sábado, 31 de maio de 2014

Nosso Sistema Educacional Niponizado

O Deus da Máquina, capítulo XXI
Nosso Sistema Educacional Niponizado
Isabel Paterson, 1943

A era humanitária se gaba, desde o século passado1, ou antes, de que realizou uma mudança fundamental nos métodos e objetivos da educação. O sistema preferido é chamado de educação progressista. Qualquer tentativa de definição desse sistema pode ser contestada, porque seus defensores nunca estabeleceram uma definição exata; mas vamos procurar descrevê-lo nos termos mais generosos, abertos a correções. Digamos que a educação progressista busca tornar o ensino escolar uma experiência agradável; proíbe punições concretas; busca ao mesmo tempo estimular a autoexpressão das crianças mais novas e a consciência social dos alunos mais velhos; e alega ensinar as crianças a pensar utilizando projetos experimentais e apresentando tópicos atuais controvertidos para discussão geral, sem princípios dogmáticos.

Ao contrário, a educação à moda antiga supunha que não existe um caminho fácil para o aprendizado. Dava autoridade suficiente ao professor para qualquer castigo disciplinar necessário. Apresentava fatos concretos e princípios concretos. Desencorajava a autoexpressão imatura, procurava fortalecer o caráter pelo autocontrole contra o impulso social; e associava a responsabilidade pessoal a cada grau de emancipação da regra de obediência para as crianças. Ensinava-as a pensar pelo uso da lógica formal sobre exemplos impessoais; enquanto questões contemporâneas eram mantidas fora da sala de aula o máximo possível.

Qual é, na realidade, o tipo de educação mais moderno?

Há quarenta anos2, Lafcadio Hearn3 descreveu os princípios e métodos educacionais do Japão, comparados aos do mundo ocidental. Tradicionalmente, segundo Hearn, a educação ocidental começava na primeira infância “com a parte repressiva do treinamento moral. […] É importante inculcar os deveres do comportamento, o ‘devo’ e o ‘não devo’ da obrigação individual, tão cedo quanto possível. Depois, mais liberdade será permitida. A criança bem educada é levada a entender que seu futuro dependerá de seu esforço pessoal e de sua capacidade; e, portanto, em grande medida, deixa-se que ela cuide de si mesma, sendo ocasionalmente advertida ou avisada, conforme pareça necessário. […] Ao longo de todo o caminho do treinamento mental e moral, a competição é não apenas esperada como exigida. […] O objetivo é cultivar a habilidade individual e o caráter pessoal — criar um ser independente e vigoroso.”

A educação japonesa sempre foi conduzida no plano reverso. Seu propósito nunca foi treinar o indivíduo para a ação independente, mas treiná-lo para a ação cooperativa. […] A restrição entre nós começa com a infância e gradualmente é relaxada; a restrição no treinamento do Extremo Oriente começa mais tarde e, daí em diante, é gradualmente aumentada; e não é uma restrição imposta diretamente pelos pais e professores. […] Não apenas na idade da vida escolar, mas consideravelmente além dela, uma criança japonesa desfruta de um grau de liberdade muito maior do que é permitido às crianças ocidentais. […] É permitido à criança fazer o que quiser. […] Ela é protegida, mas não restringida; advertida, mas raramente forçada.” Se uma punição se torna absolutamente necessária, “pelo antigo costume, a casa inteira, incluindo os empregados, intercede em favor do transgressor; os irmãos e irmãs pequenos implorando para serem punidos no lugar dele. Na escola, começa a disciplina […] mas não há punição além de uma repreensão pública. Qualquer restrição que exista é exercida sobre a criança principalmente pela opinião comum de sua classe; e um professor habilidoso é capaz de controlar essa opinião. […] O poder reinante é sempre o sentimento da classe. […] Nas escolas médias, a opinião da classe adquire uma força para a qual o próprio professor tem de se curvar; é capaz de expulsá-lo se ele tentar se sobrepor a ela. […] É sempre o poder do coletivo sobre o indivíduo; e esse poder é formidável.”4

O objetivo final vem do ideal social japonês. Por mais de mil anos, pelo menos, o mais puro altruísmo é ensinado aos japoneses, no culto comunal. “A simples idéia de que alguém tenha o direito de fazer o que quiser não entra na mente japonesa. […] O tempo e o esforço de um homem jamais podem ser considerados exclusivamente seus. Seu direito de viver repousa unicamente em sua disposição de servir à comunidade. O indivíduo foi completamente sacrificado em nome da comunidade. […] Cada membro de uma comunidade deve observar cuidadosamente a conduta de seus companheiros.” Para que não pudesse haver nenhuma chance de iniciativa ou escolha pessoais, todo o trabalho era completamente controlado por guildas; e todos os bens eram distribuídos pela autoridade, de maneira que a quantidade e o tipo de posses que uma pessoa poderia ter era determinado minuciosamente. Um pai não poderia comprar nem mesmo uma boneca de papel adicional para sua filha. Qualquer desvio de conduta seria punido de maneira instantânea e implacável. Até a linguagem refletia esse código de ética altruísta, evitando o uso de pronomes pessoais e modificando-os para um significado social.

O resultado, na vida adulta, é “a sinistra ausência de liberdade moral — a ausência do direito de agir de acordo com suas próprias convicções de justiça”. De fato, não pode existir conceito de justiça se a única autoridade é a autoridade da massa, do coletivo, do governo em sua máxima abrangência. E o comportamento atual dos japoneses na guerra, inclusive sua atitude com os prisioneiros, é totalmente consistente com sua tradição. Seja o que for que façam a seus inimigos — e são eles que determinam quem é inimigo e iniciam o ataque — não é pior do que impuseram a si mesmos “pelo bem da sociedade”.

Desde que Hearn fez essas observações, a educação ocidental vem se movendo continuamente na direção dessa base japonesa; é sua tendência “progressista”. Atividades de classe, interesses de grupo, influências sociais se tornaram predominantes. E a filosofia prevalecente com a qual os alunos são doutrinados é a do “instrumentalismo”, que nega que possa haver valores ou padrões morais permanentes ou universais de algum tipo. O resultado mais chocante nos alunos é exatamente essa “sinistra ausência de liberdade moral”. Nem provas nem lógica conseguem penetrar nas brumas em que são formados. É difícil fazer com que um deles chegue a qualquer conclusão, quando separados do grupo. Dirão: “Bem, eu só acho que não”, como se não pudesse haver fatos ou processos mentais associados que levam a uma opinião em vez de outra ou diferenciam uma convicção de um gosto. Eles têm a impressão de que “tudo é diferente agora” de qualquer coisa que possa ter existido no passado; embora não tenham idéia de como ou por quê. Dois mais dois não são quatro? Uma alavanca não funciona hoje exatamente pelos mesmos princípios com que funcionava para Arquimedes? Eles não sabem ao certo. Podem dizer: "Ah, não concordo com você", mas não dão nenhuma razão para a discordância. “Não estão convencidos”, mas não conseguem oferecer um argumento para refutar. Ou seja, quando convidados a pensar, não conseguem, porque foram treinados para aceitar a classe, o grupo ou a “tendência social” como única autoridade. Até onde isso é possível, foram reduzidos a “gânglios”, processos neurais em um “corpo” coletivo, em vez de pessoas.

A orientalização dos métodos de ensino no Ocidente têm efeitos até nos detalhes. O grande uso e valor do alfabeto fonético, em oposição à escrita pictográfica (hieróglifos ou caracteres chineses) é que o aluno passa a dominar as ferramentas muito rapidamente. Em inglês, uma criança precisa aprender apenas vinte e seis letras e entender o princípio para combiná-las, como indicativos de sons, e saberá ler. O alfabeto fonético é um dos dispositivos que mais poupa trabalho na história humana. Com caracteres chineses ou qualquer outra escrita em ideogramas, milhares de símbolos têm de ser aprendidos. Grande parte da educação escolar é desperdiçada simplesmente com o trabalho penoso da memorização. Além disso, o pensamento abstrato é gravemente prejudicado. Mesmo assim, defende-se como um método “moderno” para ensinar uma criança a ler que ela aprenda pela memorização visual das palavras, sem aprender o alfabeto. Este método é atribuído a Bronson Alcott5: “Não havia cartilha, com a classe tentando arduamente identificar o A ou talvez o S. Em vez disso, os pequenos eram agrupados em volta do professor, que tinha uma figura nas mãos. Olhavam as figuras dos animais e, embaixo, viam as palavras — cão, gato, vaca — até que, em pouco tempo, sabiam qual palavra correspondia a qual animal.” Isso é ensinar leitura pictográfica. Até onde é possível, a vantagem do alfabeto fonético é anulada, inclusive a sistematização do conhecimento por referências em um índice. Outro método educacional “avançado” não dá notas em provas pelos acertos. Em vez disso, as notas são dadas indicando que a criança se saiu bem em relação a suas capacidades. Ou seja, o professor supõe possuir onisciência divina e age como se conhecesse de maneira absoluta as capacidades inatas da criança, por algum meio celestial, em vez de avaliar o resultado específico de um exame específico. A criança negligente é beneficiada e a criança esforçada, inteligente e conscienciosa perde o benefício merecido. Assim, de todas as maneiras, o fluxo natural de energia dos seres humanos, que na infância é adequadamente dirigido ao desenvolvimento da inteligência e do caráter, é interrompido e subvertido: o objetivo do estudo deixa de ser aprender coisas que são verdadeiras em si mesmas e desenvolver independência por meio desse conhecimento e passa a ser agradar e seguir uma autoridade arbitrária.

O fato concreto de que as escolas públicas americanas estão sob controle político não é reconhecido. As escolas começaram como organizações completamente separadas, com distritos que não tinham nenhuma ligação um com outro nem com qualquer agência política e podiam cobrar um imposto separado que não poderia ser gasto para nenhuma outra finalidade exceto a escola local. Por causa disso, ninguém percebeu que o campo primário de liberdade havia sido invadido no máximo alcance possível. Não pode haver maior extensão de poder arbitrário que tomar as crianças de seus pais, ensiná-las o que a autoridade decretar que deva ser ensinado e expropriar dos pais o dinheiro para pagar pelo processo. Se este princípio ainda não foi realmente entendido, imaginemos o que pensaria um pai que possui determinada fé religiosa, se seus filhos fossem tomados dele à força e se ensinasse a eles um credo oposto. Esse pai não reconheceria uma tirania evidente? Mas as pessoas argumentam que a religião não é de forma alguma ensinada nas escolas. Isso não modifica o princípio envolvido; embora tenha obscurecido a questão no início. A maioria dos pais estava disposta a pagar um imposto para a educação, e feliz por mandar seus filhos à escola. Tentaram manter o ensino estritamente laico. Além disso, quando os distritos educacionais eram pequenos e o conselho escolar composto por moradores locais conhecidos por todos, não era difícil para os pais saber o que estava sendo ensinado; e ter suas opiniões consultadas sobre a contratação ou manutenção de professores e a escolha de livros didáticos. A natureza intrínseca do poder delegado era tão sutil que isso era chamado de “free education”6, a mais completa contradição dos fatos com a terminologia de que a linguagem é capaz. Tudo nessas escolas é obrigatório, e não livre. A verdadeira natureza da instituição se desenvolveu de maneira tão completa de acordo com seus próprios princípios ao longo do tempo que hoje os pais ficam impotentes quando o conselho escolar admite que uma pequena parcela de professores é mentalmente desequilibrada. Os pais ainda são obrigados a entregar seus filhos ao poder desses professores, sob pena de multa. Os professores possuem “estabilidade”. Não podem ser exonerados.

Um dos primeiros “casos” pelos quais a “estabilidade” passou a parecer razoável para professores indica a total confusão de pensamento sobre o assunto, originada da incapacidade de se perceber o poder político em operação. Uma professora da Califórnia, de excelente caráter e competência para ensinar, foi demitida sem motivo por um conselho escolar corrupto. O caso foi levado ao tribunal. A professora foi reintegrada, com base no fato inequívoco de que ela tinha um contrato para o período e não o havia descumprido. Isso foi considerado razão suficiente para se estabelecerem medidas pelas quais um professor deve ser considerado contratado por tempo indeterminado, pois esse é o único significado de “estabilidade”. Porém, isso não tem absolutamente nada a ver com a questão original (cumprimento de um contrato) e anula o direito contratual do empregador. Ou seja, porque a professora sofreu uma injustiça para a qual a lei era competente para corrigir e corrigiu, foi proposto e colocado em prática que os pais devem sofrer a mesma injustiça, sem possibilidade de correção.

Também o famoso caso Scopes7, o “julgamento do macaco” em Dayton, Tennessee, foi discutido com igual calor e ignorância pelos dois lados. O Estado aprovou uma lei proibindo que os professores das escolas públicas lecionassem a teoria darwinista da evolução, ou seriam punidos. Um professor infringiu a lei e foi processado. É evidente que a lei era absolutamente imprópria; mas foi atacada com o argumento de que a teoria darwinista da evolução é verdadeira e que os cidadãos do Tennessee seriam caipiras desinformados.

Mas o que aconteceria se a evolução darwinista estivesse sendo ensinada normalmente nas escolas públicas do Tennessee e um pai tentasse deixar de pagar seu imposto de educação e se recusasse a mandar seus filhos para a escola por não querer que essa teoria fosse ensinada a eles? Quantos dos ardentes defensores do sr. Scopes teriam defendido esse pai? Tenho certeza de que nenhum. Tudo o que eles queriam era que o Estado determinasse que sua própria doutrina científica específica devia ser ensinada, em vez de outro credo heterodoxo. Não estavam absolutamente preocupados com a liberdade de pensamento, expressão ou crença. Não tinham a concepção de direitos pessoais ou autoridade justa. Não perguntaram se um professor poderia ter uma prerrogativa moral peculiar de ensinar a seus alunos algo que os pais não quisessem que fosse ensinado.

Em resumo, não questionaram o controle político da educação; apenas quiseram usá-lo eles mesmos. Não questionaram se esse controle político não é, por natureza, fadado a legislar contra as afirmações dos fatos e das opiniões no longo prazo, ao definir o currículo escolar. O conhecimento científico mais exato e demonstrável será certamente contestado pela autoridade política em algum ponto, porque exporá a insensatez dessa autoridade e seus efeitos viciosos. Ninguém pode demonstrar o absurdo sem sentido do “materialismo dialético” na Rússia, fazendo um exame lógico. Ninguém pode discutir biologia imparcialmente na Alemanha. E, se a autoridade política é considerada competente para controlar a educação, será esse o resultado em qualquer país.

Textos educacionais são necessariamente seletivos, no assunto, na linguagem e no ponto de vista. Onde o ensino é realizado por escolas privadas, haverá uma variação considerável entre as diferentes escolas; os pais devem julgar o que querem que seus filhos aprendam, pelo currículo oferecido. Então, cada uma deve se empenhar pela verdade objetiva; e, uma vez que não há autoridade pública para controlar a opinião, os adultos devem exercer o julgamento final sobre o que aprenderam na escola, depois de formados. Em nenhum lugar, haverá qualquer tentativa de forçar que se ensine a “supremacia do estado” como uma filosofia obrigatória. Mas todo sistema educacional controlado politicamente vai inculcar a doutrina de supremacia do estado mais cedo ou mais tarde, ou como direito divino dos reis, ou como “vontade do povo” na “democracia”. Uma vez que essa doutrina tenha sido aceita, torna-se uma tarefa quase sobre-humana quebrar a força repressora do poder político sobre a vida do cidadão. Seu corpo, sua propriedade e sua mente estarão nas garras do estado desde a infância. É mais fácil um polvo soltar sua presa.

Um sistema educacional obrigatório sustentado por impostos é o modelo completo do estado totalitário.

O alcance do poder exercido e suas implicações finais ainda não foram reconhecidos nos Estados Unidos, porque é permitido aos pais enviar seus filhos para escolas privadas ou educá-los em casa — embora, em todos os casos, eles tenham de pagar o imposto educacional. Mas, quando essa permissão é concedida e o padrão educacional é determinado, ela é revogável; não é mais um direito, mas uma permissão. Na Rússia e na Alemanha isso não é mais permitido.

Sem dúvida as boas pessoas perguntarão, em inocente perplexidade e com memória curta, como as crianças poderão ser educadas se não existirem escolas públicas obrigatórias sustentadas por impostos? A resposta é: pelas escolas privadas. Qualquer um que quisesse poderia abrir uma escola, para a qual os pais poderiam mandar seus filhos em troca do pagamento das mensalidades necessárias, que naturalmente variariam muito. A educação primária poderia ser dada em casa, como era comum nos Estados Unidos até cinqüenta anos atrás8; noventa por cento do conhecimento útil que uma pessoa média possui é certamente adquirido fora da escola. Quem ensinou a população dos Estados Unidos a dirigir automóveis? Isso não foi feito na escola, nem poderia ser. A habilidade prática pela qual o homem médio ganha a vida não é aprendida na escola. Não existe razão para supor que as crianças não seriam ensinadas. Antes da Guerra Civil, alguns estados do sul aprovaram leis tornando crime ensinar um escravo a ler e escrever. Isso significa que o desejo de aprender e a disposição de propagar o conhecimento são tão espontâneos e universais que só podem ser impedidos por punições legais, mesmo que o abismo social seja o que existe entre senhor e escravo.

Mas algumas crianças não permaneceriam analfabetas? Sim, como ocorre hoje e como ocorreu no passado. Os Estados Unidos tiveram um presidente que não aprendeu a ler e escrever até tornar-se adulto, mas casou-se e ganhava seu sustento. A verdade é que, em um país livre, qualquer pessoa que permaneça analfabeta poderia ser deixada assim; embora a simples alfabetização não seja em si uma educação suficiente, mas a chave elementar para uma parte indispensável da educação na civilização. Mas essa educação adicional na civilização não pode ser obtida, de forma alguma, sob o total controle político das escolas. É possível apenas em determinado padrão mental, no qual o conhecimento é procurado voluntariamente. Isso é verdade até mesmo na educação técnica, na qual se presume que exatamente a mesma tecnologia seja ensinada. Um famoso geólogo, que estudou campos de petróleo em todo o mundo, surpreendeu-se com o fato de que “somente os americanos encontram petróleo”9 tanto dentro como fora de seu país. Ele se perguntou: “Por que isso acontece?” Conheceu geólogos de habilidade natural igualmente destacada e com equipamentos técnicos equivalentes entre outras nacionalidades. E eles não encontravam petróleo mesmo que estivessem pisando nele, por assim dizer. Foi forçado a concluir que “o petróleo tem de ser procurado em primeiro lugar em nossa mente. O lugar onde o petróleo realmente está, em última análise, é em nossa cabeça.” Está no “estado mental da ordem social” — a mente livre. A mente livre permaneceu existindo nos Estados Unidos, apesar da intrusão constante do poder político no campo primário da liberdade na educação, porque a escolha e o esforço pessoal continuaram sendo os fatores governantes para se conseguir uma educação avançada, seja clássica ou técnica. O estudante cujos pais não podiam facilmente custear sua faculdade tinha de tomar a séria decisão de fazer o esforço por si mesmo e buscar os estudos que escolheu por sua própria iniciativa. E quando terminava a escola, tinha de correr os riscos de ganhar a vida da melhor maneira que pudesse, provavelmente adquirindo uma experiência variada e usando tanto as mãos como a cabeça, sem uma distinção de classe irrevogável para separar sua inteligência especulativa da aplicação prática.

Isso também pode mudar completamente em pouco tempo. O passo final no sentido de tornar a educação americana completamente japonesa já foi proposto. É escolher os alunos mais promissores nas escolas públicas, pagar seu curso nas diversas faculdades ou universidades com fundos federais e direcioná-los para cargos militares e burocráticos.

Os alemães são notavelmente instruídos; e têm excelentes escolas técnicas. Sua instrução permitiu que eles lessem Mein Kampf e sua tecnologia permitiu que construíssem uma máquina de guerra que vai destruí-los. É isso o que faz a educação controlada pelo poder político, depois que esse controle se torna completo. Desvia a energia humana para o beco sem saída dos canais políticos.

Podemos esperar um ressentimento rancoroso extremo dos profissionais da educação como resposta a qualquer sugestão de que eles devam ser desalojados de sua posição ditatorial. Isso será expresso principalmente em epítetos, como “reacionário”, o mais suave de todos. Contudo, a pergunta a ser feita a qualquer professor nesse estado de indignação é: “Você acha que ninguém voluntariamente confiaria seus filhos a você e o pagaria para ensiná-los? Por que você tem de extorquir sua remuneração e convocar seus alunos à força?”

1 Isabel Paterson se refere ao século 19. (N. do T.)
2 Por volta de 1900. (N. do T.)
3 Patrick Lafcadio Hearn (1850 - 1904): escritor que estudou a cultura e a sociedade japonesas. Nasceu numa ilha grega, de pai irlandês e mãe grega. Foi criado na Irlanda. Emigrou para os Estados Unidos aos 19 anos. Mudou-se para o Japão aos 40 anos, onde viveu o restante de sua vida. (N. do T.)
4 HEARN, Lafcadio. Japan: an interpretation.Macmillan, 1894. (N. da A.)
5 Amos Bronson Alcott (1799 - 1888): professor, escritor e filósofo reformista americano. (N. do T.)
6 Free education: no contexto, significa “educação gratuita”, mas literalmente, seria “educação livre”.
7 O Estado de Tennessee v. John Thomas Scopes (1925): famoso processo legal pelo qual o professor substituto John Scopes foi acusado de violar o Butler Act, do estado de Tennessee, que havia tornado ilegal o ensino da evolução humana em qualquer escola pública. Scopes não tinha certeza se de fato havia dado aulas sobre esse assunto, mas se incriminou de propósito para que o processo tivesse um réu. Scopes foi condenado a uma multa de 100 dólares, mas o veredito foi anulado por uma questão técnica. (N. do T.)
8 Por volta de 1890. (N. do T.)
9 PRATT, Wallace E. Oil in the Earth. University of Kansas Press. (N. da A.)

sexta-feira, 30 de maio de 2014

Hoje faz um ano do acidente do meu pai

Há um ano, meu pai subiu em uma escada de pedreiro para limpar uma luminária, na frente da casa dele. A escada resvalou para o lado e ele caiu de uma altura de três metros. Quebrou a bacia, foi internado, teve uma infecção hospitalar e faleceu depois de 32 dias.

Era a sexta-feira depois do Corpus Christi. Eu nem deveria estar trabalhando naquele dia, mas, na quarta, devido a alguns problemas urgentes, decidi ir para a empresa na sexta. Estava indo almoçar, muito atrasado, não lembro por que, quando minha mãe ligou. Ele já estava internado. Almocei assim mesmo, avisei os colegas do que tinha acontecido e corri para o hospital. Não vou repetir aqui cada passo da sua agonia, embora tudo volte a mente hoje.

Tínhamos planejado, meus pais e eu, visitar uma tia no dia anterior, mas ela desmarcou porque não estava bem de saúde. Nada me convence de que, se tivéssemos feito essa visita, meu pai não teria subido naquela escada no dia seguinte. (Mas poderia ter subido em qualquer outro momento, eu sei.)

Quando vou a um lançamento de livro, penso sempre “Papai iria gostar de ler este aqui.” Estou conversando com alguém sobre histórias antigas de família, ou sobre algum assunto que meu pai estudou e penso “Papai sabia isso. Agora, não tenho para quem perguntar.”

Meu pai pediu que eu procurasse citações das Metamorfoses, de Ovídio. Foi talvez a última coisa que ele me pediu. Li as Metamorfoses recentemente. Li também a Anábase, de Xenofonte, que ele mencionava sempre. E publiquei aqui o Crepúsculo Sertanejo, de Castro Alves, que ele gostava de recitar. É uma forma de continuarmos conversando.

Vejo meus filhos e sei que eles são as pessoas mais parecidas comigo que existem. Talvez eu seja a pessoa mais parecida com ele, embora em tantas coisas fôssemos muito diferentes.

quinta-feira, 29 de maio de 2014

Diário de Classe, de Isadora Faber

Sou fã de Isadora Faber desde que sua página de Facebook Diário de Classe ficou famosa, em agosto de 2012. Acompanhei as reformas que ela conseguiu que fossem feitas em sua escola, as merendas que ela fotografou, os Boletins de Ocorrência registrados por professoras, a epopéia da pintura da quadra e a agressão de que sua avó foi vítima.

O livro que ela está lançando, Diário de Classe - A Verdade, conta muito bem essa história. Com treze anos, indignada com os problemas da Escola Básica Municipal Maria Tomázia Coelho, onde cursava a sétima série, Isadora resolveu criar uma página no Facebook, com a ajuda de uma amiga. Publicou algumas fotos de portas de banheiro quebradas, fios desencapados, merenda ruim e esperava ter talvez 50 seguidores. Conforme começou a haver alguma repercussão, os professores, funcionários e a direção da escola passaram a pressionar as meninas a desistirem da página. A amiga de Isadora de fato desistiu e essa foi sua primeira decepção.

A imprensa descobriu o Diário de Classe e, em pouco tempo, houve um interesse mundial pelo caso e o número de seguidores chegou a mais de 500.000. Muitas coisas que ela pedia foram feitas, a escola foi reformada, o professor de matemática que não dava aula foi demitido, as autoridades municipais de educação tiveram de dar muitas explicações à imprensa. Porém, a pressão contra Isadora continuou sem tréguas. Por outro lado, o apoio de pessoas desconhecidas, entidades no Brasil e no exterior, prêmios diversos, eventos diversos e participação em programas de TV. Mais de 150 páginas foram criadas pelo Brasil, com a mesma intenção de mostrar os problemas de escolas públicas.

O livro conta tudo isso de maneira muito bem organizada, com reprodução de muitos posts e a informação de quantos seguidores a página tinha a cada momento. Existe um link para cada notícia mencionada.

Hoje, Isadora não estuda mais em uma escola pública. Está cursando o primeiro ano do ensino médio em um colégio particular. Percebeu uma enorme diferença entre a escola pública e a privada. No ensino privado, curiosamente, as instalações são conservadas, os professores não faltam, as reclamações dos alunos e dos pais são ouvidas.

Isadora fundou uma ONG e pretende contribuir de alguma maneira para a educação no Brasil.

Independentemente do que ela faça daqui para frente, de suas escolhas políticas ou das pessoas a quem ela se associe, admiro muito o que ela fez, sua coragem e determinação. Sua história é a história de um indivíduo lutando contra os abusos de poder das autoridades constituídas, usando como ferramenta apenas sua liberdade de expressão. Eu gostaria de ser Isadora Faber.

segunda-feira, 26 de maio de 2014

Preconceito, segundo João Pereira Coutinho

Trecho de As Idéias Conservadoras, de João Pereira Coutinho:

«O tempo atual não foi brando com certos termos da gramática conservadora — e “preconceito” é um deles. Ter “preconceitos” é hoje o supremo crime, sobretudo quando a “filosofia da vaidade” — o epíteto com que Burke brinda o sentimentalismo de Rousseau — aconselha os homens a se apresentarem sem preconceitos, num estado de pureza original que provavelmente só existiria no tempo das cavernas. Ironicamente, essa é uma hipótese que coloca os mais radicais progressistas no mesmo patamar a-histórico dos mais radicais reacionários.

Acontece que os “preconceitos” que interessam a um conservador não podem ser entendidos, ou confundidos, com meras idéias irracionais sobre determinados comportamentos, minorias ou indivíduos — o sentido atual e rasteiro do termo. Se todas as palavras também têm uma tradição, importa recordar que “preconceito” deve ser entendido no sentido clássico, ou seja como praejudicium — um precedente ou um julgamento baseado em decisões ou experiências passadas que, pela sua validade comprovada, informam decisões ou experiências presentes e futuras. Será essa dimensão de “preconceito” que interessa a um conservador: o tempo trouxe até ele princípios ou instituições que sobreviveram aos “testes do tempo”; essa sobrevivência cria uma razão favorável à manutenção e conservação de tais princípios ou instituições. E será a eles que devemos recorrer como se recorre a ensinamentos válidos e testados. Ou, melhor dizendo, válidos porque testados

domingo, 25 de maio de 2014

As Idéias Conservadoras, de João Pereira Coutinho

Mais uma obra imperdível de João Pereira Coutinho está nas livrarias: As Idéias Conservadoras - Explicadas a Revolucionários e Reacionários.

O fio condutor do livro é o pensamento de Edmund Burke (1729-1797), referência maior do conservadorismo britânico. Burke publicou, ainda em 1790, Reflexões sobre a Revolução na França, uma análise que previu boa parte das catástrofes que a Revolução Francesa acabou realizando, e que envolve todos os aspectos mais importantes do pensamento conservador.

Coutinho afirma que todos somos conservadores, pelo menos em relação ao que estimamos. Portanto, existe uma disposição conservadora, que não está relacionada com a política, de “usar e desfrutar aquilo que está disponível, em vez de procurar ou desejar outra coisa”, segundo Michael Oakeshott. É possível que essa disposição conservadora e o conservadorismo político não coexistam no mesmo indivíduo.

A disposição conservadora política não recusa apenas as ambições utópicas futuras dos revolucionários. Rejeita também uma suposta felicidade utópica passada dos reacionários. Coutinho afirma que qualquer outra ideologia diferente do conservadorismo elegerá valores que são desejáveis em qualquer circunstância. Para um liberal, a liberdade. Para um socialista democrático, a igualdade. Para um conservador, isso não existe. Cada valor será benéfico ou prejudicial conforme as circunstâncias. Ou seja, o conservadorismo é uma ideologia, porém diferente de todas as outras. Não é uma ideologia ideacional e ativa, mas posicional e reativa.

Um ponto fundamental do conservadorismo é a consciência da imperfeição humana, que convida o agente conservador a uma conduta humilde e prudente, que recusa a política utópica. Outro ponto básico é valorizar aquilo que sobreviveu aos testes do tempo. O fato de uma tradição existir há muito tempo é um indicativo da possibilidade de que essa tradição seja benéfica. Disse possibilidade, não certeza. Qualquer tradição pode e deve ser questionada.

Há um capítulo dedicado à relação entre conservadorismo e capitalismo. Coutinho chama o capitalismo pelo nome dado por Adam Smith: sociedade comercial. Existem conservadores que são adversários do capitalismo, o exemplo máximo seria Justus Möser (1720-1794). Coutinho diz que um conservador deve valorizar a sociedade comercial não por motivos transcendentes, mas por motivos empíricos e imanentes. A sociedade comercial funciona duplamente: na criação e distribuição de riqueza e como expressão das livres aspirações humanas.

Ao ler o livro, fiquei me perguntando o tempo todo até que ponto concordo com João Pereira Coutinho. Acho que tenho uma grande disposição conservadora pessoal. Concordo com os raciocínios de Coutinho, muito bem fundamentados. Mas discordo de alguns pontos de seu conservadorismo político. Acho que a liberdade é um valor extremamente importante e que a idéia de igualdade tem servido a todo tipo de manipulação. Ele defende alguns tipos de assistência aos desfavorecidos, sobre os quais tenho grande desconfiança. Vou continuar pensando nessas questões por mais tempo. Talvez Coutinho acabe me tornando mais conservador do que sou.

domingo, 18 de maio de 2014

Guia Politicamente Incorreto do Futebol, de Jones Rossi e Leonardo Mendes Júnior

Foi lançado recentemente mais um livro da série Guia Politicamente Incorreto, o Guia Politicamente Incorreto do Futebol, de Jones Rossi e Leonardo Mendes Junior.

O foco é muito mais o futebol que a política. Os autores abordam alguns fatos curiosos sobre o início do esporte no Brasil, sobre o craque Friedenreich e o racismo nos nossos clubes durante o século 20. Analisam questões da Seleção Brasileira nas Copas de 70, 82, 94 e 98. Sobre a seleção de 70, dizem que João Saldanha não foi demitido por ser comunista, mas por ser um técnico problemático, que estava fazendo o time jogar mal. Com Zagallo, o time conseguiu uma formação que permitia que os melhores craques jogassem juntos. Sobre a seleção de 82, escrevem que o time tinha falhas graves e mereceu perder para a Itália. Comparam o Brasil de 94 com a Espanha de 2010 e concluem que os dois times são muito parecidos.

O último capítulo, sobre Pelé, Maradona e Messi, não faz nenhuma comparação entre os jogadores, mas desmente 13 mitos sobre eles, inclusive o de que Pelé fez parar uma guerra.

Também narra a Batalha dos Aflitos de maneira não muito heróica para o Grêmio.

Meu conhecimento sobre futebol é muito limitado. Não tenho como opinar sobre a maior parte do que o livro trata, exceto para dizer que achei bem escrito e aprendi um pouco sobre essa história. Mas gostei muito do capítulo sobre a Democracia Corintiana, que diz que tratava-se de uma ditadura, manipulada por uns poucos líderes, principalmente Sócrates, Wladimir e Adílson Monteiro Alves. Também gostei muito do capítulo do futebol como negócio. Comparando o faturamento dos principais clubes com o de empresas não tão grandes assim, percebemos que os valores envolvidos no esporte são baixos, muito baixos.

O trecho mais interessante do livro, como Leandro Narloch apontou, é o que diz que a “lei de Gerson” melhora o mundo. Pena que é tratado de maneira tão rápida, poderia ter sido desenvolvido de maneira mais abrangente. As pessoas normalmente entendem “levar vantagem” como um benefício ilícito, mas não existe razão para isso. Se “levar vantagem em tudo” significar trabalhar para conseguir o melhor resultado possível para si mesmo, isso não é de forma alguma antiético. E, então, se cada um procurar o melhor para si mesmo, a vida melhora para a sociedade como um todo, conforme disse Adam Smith: “Não é pela benevolência do açougueiro, do cervejeiro ou do padeiro que esperamos nosso jantar, mas de sua preocupação com seu próprio interesse. Dirigimo-nos não à sua humanidade, mas ao seu amor-próprio, e nunca falamos a eles de nossas próprias necessidades, mas sim das vantagens para eles. Ninguém, exceto um mendigo, escolhe depender primordialmente da benevolência de seus companheiros cidadãos.”

quarta-feira, 14 de maio de 2014

O Deus da Máquina, capítulo XX

“O Humanitário com a Guilhotina” é o capítulo mais importante e mais famoso de “O Deus da Máquina”. Nele, Isabel Paterson discute os movimentos filantrópicos e humanitários e suas conseqüências. Num país onde a principal ação de governo é o Bolsa-Família, este é um texto fundamental.

O Humanitário com a Guilhotina

O Deus da Máquina, capítulo XX
O Humanitário com a Guilhotina
Isabel Paterson


A maior parte dos males do mundo é causada por boas pessoas, e não por acidente, lapso ou omissão. É o resultado de ações deliberadas, feitas com longa perseverança, que essas pessoas acreditam fazer motivadas por altos ideais e almejando fins virtuosos. Pode-se provar que isso é verdade; não poderia ser diferente. A porcentagem de pessoas positivamente mal-intencionadas, viciosas ou depravadas é necessariamente pequena, porque nenhuma espécie poderia sobreviver se seus membros fossem habitual e conscientemente predispostos a prejudicar uns aos outros. A destruição é tão fácil que mesmo uma minoria com intenções persistentemente más conseguiria em pouco tempo exterminar a maioria incauta de pessoas de boa vontade. Assassinato, roubo, pilhagem e destruição estão facilmente ao alcance de todos os indivíduos a qualquer momento. Se supusermos que só podem ser evitados pelo medo ou pela força, se todos os homens possuíssem uma mentalidade maligna, o que temeriam, ou quem imporia a força contra eles? Certamente, se fosse computado todo o mal causado por criminosos obstinados, concluiríamos que a quantidade de homicídios e a extensão dos danos e perdas é desprezível na soma total de mortes e devastação produzidas contra os seres humanos por seus pares. Portanto, é óbvio que, em períodos em que milhões são massacrados, pratica-se a tortura, impõe-se a fome e a opressão se torna uma política, como ocorre hoje em grande parte do mundo e como ocorreu com frequência no passado, isso deve ser por ordem de muitas e muitas pessoas boas, e mesmo por sua ação direta, pelo que elas consideram que seja um objetivo justo. Quando não são os executantes imediatos, são culpados de aprovar, de criar justificativas ou ainda de esconder fatos com o silêncio e com discussões diversionistas.

É óbvio que isso não poderia acontecer sem causa ou razão. E deve ficar claro, no trecho acima, que “boas pessoas” significa “boas pessoas”: pessoas que não agiriam por sua própria intenção consciente com o objetivo de ferir seus semelhantes, e não propiciariam tais atos, nem por perversão, nem para obter benefícios pessoais para si mesmas. Boas pessoas desejam o bem a seus semelhantes e desejam guiar suas próprias ações de acordo com isso. Além disso, não quero deduzir nenhuma “transmutação de valores”, que confunda o bem e o mal, nem sugerir que o bem produz o mal, ou que não há diferença entre o bem e o mal, ou entre pessoas bem e mal-intencionadas; nem tampouco que as virtudes das boas pessoas não são realmente virtudes.

Então, deve haver um erro muito grave nos meios pelos quais elas buscam alcançar seus fins. Deve haver mesmo um erro em seus axiomas primários, que permitem que elas continuem usando tais meios. Alguma coisa está terrivelmente errada no método, em algum lugar. O que é?

É certo que os massacres cometidos de tempos em tempos por bárbaros que invadem regiões estabelecidas ou as crueldades caprichosas de tiranos assumidos não perfazem um décimo dos horrores perpetrados por governantes com boas intenções.

Conforme a história chegou até nós, os antigos egípcios eram escravizados pelo Faraó por meio de um esquema benevolente de “celeiros sempre normais”. Era feita uma provisão contra a fome; e então as pessoas eram forçadas a trocar suas propriedades e sua liberdade por essas reservas que haviam sido tomadas de sua própria produção. A dureza desumana dos antigos espartanos era praticada em nome de um ideal cívico de virtude.

Os primeiros cristãos foram perseguidos por razões de estado, o bem-estar coletivo; e resistiram em nome do direito à personalidade, porque cada um possuía uma alma individual. Aqueles que foram mortos por Nero por pura diversão foram poucos, comparados aos executados pelos imperadores posteriores, por razões estritamente “morais”. Gilles de Retz1, que assassinava crianças para satisfazer uma perversão abominável, não matou mais de cinquenta ou sessenta. Cromwell2 ordenou o massacre de trinta mil pessoas de uma vez, incluindo crianças de colo, em nome da justiça. Mesmo as brutalidades de Pedro, o Grande3, tinham como pretexto um plano para beneficiar seus súditos.

A guerra atual começou com um tratado perjurado entre duas nações poderosas (Rússia e Alemanha), que dizia que elas poderiam esmagar seus vizinhos menores com impunidade. Esse tratado foi quebrado por um ataque-surpresa contra o companheiro conspirador. Essa guerra teria sido impossível sem o poder político interno que, em ambos os casos, foi tomado com o pretexto de se fazer o bem à nação. As mentiras, a violência, as matanças em massa foram praticadas primeiro contra o povo de ambas as nações por seu respectivo governo. Pode ser dito, e pode ser verdade, que em ambos os casos os detentores do poder são hipócritas viciosos; que seu objetivo consciente era maligno desde o início; mesmo assim, não poderiam ter chegado ao poder de forma alguma, exceto com o consentimento e o auxílio de boas pessoas. O regime comunista na Rússia foi estabelecido prometendo terra aos camponeses, em termos que os que prometeram sabiam que eram mentirosos. Tendo conseguido o poder, os comunistas tiraram dos camponeses a terra que eles já possuíam; e exterminaram aqueles que resistiram. Isso foi feito de maneira planejada e deliberada; e a mentira foi elogiada como “engenharia social” por admiradores socialistas na América. Se isso é engenharia, vender minério falso é engenharia. Toda a população da Rússia foi submetida à coerção e ao terror; milhares foram assassinados sem julgamento; milhões foram mortos em trabalho forçado ou pela fome, em cativeiro. Da mesma maneira, toda a população da Alemanha foi submetida à coerção e ao terror, pelos mesmos meios. Com a guerra, russos em campos alemães de prisioneiros e alemães em campos russos de prisioneiros não sofreram nada pior e não tiveram um destino diferente de seus compatriotas que, em grandes quantidades, sofreram e continuam sofrendo abusos infligidos por seu próprio governo em seu próprio país. Se existe alguma mínima diferença, é que são submetidos não à vingança de inimigos declarados, mas à proclamada benevolência de seus compatriotas. As nações conquistadas da Europa, sob os calcanhares russos ou alemães, estão simplesmente vivenciando o que os russos e os alemães sofrem há anos, sob seus próprios regimes nacionais.

Além disso, as principais figuras políticas hoje no poder na Europa, incluindo aqueles que venderam seu país ao invasor, são socialistas, ex-socialistas e comunistas; homens cujo credo era o bem coletivo.

Com tudo isso completamente demonstrado, temos o peculiar espetáculo em que o homem que condenou milhões de seus compatriotas à fome é admirado por filantropos cujo objetivo declarado é garantir que todas as pessoas do mundo tenham um litro de leite. Um profissional graduado do trabalho beneficente viajou metade do mundo para tentar uma entrevista com esse mestre de seu ofício e para escrever rapsódias se conseguisse tal privilégio. Para se manterem em seus cargos, com o objetivo declarado de fazer o bem, semelhantes idealistas acolhem o apoio político de corruptores, cafetões condenados e assassinos profissionais. A afinidade entre esses tipos se revela invariavelmente quando surge a ocasião. Mas qual é a ocasião?

Por que a filosofia humanitária da Europa do século dezoito prenuncia o Reino do Terror? Não foi por acaso; é consequência da premissa, do objetivo e dos meios propostos originalmente. O objetivo é fazer o bem aos outros como uma justificativa primária da existência. Os meios são o poder da coletividade. A premissa é de que o “bem” é coletivo.

A raiz da questão é ética, filosófica e religiosa, envolvendo a relação do homem com o universo, da faculdade criativa do homem com seu Criador. A divergência fatal ocorre em não se reconhecer a norma da vida humana. Obviamente, há uma grande parcela de dor e aflição que acompanha a existência. A pobreza, a doença e os acidentes são possibilidades que, mesmo que reduzidas a um mínimo, não podem ser completamente eliminadas dos riscos que a humanidade deve enfrentar. Mas não são condições desejáveis, para serem provocadas ou perpetuadas. Naturalmente, as crianças têm pais, enquanto a maioria dos adultos tem boa saúde durante a maior parte da vida e possui uma atividade útil que lhe dá o sustento. Essa é a norma e a ordem natural. Doenças são marginais. Podem ser aliviadas por um excedente marginal de produção; caso contrário, absolutamente nada poderia ser feito. Portanto, não se pode supor que o produtor exista apenas para o bem do não-produtor, o saudável para o bem do doente, o competente para o bem do incompetente; ou qualquer pessoa simplesmente para o bem de outra. (A consequência lógica, se considerarmos que uma pessoa existe apenas para o bem de outra, era realizada por sociedades semibárbaras, quando a viúva ou os seguidores de um homem morto eram enterrados vivos em sua sepultura.)

As grandes religiões, que também são grandes sistemas intelectuais, sempre reconheceram as condições da ordem natural. Prescrevem a caridade, a benevolência, como uma obrigação moral, a ser cumprida com o excedente do produtor. Ou seja, as religiões consideram a caridade secundária à produção, pela razão inescapável de que sem produção não haveria nada para ser dado. Consequentemente, determinam a regra mais severa, para ser adotada voluntariamente apenas, para aqueles que desejam devotar sua vida completamente aos trabalhos de caridade, por contribuições. Isso sempre é considerado uma vocação especial, porque não poderia ser um modo geral de vida. Uma vez que o esmoler4 tem de obter dos produtores os fundos ou bens que distribui, não pode ter nenhuma autoridade para comandar; deve pedir. Quando subtrai seu sustento dessas esmolas, não deve pegar mais que o necessário para a mera subsistência. Como prova de sua vocação, deve até renunciar à felicidade de uma vida familiar, se quiser receber a aprovação religiosa formal. Nunca deverá receber conforto para si mesmo a partir da miséria dos outros.

As ordens religiosas sustentaram hospitais, criaram órfãos, distribuíram comida. Parte dessas esmolas era distribuída incondicionalmente, de maneira que não pudesse haver coerção sob o manto da caridade. Não é decente obrigar um homem a perder sua alma em troca de pão. Essa é a real diferença entre a caridade prescrita em nome de Deus e aquela feita por princípios humanitários ou filantrópicos. Se os doentes eram curados, os famintos alimentados, os órfãos cuidados até crescerem, isso certamente era bom e o bem não pode ser computado em termos simplesmente físicos; mas a intenção dessas ações era guiar os beneficiários durante um período de aflição e devolvê-los à norma se possível. Se os aflitos pudessem ajudar a si mesmos em parte, tanto melhor. Se não pudessem, o fato era reconhecido. Mas a maioria das ordens religiosas fazia um esforço simultâneo para serem produtivas, de forma que pudessem dar seu próprio excedente, além de distribuir doações. Quando realizavam trabalho produtivo, como construir, dar aulas por um preço razoável, plantar ou desenvolver indústrias e artes suplementares, os resultados eram duradouros, não apenas nos produtos em si, mas na ampliação do conhecimento e nos métodos avançados, de maneira que, no longo prazo, elevavam o padrão de bem-estar. E deve ser observado que esses resultados duradouros se originavam do auto aperfeiçoamento.

O que um ser humano pode realmente fazer por outro? Ele pode doar, a partir de seus próprios fundos e de seu próprio tempo, qualquer coisa que tenha de sobra. Mas não pode conceder capacidades que a natureza tenha negado ao outro; nem entregar seus meios de subsistência sem tornar-se ele mesmo dependente. Se dá o que ganha, precisa ganhar antes. Sem dúvida, ele tem direito a uma vida doméstica, se puder sustentar esposa e filhos. Deve, portanto, reservar o suficiente para si e para sua família, para continuar a produção. Nenhuma pessoa, mesmo que sua renda seja de dez milhões de dólares por ano, pode cuidar de cada caso de necessidade do mundo. Mas, supondo que não possua meios próprios, e ainda imagine que possa fazer com que “ajudar os outros” seja o seu objetivo primário e modo normal de vida, o que é a doutrina central do credo humanitário, como ele vai por isso em prática? Foram publicadas listas dos Casos Mais Necessitados, certificadas por fundações de caridade seculares que pagam polpudos salários a seus funcionários. Os necessitados foram investigados, mas não ajudados. Das doações recebidas, os funcionários pagam primeiro a si mesmos. Isso é embaraçoso até para a costumeira cara-de-pau do filantropo profissional. Mas como escapar de confessá-lo? Se o filantropo pudesse comandar os meios do produtor, em vez de pedir uma parcela, poderia exigir o crédito pela produção, estando em posição de dar ordens ao produtor. Então, poderia culpar o produtor por não cumprir as ordens de produzir mais.

Se o objetivo primário do filantropo, sua justificação de vida, é ajudar os outros, seu bem final exige que os outros estejam necessitados. Sua felicidade é a outra face da miséria deles. Se deseja ajudar a “humanidade”, toda a humanidade tem de estar em necessidade. O humanitário deseja ser uma causa primária na vida dos outros. Não pode admitir nem a ordem divina nem a ordem natural, pelas quais os homens têm o poder de ajudar a si mesmos. O humanitário se coloca no lugar de Deus.

Mas ele tem de encarar dois fatos desagradáveis; primeiro, os competentes não precisam de sua ajuda; e, segundo, que a maioria das pessoas, se não for pervertida, positivamente não quer que o humanitário venha lhe “fazer bem”. Quando se diz que todos devem viver primordialmente pelos outros, qual é o caminho exato a ser seguido? Cada pessoa deve fazer exatamente o que qualquer outra pessoa queira que ela faça, sem limites ou reservas? E somente o que os outros querem que ela faça? E se várias pessoas fizerem pedidos conflitantes? O plano é inviável. Talvez, então, ela deva fazer apenas o que é de fato “bom” para os outros. Mas será que esses outros sabem o que é bom para si mesmos? Não, isso é descartado pela mesma dificuldade. Então, será que A fará o que acha que é bom para B, e B o que acha que é bom para A? Ou será que A deve aceitar apenas o que acha que é bom para B, e vice-versa? Mas isso é absurdo. É claro que o que o humanitário realmente propõe é que ele fará o que acha que é bom para todos. É nesse ponto que o humanitário instala a guilhotina.

Que tipo de mundo o humanitário vislumbra, que lhe permite plena capacidade de ação? Só poderia ser um mundo cheio de filas de pão e hospitais, no qual ninguém retivesse o poder natural do ser humano de ajudar a si mesmo ou de resistir a que as coisas sejam feitas por ele. E é exatamente o mundo que o humanitário cria quando consegue. Quando um humanitário deseja fazer com que todos tenham um litro de leite, é evidente que não possui o leite e não pode produzi-lo por si mesmo. Se não fosse assim, porque estaria simplesmente desejando? Além disso, se tivesse de fato uma quantidade suficiente de leite para conceder um litro a cada pessoa, mas seus potenciais beneficiários conseguissem produzir leite por si mesmos, diriam: Não, obrigado. Então, como o humanitário pode conseguir ter todo o leite para distribuir e que todos estejam precisando de leite?

Só existe uma maneira, que é usar o poder político em sua plena extensão. Assim, o humanitário sente a máxima gratificação quando visita ou ouve falar de um país no qual todos são dependentes de cartões de racionamento. Onde a subsistência é mantida por doações estatais, aquilo a que se aspira foi alcançado, uma necessidade geral e um poder superior para “aliviá-la”. O humanitário em teoria é o terrorista em ação.

As boas pessoas concedem o poder que ele pede porque aceitaram sua falsa premissa. O avanço da ciência deu a essa premissa uma plausibilidade ilusória, com o aumento da produção. Já que existe o suficiente para todos, porque os “necessitados” não podem ser sustentados primeiro e a questão ser assim resolvida permanentemente?

Se, neste ponto, for perguntado como se define “necessitado” e de que origem e com que poder esse sustento seria dado a eles, pessoas de bom coração exclamariam indignadas: “Isso é se preocupar com ninharias. Estreite-se a definição até o limite, mas existirá um mínimo irredutível no qual não se pode negar que um homem que está com fome, maltrapilho e sem abrigo é um necessitado. A origem do alívio só pode ser os meios daqueles que não estão assim necessitados. O poder já existe; se pode existir um direito de cobrar impostos para sustentar exércitos, marinhas, polícia local, construção de estradas ou qualquer outro objetivo imaginável, sem dúvida deve existir um direito mais forte de cobrar impostos para a preservação da própria vida.”

Muito bem; tomemos um caso específico. Nos tempos difíceis da década de 1890, um jovem jornalista de Chicago estava preocupado com as privações terríveis dos desempregados. Ele tentou acreditar que qualquer homem que desejasse trabalhar honestamente conseguiria encontrar um emprego; mas, para ter certeza, investigou alguns casos. Por exemplo, um jovem de uma fazenda, onde a família talvez tivesse o suficiente para comer, mas precisava de tudo o mais; o garoto chegou a Chicago procurando emprego e certamente aceitaria qualquer tipo de trabalho, mas não havia nada. Suponhamos que tenha voltado para casa mendigando; havia outros que estavam a meio continente ou a um oceano de casa. Não podiam voltar, por nenhum tipo de esforço próprio; não há o que discutir a respeito. Simplesmente não tinham como. Dormiam em becos, esperavam por rações escassas nos sopões; e sofriam amargamente. Mais uma coisa; entre esses desempregados havia algumas pessoas, é impossível dizer quantas, que eram excepcionalmente empreendedoras, talentosas ou competentes; e foi isso que as colocou naquela situação. Haviam se livrado da dependência em um momento particularmente arriscado; fizeram uma aposta alta. Extremos se encontravam entre os desempregados; os extremos da iniciativa corajosa, do completo azar e da absoluta imprudência e incompetência. Um ferreiro que trabalhava perto da Ponte do Brooklin e deu dez centavos a um pobre para que ele pagasse a passagem pela ponte não poderia imaginar que estivesse investindo na imortalidade, na pessoa de um futuro Poeta Laureado da Inglaterra. Mas o pobre era John Masefield5. Assim, não se pense que os necessitados sejam sempre “pessoas sem mérito”. Havia também pessoas no campo, em regiões afetadas pela seca ou por pragas, que passaram por dificuldades terríveis e teriam literalmente passado fome se não tivessem recebido ajuda. Também não receberam muito e foi de maneira inconstante. Mas todos lutaram pela fantástica recuperação do país inteiro.

Poderia ter havido dificuldades muito maiores que a simples pobreza na linha de subsistência, se não fosse pela ajuda entre vizinhos, que não foi chamada de caridade. As pessoas sempre doam muito, se possuem; é um impulso humano, do qual o humanitário se aproveita, para seu próprio objetivo. Qual é o problema de institucionalizar esse impulso natural em uma agência política?

Muito bem; teria o garoto da fazenda feito alguma coisa errada quando saiu de lá, onde tinha o suficiente para comer, e foi para Chicago pela possibilidade de conseguir um emprego?

Se a resposta for sim, então deve existir um poder legítimo que o impeça de deixar a fazenda sem permissão. O poder feudal fazia isso. Não podia impedir as pessoas de passar fome; simplesmente as obrigava a passar fome exatamente onde nasceram.

Mas, se a resposta for não, o garoto da fazenda não fez nada de errado, ele tinha o direito de correr aquele risco, então, o que exatamente pode ser feito para assegurar que ele não terá má sorte quando chegar ao destino que escolheu? Será que um emprego deve estar disponível para qualquer pessoa, em qualquer lugar para onde decida ir? Isso é absurdo. Não pode ser feito. Ela tem direito a algum tipo de assistência, quando chegar lá, desde que decida ficar; ou, pelo menos, a uma passagem de volta para casa? É igualmente absurdo. A demanda seria infinita; nenhuma abundância de produção conseguiria cobri-la.

Mas, e as pessoas empobrecidas pela seca? Elas não poderiam receber assistência política? Mas deve haver condições. Deveriam receber enquanto estiverem necessitadas, enquanto permanecerem onde estão? (Não podem ser custeadas para uma viagem por tempo indeterminado.) É exatamente o que foi feito nos últimos anos; e isso vem mantendo os recebedores de assistência juntos, há sete anos, em lugares miseráveis, perdendo tempo, trabalho e sementes no deserto.

A verdade é que qualquer método proposto para cuidar da necessidade marginal e das privações ocasionais da vida humana, estabelecendo-se uma carga fixa permanente sobre a produção, seria adotado com satisfação por aqueles que hoje se opõe a esse tipo de medida, se isso fosse viável. Eles se opõem porque a ideia é inviável pela natureza das coisas. São pessoas que já criaram todos os expedientes parciais possíveis, na forma de seguros privados; sabem exatamente onde está a armadilha, porque tiveram de enfrentá-la quando tentaram garantir provisões para seus próprios dependentes.

O obstáculo insuperável é que é absolutamente impossível obter qualquer coisa da produção antes de garantir sua manutenção.

Se fosse verdade que os produtores em geral, gerentes industriais e outros, tivessem corações de aço temperado, e não se preocupassem absolutamente com o sofrimento humano, ainda seria muito mais conveniente para eles que a questão do alívio de todos os tipos de privação — desemprego, doença ou velhice — pudesse ser resolvida de uma vez, de maneira que eles não precisassem mais ouvir falar no assunto. Estão sempre sendo atacados nesse ponto; e seus problemas são duplicados quando a indústria encontra uma depressão. Políticos podem conseguir votos por causa de privações; humanitários obtêm lucrativos empregos administrativos distribuindo fundos de assistência; somente os produtores, tanto capitalistas como operários, têm de aguentar os insultos e pagar o pato.

O problema pode ser explicado de maneira mais clara por um exemplo concreto. Suponhamos que um homem seja dono de uma empresa lucrativa e sólida, com um longo histórico de bom gerenciamento. Ele deseja garantir que sua família seja sustentada pela empresa por tempo indeterminado. Como dono, pode conceder ações preferenciais que rendam determinada quantia; digamos que fossem apenas US$ 5.000,006 por ano em uma empresa que gerasse US$ 100.000,00 por ano de lucro líquido. É o máximo que o dono da empresa é capaz fazer. E se, em algum momento, a empresa não conseguisse gerar US$ 5.000,00 de lucro líquido, sua família não receberia o dinheiro e isso é tudo. A família poderia deixar a empresa falir e tomar posse dos ativos, e esses ativos, depois da falência, poderiam não valer nada. É impossível obter qualquer coisa da produção antes de garantir sua manutenção.

Além disso, é claro que sua família poderia hipotecar as ações, entregá-las à “administração” de algum amigo “benevolente” — já se viu esse tipo de coisa acontecer muitas vezes — e, então, não receberiam o dinheiro de qualquer maneira. É mais ou menos o que acontece com organizações de caridade que recebem doações. Sustentam uma porção de bons amigos em empregos bacanas.

Mas o que aconteceria se o empresário, por causa de seu afeto e generosidade, determinasse, de maneira irrevogável, que sua esposa e filhos teriam o poder de tirar recursos da empresa no valor sem limites. Inocentemente, ele poderia ter certeza de que eles não pegariam mais que uma pequena porcentagem, para suas necessidades razoáveis. Mas poderia chegar o dia em que o caixa teria de dizer à feliz esposa que não haveria dinheiro para pagá-la; e, com um arranjo assim, certamente esse dia chegaria bem rápido. Em qualquer caso, exatamente quando a família mais precisasse de dinheiro, a empresa renderia menos.

Mas o procedimento seria totalmente insano se o empresário desse a um terceiro o poder irrevogável de retirar o valor que desejasse dos recursos da empresa, com apenas um entendimento não obrigatório de que esse terceiro devesse sustentar a família do dono. É nisso exatamente que consiste a proposta de cuidar dos necessitados pelos meios políticos. Ela dá aos políticos o poder de taxar o quanto quiserem; e não existe absolutamente nenhuma forma de garantir que o dinheiro vá para onde se pretendia que fosse. De todo modo, a empresa não aguenta essa sangria sem limites.

Porque pessoas bem intencionadas recorrem ao poder político? Elas não podem negar que os meios de assistência aos necessitados têm de vir da produção. Mas dizem que existe o suficiente e com sobras. Então, devem supor que os produtores não aceitam dar o que é “certo”. Além disso, supõem que existe um direito coletivo de criar impostos, para qualquer objetivo que a coletividade determine. Atribuem esse direito ao “governo”, como se o governo existisse de maneira independente. Esquecem-se do axioma americano de que o governo em si não existe de maneira independente, mas é instituído pelos homens para atingir objetivos limitados. O próprio contribuinte espera ter proteção do exército ou da marinha ou da polícia; usa as estradas; por isso, seu direito de insistir em limites para a carga tributária é auto evidente. O governo não tem “direitos” sobre esse assunto, mas apenas uma autoridade delegada.

Mas, se os impostos serão criados para dar assistência aos necessitados, quem vai julgar o que é possível ou benéfico? Tem de ser ou os produtores, ou os necessitados ou algum terceiro grupo. Dizer que serão os três juntos não é resposta; o veredito deve se basear numa maioria ou pluralidade extraída de um grupo ou de outro. Os necessitados podem votar eles mesmos para determinar qual a sua necessidade? Os humanitários, o terceiro grupo, podem votar e eleger a si mesmos para controlar tanto os produtores quanto os necessitados? (É o que eles têm feito.) Entende-se assim que o governo deve receber o poder de dar “segurança” aos necessitados. Isso é impossível. O que o governo faz é confiscar a poupança acumulada por pessoas privadas para sua própria segurança, tirando assim de todos qualquer esperança de alguma possibilidade de segurança. Não há mais nada que o governo possa fazer, se resolver agir de alguma maneira. Aqueles que não entendem a natureza dessa ação são como selvagens que derrubam uma árvore para colher os frutos; não pensam em termos de tempo e espaço, como devem fazer os homens civilizados.

Já vimos o que pode acontecer de pior quando só existem doações privadas e assistência municipal improvisada de caráter temporário. A ajuda privada desorganizada é aleatória e esporádica; nunca foi capaz de impedir completamente o sofrimento. Mas também não perpetua a dependência de seus beneficiários. É o método do capitalismo e da liberdade. Envolve altos e baixos extraordinários, mas o altos são sempre mais altos a cada vez, e de duração mais longa que os baixos. E, nos períodos de maior privação, não existe fome de verdade, não existe desespero absoluto, mas um estranho tipo de raiva, um otimismo ativo e uma crença inabalável em tempos melhores adiante, que os resultados justificam. Doações privadas extraoficiais, esporádicas de fato realizam o objetivo. Funcionaram, mesmo que de maneira imperfeita.

Por outro lado, o que o poder político tem condições de fazer? Um dos supostos “abusos” do capitalismo é a sweatshop7. Imigrantes vieram para a América sem um centavo, ignorantes do idioma e sem capacitação profissional; foram contratados por salários muito baixos, trabalhavam longas horas em ambientes sujos e considera-se que eram explorados. Porém, misteriosamente, em algum tempo sua condição melhorou; a grande maioria conseguiu conforto e alguns enriqueceram. O poder político seria capaz de fornecer empregos lucrativos para todos que quisessem vir? É evidente que não seria e não é. Mesmo assim, as pessoas boas pediram que o poder político aliviasse o fardo desses recém-chegados. O que ele fez? Sua primeira exigência foi de que cada imigrante deveria trazer consigo certa quantia em dinheiro. Ou seja, extinguiu a única esperança dos estrangeiros mais necessitados. Mais tarde, quando o poder político na Europa transformou a vida em um inferno sombrio, mas um grande número de pessoas ainda poderia ter acumulado a quantia exigida para admissão na América, o poder político simplesmente limitou a admissão a uma quota. Quanto mais desesperada a necessidade, menor a chance de o poder político permitir que fosse atendida. Os muitos milhões na Europa não ficariam felizes e gratos se pudessem ter apenas a pior chance que o velho sistema concedia, em vez de campos de prisioneiros, porões de tortura, humilhações vis e morte violenta?

O empregador da sweatshop não tinha muito capital. Arriscava o pouco que tinha contratando gente. Foi acusado de fazer a eles um mal terrível e sua empresa se tornou um exemplo revelador da brutalidade intrínseca do capitalismo.

O funcionário político é razoavelmente bem-pago, num emprego com estabilidade. Sem arriscar nada, recebe seu salário para empurrar pessoas desesperadas de volta das fronteiras, como se batesse em homens se afogando que tentassem subir a bordo de um navio bem-provisionado. O que mais ele pode fazer? Nada. O capitalismo fez o que podia; o poder político faz o que pode. Casualmente, o navio foi construído e abastecido pelo capitalismo.

Entre o filantropo privado e o capitalista privado agindo como tais, tomemos o caso do homem realmente necessitado, que não está incapacitado, e suponhamos que o filantropo dê a ele comida, roupas e abrigo — quando ele os tiver usado, estará exatamente onde estava antes, com a diferença de que talvez tenha adquirido o hábito da dependência. Mas suponhamos que alguém sem nenhum motivo benevolente, simplesmente querendo que um trabalho seja feito por suas próprias razões, contratasse o necessitado por um salário. O empregador não fez uma boa ação. Porém, a condição do homem empregado de fato mudou. Qual a diferença vital entre as duas ações?

É que o empregador não-filantrópico levou o homem que contratou de volta à linha de produção, no grande circuito de energia; enquanto o filantropo pode apenas desviar energia de tal maneira que não haja retorno para a produção e, portanto, diminui a chance de que o objeto de sua caridade encontre emprego.

Este é o motivo racional, profundo, pelo qual os seres humanos evitam a assistência e odeiam a própria palavra. É também o motivo pelo qual aqueles que praticam trabalhos de caridade por vocação verdadeira fazem tudo o que podem para que esse trabalho permaneça marginal, e alegremente renunciam à oportunidade de “fazer o bem” em favor de qualquer possibilidade de que o beneficiário trabalhe em termos semitoleráveis. Aqueles que não podem evitar recorrer à assistência demonstram os resultados em sua aparência física; são isolados das fontes vivas de energia auto renovadora e sua vitalidade afunda.

O resultado, se forem mantidos recebendo assistência por tempo suficiente pelos decididos filantropos e políticos unidos, foi descrito por um profissional de assistência. A princípio, os “clientes” se inscrevem com relutância. “Em poucos meses, tudo muda. Descobrimos que aquele sujeito que só queria o suficiente para superar a dificuldade agora aceita viver de assistência como um fato da vida.” O funcionário que disse isso estava ele próprio “vivendo de assistência como um fato da vida”; mas estava um grande degrau abaixo de seu cliente, uma vez que nem mesmo se dava conta de sua condição. Por que ele conseguia fugir à verdade? Porque podia se esconder atrás da motivação filantrópica. “Ajudamos a impedir a fome e agimos para que essas pessoas tenham abrigo e roupas de cama.” Se perguntassem ao funcionário: “Você planta a comida? Você constrói o abrigo? ou Você dá dinheiro de sua própria renda para pagar por tudo isso?”, ele não enxergaria que isso faz qualquer diferença. Foi ensinado de que é certo “viver pelos outros”, por “objetivos sociais” e “ganhos sociais”. Enquanto acreditar que está fazendo isso, não se perguntará o que está necessariamente fazendo para os outros, nem de onde devem vir os meios para sustentar sua atividade.

Se o papel total dos filantropos sinceros fosse totalizado, desde o início dos tempos, descobriríamos que todos eles juntos, por suas atividades filantrópicas estritas nunca conferiram à humanidade um décimo do benefício derivado dos esforços normalmente egoístas de Thomas Alva Edison8, sem falar nas mentes maiores que desenvolveram os princípios científicos que Edison aplicou. Incontáveis pensadores especulativos, inventores e organizadores contribuíram para o conforto, saúde e felicidade de seus semelhantes — porque esse não era seu objetivo. Quando Robert Owen9 tentou dirigir uma fábrica visando a produção eficiente, o processo casualmente melhorou alguns personagens muito pouco promissores entre seus empregados, que haviam vivido de assistência e, portanto, estavam tristemente degradados; Owen ganhou dinheiro; e enquanto era esse seu objetivo, percebeu que, se melhores salários fossem pagos, a produção poderia aumentar, tendo criado seu próprio mercado. Isso era sensato e verdadeiro. Mas então Owen foi tocado por uma ambição humanitária de fazer o bem a todos. Reuniu muitos humanitários em uma colônia experimental; estavam tão imbuídos de fazer o bem aos outros que ninguém fazia trabalho nenhum; a colônia se dissolveu amargamente; Owen faliu e morreu levemente enlouquecido. Assim, o importante princípio que ele vislumbrou teve de esperar um século para ser redescoberto.

O filantropo, o político e o cafetão se encontram inevitavelmente aliados porque têm as mesmas motivações, buscam os mesmos fins: existir para outros, por intermédio de outros e mantidos por outros. E as boas pessoas não podem ser absolvidas de apoiá-los. Não se pode acreditar que as boas pessoas sejam completamente inconscientes do que realmente acontece. Mas, quando boas pessoas sabem de fato, como certamente sabem, que três milhões de seres humanos (na estimativa mais baixa) morreram de fome em um ano pelos métodos que elas aprovam, por que ainda se confraternizam com os assassinos e apoiam essas medidas? Porque disseram a elas que a morte lenta dos três milhões poderia, ao final, beneficiar um número maior de pessoas. Esse argumento se aplica igualmente ao canibalismo.

1 Barão Gilles de Retz, ou de Rais (1405 - 1440): cavaleiro bretão, líder do exército francês e companheiro de armas de Joana d'Arc, foi enforcado pelo assassinato em série de um número indeterminado de crianças. Não se sabe ao certo se ele era culpado ou não. (N. do T.)

2 Oliver Cromwell (1599 - 1658): chefe de estado e governo da Inglaterra, Escócia e Irlanda entre 1653 e 1658, com o título de Lorde Protetor, depois da decapitação do rei Carlos I, em 1649. (N. do T.)

3 Pedro, o Grande (1672 - 1725): czar e imperador da Rússia entre 1682 e 1725. (N. do T.)

4 Esmoler: em inglês, almoner. Capelão ou funcionário da igreja encarregado da distribuição de donativos aos pobres. (N. do T.)

5 John Masefield (1878 - 1967): poeta e escritor inglês, Poeta Laureado do Reino Unido de 1930 até sua morte. (N. do T.)

6 US$1,00 de 1943 equivale a cerca de US$110,00 de 2014. (N. do T.)

7 Sweatshop: estabelecimento em que os empregados trabalham longas horas, recebendo salários muito baixos, em condições ambientais ruins. Essa expressão é muito comum em inglês. Mantive no original porque não achei um equivalente igualmente expressivo. (N. do T.)

8 Thomas Alva Edison (1847 - 1931): inventor e empresário americano. Desenvolveu diversos dispositivos que influenciaram enormemente a vida em todo o mundo, incluindo o fonógrafo, uma câmera para filmar e um modelo de lâmpada elétrica viável comercialmente. Foi um dos primeiros inventores a aplicar os princípios de produção em massa e de grandes equipes de trabalho ao processo de invenção. Considera-se que ele criou o primeiro laboratório industrial de pesquisas. (N. do T.)

9 Robert Owen (1771 - 1858): reformador social galês e um dos fundadores do socialismo utópico e do movimento cooperativista. (N. do T.)