produção antes de garantir sua manutenção.
Se
fosse verdade que os produtores em geral, gerentes industriais e
outros, tivessem corações de aço temperado, e não se preocupassem
absolutamente com o sofrimento humano, ainda seria muito mais
conveniente para eles que a questão do alívio de todos os tipos de
privação — desemprego, doença ou velhice — pudesse ser
resolvida de uma vez, de maneira que eles não precisassem mais ouvir
falar no assunto. Estão sempre sendo atacados nesse ponto; e seus
problemas são duplicados quando a indústria encontra uma depressão.
Políticos podem conseguir votos por causa de privações;
humanitários obtêm lucrativos empregos administrativos distribuindo
fundos de assistência; somente os produtores, tanto capitalistas
como operários, têm de aguentar os insultos e pagar o pato.
O
problema pode ser explicado de maneira mais clara por um exemplo
concreto. Suponhamos que um homem seja dono de uma empresa lucrativa
e sólida, com um longo histórico de bom gerenciamento. Ele deseja
garantir que sua família seja sustentada pela empresa por tempo
indeterminado. Como dono, pode conceder ações preferenciais que
rendam determinada quantia; digamos que fossem apenas US$ 5.000,006
por ano em uma empresa que gerasse US$ 100.000,00 por ano de lucro
líquido. É o máximo que o dono da empresa é capaz fazer. E se, em
algum momento, a empresa não conseguisse gerar US$ 5.000,00 de lucro
líquido, sua família não receberia o dinheiro e isso é tudo. A
família poderia deixar a empresa falir e tomar posse dos ativos, e
esses ativos, depois da falência, poderiam não valer nada. É
impossível obter qualquer coisa da produção antes de garantir sua
manutenção.
Além
disso, é claro que sua família poderia hipotecar as ações,
entregá-las à “administração” de algum amigo “benevolente”
— já se viu esse tipo de coisa acontecer muitas vezes — e,
então, não receberiam o dinheiro de qualquer maneira. É mais ou
menos o que acontece com organizações de caridade que recebem
doações. Sustentam uma porção de bons amigos em empregos bacanas.
Mas
o que aconteceria se o empresário, por causa de seu afeto e
generosidade, determinasse, de maneira irrevogável, que sua esposa e
filhos teriam o poder de tirar recursos da empresa no valor sem
limites. Inocentemente, ele poderia ter certeza de que eles não
pegariam mais que uma pequena porcentagem, para suas necessidades
razoáveis. Mas poderia chegar o dia em que o caixa teria de dizer à
feliz esposa que não haveria dinheiro para pagá-la; e, com um
arranjo assim, certamente esse dia chegaria bem rápido. Em qualquer
caso, exatamente quando a família mais precisasse de dinheiro, a
empresa renderia menos.
Mas
o procedimento seria totalmente insano se o empresário desse a um
terceiro o poder irrevogável de retirar o valor que desejasse dos
recursos da empresa, com apenas um entendimento não obrigatório de
que esse terceiro devesse sustentar a família do dono. É nisso
exatamente que consiste a proposta de cuidar dos necessitados pelos
meios políticos. Ela dá aos políticos o poder de taxar o quanto
quiserem; e não existe absolutamente nenhuma forma de garantir que o
dinheiro vá para onde se pretendia que fosse. De todo modo, a
empresa não aguenta essa sangria sem limites.
Porque
pessoas bem intencionadas recorrem ao poder político? Elas não
podem negar que os meios de assistência aos necessitados têm de vir
da produção. Mas dizem que existe o suficiente e com sobras. Então,
devem supor que os produtores não aceitam dar o que é “certo”.
Além disso, supõem que existe um direito coletivo de criar
impostos, para qualquer objetivo que a coletividade determine.
Atribuem esse direito ao “governo”, como se o governo existisse
de maneira independente. Esquecem-se do axioma americano de que o
governo em si não existe de maneira independente, mas é instituído
pelos homens para atingir objetivos limitados. O próprio
contribuinte espera ter proteção do exército ou da marinha ou da
polícia; usa as estradas; por isso, seu direito de insistir em
limites para a carga tributária é auto evidente. O governo não tem
“direitos” sobre esse assunto, mas apenas uma autoridade
delegada.
Mas,
se os impostos serão criados para dar assistência aos necessitados,
quem vai julgar o que é possível ou benéfico? Tem de ser ou os
produtores, ou os necessitados ou algum terceiro grupo. Dizer que
serão os três juntos não é resposta; o veredito deve se basear
numa maioria ou pluralidade extraída de um grupo ou de outro. Os
necessitados podem votar eles mesmos para determinar qual a sua
necessidade? Os humanitários, o terceiro grupo, podem votar e eleger
a si mesmos para controlar tanto os produtores quanto os
necessitados? (É o que eles têm feito.) Entende-se assim que o
governo deve receber o poder de dar “segurança” aos
necessitados. Isso
é impossível.
O que o governo faz é confiscar a poupança acumulada por pessoas
privadas para sua própria segurança, tirando assim de todos
qualquer esperança de alguma possibilidade de segurança. Não há
mais nada que o governo possa fazer, se resolver agir de alguma
maneira. Aqueles que não entendem a natureza dessa ação são como
selvagens que derrubam uma árvore para colher os frutos; não pensam
em termos de tempo e espaço, como devem fazer os homens civilizados.
Já
vimos o que pode acontecer de pior quando só existem doações
privadas e assistência municipal improvisada de caráter temporário.
A ajuda privada desorganizada é aleatória e esporádica; nunca foi
capaz de impedir completamente o sofrimento. Mas também não
perpetua a dependência de seus beneficiários. É o método do
capitalismo e da liberdade. Envolve altos e baixos extraordinários,
mas o altos são sempre mais altos a cada vez, e de duração mais
longa que os baixos. E, nos períodos de maior privação, não
existe fome de verdade, não existe desespero absoluto, mas um
estranho tipo de raiva, um otimismo ativo e uma crença inabalável
em tempos melhores adiante, que os resultados justificam. Doações
privadas extraoficiais, esporádicas de fato realizam o objetivo.
Funcionaram,
mesmo que de maneira imperfeita.
Por
outro lado, o que o poder político tem condições de fazer? Um dos
supostos “abusos” do capitalismo é a sweatshop7.
Imigrantes vieram para a América sem um centavo, ignorantes do
idioma e sem capacitação profissional; foram contratados por
salários muito baixos, trabalhavam longas horas em ambientes sujos e
considera-se que eram explorados. Porém, misteriosamente, em algum
tempo sua condição melhorou; a grande maioria conseguiu conforto e
alguns enriqueceram. O poder político seria capaz de fornecer
empregos lucrativos para todos
que quisessem vir?
É evidente que não seria e não é. Mesmo assim, as pessoas boas
pediram que o poder político aliviasse o fardo desses
recém-chegados. O que ele fez? Sua primeira exigência foi de que
cada imigrante deveria trazer consigo certa quantia em dinheiro. Ou
seja, extinguiu a única esperança dos estrangeiros mais
necessitados.
Mais tarde, quando o poder político na Europa transformou a vida em
um inferno sombrio, mas um grande número de pessoas ainda poderia
ter acumulado a quantia exigida para admissão na América, o poder
político simplesmente limitou a admissão a uma quota. Quanto mais
desesperada a necessidade, menor a chance de o poder político
permitir que fosse atendida. Os muitos milhões na Europa não
ficariam felizes e gratos se pudessem ter apenas a pior chance que o
velho sistema concedia, em vez de campos de prisioneiros, porões de
tortura, humilhações vis e morte violenta?
O
empregador da sweatshop
não tinha muito capital. Arriscava o pouco que tinha contratando
gente. Foi acusado de fazer a eles um mal terrível e sua empresa se
tornou um exemplo revelador da brutalidade intrínseca do
capitalismo.
O
funcionário político é razoavelmente bem-pago, num emprego com
estabilidade. Sem arriscar nada, recebe seu salário para empurrar
pessoas desesperadas de volta das fronteiras, como se batesse em
homens se afogando que tentassem subir a bordo de um navio
bem-provisionado. O que mais ele pode fazer? Nada. O capitalismo fez
o que podia; o poder político faz o que pode. Casualmente, o navio
foi construído e abastecido pelo capitalismo.
Entre
o filantropo privado e o capitalista privado agindo como tais,
tomemos o caso do homem realmente necessitado, que não está
incapacitado, e suponhamos que o filantropo dê a ele comida, roupas
e abrigo — quando ele os tiver usado, estará exatamente onde
estava antes, com a diferença de que talvez tenha adquirido o hábito
da dependência. Mas suponhamos que alguém sem nenhum motivo
benevolente, simplesmente querendo que um trabalho seja feito por
suas próprias razões, contratasse o necessitado por um salário. O
empregador não fez uma boa ação. Porém, a condição do homem
empregado de fato mudou. Qual a diferença vital entre as duas ações?
É
que o empregador não-filantrópico levou o homem que contratou de
volta à linha de produção,
no grande circuito de energia; enquanto o filantropo pode apenas
desviar energia de tal maneira que não haja retorno para a produção
e, portanto, diminui a chance de que o objeto de sua caridade
encontre emprego.
Este
é o motivo racional, profundo, pelo qual os seres humanos evitam a
assistência e odeiam a própria palavra. É também o motivo pelo
qual aqueles que praticam trabalhos de caridade por vocação
verdadeira fazem tudo o que podem para que esse trabalho permaneça
marginal, e alegremente renunciam à oportunidade de “fazer o bem”
em favor de qualquer possibilidade de que o beneficiário trabalhe em
termos semitoleráveis. Aqueles que não podem evitar recorrer à
assistência demonstram os resultados em sua aparência física; são
isolados das fontes vivas de energia auto renovadora e sua vitalidade
afunda.
O
resultado, se forem mantidos recebendo assistência por tempo
suficiente pelos decididos filantropos e políticos unidos, foi
descrito por um profissional de assistência. A princípio, os
“clientes” se inscrevem com relutância. “Em poucos meses, tudo
muda. Descobrimos que aquele sujeito que só queria o suficiente para
superar a dificuldade agora aceita viver de assistência como um fato
da vida.” O funcionário que disse isso estava ele próprio
“vivendo de assistência como um fato da vida”; mas estava um
grande degrau abaixo de seu cliente, uma vez que nem mesmo se dava
conta de sua condição. Por que ele conseguia fugir à verdade?
Porque podia se esconder atrás da motivação filantrópica.
“Ajudamos a impedir a fome e agimos para que essas pessoas tenham
abrigo e roupas de cama.” Se perguntassem ao funcionário: “Você
planta a comida? Você constrói o abrigo? ou Você dá dinheiro de
sua própria renda para pagar por tudo isso?”, ele não enxergaria
que isso faz qualquer diferença. Foi ensinado de que é certo “viver
pelos outros”, por “objetivos sociais” e “ganhos sociais”.
Enquanto acreditar que está fazendo isso, não se perguntará o que
está necessariamente fazendo para
os outros, nem de onde devem vir os meios para sustentar sua
atividade.
Se
o papel total dos filantropos sinceros
fosse totalizado, desde o início dos tempos, descobriríamos que
todos eles juntos, por suas atividades filantrópicas estritas nunca
conferiram à humanidade um décimo do benefício derivado dos
esforços normalmente egoístas de Thomas Alva Edison8,
sem falar nas mentes maiores que desenvolveram os princípios
científicos que Edison aplicou. Incontáveis pensadores
especulativos, inventores e organizadores contribuíram para o
conforto, saúde e felicidade de seus semelhantes — porque esse não
era seu objetivo. Quando Robert Owen9
tentou dirigir uma fábrica visando a produção eficiente, o
processo casualmente melhorou alguns personagens muito pouco
promissores entre seus empregados, que haviam vivido de assistência
e, portanto, estavam tristemente degradados; Owen ganhou dinheiro; e
enquanto era esse seu objetivo, percebeu que, se melhores salários
fossem pagos, a produção poderia aumentar, tendo criado seu próprio
mercado. Isso era sensato e verdadeiro. Mas então Owen foi tocado
por uma ambição humanitária de fazer o bem a todos. Reuniu muitos
humanitários em uma colônia experimental; estavam tão imbuídos de
fazer o bem aos outros que ninguém fazia trabalho nenhum; a colônia
se dissolveu amargamente; Owen faliu e morreu levemente enlouquecido.
Assim, o importante princípio que ele vislumbrou teve de esperar um
século para ser redescoberto.
O
filantropo, o político e o cafetão se encontram inevitavelmente
aliados porque têm as mesmas motivações, buscam os mesmos fins:
existir para outros, por intermédio de outros e mantidos por outros.
E as boas pessoas não podem ser absolvidas de apoiá-los. Não se
pode acreditar que as boas pessoas sejam completamente inconscientes
do que realmente acontece. Mas, quando boas pessoas sabem de fato,
como certamente sabem, que três milhões de seres humanos (na
estimativa mais baixa) morreram de fome em um ano pelos métodos que
elas aprovam, por que ainda se confraternizam com os assassinos e
apoiam essas medidas? Porque disseram a elas que a morte lenta dos
três milhões poderia, ao final, beneficiar um número maior de
pessoas. Esse
argumento se aplica igualmente ao canibalismo.
1
Barão Gilles de Retz, ou de Rais (1405 - 1440): cavaleiro bretão,
líder do exército francês e companheiro de armas de Joana d'Arc,
foi enforcado pelo assassinato em série de um número indeterminado
de crianças. Não se sabe ao certo se ele era culpado ou não. (N.
do T.)
2
Oliver Cromwell (1599 - 1658): chefe de estado e governo da
Inglaterra, Escócia e Irlanda entre 1653 e 1658, com o título de
Lorde Protetor, depois da decapitação do rei Carlos I, em 1649.
(N. do T.)
3
Pedro, o Grande (1672 - 1725): czar e imperador da Rússia entre
1682 e 1725. (N. do T.)
4
Esmoler: em inglês, almoner. Capelão ou funcionário da
igreja encarregado da distribuição de donativos aos pobres. (N. do
T.)
5
John Masefield (1878 - 1967): poeta e escritor inglês, Poeta
Laureado do Reino Unido de 1930 até sua morte. (N. do T.)
6
US$1,00 de 1943 equivale a cerca de US$110,00 de 2014. (N. do T.)
7
Sweatshop: estabelecimento em que os empregados trabalham
longas horas, recebendo salários muito baixos, em condições
ambientais ruins. Essa expressão é muito comum em inglês. Mantive
no original porque não achei um equivalente igualmente expressivo.
(N. do T.)
8
Thomas Alva Edison (1847 - 1931): inventor e empresário americano.
Desenvolveu diversos dispositivos que influenciaram enormemente a
vida em todo o mundo, incluindo o fonógrafo, uma câmera para
filmar e um modelo de lâmpada elétrica viável comercialmente. Foi
um dos primeiros inventores a aplicar os princípios de produção
em massa e de grandes equipes de trabalho ao processo de invenção.
Considera-se que ele criou o primeiro laboratório industrial de
pesquisas. (N. do T.)
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