sábado, 21 de setembro de 2013

O Significado da Magna Carta

O Deus da Máquina, capítulo XI
O Significado da Magna Carta
Isabel Paterson

A Inglaterra acabou por fazer os ajustes mais bem-sucedidos no Velho Mundo, mas não sem uma luta contínua e crises recorrentes de violência, durante cinco séculos. O primeiro e crucial esforço dos ingleses para estabelecer as fundações de uma estrutura duradoura culminou com a Magna Carta, que o Rei João foi obrigado a assinar, por seus súditos rebeldes. As provisões desse documento extraordinário quase nunca são mencionadas atualmente, com exceção da frase: “A ninguém venderemos, a ninguém negaremos, a ninguém protelaremos o direito ou a justiça.” Certamente, isso é admirável. Define de maneira abstrata o propósito essencial para o qual o governo é instituído. Mas, dada simplesmente como uma promessa do chefe do executivo, o rei, seria improvável que fosse cumprida, a menos que toda a organização fosse projetada para poder funcionar contra a vontade do rei. Mas mesmo sem conhecermos bem o contexto da época, as características práticas da Carta ainda nos revelam quais eram as bases existentes e as forças em movimento. A estrutura política estática era feudal. As cidades maiores, tendo obtido suas “liberdades”, contribuíam com o tesouro nacional por meio de diversos impostos, diretos ou indiretos, e cobrados de maneira um tanto irregular, portanto sujeitos a contestações. A Igreja estava numa perigosa posição intermediária, comprometida com o feudalismo pelo sistema de arrendamento de terras em suas imensas propriedades, enquanto, pela doutrina, afirmava e protegia o princípio primário de contrato pelo qual o comércio era realizado. O longo circuito de energia da Igreja, sua ligação com Roma, era mantido por dinheiro, fundos enviados a Roma; isso não poderia ter sido feito de nenhuma outra maneira.

A autoridade original da monarquia inglesa derivava completamente da ordem feudal, que contém seus próprios freios e contrapesos, regulados automaticamente pelo circuito limitado de energia; o excedente podia apenas ser entregue ao rei em homens-em-armas e seus suprimentos. Mas, na época do Rei João, muitas das obrigações de serviço feudal consuetudinário haviam sido substituídas por pagamentos em dinheiro. Essas obrigações, somadas às receitas de comércio da coroa, davam ao rei uma receita sobre a qual os produtores não tinham controle. Não podiam impedir o fornecimento na fonte, exceto por resistência à força, nem exercer nenhum tipo de controle legal sobre as despesas do rei depois que o dinheiro fosse colocado nas mãos dele. Assim, o rei podia estabelecer e manter um exército composto de homens desvinculados de bases regionais, ou seja, fragmentos de uma massa deslocada. A energia cinética da nação era desviada para colocar essa massa em movimento. Esta é a fórmula para guerras iniciadas aparentemente pela vontade de um rei, executivo ou ditador; a conexão produz o resultado, e não tem como funcionar para nenhuma outra finalidade. O Rei João possuía tal exército mercenário, parcialmente recrutado no exterior, como indicado pela cláusula da Carta que exige que ele “remova do reino todos os cavaleiros, besteiros e soldados assalariados estrangeiros, que vieram com cavalos e armas molestar o reino”.

Nas referências históricas, a conquista da Carta é normalmente creditada aos “Barões”. Mas, na verdade, o documento foi escrito ou rascunhado pelo Arcebispo da Cantuária, Stephen Langton; e os nomes no preâmbulo que encabeçam todo o restante são de dignitários da Igreja: os Arcebispos da Cantuária e de Dublin, sete bispos, o Senhor dos Templários e o núncio apostólico. A primeira cláusula determina que “a Igreja da Inglaterra será livre”, incluindo “liberdade de eleições” para os cargos clericais. O objetivo era impedir que o rei fizesse nomeações para abadias e prebendas, por meio dos quais poderia sugar as receitas da Igreja. Evidentemente, ele vinha fazendo isso.

A seguir, o interesse da aristocracia feudal tinha de ser protegido do poder real ou central, fixando-se as obrigações dos feudos militares pela taxa tradicional; e atribuindo-se o estabelecimento de contribuições em dinheiro e “ajudas” extraordinárias ao “conselho comum do reino”. Obrigações ou ajudas similares tomadas pelos lordes de “seus próprios homens livres” também foram limitadas. O objetivo geral era impedir a expropriação gradual dos pequenos arrendatários pelos senhores das terras, e dos lordes pelo rei. Ou seja, para fortalecer as bases regionais contra a autoridade central e as bases individuais contra as autoridades regionais. Uma vez que essas bases constituem a estrutura estática da organização política, o problema foi pelo menos corretamente entendido, embora não fosse expresso em nossos termos.

Mas a tributação não é o único meio pelo qual a energia cinética pode demolir a estrutura estática. Como o único meio imaginado para manter bases regionais era a sucessão hereditária de terras, uma cláusula da Carta impedia que as terras mudassem de dono pela execução de uma hipoteca. As terras podiam ser oferecidas como garantia de um empréstimo. Mas, no caso de inadimplência, apenas as receitas da terra podiam ser sequestradas para pagamento da dívida. Além disso, se o devedor morresse e seu herdeiro fosse menor de idade, os juros da hipoteca cessavam enquanto ele não atingisse a maioridade. Obrigações feudais, direitos de dote e provisões para os filhos do devedor falecido tinham precedência no pagamento de uma dívida financeira, que só podia ser liquidada “com o resíduo”. Provavelmente, essa limitação de dívida tinha um efeito duplo, parcialmente contrário à intenção, especialmente com a baixa expectativa de vida daqueles tempos; tendia a manter baixo o principal dos empréstimos e, igualmente, a elevar a taxa de juros. A grande usura do período deve ser entendida nesse contexto.

Temos então uma cláusula curiosa, que indica o efeito centrípeto da energia cinética jogada no canal político. A Carta contém uma promessa do rei de que, se algum homem morrer devendo “aos judeus”, ou emprestadores de dinheiro, “e se essa dívida cair em nossas mãos, não tomaremos nada exceto o gado contido no contrato”. É óbvio que donos de propriedades eram capazes de fazer empréstimos maiores do que poderiam pagar convenientemente; e que os emprestadores de dinheiro, tendo dificuldades em executar dívidas, especialmente contra o patrimônio de menores, estavam descontando suas promissórias com o rei, que podia então usar a prerrogativa real de execução. A perseguição e expulsão dos judeus de diversas nações europeias e o prolongado ressentimento expresso pelo antissemitismo têm origem principalmente nessa combinação infeliz do poder do executivo e da ação da energia cinética (dinheiro), minando a estrutura estática. Como era fácil focalizar a raiva popular contra “os judeus” como não-cidadãos, o rei invariável e prontamente se voltava contra eles quando era conveniente, para se eximir de culpa e saquear sua fortuna. Mas o processo não tinha nenhuma relação com a nacionalidade ou raça das pessoas envolvidas; ocorreu outras vezes em outros países onde os financistas eram da população nativa, e a fúria pública foi, da mesma maneira, facilmente levantada contra as finanças, ou contra os financistas como grupo, pela mesma razão intrínseca. O verdadeiro remédio para essa condição prejudicial é fortalecer as bases regionais e limitar o controle e a absorção das finanças nacionais pelo executivo central. É isso que a Carta procurou fazer. Com uma sabedoria à frente do seu tempo, não propôs a penalização ou expulsão dos “judeus” ou financistas, mas a restrição da autoridade da coroa. Podemos dizer que, em qualquer tempo em que as finanças estão sob ataque pela autoridade política, isso é um sinal infalível de que a autoridade política já está exercendo um poder excessivo sobre a vida econômica da nação por meio da manipulação das finanças. Isso pode ocorrer por taxação exorbitante, gastos descontrolados, empréstimos ilimitados ou depreciação da moeda.

A última e não menos vital restrição à autoridade executiva (o rei) é de peculiar significância, porque mostra que o grupo industrial-comercial deve ter tido forte influência na montagem da Magna Carta, embora não tenha sido citado como parte do ato formal. Havia um terceiro método pelo qual o rei podia encontrar um pretexto para a expropriação de seus súditos de qualquer grau; pela cobrança de multas exorbitantes por acusações forjadas. Para impedir isso, foi estipulado que as multas poderiam ser estabelecidas apenas proporcionalmente ao delito; com a ainda mais vital exceção de preservar para o homem livre sua posse de terra; para o mercador sua mercadoria; e para o servo suas carroças e outros equipamentos. O que significa que nenhum homem podia ser privado de seu capital, e assim de seu meio de vida, por uma multa imposta por causa de um suposto delito político. Como uma precaução sólida, declarou-se que o valor de tais multas não poderia ser fixado pelo rei e nem mesmo pelos juízes; mas deveria ser avaliado por um júri de pares do acusado, nobres para nobres e “homens honestos da vizinhança” para mercadores, homens livres e servos. Além disso, o interesse da indústria e do comércio era resguardado por uma cláusula tão avançada em relação aos costumes atuais que causa um choque de surpresa. “Todos os mercadores terão sua segurança garantida ao entrarem na Inglaterra e saírem da Inglaterra e ao permanecerem e viajarem pela Inglaterra, por terra ou por água, para comprarem e venderem, sem cobranças injustas.” Em tempo de guerra, mercadores estrangeiros de nacionalidade inimiga poderiam ser “apreendidos, sem danos a seu corpo e a seus bens”, e deveriam ser mantidos em segurança se os mercadores ingleses nos países inimigos estivessem “em segurança lá”. Finalmente, “será legal para qualquer pessoa, no futuro, sair do reino e retornar a ele, em completa segurança, a menos que seja tempo de guerra, por um curto espaço”, excetuando-se apenas “prisioneiros e criminosos” e inimigos nacionais. Permitia-se que a energia cinética percorresse o longo circuito; e a Inglaterra estava no caminho de se tornar uma potência mundial.

No conjunto, é impossível imaginar uma compreensão mais sólida da ciência de governar do que aquela que a Magna Carta revela, dado o contexto da época. Por cinco séculos, ela foi corretamente vista como um guia e um marco da liberdade inglesa. Seus princípios e algumas de suas medidas práticas permaneceram em vigor em algum grau de maneira permanente, apesar de abusos e das interrupções de tirania temporária. Porém, como ela não encerrou realmente a guerra civil que fez com que fosse escrita, nem impediu desordens semelhantes e prolongadas subsequentemente, deve ser instrutivo descobrir quais eram os aspectos defeituosos. Pode-se dizer que, provavelmente, dadas as circunstâncias, nada melhor poderia ter sido criado; se a Magna Carta não chegou a ser totalmente colocada em prática na época, enunciou alguns axiomas indispensáveis para referência futura. O defeito é a ausência do veto de massa-inércia, como uma função nacional, tanto de fato como de direito. A aplicação da Carta contra o rei foi atribuída a um comitê eletivo de vinte e cinco barões que, “com a comunidade de toda a terra”, deveria apreender a pessoa, a família, os castelos e as terras do rei, porém sem feri-lo (essa última condição seria naturalmente bastante difícil em qualquer tempo e poderia ser impossível). Deveriam detê-lo até que ele reparasse as injustiças e, então, a aliança seria retomada — outra possibilidade duvidosa. Em termos de organização material, o que estava errado com esse esquema é que, na ordem feudal estrita, os servos e outros trabalhadores da terra constituíam o fator de massa, e a função da massa era exercida passivamente, por inércia, por meio da limitação inerente que o feudalismo impôs à produção, e que restringia o esforço militar feudal aos recursos dos circuitos locais. O freio ao rei era um efeito secundário.

Em resumo, se os barões eram os “pilares do estado” apoiados em bases regionais, sua resistência deveria ser estática, para corresponder a sua relação com a coroa. Mas isso era impossível quando o rei tinha as grandes receitas dos juros mercantis; e uma resistência ativa por parte dos nobres seria simplesmente guerra civil. (Pelo mesmo motivo, falta de controle legítimo sobre os recursos que forneciam, os comerciantes foram à guerra civil contra o rei no século 17.) De toda forma, não se pode pensar em nenhuma medida viável na época em que a Magna Carta foi concebida, pela qual o fator geral de massa pudesse ter sido levado em conta para toda a nação e sua função representada legitimamente no governo nacional. Infelizmente, mesmo a emancipação imediata dos servos não teria suprido essa deficiência do veto-massa e garantido a estabilidade; ao contrário, se eles tivessem simplesmente sido libertados da terra, mais homens seriam jogados no exército assalariado do rei, para esmagar a nação. Todo o sistema de títulos de terra teria de ser alterado, para se instituir a propriedade individual; e uma coisa assim não pode ser feita da noite para o dia. O procedimento seria impossível, porque teria de ser feito por um decreto político. Portanto, mesmo que fosse tentado nominalmente, o resultado seria conferir o título das terras ao poder político, não aos indivíduos a quem a transferência deveria ser feita. Ou seja, qualquer que fosse o poder capaz de tomar a terra de uma pessoa e dá-la para outra, esse poder sempre poderia tomar de volta segundo sua vontade e, portanto, teria o real arbítrio sobre a terra.

Assim, os servos não ganharam com a Carta praticamente nada além da proteção de suas ferramentas agrícolas contra multas. Mas a situação dos nobres, comerciantes e pequenos proprietários rurais foi protegida, conforme validado pelos costumes e leis anteriores, e os meios para que eles oferecessem resistência foram suficientemente assegurados. Dessa maneira, puderam persistir na oposição ao poder do rei, até que forjassem o instrumento necessário do veto-massa. Esse instrumento viria a ser a Câmara dos Comuns, com seu controle sobre impostos e a concessão periódica de suprimentos. No decorrer dessa longa luta, a servidão foi abolida gradativamente, até desaparecer por completo. O dinheiro, energia cinética, acabou com ela.

Houve um desvio não previsto, um redemoinho lateral da corrente de energia, como resultado quase imediato da assinatura da Carta. O Rei João havia estado sucessivamente em desacordo com os nobres, a Igreja e os comerciantes, até que todos se uniram contra ele com a Carta. Então, o rei negociou um acordo com o Papa, pelo qual seria absolvido de seu juramento assinado; em troca, fez um voto de fidelidade temporal com o Papa como seu senhor feudal, por meio do qual pretendeu submeter todo o reino, como se o reino fosse um feudo. Mas não havia lei nem princípio do direito, canônico ou civil, que pudesse autorizar tal transação. É verdade que dignitários eclesiásticos poderiam ser senhores de terras, fosse por suas propriedades ou em virtude de terras da Igreja; e havia príncipes-bispos na Europa, a quem os senhores temporais deviam fidelidade feudal. E o homem que era Rei da Inglaterra, se também fosse senhor de terras na Inglaterra, não tendo um superior feudal, poderia teoricamente declarar-se vassalo do Papa. Mas essa submissão só seria válida com relação ao seu próprio feudo. O reino era de outra natureza; era composto por um grande número de feudos, cujos senhores tinham jurado fidelidade ao rei. Esse juramento não poderia ser transferido pelo rei para outra pessoa. A natureza de um voto cristão exige que seja feito voluntariamente; e a pessoa que o faz deve estar plenamente informada de sua extensão e consequências; isso decorre da doutrina de livre-arbítrio para a salvação. Na hierarquia feudal, entendia-se que a fidelidade de um arrendatário a seu senhor seguia a fidelidade de seu senhor ao rei; mas nenhum dos súditos de João, nobres ou não, havia concordado nem entendido que o rei poderia fazê-los súditos de outro superior temporal. Em síntese, João prometeu ceder algo que era intransferível. O acordo era tentador não em seus termos nominais feudais, mas por causa das receitas em dinheiro. A corrente cinética era tão forte que quase destruiu completamente a estrutura da nação, ameaçando levantá-la e carregá-la para uma nova situação, como uma enxurrada pode carregar uma casa.

Lamentavelmente, o papa aceitou o acordo e deixou na mão o corajoso Arcebispo Langton e todos os outros eminentes clérigos que haviam obtido a Carta de João. Eles haviam exercido a função histórica e própria da Igreja de resistir ao Estado; e o chefe terreno da Igreja repudiou sua ação. Mas nem o rei nem o papa puderam colocar o acordo para funcionar; o resultado imediato foi a retomada da guerra civil. É no mínimo defensável que a consequência tardia foi o cisma, três séculos depois, da Inglaterra da comunhão católica. Sequências históricas sempre podem ser rastreadas até causas remotas no tempo; e uma traição assim nunca é esquecida. Material e moralmente, esse acordo deixou a Igreja inglesa numa posição perigosa. Na luta continuada entre o rei, os nobres e os comerciantes, qualquer que fosse a parte que vencesse temporariamente, a Igreja acabava sempre perdendo um pouco mais a cada vez, já que não tinha mais o prestígio de ser a agência mediadora. A servidão obteve algumas terras da Igreja, o que fazia com que a Igreja parecesse opressiva aos camponeses e não fosse mais identificada com a liberdade. O rei ainda tinha receitas financeiras para sustentar seu exército particular. Os comerciantes estavam fortes o bastante para lutar por si mesmos, e assim representar a sociedade de contrato. O tamanho das posses territoriais da Igreja enfraquecia os nobres, porque eximiam os ocupantes do serviço militar feudal. Mas, como riqueza, as terras e receitas eclesiásticas eram uma tentação óbvia à pilhagem; enquanto qualquer partido que se aliasse à Igreja não podia ter certeza de que não seria traído. A energia cinética fluindo para o executivo, o rei, primeiro destruiu o feudalismo, o poder dos nobres sobre o rei; então, levou o rei (Henrique VII) a uma aliança com os comerciantes, identificando seus interesses; então se voltou diretamente contra a Igreja como instituição detentora de terras, e acabou com as grandes terras das abadias, para reconstituir uma nova aristocracia em conjunto com a nova agência de controle que passou a funcionar, a Câmara dos Comuns. Finalmente, a energia cinética, sob esse controle, voltou-se contra o executivo, o rei, e acabou com a prerrogativa real. Mas, nesse processo, uma quantidade excessiva de pessoas perdeu sua base na terra.

Ensinados pela adversidade na guerra civil do século 17 (que foi o auge do processo que reduziu por atrito a pesadíssima carga da aristocracia com a Guerra das Rosas, e a destruiu com a tirania centralizada de Henrique VIII), os nobres ingleses aceitaram grande parte do mesmo compromisso que havia sido feito pela ordem aristocrática na República Romana. A característica hereditária foi mantida na câmara alta pelas bases regionais; mas o veto efetivo estava nos Comuns; e a lei estava acima da coroa. Nesse último avanço, o governo secular aprendeu com a Igreja como estabelecer um centro, um problema que era insolúvel no Império Romano.1 A autoridade (assim definida como infalibilidade) do Papa existia apenas no concílio ecumênico e dentro de uma esfera prescrita (da fé e da moral). Assim, na forma inglesa de governo secular, a autoridade do rei existia apenas em conjunto com o Parlamento e dentro do âmbito da lei. Quando Carlos I não percebeu essa distinção, foi informado dela pela lâmina do machado.

Num mecanismo, isso é o centro fixo, que é necessário numa ação recíproca. O rei não faz nada; é para isso que ele serve, sendo o ponto no qual as forças se encontram. A coroa era indispensável, dado o arranjo histórico, para a agregação de domínios, colônias e dependências dos tipos mais diversos que formavam o Império Britânico, porque impedia arranjos políticos entre dois deles, ou ação primária fora do centro. Uma vez que não haviam chegado a acordos específicos, não tinham oportunidade de discordar. No início do século 19, a estrutura interna da Inglaterra era essencialmente a mesma da República Romana, com uma aristocracia modificada ajustada a um sistema eletivo; e como as colônias anglófonas foram instituídas com uma grande dose de autogoverno, o exército não era um fator político direto e ativo no mecanismo administrativo.

Como ocorreu antes com Roma, o mundo aceitava o Império Britânico porque ele abria canais mundiais de energia para o comércio em geral. Embora o governo repressivo (de status) tenha sido imposto num grau considerável na Irlanda, com resultados muito negativos, no conjunto as exportações invisíveis da Inglaterra eram o direito e o livre comércio. Na prática, enquanto a Inglaterra governava os mares, qualquer homem de qualquer nação podia ir a qualquer lugar, levando consigo seus bens e dinheiro, em segurança.

Mas uma estrutura tradicional adaptada para acomodar um alto potencial de energia está o tempo todo sob uma pressão enorme. A condição do trabalhador sem terra constitui um problema que ainda não foi resolvido.

Ele é uma partícula jogada no circuito de energia que vai aderir a uma corrente magnética, como se fosse limalha de ferro. Então, sempre que a indústria diminui a produção, o que significa dizer que a corrente está mais fraca, muitas dessas partículas se desgarram. Trabalhadores desempregados, agregados apenas pela inércia, tornam-se assim um fragmento de massa deslocada dentro da economia. Como tais, são jogados contra a estrutura e, naturalmente, a percebem apenas como uma obstrução. É igualmente natural, uma vez que são seres conscientes e não meros objetos físicos, que exijam que a estrutura seja abolida; ou, pelo menos, porta-vozes aparecerão em nome deles e farão essa exigência, como no movimento cartista2. Um homem preso num píer de pedra provavelmente não vai considerar se o píer é necessário para alguma finalidade ou não, ou o que poderia ser colocado em seu lugar. Ninguém espera que ele pense no píer nesses termos.

A grande desventura do trabalhador produtivo que não tem base é que, quando ele é descartado pela corrente enfraquecida, cai na mesma categoria material do habitualmente improdutivo. O peso acrescentado faz com que o grupo improdutivo se sinta inseguro. Seu desconforto encontra expressão emocional na raiva contra o elemento produtivo. Na esperança de se prender mais firmemente à linha de produção, eles exigirão então regulação restritiva à indústria e ao comércio, sob o pretexto (como Shaftesbury inocentemente admitiu) de que é pelo benefício do trabalhador.

Mas uma proposição assim requer a lei de status. A peculiaridade da lei de status é que ela interrompe e desvia a energia no início do circuito, em vez de fazer isso no fim. Faz com que o que não é produtivo seja uma carga inicial sobre a produção, antes da manutenção. Se examinarmos os vários impostos criados recentemente em economias que antes eram livres, sob o pretexto de ajudar os indigentes, sua natureza se torna evidente. Eles têm de ser pagos mesmo que o produtor vá à falência.

Esses esquemas de taxação raramente ou nunca se originam nos trabalhadores. São propostos por aqueles que retiram sua renda de cobranças fixas — de propriedades de morgadio ou de instituições mantidas por doações ou por impostos — e que, portanto, desejam ter sua relação com a produção declarada como uma regra de governo. Mas o trabalhador desempregado quer trabalhar, ser ativo, viver. As exigências de lei de status e de abolição da estrutura serão, portanto, mais ou menos simultâneas e ambas podem ser incluídas nas mesmas medidas legislativas.

Assim, é provável que ambas entrem em vigor aproximadamente ao mesmo tempo. O resultado é visível agora. A verdadeira causa do fascismo, ou do nazismo, ou do comunismo, é o estado desestruturado3, no qual toda a energia da nação, sua linha de produção, é jogada no mecanismo repressivo de governo centralizado com lei de status. É uma armadilha mortal.

Os problemas intrínsecos da ordem aristocrática são tão óbvios e inerentemente onerosos, que o fato de que ela tinha uma utilidade foi quase completamente esquecido; mas ela supria a estrutura, ao manter bases regionais. Sempre que uma aristocracia perde essa função representativa local, está à beira da dissolução.


1 A única falha grave na estrutura política do Império Romano tornava essa solução impossível. Na Igreja, a diocese era uma subdivisão regional genuína, seu representante (o bispo) era sustentado diretamente pelas receitas locais, das quais apenas uma pequena parte ia para Roma. Da mesma maneira, os nobres ingleses tiravam suas receitas diretamente de suas próprias posses territoriais locais, para sustentar funções políticas locais concomitantes. Nenhum deles dependia da redistribuição de recursos (energia) a partir do centro. Mas as autoridades provinciais do Império Romano eram dependentes dessa maneira; eram pagas pelo centro; e a corrente de energia extraída em impostos para Roma as destruiu; não tinham caráter representativo regional. Portanto, o ajuste no centro tinha de ser feito, como observado, pelo encontro de “forças brutas” — o exército e o potencial de revolta. (N. da A.)

2 Movimento cartista: Foi um movimento da classe trabalhadora que pedia reformas políticas na Grã-Bretanha, entre 1838 e 1848. Começou entre artesãos, como sapateiros, gráficos e alfaiates, mas logo atraiu homens que propunham greves, greves gerais e violência física, como Feargus O'Connor. Estes eram conhecidos como cartistas da força física. (N. do T.)

3 As antigas tiranias ou despotismos eram nações que haviam desenvolvido alguma indústria sem ter alcançado nenhum tipo de estrutura. Essa falha de sincronismo inevitavelmente causa desencontros, violência e miséria. (N. da A.)


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