O Deus da Máquina, capítulo XI
O Significado da Magna Carta
Isabel Paterson
A Inglaterra
acabou por fazer os ajustes mais bem-sucedidos no Velho Mundo, mas
não sem uma luta contínua e crises recorrentes de violência,
durante cinco séculos. O primeiro e crucial esforço dos ingleses
para estabelecer as fundações de uma estrutura duradoura culminou
com a
Magna Carta, que
o Rei João foi obrigado a assinar, por seus súditos rebeldes. As
provisões desse documento extraordinário quase nunca são
mencionadas atualmente, com exceção da frase: “A ninguém
venderemos, a ninguém negaremos, a ninguém protelaremos o direito
ou a justiça.” Certamente, isso é admirável. Define de maneira
abstrata o propósito essencial para o qual o governo é instituído.
Mas, dada simplesmente como uma promessa do chefe do executivo, o
rei, seria improvável que fosse cumprida, a menos que toda a
organização fosse projetada para poder funcionar contra a vontade
do rei. Mas mesmo sem conhecermos bem o contexto da época, as
características práticas da Carta ainda nos revelam quais eram as
bases existentes e as forças em movimento. A estrutura política
estática era feudal. As cidades maiores, tendo obtido suas
“liberdades”, contribuíam com o tesouro nacional por meio de
diversos impostos, diretos ou indiretos, e cobrados de maneira um
tanto irregular, portanto sujeitos a contestações. A Igreja estava
numa perigosa posição intermediária, comprometida com o feudalismo
pelo sistema de arrendamento de terras em suas imensas propriedades,
enquanto, pela doutrina, afirmava e protegia o princípio primário
de contrato pelo qual o comércio era realizado. O longo circuito de
energia da Igreja, sua ligação com Roma, era mantido por dinheiro,
fundos enviados a Roma; isso não poderia ter sido feito de nenhuma
outra maneira.
A autoridade
original da monarquia inglesa derivava completamente da ordem feudal,
que contém seus próprios freios e contrapesos, regulados
automaticamente pelo circuito limitado de energia; o excedente podia
apenas ser entregue ao rei em homens-em-armas e seus suprimentos.
Mas, na época do Rei João, muitas das obrigações de serviço
feudal consuetudinário haviam sido substituídas por pagamentos em
dinheiro. Essas obrigações, somadas às receitas de comércio da
coroa, davam ao rei uma receita sobre a qual os produtores não
tinham controle. Não podiam impedir o fornecimento na fonte, exceto
por resistência à força, nem exercer nenhum tipo de controle legal
sobre as despesas do rei depois que o dinheiro fosse colocado nas
mãos dele. Assim, o rei podia estabelecer e manter um exército
composto de homens desvinculados de bases regionais, ou seja,
fragmentos de uma massa deslocada. A energia cinética da nação era
desviada para colocar essa massa em movimento. Esta é a fórmula
para guerras iniciadas aparentemente pela vontade de um rei,
executivo ou ditador; a conexão produz o resultado, e não tem como
funcionar para nenhuma outra finalidade. O Rei João possuía tal
exército mercenário, parcialmente recrutado no exterior, como
indicado pela cláusula da Carta que exige que ele “remova do reino
todos os cavaleiros, besteiros e soldados assalariados estrangeiros,
que vieram com cavalos e armas molestar o reino”.
Nas
referências históricas, a conquista da Carta é normalmente
creditada aos “Barões”. Mas, na verdade, o documento foi escrito
ou rascunhado pelo Arcebispo da Cantuária, Stephen Langton; e os
nomes no preâmbulo que encabeçam todo o restante são de
dignitários da Igreja: os Arcebispos da Cantuária e de Dublin, sete
bispos, o Senhor dos Templários e o núncio apostólico. A primeira
cláusula determina que “a Igreja da Inglaterra será livre”,
incluindo “liberdade de eleições” para os cargos clericais. O
objetivo era impedir que o rei fizesse nomeações para abadias e
prebendas, por meio dos quais poderia sugar as receitas da Igreja.
Evidentemente, ele vinha fazendo isso.
A seguir, o
interesse da aristocracia feudal tinha de ser protegido do poder real
ou central, fixando-se as obrigações dos feudos militares pela taxa
tradicional; e atribuindo-se o estabelecimento de contribuições em
dinheiro e “ajudas” extraordinárias ao “conselho comum do
reino”. Obrigações ou ajudas similares tomadas pelos lordes de
“seus próprios homens livres” também foram limitadas. O
objetivo geral era impedir a expropriação gradual dos pequenos
arrendatários pelos senhores das terras, e dos lordes pelo rei. Ou
seja, para fortalecer as bases regionais contra a autoridade central
e as bases individuais contra as autoridades regionais. Uma vez que
essas bases constituem a estrutura estática da organização
política, o problema foi pelo menos corretamente entendido, embora
não fosse expresso em nossos termos.
Mas a
tributação não é o único meio pelo qual a energia cinética pode
demolir a estrutura estática. Como o único meio imaginado para
manter bases regionais era a sucessão hereditária de terras, uma
cláusula da Carta impedia que as terras mudassem de dono pela
execução de uma hipoteca. As terras podiam ser oferecidas como
garantia de um empréstimo. Mas, no caso de inadimplência, apenas as
receitas da terra podiam ser sequestradas para pagamento da dívida.
Além disso, se o devedor morresse e seu herdeiro fosse menor de
idade, os juros da hipoteca cessavam enquanto ele não atingisse a
maioridade. Obrigações feudais, direitos de dote e provisões para
os filhos do devedor falecido tinham precedência no pagamento de uma
dívida financeira, que só podia ser liquidada “com o resíduo”.
Provavelmente, essa limitação de dívida tinha um efeito duplo,
parcialmente contrário à intenção, especialmente com a baixa
expectativa de vida daqueles tempos; tendia a manter baixo o
principal dos empréstimos e, igualmente, a elevar a taxa de juros. A
grande usura do período deve ser entendida nesse contexto.
Temos então
uma cláusula curiosa, que indica o efeito centrípeto da energia
cinética jogada no canal político. A Carta contém uma promessa do
rei de que, se algum homem morrer devendo “aos judeus”, ou
emprestadores de dinheiro, “e se essa dívida cair em nossas mãos,
não tomaremos nada exceto o gado contido no contrato”. É óbvio
que donos de propriedades eram capazes de fazer empréstimos maiores
do que poderiam pagar convenientemente; e que os emprestadores de
dinheiro, tendo dificuldades em executar dívidas, especialmente
contra o patrimônio de menores, estavam descontando suas
promissórias com o rei, que podia então usar a prerrogativa real de
execução. A perseguição e expulsão dos judeus de diversas nações
europeias e o prolongado ressentimento expresso pelo antissemitismo
têm origem principalmente nessa combinação infeliz do poder do
executivo e da ação da energia cinética (dinheiro), minando a
estrutura estática. Como era fácil focalizar a raiva popular contra
“os judeus” como não-cidadãos, o rei invariável e prontamente
se voltava contra eles quando era conveniente, para se eximir de
culpa e saquear sua fortuna. Mas o processo não tinha nenhuma
relação com a nacionalidade ou raça das pessoas envolvidas;
ocorreu outras vezes em outros países onde os financistas eram da
população nativa, e a fúria pública foi, da mesma maneira,
facilmente levantada contra as finanças, ou contra os financistas
como grupo, pela mesma razão intrínseca. O verdadeiro remédio para
essa condição prejudicial é fortalecer as bases regionais e
limitar o controle e a absorção das finanças nacionais pelo
executivo central. É isso que a Carta procurou fazer. Com uma
sabedoria à frente do seu tempo, não propôs a penalização ou
expulsão dos “judeus” ou financistas, mas a restrição da
autoridade da coroa. Podemos dizer que, em qualquer tempo em que as
finanças estão sob ataque pela autoridade política, isso é um
sinal infalível de que a autoridade política já está exercendo um
poder excessivo sobre a vida econômica da nação por meio da
manipulação das finanças. Isso pode ocorrer por taxação
exorbitante, gastos descontrolados, empréstimos ilimitados ou
depreciação da moeda.
A última e
não menos vital restrição à autoridade executiva (o rei) é de
peculiar significância, porque mostra que o grupo
industrial-comercial deve ter tido forte influência na montagem da
Magna Carta, embora
não tenha sido citado como parte do ato formal. Havia um terceiro
método pelo qual o rei podia encontrar um pretexto para a
expropriação de seus súditos de qualquer grau; pela cobrança de
multas exorbitantes por acusações forjadas. Para impedir isso, foi
estipulado que as multas poderiam ser estabelecidas apenas
proporcionalmente ao delito; com a ainda mais vital exceção de
preservar para o homem livre sua posse de terra; para o mercador sua
mercadoria; e para o servo suas carroças e outros equipamentos. O
que significa que nenhum homem podia ser privado de seu capital, e
assim de seu meio de vida, por uma multa imposta por causa de um
suposto delito político. Como uma precaução sólida, declarou-se
que o valor de tais multas não poderia ser fixado pelo rei e nem
mesmo pelos juízes; mas deveria ser avaliado por um júri de pares
do acusado, nobres para nobres e “homens honestos da vizinhança”
para mercadores, homens livres e servos. Além disso, o interesse da
indústria e do comércio era resguardado por uma cláusula tão
avançada em relação aos costumes atuais que causa um choque de
surpresa. “Todos os mercadores terão sua segurança garantida ao
entrarem na Inglaterra e saírem da Inglaterra e ao permanecerem e
viajarem pela Inglaterra, por terra ou por água, para comprarem e
venderem, sem cobranças injustas.” Em tempo de guerra, mercadores
estrangeiros de nacionalidade inimiga poderiam ser “apreendidos,
sem danos a seu corpo e a seus bens”, e deveriam ser mantidos em
segurança se os mercadores ingleses nos países inimigos estivessem
“em segurança lá”. Finalmente, “será legal para qualquer
pessoa, no futuro, sair do reino e retornar a ele, em completa
segurança, a menos que seja tempo de guerra, por um curto espaço”,
excetuando-se apenas “prisioneiros e criminosos” e inimigos
nacionais. Permitia-se que a energia cinética percorresse o longo
circuito; e a Inglaterra estava no caminho de se tornar uma potência
mundial.
No conjunto,
é impossível imaginar uma compreensão mais sólida da ciência de
governar do que aquela que a Magna Carta
revela, dado o contexto da época. Por cinco séculos, ela foi
corretamente vista como um guia e um marco da liberdade inglesa. Seus
princípios e algumas de suas medidas práticas permaneceram em vigor
em algum grau de maneira permanente, apesar de abusos e das
interrupções de tirania temporária. Porém, como ela não encerrou
realmente a guerra civil que fez com que fosse escrita, nem impediu
desordens semelhantes e prolongadas subsequentemente, deve ser
instrutivo descobrir quais eram os aspectos defeituosos. Pode-se
dizer que, provavelmente, dadas as circunstâncias, nada melhor
poderia ter sido criado; se a Magna Carta
não chegou a ser totalmente colocada em prática na época, enunciou
alguns axiomas indispensáveis para referência futura. O defeito é
a ausência do veto de massa-inércia, como uma função nacional,
tanto de fato como de direito. A aplicação da Carta contra o rei
foi atribuída a um comitê eletivo de vinte e cinco barões que,
“com a comunidade de toda a terra”, deveria apreender a pessoa, a
família, os castelos e as terras do rei, porém sem feri-lo (essa
última condição seria naturalmente bastante difícil em qualquer
tempo e poderia ser impossível). Deveriam detê-lo até que ele
reparasse as injustiças e, então, a aliança seria retomada —
outra possibilidade duvidosa. Em termos de organização material, o
que estava errado com esse esquema é que, na ordem feudal estrita,
os servos e outros trabalhadores da terra constituíam o fator de
massa, e a função da massa era exercida passivamente, por inércia,
por meio da limitação inerente que o feudalismo impôs à produção,
e que restringia o esforço militar feudal aos recursos dos circuitos
locais. O freio ao rei era um efeito secundário.
Em resumo,
se os barões eram os “pilares do estado” apoiados em bases
regionais, sua resistência deveria ser estática, para corresponder
a sua relação com a coroa. Mas isso era impossível quando o rei
tinha as grandes receitas dos juros mercantis; e uma resistência
ativa por parte dos nobres seria simplesmente guerra civil. (Pelo
mesmo motivo, falta de controle legítimo sobre os recursos que
forneciam, os comerciantes foram à guerra civil contra o rei no
século 17.) De toda forma, não se pode pensar em nenhuma medida
viável na época em que a Magna Carta
foi concebida, pela qual o fator geral de massa pudesse ter sido
levado em conta para toda a nação e sua função representada
legitimamente no governo nacional. Infelizmente, mesmo a emancipação
imediata dos servos não teria suprido essa deficiência do
veto-massa e garantido a estabilidade; ao contrário, se eles
tivessem simplesmente sido libertados da terra, mais homens seriam
jogados no exército assalariado do rei, para esmagar a nação. Todo
o sistema de títulos de terra teria de ser alterado, para se
instituir a propriedade individual; e uma coisa assim não pode ser
feita da noite para o dia. O procedimento seria impossível, porque
teria de ser feito por um decreto político. Portanto, mesmo que
fosse tentado nominalmente, o resultado seria conferir o título das
terras ao poder político, não aos indivíduos a quem a
transferência deveria ser feita. Ou seja, qualquer que fosse o poder
capaz de tomar a terra de uma pessoa e dá-la para outra, esse poder
sempre poderia tomar de volta segundo sua vontade e, portanto, teria
o real arbítrio sobre a terra.
Assim, os
servos não ganharam com a Carta praticamente nada além da proteção
de suas ferramentas agrícolas contra multas. Mas a situação dos
nobres, comerciantes e pequenos proprietários rurais foi protegida,
conforme validado pelos costumes e leis anteriores, e os meios para
que eles oferecessem resistência foram suficientemente assegurados.
Dessa maneira, puderam persistir na oposição ao poder do rei, até
que forjassem o instrumento necessário do veto-massa. Esse
instrumento viria a ser a Câmara dos Comuns, com seu controle sobre
impostos e a concessão periódica de suprimentos. No decorrer dessa
longa luta, a servidão foi abolida gradativamente, até desaparecer
por completo. O dinheiro, energia cinética, acabou com ela.
Houve um
desvio não previsto, um redemoinho lateral da corrente de energia,
como resultado quase imediato da assinatura da Carta. O Rei João
havia estado sucessivamente em desacordo com os nobres, a Igreja e os
comerciantes, até que todos se uniram contra ele com a Carta. Então,
o rei negociou um acordo com o Papa, pelo qual seria absolvido de seu
juramento assinado; em troca, fez um voto de fidelidade temporal com
o Papa como seu senhor feudal, por meio do qual pretendeu submeter
todo o reino, como se o reino fosse um feudo. Mas não havia lei nem
princípio do direito, canônico ou civil, que pudesse autorizar tal
transação. É verdade que dignitários eclesiásticos poderiam ser
senhores de terras, fosse por suas propriedades ou em virtude de
terras da Igreja; e havia príncipes-bispos na Europa, a quem os
senhores temporais deviam fidelidade feudal. E o homem que era Rei da
Inglaterra, se também fosse senhor de terras na Inglaterra, não
tendo um superior feudal, poderia teoricamente declarar-se vassalo do
Papa. Mas essa submissão só seria válida com relação ao seu
próprio feudo. O reino era de outra natureza; era composto por um
grande número de feudos, cujos senhores tinham jurado fidelidade ao
rei. Esse juramento não poderia ser transferido pelo rei para outra
pessoa. A natureza de um voto cristão exige que seja feito
voluntariamente; e a pessoa que o faz deve estar plenamente informada
de sua extensão e consequências; isso decorre da doutrina de
livre-arbítrio para a salvação. Na hierarquia feudal, entendia-se
que a fidelidade de um arrendatário a seu senhor seguia a fidelidade
de seu senhor ao rei; mas nenhum dos súditos de João, nobres ou
não, havia concordado nem entendido que o rei poderia fazê-los
súditos de outro superior temporal. Em síntese, João prometeu
ceder algo que era intransferível. O acordo era tentador não em
seus termos nominais feudais, mas por causa das receitas em dinheiro.
A corrente cinética era tão forte que quase destruiu completamente
a estrutura da nação, ameaçando levantá-la e carregá-la para uma
nova situação, como uma enxurrada pode carregar uma casa.
Lamentavelmente,
o papa aceitou o acordo e deixou na mão o corajoso Arcebispo Langton
e todos os outros eminentes clérigos que haviam obtido a Carta de
João. Eles haviam exercido a função histórica e própria da
Igreja de resistir ao Estado; e o chefe terreno da Igreja repudiou
sua ação. Mas nem o rei nem o papa puderam colocar o acordo para
funcionar; o resultado imediato foi a retomada da guerra civil. É no
mínimo defensável que a consequência tardia foi o cisma, três
séculos depois, da Inglaterra da comunhão católica. Sequências
históricas sempre podem ser rastreadas até causas remotas no tempo;
e uma traição assim nunca é esquecida. Material e moralmente, esse
acordo deixou a Igreja inglesa numa posição perigosa. Na luta
continuada entre o rei, os nobres e os comerciantes, qualquer que
fosse a parte que vencesse temporariamente, a Igreja acabava sempre
perdendo um pouco mais a cada vez, já que não tinha mais o
prestígio de ser a agência mediadora. A servidão obteve algumas
terras da Igreja, o que fazia com que a Igreja parecesse opressiva
aos camponeses e não fosse mais identificada com a liberdade. O rei
ainda tinha receitas financeiras para sustentar seu exército
particular. Os comerciantes estavam fortes o bastante para lutar por
si mesmos, e assim representar a sociedade de contrato. O tamanho das
posses territoriais da Igreja enfraquecia os nobres, porque eximiam
os ocupantes do serviço militar feudal. Mas, como riqueza, as terras
e receitas eclesiásticas eram uma tentação óbvia à pilhagem;
enquanto qualquer partido que se aliasse à Igreja não podia ter
certeza de que não seria traído. A energia cinética fluindo para o
executivo, o rei, primeiro destruiu o feudalismo, o poder dos nobres
sobre o rei; então, levou o rei (Henrique VII) a uma aliança com os
comerciantes, identificando seus interesses; então se voltou
diretamente contra a Igreja como instituição detentora de terras, e
acabou com as grandes terras das abadias, para reconstituir uma nova
aristocracia em conjunto com a nova agência de controle que passou a
funcionar, a Câmara dos Comuns. Finalmente, a energia cinética, sob
esse controle, voltou-se contra o executivo, o rei, e acabou com a
prerrogativa real. Mas, nesse processo, uma quantidade excessiva de
pessoas perdeu sua base na terra.
Ensinados
pela adversidade na guerra civil do século 17 (que foi o auge do
processo que reduziu por atrito a pesadíssima carga da aristocracia
com a Guerra das Rosas, e a destruiu com a tirania centralizada de
Henrique VIII), os nobres ingleses aceitaram grande parte do mesmo
compromisso que havia sido feito pela ordem aristocrática na
República Romana. A característica hereditária foi mantida na
câmara alta pelas bases regionais; mas o veto efetivo estava nos
Comuns; e a lei estava acima da coroa. Nesse último avanço, o
governo secular aprendeu com a Igreja como estabelecer um centro, um
problema que era insolúvel no Império Romano.
A autoridade (assim definida como infalibilidade) do Papa existia
apenas no concílio ecumênico e dentro de uma esfera prescrita (da
fé e da moral). Assim, na forma inglesa de governo secular, a
autoridade do rei existia apenas em conjunto com o Parlamento e
dentro do âmbito da lei. Quando Carlos I não percebeu essa
distinção, foi informado dela pela lâmina do machado.
Num
mecanismo, isso é o centro fixo, que é necessário numa ação
recíproca. O rei não faz nada; é para isso que ele serve, sendo o
ponto no qual as forças se encontram. A coroa era indispensável,
dado o arranjo histórico, para a agregação de domínios, colônias
e dependências dos tipos mais diversos que formavam o Império
Britânico, porque impedia arranjos políticos entre dois deles, ou
ação primária fora
do centro. Uma vez que não haviam chegado a acordos específicos,
não tinham oportunidade de discordar. No início do século 19, a
estrutura interna da Inglaterra era essencialmente a mesma da
República Romana, com uma aristocracia modificada ajustada a um
sistema eletivo; e como as colônias anglófonas foram instituídas
com uma grande dose de autogoverno, o exército não era um fator
político direto e ativo no mecanismo administrativo.
Como ocorreu
antes com Roma, o mundo aceitava o Império Britânico porque ele
abria canais mundiais de energia para o comércio em geral. Embora o
governo repressivo (de status) tenha sido imposto num grau
considerável na Irlanda, com resultados muito negativos, no conjunto
as exportações invisíveis da Inglaterra eram o direito e o livre
comércio. Na prática, enquanto a Inglaterra governava os mares,
qualquer homem de qualquer nação podia ir a qualquer lugar, levando
consigo seus bens e dinheiro, em segurança.
Mas uma
estrutura tradicional adaptada para acomodar um alto potencial de
energia está o tempo todo sob uma pressão enorme. A condição do
trabalhador sem terra constitui um problema que ainda não foi
resolvido.
Ele é uma
partícula jogada no circuito de energia que vai aderir a uma
corrente magnética, como se fosse limalha de ferro. Então, sempre
que a indústria diminui a produção, o que significa dizer que a
corrente está mais fraca, muitas dessas partículas se desgarram.
Trabalhadores desempregados, agregados apenas pela inércia,
tornam-se assim um fragmento de massa deslocada dentro da economia.
Como tais, são jogados contra a estrutura e, naturalmente, a
percebem apenas como uma obstrução. É igualmente natural, uma vez
que são seres conscientes e não meros objetos físicos, que exijam
que a estrutura seja abolida; ou, pelo menos, porta-vozes aparecerão
em nome deles e farão essa exigência, como no movimento cartista.
Um homem preso num píer de pedra provavelmente não vai considerar
se o píer é necessário para alguma finalidade ou não, ou o que
poderia ser colocado em seu lugar. Ninguém espera que ele pense no
píer nesses termos.
A grande
desventura do trabalhador produtivo que não tem base é que, quando
ele é descartado pela corrente enfraquecida, cai na mesma categoria
material do habitualmente improdutivo. O peso acrescentado faz com
que o grupo improdutivo se sinta inseguro. Seu desconforto encontra
expressão emocional na raiva contra o elemento produtivo. Na
esperança de se prender mais firmemente à linha de produção, eles
exigirão então regulação restritiva à indústria e ao comércio,
sob o pretexto (como Shaftesbury inocentemente admitiu) de que é
pelo benefício do trabalhador.
Mas uma
proposição assim requer a lei de status. A peculiaridade da lei de
status é que ela interrompe e desvia a energia no início do
circuito, em vez de fazer isso no fim. Faz com que o que não é
produtivo seja uma carga inicial sobre a produção, antes
da manutenção. Se examinarmos os vários
impostos criados recentemente em economias que antes eram livres, sob
o pretexto de ajudar os indigentes, sua natureza se torna evidente.
Eles têm de ser pagos mesmo que o produtor vá à falência.
Esses
esquemas de taxação raramente ou nunca se originam nos
trabalhadores. São propostos por aqueles que retiram sua renda de
cobranças fixas — de propriedades de morgadio ou de instituições
mantidas por doações ou por impostos — e que, portanto, desejam
ter sua relação com a produção declarada como uma regra de
governo. Mas o trabalhador desempregado quer trabalhar, ser ativo,
viver. As exigências de lei de status e de abolição da estrutura
serão, portanto, mais ou menos simultâneas e ambas podem ser
incluídas nas mesmas medidas legislativas.
Assim, é
provável que ambas entrem em vigor aproximadamente ao mesmo tempo. O
resultado é visível agora. A verdadeira causa do fascismo, ou do
nazismo, ou do comunismo, é o estado desestruturado,
no qual toda a energia da nação, sua linha de produção, é jogada
no mecanismo repressivo de governo centralizado com lei de status. É
uma armadilha mortal.
Os problemas
intrínsecos da ordem aristocrática são tão óbvios e
inerentemente onerosos, que o fato de que ela tinha uma utilidade foi
quase completamente esquecido; mas ela supria a estrutura, ao manter
bases regionais. Sempre que uma aristocracia perde essa função
representativa local, está à beira da dissolução.