quinta-feira, 28 de março de 2013

A morte da avó, em O Caminho de Guermantes


Li esta semana o trecho de O Caminho de Guermantes, de Marcel Proust, em que o Narrador relata a morte de sua avó. Os sofrimentos que ele descreve trazem, de maneira muito forte, a lembrança da agonia de duas tias queridas: Tia Jurema, falecida em abril de 1996, e Tia Célia, em dezembro de 2011.

Tia Ju gostava muito de Proust. Relia sempre sua obra em francês. Deve ter passado por esse trecho muitas vezes. Ela teve um câncer que evoluiu muito rápido; do diagnóstico até o fim, levou cerca de um mês. Leio Em Busca do Tempo Perdido em grande parte por causa dela. Se não fosse por ela, eu o leria de outra maneira; o efeito desse livro sobre mim seria outro. Infelizmente, não comecei a ler antes, para ter tido a oportunidade de conversar com ela sobre Proust.

Tia Célia teve uma doença muito mais lenta, dermatomiosite. Passou dois anos doente, um ano e meio sem diagnóstico. Sofreu mais de um mês numa UTI, submetida a respiração artificial.

Volto a Proust. O Narrador conta que sua avó piorou de repente de uma doença que vinha sentindo havia tempos. Não saía mais de casa. Como não melhorava, chamaram outro médico. Este disse que ela não tinha nada físico, e que precisava sair mais. O Narrador e sua mãe ficam muito aliviados e insistem para que ela vá aos Champs-Élisées com o Narrador, que pretende encontrar alguns amigos. Ele fica irritado quando sua avó demora a sair, demora a andar, demora no banheiro do parque. Depois que ela sai do banheiro, ele se dá conta que ela havia tido um ataque. (Imagino que seja um pequeno AVC.)

Ele a leva até um banco de praça e procura por um fiacre para voltar para casa. Encontra outro médico, amigo de seu pai, e pede que ele a examine. O médico não quer, diz que tem que jantar com um ministro, não tem tempo. Acaba concordando em recebê-los em seu consultório. O Narrador leva a avó até lá, com dificuldade. O médico a examina com profissionalismo, mas não diz nada. Ela sai primeiro. O Narrador pergunta qual o diagnóstico e ouve que sua avó está perdida.

Depois disso, ela vai piorando gradativamente. Fala cada vez menos. Tem um período de cegueira, depois um de surdez. Sente dores cada vez maiores, mas tenta esconder isso dos parentes. Aplicam morfina. Um dia tenta, ela tenta abrir a janela para pular. Em meio ao sofrimento do Narrador e de sua mãe, outras pessoas continuam com suas preocupações fúteis.

Enfim, sua mãe acorda o Narrador uma manhã e lhe diz que agora só poderá contar com seus pais. A avó está tendo convulsões. Pouco depois disso, ela morre.

Seguem alguns trechos do livro:

«Subi e achei minha avó bem pior. Desde algum tempo, sem bem saber do que sofria, ela se queixava da saúde. Na enfermidade é que percebemos que não vivemos sós, mas acorrentados a uma criatura de outro reino, cujos abismos nos separam, que não nos conhece e pelo qual nos é impossível fazer-nos compreender: nosso corpo. Qualquer assaltante que encontrássemos no caminho, talvez pudéssemos sensibilizá-lo em seu interesse pessoal, senão pela nossa desgraça. Mas rogar piedade ao nosso corpo é discursar diante de um polvo, para quem nossas palavras não podem ter mais sentido que o rumor das águas, e com o qual nos aterrorizaríamos de ser condenados a conviver.»

«Cottard tentou, para acalmar a agitação da sua cliente, a dieta de leite. Mas as perpétuas sopas de leite não fizeram efeito porque minha avó punha nelas muito sal, cuja inconveniência era ignorada naquele tempo (pois Widal ainda não tinha feito suas descobertas).»

«Estas foram as palavras que me disse, e nas quais pusera toda a sua finura, o seu gosto pelas citações, sua memória relativa aos clássicos, até um pouco mais do que habitualmente faria e como para mostrar que mantinha mesmo a posse daquilo tudo. Mas essas frases, adivinhei-as mas do que as ouvi, de tanto que as pronunciava com uma voz pastosa e cerrando os dentes mais do que poderia explicá-lo o medo de vomitar.
[…]
Ela me sorriu tristemente e apertou-me a mão. Compreendera que não tinha como me ocultar aquilo que eu adivinhara logo: acaba de sofrer um pequeno ataque.»

«Deixei a minha avó passar primeiro, fechei a porta e pedi ao doutor que me dissesse a verdade.

— A sua avó está perdida — disse ele. — É um ataque provocado pela uremia. Em si, a uremia não é fatalmente uma doença mortal, mas o caso me parece desesperador. Nem preciso lhe dizer que espero estar enganado. Além disso, com Cottard, estão em excelentes mãos. Com licença — disse ao ver entrar uma camareira com sua casaca nos braços. — O Senhor sabe que vou jantar com o ministro do Comércio, e tenho uma visita para fazer antes. Ah, a vida não é um mar de rosas, como se crê na sua idade.

E estendeu-me graciosamente a mão. Eu voltara a fechar a porta e um lacaio nos guiava no vestíbulo, a mim e à minha avó, quando ouvimos grandes gritos de cólera. A camareira se esquecera de abrir a botoeira para as condecorações. Aquilo ainda ia levar dez minutos. O professor continuava sempre a esbravejar, enquanto eu olhava, no patamar da escada, para a minha avó, que estava perdida. Como está sozinha cada pessoa! Regressamos a casa.»

«Então, pela primeira vez os olhos de minha mãe fitaram apaixonadamente os de minha avó, não desejando ver o restante de sua face, e ela disse, começando a lista desses falsos juramentos que não podemos cumprir:

— Mamãe, logo ficarás curada; é a tua filha quem te promete.»

«Por causa dos tormentos de minha avó, permitiam que tomasse morfina. Infelizmente, se esta os acalmava, contribuía para aumentar a taxa de albumina. […] Nos dias em que a taxa de albumina se mostrava muito alta, o doutor Cottard, após alguma hesitação, recusava a morfina. […] Do ponto de vista clínico, por menos esperanças que tivesse em pôr fim àquela crise de uremia, era necessário não cansar os rins. Mas, por outro lado, quando minha avó ficava sem morfina, suas dores tornavam-se insuportáveis. […] Quando a minha avó sofria desse modo, o suor escorria sobre sua vasta fronte cor-de-malva, aí colando mechas brancas do cabelo; e, se ela achasse que não estávamos no quarto, soltava gritos: — Ah, é horroroso! — Mas, se se apercebia de minha mãe, empregava logo toda a energia para apagar do rosto os traços de sofrimento ou, ao contrário, repetia as mesmas queixas, acompanhando-as de explicações que davam retrospectivamente um outro sentido às que minha mãe pudera ouvir:

— Ah, minha filha, é horrível ficar deitada com esse sol tão lindo, quando a gente gostaria de ir passear; choro de raiva contra essas prescrições de todos vocês.

Mas não conseguia evitar os olhares queixosos, o suor na testa, o sobressalto convulsivo dos membros, logo reprimido.
[…]
E minha mãe, à beira da cama, presa àquele sofrimento como se, à força de penetrar com os olhos aquela testa dolorosa, aquele corpo que escondia o mal, conseguisse enfim atingi-lo e carregá-lo, minha mãe dizia:

— Não, mãezinha, não te deixaremos sofrer assim, vamos achar alguma coisa, tem paciência por um segundo; permite que te beije sem que precises te mexer?»

«Mandaram-me enxugar os olhos antes de ir beijar minha avó.

— Mas eu julgava que ela não via mais — observou meu pai.

— Nunca se sabe — replicou o doutor.

Quando meus lábios a tocaram, as mãos de minha avó se agitaram, ela foi toda percorrida por um longo tremor, seja por reflexo, seja porque certas afeições tenham a sua hiperestesia que reconhece, através do véu da inconsciência, aquilo que elas quase não necessitam de sentidos para amar. De súbito, minha avó se ergueu a meio, fez um esforço violento, como alguém que defende sua vida. Françoise não pôde resistir àquela cena e rompeu em soluços. Lembrando-me do que dissera o médico, tentei fazê-la sair do quarto. Nesse momento, minha avó abriu os olhos. Precipitei-me para Françoise a fim de lhe ocultar as lágrimas, enquanto meus pais falavam à doente. O rumor do oxigênio silenciara, o médico se afastou da cama. Minha avó estava morta.

Horas depois, Françoise pôde pela última vez, e sem maltratá-los, pentear aqueles lindos cabelos que mal principavam a embranquecer e até então haviam parecido mais jovens que ela. Mas agora, pelo contrário, eram os únicos a impor a coroa da velhice sobre o rosto tornado jovem e de onde haviam desaparecido as rugas, as contrações, os empastamentos, as tensões e as dobras que há tanto tempo lhe vinham aumentando o sofrimento. Como antigamente, quando seus pais lhe haviam escolhido um esposo, ela apresentava feições finamente traçadas pela pureza e pela submissão, as faces brilhantes de uma casta esperança, de um sonho de ventura, e até de uma alegria inocente que os anos lhe tinham destruído aos poucos. A vida, ao se retirar, acabava de carregar as desilusões da existência. Um sorriso parecia pousado sobre os lábios de minha avó. Sobre aquele leito fúnebre, a morte, como o escultor da Idade Média, deitara-a sob a aparência de uma mocinha.»

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