quarta-feira, 14 de maio de 2014

O Humanitário com a Guilhotina

O Deus da Máquina, capítulo XX
O Humanitário com a Guilhotina
Isabel Paterson


A maior parte dos males do mundo é causada por boas pessoas, e não por acidente, lapso ou omissão. É o resultado de ações deliberadas, feitas com longa perseverança, que essas pessoas acreditam fazer motivadas por altos ideais e almejando fins virtuosos. Pode-se provar que isso é verdade; não poderia ser diferente. A porcentagem de pessoas positivamente mal-intencionadas, viciosas ou depravadas é necessariamente pequena, porque nenhuma espécie poderia sobreviver se seus membros fossem habitual e conscientemente predispostos a prejudicar uns aos outros. A destruição é tão fácil que mesmo uma minoria com intenções persistentemente más conseguiria em pouco tempo exterminar a maioria incauta de pessoas de boa vontade. Assassinato, roubo, pilhagem e destruição estão facilmente ao alcance de todos os indivíduos a qualquer momento. Se supusermos que só podem ser evitados pelo medo ou pela força, se todos os homens possuíssem uma mentalidade maligna, o que temeriam, ou quem imporia a força contra eles? Certamente, se fosse computado todo o mal causado por criminosos obstinados, concluiríamos que a quantidade de homicídios e a extensão dos danos e perdas é desprezível na soma total de mortes e devastação produzidas contra os seres humanos por seus pares. Portanto, é óbvio que, em períodos em que milhões são massacrados, pratica-se a tortura, impõe-se a fome e a opressão se torna uma política, como ocorre hoje em grande parte do mundo e como ocorreu com frequência no passado, isso deve ser por ordem de muitas e muitas pessoas boas, e mesmo por sua ação direta, pelo que elas consideram que seja um objetivo justo. Quando não são os executantes imediatos, são culpados de aprovar, de criar justificativas ou ainda de esconder fatos com o silêncio e com discussões diversionistas.

É óbvio que isso não poderia acontecer sem causa ou razão. E deve ficar claro, no trecho acima, que “boas pessoas” significa “boas pessoas”: pessoas que não agiriam por sua própria intenção consciente com o objetivo de ferir seus semelhantes, e não propiciariam tais atos, nem por perversão, nem para obter benefícios pessoais para si mesmas. Boas pessoas desejam o bem a seus semelhantes e desejam guiar suas próprias ações de acordo com isso. Além disso, não quero deduzir nenhuma “transmutação de valores”, que confunda o bem e o mal, nem sugerir que o bem produz o mal, ou que não há diferença entre o bem e o mal, ou entre pessoas bem e mal-intencionadas; nem tampouco que as virtudes das boas pessoas não são realmente virtudes.

Então, deve haver um erro muito grave nos meios pelos quais elas buscam alcançar seus fins. Deve haver mesmo um erro em seus axiomas primários, que permitem que elas continuem usando tais meios. Alguma coisa está terrivelmente errada no método, em algum lugar. O que é?

É certo que os massacres cometidos de tempos em tempos por bárbaros que invadem regiões estabelecidas ou as crueldades caprichosas de tiranos assumidos não perfazem um décimo dos horrores perpetrados por governantes com boas intenções.

Conforme a história chegou até nós, os antigos egípcios eram escravizados pelo Faraó por meio de um esquema benevolente de “celeiros sempre normais”. Era feita uma provisão contra a fome; e então as pessoas eram forçadas a trocar suas propriedades e sua liberdade por essas reservas que haviam sido tomadas de sua própria produção. A dureza desumana dos antigos espartanos era praticada em nome de um ideal cívico de virtude.

Os primeiros cristãos foram perseguidos por razões de estado, o bem-estar coletivo; e resistiram em nome do direito à personalidade, porque cada um possuía uma alma individual. Aqueles que foram mortos por Nero por pura diversão foram poucos, comparados aos executados pelos imperadores posteriores, por razões estritamente “morais”. Gilles de Retz1, que assassinava crianças para satisfazer uma perversão abominável, não matou mais de cinquenta ou sessenta. Cromwell2 ordenou o massacre de trinta mil pessoas de uma vez, incluindo crianças de colo, em nome da justiça. Mesmo as brutalidades de Pedro, o Grande3, tinham como pretexto um plano para beneficiar seus súditos.

A guerra atual começou com um tratado perjurado entre duas nações poderosas (Rússia e Alemanha), que dizia que elas poderiam esmagar seus vizinhos menores com impunidade. Esse tratado foi quebrado por um ataque-surpresa contra o companheiro conspirador. Essa guerra teria sido impossível sem o poder político interno que, em ambos os casos, foi tomado com o pretexto de se fazer o bem à nação. As mentiras, a violência, as matanças em massa foram praticadas primeiro contra o povo de ambas as nações por seu respectivo governo. Pode ser dito, e pode ser verdade, que em ambos os casos os detentores do poder são hipócritas viciosos; que seu objetivo consciente era maligno desde o início; mesmo assim, não poderiam ter chegado ao poder de forma alguma, exceto com o consentimento e o auxílio de boas pessoas. O regime comunista na Rússia foi estabelecido prometendo terra aos camponeses, em termos que os que prometeram sabiam que eram mentirosos. Tendo conseguido o poder, os comunistas tiraram dos camponeses a terra que eles já possuíam; e exterminaram aqueles que resistiram. Isso foi feito de maneira planejada e deliberada; e a mentira foi elogiada como “engenharia social” por admiradores socialistas na América. Se isso é engenharia, vender minério falso é engenharia. Toda a população da Rússia foi submetida à coerção e ao terror; milhares foram assassinados sem julgamento; milhões foram mortos em trabalho forçado ou pela fome, em cativeiro. Da mesma maneira, toda a população da Alemanha foi submetida à coerção e ao terror, pelos mesmos meios. Com a guerra, russos em campos alemães de prisioneiros e alemães em campos russos de prisioneiros não sofreram nada pior e não tiveram um destino diferente de seus compatriotas que, em grandes quantidades, sofreram e continuam sofrendo abusos infligidos por seu próprio governo em seu próprio país. Se existe alguma mínima diferença, é que são submetidos não à vingança de inimigos declarados, mas à proclamada benevolência de seus compatriotas. As nações conquistadas da Europa, sob os calcanhares russos ou alemães, estão simplesmente vivenciando o que os russos e os alemães sofrem há anos, sob seus próprios regimes nacionais.

Além disso, as principais figuras políticas hoje no poder na Europa, incluindo aqueles que venderam seu país ao invasor, são socialistas, ex-socialistas e comunistas; homens cujo credo era o bem coletivo.

Com tudo isso completamente demonstrado, temos o peculiar espetáculo em que o homem que condenou milhões de seus compatriotas à fome é admirado por filantropos cujo objetivo declarado é garantir que todas as pessoas do mundo tenham um litro de leite. Um profissional graduado do trabalho beneficente viajou metade do mundo para tentar uma entrevista com esse mestre de seu ofício e para escrever rapsódias se conseguisse tal privilégio. Para se manterem em seus cargos, com o objetivo declarado de fazer o bem, semelhantes idealistas acolhem o apoio político de corruptores, cafetões condenados e assassinos profissionais. A afinidade entre esses tipos se revela invariavelmente quando surge a ocasião. Mas qual é a ocasião?

Por que a filosofia humanitária da Europa do século dezoito prenuncia o Reino do Terror? Não foi por acaso; é consequência da premissa, do objetivo e dos meios propostos originalmente. O objetivo é fazer o bem aos outros como uma justificativa primária da existência. Os meios são o poder da coletividade. A premissa é de que o “bem” é coletivo.

A raiz da questão é ética, filosófica e religiosa, envolvendo a relação do homem com o universo, da faculdade criativa do homem com seu Criador. A divergência fatal ocorre em não se reconhecer a norma da vida humana. Obviamente, há uma grande parcela de dor e aflição que acompanha a existência. A pobreza, a doença e os acidentes são possibilidades que, mesmo que reduzidas a um mínimo, não podem ser completamente eliminadas dos riscos que a humanidade deve enfrentar. Mas não são condições desejáveis, para serem provocadas ou perpetuadas. Naturalmente, as crianças têm pais, enquanto a maioria dos adultos tem boa saúde durante a maior parte da vida e possui uma atividade útil que lhe dá o sustento. Essa é a norma e a ordem natural. Doenças são marginais. Podem ser aliviadas por um excedente marginal de produção; caso contrário, absolutamente nada poderia ser feito. Portanto, não se pode supor que o produtor exista apenas para o bem do não-produtor, o saudável para o bem do doente, o competente para o bem do incompetente; ou qualquer pessoa simplesmente para o bem de outra. (A consequência lógica, se considerarmos que uma pessoa existe apenas para o bem de outra, era realizada por sociedades semibárbaras, quando a viúva ou os seguidores de um homem morto eram enterrados vivos em sua sepultura.)

As grandes religiões, que também são grandes sistemas intelectuais, sempre reconheceram as condições da ordem natural. Prescrevem a caridade, a benevolência, como uma obrigação moral, a ser cumprida com o excedente do produtor. Ou seja, as religiões consideram a caridade secundária à produção, pela razão inescapável de que sem produção não haveria nada para ser dado. Consequentemente, determinam a regra mais severa, para ser adotada voluntariamente apenas, para aqueles que desejam devotar sua vida completamente aos trabalhos de caridade, por contribuições. Isso sempre é considerado uma vocação especial, porque não poderia ser um modo geral de vida. Uma vez que o esmoler4 tem de obter dos produtores os fundos ou bens que distribui, não pode ter nenhuma autoridade para comandar; deve pedir. Quando subtrai seu sustento dessas esmolas, não deve pegar mais que o necessário para a mera subsistência. Como prova de sua vocação, deve até renunciar à felicidade de uma vida familiar, se quiser receber a aprovação religiosa formal. Nunca deverá receber conforto para si mesmo a partir da miséria dos outros.

As ordens religiosas sustentaram hospitais, criaram órfãos, distribuíram comida. Parte dessas esmolas era distribuída incondicionalmente, de maneira que não pudesse haver coerção sob o manto da caridade. Não é decente obrigar um homem a perder sua alma em troca de pão. Essa é a real diferença entre a caridade prescrita em nome de Deus e aquela feita por princípios humanitários ou filantrópicos. Se os doentes eram curados, os famintos alimentados, os órfãos cuidados até crescerem, isso certamente era bom e o bem não pode ser computado em termos simplesmente físicos; mas a intenção dessas ações era guiar os beneficiários durante um período de aflição e devolvê-los à norma se possível. Se os aflitos pudessem ajudar a si mesmos em parte, tanto melhor. Se não pudessem, o fato era reconhecido. Mas a maioria das ordens religiosas fazia um esforço simultâneo para serem produtivas, de forma que pudessem dar seu próprio excedente, além de distribuir doações. Quando realizavam trabalho produtivo, como construir, dar aulas por um preço razoável, plantar ou desenvolver indústrias e artes suplementares, os resultados eram duradouros, não apenas nos produtos em si, mas na ampliação do conhecimento e nos métodos avançados, de maneira que, no longo prazo, elevavam o padrão de bem-estar. E deve ser observado que esses resultados duradouros se originavam do auto aperfeiçoamento.

O que um ser humano pode realmente fazer por outro? Ele pode doar, a partir de seus próprios fundos e de seu próprio tempo, qualquer coisa que tenha de sobra. Mas não pode conceder capacidades que a natureza tenha negado ao outro; nem entregar seus meios de subsistência sem tornar-se ele mesmo dependente. Se dá o que ganha, precisa ganhar antes. Sem dúvida, ele tem direito a uma vida doméstica, se puder sustentar esposa e filhos. Deve, portanto, reservar o suficiente para si e para sua família, para continuar a produção. Nenhuma pessoa, mesmo que sua renda seja de dez milhões de dólares por ano, pode cuidar de cada caso de necessidade do mundo. Mas, supondo que não possua meios próprios, e ainda imagine que possa fazer com que “ajudar os outros” seja o seu objetivo primário e modo normal de vida, o que é a doutrina central do credo humanitário, como ele vai por isso em prática? Foram publicadas listas dos Casos Mais Necessitados, certificadas por fundações de caridade seculares que pagam polpudos salários a seus funcionários. Os necessitados foram investigados, mas não ajudados. Das doações recebidas, os funcionários pagam primeiro a si mesmos. Isso é embaraçoso até para a costumeira cara-de-pau do filantropo profissional. Mas como escapar de confessá-lo? Se o filantropo pudesse comandar os meios do produtor, em vez de pedir uma parcela, poderia exigir o crédito pela produção, estando em posição de dar ordens ao produtor. Então, poderia culpar o produtor por não cumprir as ordens de produzir mais.

Se o objetivo primário do filantropo, sua justificação de vida, é ajudar os outros, seu bem final exige que os outros estejam necessitados. Sua felicidade é a outra face da miséria deles. Se deseja ajudar a “humanidade”, toda a humanidade tem de estar em necessidade. O humanitário deseja ser uma causa primária na vida dos outros. Não pode admitir nem a ordem divina nem a ordem natural, pelas quais os homens têm o poder de ajudar a si mesmos. O humanitário se coloca no lugar de Deus.

Mas ele tem de encarar dois fatos desagradáveis; primeiro, os competentes não precisam de sua ajuda; e, segundo, que a maioria das pessoas, se não for pervertida, positivamente não quer que o humanitário venha lhe “fazer bem”. Quando se diz que todos devem viver primordialmente pelos outros, qual é o caminho exato a ser seguido? Cada pessoa deve fazer exatamente o que qualquer outra pessoa queira que ela faça, sem limites ou reservas? E somente o que os outros querem que ela faça? E se várias pessoas fizerem pedidos conflitantes? O plano é inviável. Talvez, então, ela deva fazer apenas o que é de fato “bom” para os outros. Mas será que esses outros sabem o que é bom para si mesmos? Não, isso é descartado pela mesma dificuldade. Então, será que A fará o que acha que é bom para B, e B o que acha que é bom para A? Ou será que A deve aceitar apenas o que acha que é bom para B, e vice-versa? Mas isso é absurdo. É claro que o que o humanitário realmente propõe é que ele fará o que acha que é bom para todos. É nesse ponto que o humanitário instala a guilhotina.

Que tipo de mundo o humanitário vislumbra, que lhe permite plena capacidade de ação? Só poderia ser um mundo cheio de filas de pão e hospitais, no qual ninguém retivesse o poder natural do ser humano de ajudar a si mesmo ou de resistir a que as coisas sejam feitas por ele. E é exatamente o mundo que o humanitário cria quando consegue. Quando um humanitário deseja fazer com que todos tenham um litro de leite, é evidente que não possui o leite e não pode produzi-lo por si mesmo. Se não fosse assim, porque estaria simplesmente desejando? Além disso, se tivesse de fato uma quantidade suficiente de leite para conceder um litro a cada pessoa, mas seus potenciais beneficiários conseguissem produzir leite por si mesmos, diriam: Não, obrigado. Então, como o humanitário pode conseguir ter todo o leite para distribuir e que todos estejam precisando de leite?

Só existe uma maneira, que é usar o poder político em sua plena extensão. Assim, o humanitário sente a máxima gratificação quando visita ou ouve falar de um país no qual todos são dependentes de cartões de racionamento. Onde a subsistência é mantida por doações estatais, aquilo a que se aspira foi alcançado, uma necessidade geral e um poder superior para “aliviá-la”. O humanitário em teoria é o terrorista em ação.

As boas pessoas concedem o poder que ele pede porque aceitaram sua falsa premissa. O avanço da ciência deu a essa premissa uma plausibilidade ilusória, com o aumento da produção. Já que existe o suficiente para todos, porque os “necessitados” não podem ser sustentados primeiro e a questão ser assim resolvida permanentemente?

Se, neste ponto, for perguntado como se define “necessitado” e de que origem e com que poder esse sustento seria dado a eles, pessoas de bom coração exclamariam indignadas: “Isso é se preocupar com ninharias. Estreite-se a definição até o limite, mas existirá um mínimo irredutível no qual não se pode negar que um homem que está com fome, maltrapilho e sem abrigo é um necessitado. A origem do alívio só pode ser os meios daqueles que não estão assim necessitados. O poder já existe; se pode existir um direito de cobrar impostos para sustentar exércitos, marinhas, polícia local, construção de estradas ou qualquer outro objetivo imaginável, sem dúvida deve existir um direito mais forte de cobrar impostos para a preservação da própria vida.”

Muito bem; tomemos um caso específico. Nos tempos difíceis da década de 1890, um jovem jornalista de Chicago estava preocupado com as privações terríveis dos desempregados. Ele tentou acreditar que qualquer homem que desejasse trabalhar honestamente conseguiria encontrar um emprego; mas, para ter certeza, investigou alguns casos. Por exemplo, um jovem de uma fazenda, onde a família talvez tivesse o suficiente para comer, mas precisava de tudo o mais; o garoto chegou a Chicago procurando emprego e certamente aceitaria qualquer tipo de trabalho, mas não havia nada. Suponhamos que tenha voltado para casa mendigando; havia outros que estavam a meio continente ou a um oceano de casa. Não podiam voltar, por nenhum tipo de esforço próprio; não há o que discutir a respeito. Simplesmente não tinham como. Dormiam em becos, esperavam por rações escassas nos sopões; e sofriam amargamente. Mais uma coisa; entre esses desempregados havia algumas pessoas, é impossível dizer quantas, que eram excepcionalmente empreendedoras, talentosas ou competentes; e foi isso que as colocou naquela situação. Haviam se livrado da dependência em um momento particularmente arriscado; fizeram uma aposta alta. Extremos se encontravam entre os desempregados; os extremos da iniciativa corajosa, do completo azar e da absoluta imprudência e incompetência. Um ferreiro que trabalhava perto da Ponte do Brooklin e deu dez centavos a um pobre para que ele pagasse a passagem pela ponte não poderia imaginar que estivesse investindo na imortalidade, na pessoa de um futuro Poeta Laureado da Inglaterra. Mas o pobre era John Masefield5. Assim, não se pense que os necessitados sejam sempre “pessoas sem mérito”. Havia também pessoas no campo, em regiões afetadas pela seca ou por pragas, que passaram por dificuldades terríveis e teriam literalmente passado fome se não tivessem recebido ajuda. Também não receberam muito e foi de maneira inconstante. Mas todos lutaram pela fantástica recuperação do país inteiro.

Poderia ter havido dificuldades muito maiores que a simples pobreza na linha de subsistência, se não fosse pela ajuda entre vizinhos, que não foi chamada de caridade. As pessoas sempre doam muito, se possuem; é um impulso humano, do qual o humanitário se aproveita, para seu próprio objetivo. Qual é o problema de institucionalizar esse impulso natural em uma agência política?

Muito bem; teria o garoto da fazenda feito alguma coisa errada quando saiu de lá, onde tinha o suficiente para comer, e foi para Chicago pela possibilidade de conseguir um emprego?

Se a resposta for sim, então deve existir um poder legítimo que o impeça de deixar a fazenda sem permissão. O poder feudal fazia isso. Não podia impedir as pessoas de passar fome; simplesmente as obrigava a passar fome exatamente onde nasceram.

Mas, se a resposta for não, o garoto da fazenda não fez nada de errado, ele tinha o direito de correr aquele risco, então, o que exatamente pode ser feito para assegurar que ele não terá má sorte quando chegar ao destino que escolheu? Será que um emprego deve estar disponível para qualquer pessoa, em qualquer lugar para onde decida ir? Isso é absurdo. Não pode ser feito. Ela tem direito a algum tipo de assistência, quando chegar lá, desde que decida ficar; ou, pelo menos, a uma passagem de volta para casa? É igualmente absurdo. A demanda seria infinita; nenhuma abundância de produção conseguiria cobri-la.

Mas, e as pessoas empobrecidas pela seca? Elas não poderiam receber assistência política? Mas deve haver condições. Deveriam receber enquanto estiverem necessitadas, enquanto permanecerem onde estão? (Não podem ser custeadas para uma viagem por tempo indeterminado.) É exatamente o que foi feito nos últimos anos; e isso vem mantendo os recebedores de assistência juntos, há sete anos, em lugares miseráveis, perdendo tempo, trabalho e sementes no deserto.

A verdade é que qualquer método proposto para cuidar da necessidade marginal e das privações ocasionais da vida humana, estabelecendo-se uma carga fixa permanente sobre a produção, seria adotado com satisfação por aqueles que hoje se opõe a esse tipo de medida, se isso fosse viável. Eles se opõem porque a ideia é inviável pela natureza das coisas. São pessoas que já criaram todos os expedientes parciais possíveis, na forma de seguros privados; sabem exatamente onde está a armadilha, porque tiveram de enfrentá-la quando tentaram garantir provisões para seus próprios dependentes.

O obstáculo insuperável é que é absolutamente impossível obter qualquer coisa da produção antes de garantir sua manutenção.

Se fosse verdade que os produtores em geral, gerentes industriais e outros, tivessem corações de aço temperado, e não se preocupassem absolutamente com o sofrimento humano, ainda seria muito mais conveniente para eles que a questão do alívio de todos os tipos de privação — desemprego, doença ou velhice — pudesse ser resolvida de uma vez, de maneira que eles não precisassem mais ouvir falar no assunto. Estão sempre sendo atacados nesse ponto; e seus problemas são duplicados quando a indústria encontra uma depressão. Políticos podem conseguir votos por causa de privações; humanitários obtêm lucrativos empregos administrativos distribuindo fundos de assistência; somente os produtores, tanto capitalistas como operários, têm de aguentar os insultos e pagar o pato.

O problema pode ser explicado de maneira mais clara por um exemplo concreto. Suponhamos que um homem seja dono de uma empresa lucrativa e sólida, com um longo histórico de bom gerenciamento. Ele deseja garantir que sua família seja sustentada pela empresa por tempo indeterminado. Como dono, pode conceder ações preferenciais que rendam determinada quantia; digamos que fossem apenas US$ 5.000,006 por ano em uma empresa que gerasse US$ 100.000,00 por ano de lucro líquido. É o máximo que o dono da empresa é capaz fazer. E se, em algum momento, a empresa não conseguisse gerar US$ 5.000,00 de lucro líquido, sua família não receberia o dinheiro e isso é tudo. A família poderia deixar a empresa falir e tomar posse dos ativos, e esses ativos, depois da falência, poderiam não valer nada. É impossível obter qualquer coisa da produção antes de garantir sua manutenção.

Além disso, é claro que sua família poderia hipotecar as ações, entregá-las à “administração” de algum amigo “benevolente” — já se viu esse tipo de coisa acontecer muitas vezes — e, então, não receberiam o dinheiro de qualquer maneira. É mais ou menos o que acontece com organizações de caridade que recebem doações. Sustentam uma porção de bons amigos em empregos bacanas.

Mas o que aconteceria se o empresário, por causa de seu afeto e generosidade, determinasse, de maneira irrevogável, que sua esposa e filhos teriam o poder de tirar recursos da empresa no valor sem limites. Inocentemente, ele poderia ter certeza de que eles não pegariam mais que uma pequena porcentagem, para suas necessidades razoáveis. Mas poderia chegar o dia em que o caixa teria de dizer à feliz esposa que não haveria dinheiro para pagá-la; e, com um arranjo assim, certamente esse dia chegaria bem rápido. Em qualquer caso, exatamente quando a família mais precisasse de dinheiro, a empresa renderia menos.

Mas o procedimento seria totalmente insano se o empresário desse a um terceiro o poder irrevogável de retirar o valor que desejasse dos recursos da empresa, com apenas um entendimento não obrigatório de que esse terceiro devesse sustentar a família do dono. É nisso exatamente que consiste a proposta de cuidar dos necessitados pelos meios políticos. Ela dá aos políticos o poder de taxar o quanto quiserem; e não existe absolutamente nenhuma forma de garantir que o dinheiro vá para onde se pretendia que fosse. De todo modo, a empresa não aguenta essa sangria sem limites.

Porque pessoas bem intencionadas recorrem ao poder político? Elas não podem negar que os meios de assistência aos necessitados têm de vir da produção. Mas dizem que existe o suficiente e com sobras. Então, devem supor que os produtores não aceitam dar o que é “certo”. Além disso, supõem que existe um direito coletivo de criar impostos, para qualquer objetivo que a coletividade determine. Atribuem esse direito ao “governo”, como se o governo existisse de maneira independente. Esquecem-se do axioma americano de que o governo em si não existe de maneira independente, mas é instituído pelos homens para atingir objetivos limitados. O próprio contribuinte espera ter proteção do exército ou da marinha ou da polícia; usa as estradas; por isso, seu direito de insistir em limites para a carga tributária é auto evidente. O governo não tem “direitos” sobre esse assunto, mas apenas uma autoridade delegada.

Mas, se os impostos serão criados para dar assistência aos necessitados, quem vai julgar o que é possível ou benéfico? Tem de ser ou os produtores, ou os necessitados ou algum terceiro grupo. Dizer que serão os três juntos não é resposta; o veredito deve se basear numa maioria ou pluralidade extraída de um grupo ou de outro. Os necessitados podem votar eles mesmos para determinar qual a sua necessidade? Os humanitários, o terceiro grupo, podem votar e eleger a si mesmos para controlar tanto os produtores quanto os necessitados? (É o que eles têm feito.) Entende-se assim que o governo deve receber o poder de dar “segurança” aos necessitados. Isso é impossível. O que o governo faz é confiscar a poupança acumulada por pessoas privadas para sua própria segurança, tirando assim de todos qualquer esperança de alguma possibilidade de segurança. Não há mais nada que o governo possa fazer, se resolver agir de alguma maneira. Aqueles que não entendem a natureza dessa ação são como selvagens que derrubam uma árvore para colher os frutos; não pensam em termos de tempo e espaço, como devem fazer os homens civilizados.

Já vimos o que pode acontecer de pior quando só existem doações privadas e assistência municipal improvisada de caráter temporário. A ajuda privada desorganizada é aleatória e esporádica; nunca foi capaz de impedir completamente o sofrimento. Mas também não perpetua a dependência de seus beneficiários. É o método do capitalismo e da liberdade. Envolve altos e baixos extraordinários, mas o altos são sempre mais altos a cada vez, e de duração mais longa que os baixos. E, nos períodos de maior privação, não existe fome de verdade, não existe desespero absoluto, mas um estranho tipo de raiva, um otimismo ativo e uma crença inabalável em tempos melhores adiante, que os resultados justificam. Doações privadas extraoficiais, esporádicas de fato realizam o objetivo. Funcionaram, mesmo que de maneira imperfeita.

Por outro lado, o que o poder político tem condições de fazer? Um dos supostos “abusos” do capitalismo é a sweatshop7. Imigrantes vieram para a América sem um centavo, ignorantes do idioma e sem capacitação profissional; foram contratados por salários muito baixos, trabalhavam longas horas em ambientes sujos e considera-se que eram explorados. Porém, misteriosamente, em algum tempo sua condição melhorou; a grande maioria conseguiu conforto e alguns enriqueceram. O poder político seria capaz de fornecer empregos lucrativos para todos que quisessem vir? É evidente que não seria e não é. Mesmo assim, as pessoas boas pediram que o poder político aliviasse o fardo desses recém-chegados. O que ele fez? Sua primeira exigência foi de que cada imigrante deveria trazer consigo certa quantia em dinheiro. Ou seja, extinguiu a única esperança dos estrangeiros mais necessitados. Mais tarde, quando o poder político na Europa transformou a vida em um inferno sombrio, mas um grande número de pessoas ainda poderia ter acumulado a quantia exigida para admissão na América, o poder político simplesmente limitou a admissão a uma quota. Quanto mais desesperada a necessidade, menor a chance de o poder político permitir que fosse atendida. Os muitos milhões na Europa não ficariam felizes e gratos se pudessem ter apenas a pior chance que o velho sistema concedia, em vez de campos de prisioneiros, porões de tortura, humilhações vis e morte violenta?

O empregador da sweatshop não tinha muito capital. Arriscava o pouco que tinha contratando gente. Foi acusado de fazer a eles um mal terrível e sua empresa se tornou um exemplo revelador da brutalidade intrínseca do capitalismo.

O funcionário político é razoavelmente bem-pago, num emprego com estabilidade. Sem arriscar nada, recebe seu salário para empurrar pessoas desesperadas de volta das fronteiras, como se batesse em homens se afogando que tentassem subir a bordo de um navio bem-provisionado. O que mais ele pode fazer? Nada. O capitalismo fez o que podia; o poder político faz o que pode. Casualmente, o navio foi construído e abastecido pelo capitalismo.

Entre o filantropo privado e o capitalista privado agindo como tais, tomemos o caso do homem realmente necessitado, que não está incapacitado, e suponhamos que o filantropo dê a ele comida, roupas e abrigo — quando ele os tiver usado, estará exatamente onde estava antes, com a diferença de que talvez tenha adquirido o hábito da dependência. Mas suponhamos que alguém sem nenhum motivo benevolente, simplesmente querendo que um trabalho seja feito por suas próprias razões, contratasse o necessitado por um salário. O empregador não fez uma boa ação. Porém, a condição do homem empregado de fato mudou. Qual a diferença vital entre as duas ações?

É que o empregador não-filantrópico levou o homem que contratou de volta à linha de produção, no grande circuito de energia; enquanto o filantropo pode apenas desviar energia de tal maneira que não haja retorno para a produção e, portanto, diminui a chance de que o objeto de sua caridade encontre emprego.

Este é o motivo racional, profundo, pelo qual os seres humanos evitam a assistência e odeiam a própria palavra. É também o motivo pelo qual aqueles que praticam trabalhos de caridade por vocação verdadeira fazem tudo o que podem para que esse trabalho permaneça marginal, e alegremente renunciam à oportunidade de “fazer o bem” em favor de qualquer possibilidade de que o beneficiário trabalhe em termos semitoleráveis. Aqueles que não podem evitar recorrer à assistência demonstram os resultados em sua aparência física; são isolados das fontes vivas de energia auto renovadora e sua vitalidade afunda.

O resultado, se forem mantidos recebendo assistência por tempo suficiente pelos decididos filantropos e políticos unidos, foi descrito por um profissional de assistência. A princípio, os “clientes” se inscrevem com relutância. “Em poucos meses, tudo muda. Descobrimos que aquele sujeito que só queria o suficiente para superar a dificuldade agora aceita viver de assistência como um fato da vida.” O funcionário que disse isso estava ele próprio “vivendo de assistência como um fato da vida”; mas estava um grande degrau abaixo de seu cliente, uma vez que nem mesmo se dava conta de sua condição. Por que ele conseguia fugir à verdade? Porque podia se esconder atrás da motivação filantrópica. “Ajudamos a impedir a fome e agimos para que essas pessoas tenham abrigo e roupas de cama.” Se perguntassem ao funcionário: “Você planta a comida? Você constrói o abrigo? ou Você dá dinheiro de sua própria renda para pagar por tudo isso?”, ele não enxergaria que isso faz qualquer diferença. Foi ensinado de que é certo “viver pelos outros”, por “objetivos sociais” e “ganhos sociais”. Enquanto acreditar que está fazendo isso, não se perguntará o que está necessariamente fazendo para os outros, nem de onde devem vir os meios para sustentar sua atividade.

Se o papel total dos filantropos sinceros fosse totalizado, desde o início dos tempos, descobriríamos que todos eles juntos, por suas atividades filantrópicas estritas nunca conferiram à humanidade um décimo do benefício derivado dos esforços normalmente egoístas de Thomas Alva Edison8, sem falar nas mentes maiores que desenvolveram os princípios científicos que Edison aplicou. Incontáveis pensadores especulativos, inventores e organizadores contribuíram para o conforto, saúde e felicidade de seus semelhantes — porque esse não era seu objetivo. Quando Robert Owen9 tentou dirigir uma fábrica visando a produção eficiente, o processo casualmente melhorou alguns personagens muito pouco promissores entre seus empregados, que haviam vivido de assistência e, portanto, estavam tristemente degradados; Owen ganhou dinheiro; e enquanto era esse seu objetivo, percebeu que, se melhores salários fossem pagos, a produção poderia aumentar, tendo criado seu próprio mercado. Isso era sensato e verdadeiro. Mas então Owen foi tocado por uma ambição humanitária de fazer o bem a todos. Reuniu muitos humanitários em uma colônia experimental; estavam tão imbuídos de fazer o bem aos outros que ninguém fazia trabalho nenhum; a colônia se dissolveu amargamente; Owen faliu e morreu levemente enlouquecido. Assim, o importante princípio que ele vislumbrou teve de esperar um século para ser redescoberto.

O filantropo, o político e o cafetão se encontram inevitavelmente aliados porque têm as mesmas motivações, buscam os mesmos fins: existir para outros, por intermédio de outros e mantidos por outros. E as boas pessoas não podem ser absolvidas de apoiá-los. Não se pode acreditar que as boas pessoas sejam completamente inconscientes do que realmente acontece. Mas, quando boas pessoas sabem de fato, como certamente sabem, que três milhões de seres humanos (na estimativa mais baixa) morreram de fome em um ano pelos métodos que elas aprovam, por que ainda se confraternizam com os assassinos e apoiam essas medidas? Porque disseram a elas que a morte lenta dos três milhões poderia, ao final, beneficiar um número maior de pessoas. Esse argumento se aplica igualmente ao canibalismo.

1 Barão Gilles de Retz, ou de Rais (1405 - 1440): cavaleiro bretão, líder do exército francês e companheiro de armas de Joana d'Arc, foi enforcado pelo assassinato em série de um número indeterminado de crianças. Não se sabe ao certo se ele era culpado ou não. (N. do T.)

2 Oliver Cromwell (1599 - 1658): chefe de estado e governo da Inglaterra, Escócia e Irlanda entre 1653 e 1658, com o título de Lorde Protetor, depois da decapitação do rei Carlos I, em 1649. (N. do T.)

3 Pedro, o Grande (1672 - 1725): czar e imperador da Rússia entre 1682 e 1725. (N. do T.)

4 Esmoler: em inglês, almoner. Capelão ou funcionário da igreja encarregado da distribuição de donativos aos pobres. (N. do T.)

5 John Masefield (1878 - 1967): poeta e escritor inglês, Poeta Laureado do Reino Unido de 1930 até sua morte. (N. do T.)

6 US$1,00 de 1943 equivale a cerca de US$110,00 de 2014. (N. do T.)

7 Sweatshop: estabelecimento em que os empregados trabalham longas horas, recebendo salários muito baixos, em condições ambientais ruins. Essa expressão é muito comum em inglês. Mantive no original porque não achei um equivalente igualmente expressivo. (N. do T.)

8 Thomas Alva Edison (1847 - 1931): inventor e empresário americano. Desenvolveu diversos dispositivos que influenciaram enormemente a vida em todo o mundo, incluindo o fonógrafo, uma câmera para filmar e um modelo de lâmpada elétrica viável comercialmente. Foi um dos primeiros inventores a aplicar os princípios de produção em massa e de grandes equipes de trabalho ao processo de invenção. Considera-se que ele criou o primeiro laboratório industrial de pesquisas. (N. do T.)

9 Robert Owen (1771 - 1858): reformador social galês e um dos fundadores do socialismo utópico e do movimento cooperativista. (N. do T.)

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