Capítulo do livro Liberdade Versus Igualdade, vol. 1, O Mundo em Desordem, de Demétrio Magnoli e Elaine Senise Barbosa.
«Voto e Cidadania
A luta pelo voto foi o foco das diversas entidades, comitês e jornais criados a partir da segunda metade do século XIX por mulheres das classes média e alta. Segundo consta, em 1906 o jornal Daily Mail chamou as defensoras do voto feminino de suffragettes, com uma conotação claramente pejorativa. A expressão caiu no gosto das militantes e passou a identificar as mais radicais, ou seja, as que saíam às ruas para se manifestar, em ações cada vez mais combativas, até atingir o ápice em 1913, quando Emily Davison pôs fim à própria vida atirando-se sob as patas do cavalo do rei inglês Jorge V a fim de chamar a atenção para a questão do voto feminino.
Paralelamente, outra temática mobilizava um número ainda maior de mulheres, embora com um nítido recorte de classe: a luta pelos direitos trabalhistas e contra a superexploração a que estavam submetidas. As novas organizações de mulheres socialistas não inscreveram nas suas agendas originais o tema do voto feminino, mas o incorporaram à medida que crescia o movimento sufragista. A ideia de "pagamento igual para trabalho igual", uma ousadia sugerida apenas pelas mais radicais, não teve a aprovação nem dos dirigentes sindicais, nem da massa dos trabalhadores, e só bem mais tarde se converteu em reivindicação geral.
Instituíram-se datas de mobilização geral das mulheres trabalhadoras, embora estas variassem de acordo com o local. Oficialmente, foi no II Congresso Internacional de Mulheres Socialistas, em Copenhague, em 1910, que surgiu a ideia de se criar um Dia Internacional da Mulher, nos moldes do Primeiro de Maio, para concentrar atos políticos em favor dos direitos das mulheres. A autora da proposta foi a alemã Clara Zetkin, dirigente do Partido Social-Democrata e amiga de Rosa Luxemburgo, com quem participaria da criação da Liga Spartacus e, depois, do Partido Comunista da Alemanha, pelo qual se elegeu deputada.
Datas de comemoração, lembrança e luta são símbolos poderosos. Zetkin não sugeriu uma data para o Dia da Mulher e, nos primeiros anos, a comemoração se realizava em datas diversas nos diferentes países. Não se sabe ao certo como a celebração acabou se fixando internacionalmente no 8 de março. Mas a divergência entre a mais provável origem histórica da data e a narrativa predominante sobre esta evidencia um combate subterrâneo pela apropriação de um "lugar de memória".
Na Rússia, em 1917, celebrou-se o Dia da Mulher no 8 de março (23 de fevereiro pelo calendário juliano adotado no império dos czares). Naquele dia, as operárias têxteis deflagraram a Revolução de Fevereiro — e esse fato tem tudo para ser a origem da generalização da data. Curiosamente, porém, no imaginário do movimento feminista, a data acabou sendo associada a um evento diferente, ocorrido nos Estados Unidos, em 1911, mas no dia 25 de março: o incêndio na fábrica têxtil Triangle Shirtwaist Co. que matou mais de uma centena de operárias, rotineiramente trancadas para cumprir a jornada completa de trabalho.
A greve na Rússia remete à revolução e ao socialismo. O trágico incêndio nos Estados Unidos remete aos direitos gerais dos trabalhadores e à exploração sem travas da força de trabalho feminina, mas não necessariamente à luta anticapitalista. A memória fabricada tem sentido e significado, sobretudo por aquilo que deixa na sombra.
A eclosão da Primeira Guerra Mundial e a entrada maciça das mulheres em setores de trabalho até então exclusivamente masculinos foram um divisor de águas. Se os homens sofriam nas trincheiras e morriam lutando, as mulheres, sobretudo as da classe média, sofriam pela perda da segurança que durante séculos haviam sido ensinadas a buscar no matrimônio e na submissão aos pais e maridos. A partir daquele momento, a sobrevivência da família estava em suas mãos. Ao mesmo tempo, paradoxalmente, elas conquistavam uma liberdade inédita e podiam afinal decidir suas próprias vidas.
Encerrado o conflito, os governos encontraram dificuldades para justificar a falta de direitos políticos a quem agora tinha autonomia econômica. As leis eleitorais começaram a se adaptar à nova realidade, a princípio concedendo o direito de voto apenas às casadas ou alfabetizadas, para depois atingir a universalidade. Dinamarca e Islândia aceitaram o voto feminino em 1915. Na Rússia, o voto chegou com a Revolução. Na Grã-Bretanha, Áustria, Alemanha e Canadá, em 1918. Estados Unidos e Holanda, em 1919. No Brasil, em 1932, ampliado em 1934 pela constituição varguista. Na França, contudo, as mulheres tiveram que esperar até o fim da Segunda Guerra Mundial e, em alguns cantões suíços, até 1971.»
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