domingo, 8 de setembro de 2013

A Função do Governo

O Deus da Máquina, capítulo IX
A Função do Governo
Isabel Paterson

Mapa da Expedição de Lewis e Clark

Uma vez que governo e poder sempre foram mais ou menos sinônimos, e “política da máquina” é uma expressão popular, é curioso que a agência política nunca tenha sido rigorosamente examinada a essa luz, como um problema específico de engenharia. Quando a energia é usada num mecanismo, o resultado deve estar de acordo com o tipo de máquina. A fonte da energia pode ser conhecida; a natureza do mecanismo é facilmente descoberta em sua ação; e é absurdo esperar qualquer outra ação além daquela da qual as peças combinadas são capazes. Mesmo que um dispositivo pare completamente de funcionar ou cause apenas destruição, as leis da energia e do mecanismo não se alteram nem variam; o defeito está no aparelho. Mas isso ainda não foi plenamente entendido com relação aos assuntos humanos, por diversas razões implícitas no desenvolvimento da inteligência humana.

Primeiro, a energia é um fenômeno natural. No estágio de associação humana no qual a opera apenas por meio das unidades e modos de conversão encontrados na natureza, a energia não necessita de uma definição abstrata.

Segundo, em engenharia mecânica, que trabalha com objetos inanimados, a primeira consideração é tão óbvia que não precisa ser postulada ou receber um valor separado no cálculo consciente. É o fator da base subjacente. A base de todos os mecanismos é a terra física. O engenheiro só precisa escolher um local, nivelá-lo ou solidificá-lo para permitir que o mecanismo repouse sobre ele e, evidentemente, precisa equilibrar, pesar ou fixar sua máquina para que ela não tombe. Mas ele sabe que o chão está lá; todos os seus cálculos levam esse fator em consideração como um componente distribuído; massa, peso, extensão, tensões, volume são medidas estabelecidas a partir da base.

Terceiro, na engenharia mecânica, que é confinada a condições materiais, a fonte da energia é determinada; uma unidade pode ser estabelecida e a transmissão e a carga ajustadas ao fluxo. Cada fator pode ser medido.

Por último, o ponto mais importante, porque ele obscurece a natureza do governo: a física não tem um nome para a função exata que é delegada ao governo. É algo que não existe em nenhuma manifestação de energia por meio de materiais inanimados. É peculiar às criaturas vivas. A energia é pré-existente no universo e não pode ser criada a partir do nada; mas, num circuito de energia específico, é possível determinar um ponto aproximado através do qual uma porção da energia universal é introduzida no circuito; esse é o dínamo, gerador, conversor ou motor. Na organização social, o homem é o dínamo, em sua capacidade produtiva. O governo é um aparelho-fim e um beco sem saída no que se refere à energia que usa. Em princípio, um mecanismo composto de material inanimado, que utiliza energia, é completamente calculável. Um motor de certa potência vai propelir determinada carga a um determinado gradiente; se a energia for cortada, a massa e a quantidade de movimento vão determinar seu ponto de parada, ou um obstáculo de determinada resistência vai pará-lo. Nenhuma previsão semelhante pode ser feita sobre as ações de um ser humano funcionando assim. É verdade que sua força muscular pode ser medida; mas enquanto ele se move com suas próprias forças, não é possível medir nem prever o que o fará iniciar um movimento, parar, virar ou acelerar. Tudo isso depende do que ele pensa; um fator não mensurável.

O ser humano tem uma faculdade para a qual não existe equivalente nos processos da natureza inanimada. Ele inicia a si mesmo e pode inibir a si mesmo.

A energia é o meio no qual a vida existe. Um bebê é capaz de mover seus membros e absorver alimentação (combustível) desde quando nasce; cresce em atividade espontânea instintiva e ganha o controle necessário simultaneamente. Assim, “na natureza”, a energia, o mecanismo e o controle parecem ser uma coisa só e o indivíduo pode funcionar sem defini-los separadamente ou de maneira abstrata. As relações sociais e econômicas dos selvagens também não precisam de tais distinções. Contatos externos fazem funcionar esses diversos fatores como se eles fossem um único. A necessidade é imediata; praticamente não existem consequências posteriores, até onde o selvagem pode perceber. Já que não pode guardar provisões para o futuro, é prudente se fartar quando existe abundância de comida e, assim, armazenar alguma energia em seu corpo. Se encontrar um urso pardo ou brigar com um de seus companheiros, deve tomar a decisão imediata entre lutar ou fugir. Executa sua própria justiça, se houver uma, individualmente ou por um comitê do grupo. Se tiver algum tipo de abrigo, tem de carregá-lo consigo. Nessas questões, está lidando com causa e efeito, que são fatores da engenharia; mas não incluem transações no espaço e no tempo. Por outro lado, em suas relações pessoais, mesmo um selvagem reconhecerá que intenções, até certo ponto, qualificam a resposta ou a retaliação apropriada. Uma intenção é um imponderável; pertence a uma ordem não matemática de abstrações. Assim, embora seja uma consideração adequada nas relações humanas, ela certamente retarda a formulação dos princípios da física ou da engenharia. A falta dessa distinção é a principal diferença entre o pensamento primitivo e o científico; e é uma explicação suficiente para a origem da crença em magia. Uma vez que é possível a uma pessoa dissuadir outra ou convencê-la a agir usando apenas palavras, não é totalmente irracional, embora seja um erro, imaginar que as feras, os objetos, as doenças ou o tempo possam ser influenciados por uma abordagem semelhante. Essa suposição infeliz está quase inextricavelmente embutida nos hábitos mentais da humanidade. A ciência começa por bani-la do campo em que ela é irrelevante. A ciência percebe que os objetos inanimados não ouvem o que é dito a eles, nem se importam com intenções. Ainda assim, o nome da ciência tem sido usado para levar esse erro um passo além, numa sequência em que sua falsidade é ainda mais sutil e mais difícil de erradicar, com a proposição de que o homem não é mais que um mecanismo físico; e, já que pode ser induzido a liberar sua energia por palavras ou compulsão, deve responder infalivelmente segundo uma fórmula se for previamente "condicionado", como a máquina responde aos controles. O que se negligencia é o fato de que, mesmo se considerado um mecanismo, o homem é uma máquina genuinamente automática, iniciando-se por conta própria e agindo por conta própria. Nenhum mecanismo inanimado pode ser automático dessa maneira.

O homem é assim por virtude da iniciativa e da faculdade inibitória. A iniciativa é a própria vida. A inibição completa é a morte. Porém, uma criatura viva incapaz de inibir a si mesma rapidamente se destruiria.

Como visto, as inibições requeridas pela vida selvagem funcionam diretamente, assim como o resultado da iniciativa retorna diretamente ao indivíduo. O caçador faz uma arma para usar, mantém essa arma em sua posse, come a caça que mata; sua mulher transforma a pele em roupas. Na civilização, os processos para conseguir comida e abrigo são prolongados. Leva pelo menos um ano de antevisão para cultivar o solo e colher a produção; os grãos precisam ir ao moinho, as peles ao curtidor, os têxteis ao tecelão, antes que possam ser usados. Quando um homem civilizado constrói uma casa, o projeto precisa ser criado e os materiais reunidos por um período considerável. Essas coisas são pagas com economias que envolvem a troca de trabalho com muitas outras pessoas. Ele deve, portanto, impor restrições a si mesmo por causa de objetivos distantes no tempo e que precisam ser dirigidos através do espaço. Ele vive no passado e no futuro tanto quanto no presente. Sua iniciativa será perdida, a menos que iniba a si mesmo; e, além disso, ele precisa poder contar com outras pessoas que participam da troca, e que também devem observar inibições de longo prazo. Num estágio ainda inicial do comércio, torna-se inconveniente depender do escambo de bens entre proprietários. Com objetos de valor desigual, ou numa série de trocas, ou no caso de entregas em momentos diferentes, faz-se necessário um meio de valor: o dinheiro. E, ao longo da série, uma sucessão de inibições deve ser seguida; de outra maneira, em algum ponto os bens seriam consumidos e não haveria retorno. O circuito de energia seria rompido.

É por isso que os selvagens não precisam de um governo formal, enquanto ele é necessário à civilização. Para uma economia civilizada, que consiste em produção e trocas numa sequência que se estende no tempo e no espaço, deve haver uma agência para servir de testemunha dos contratos de longo prazo. Essa agência deve garantir que os contratos sejam cumpridos na ausência de uma das partes ou impor uma penalidade previamente acordada em caso de descumprimento. A autoridade apropriada para esse propósito é, portanto, delegada ao governo.

Como a palavra indica, a faculdade inibitória é uma função do indivíduo; falando estritamente, não pode ser delegada. Nenhuma faculdade pode ser delegada. Um homem pode conceder o produto de seu trabalho e talento a outro voluntariamente; um homem pode tomar o produto de outro por força ou fraude; ou os homens podem comercializar seu trabalho e seus produtos. Mas um homem não pode transferir sua força ou inteligência para a estrutura física de outro homem. O que pode ser feito, no caso em que um indivíduo não iniba a si mesmo conforme havia concordado em fazer, ou se ele infringe a liberdade ou toma a propriedade de outro, é obrigá-lo a uma pagar uma multa ou impor restrições externas; e agentes públicos podem ser encarregados por autoridade delegada de executar a cobrança. Pelos mesmos meios, esses agentes podem tomar parte de sua produção, em impostos, para sustentá-los e pagar as despesas de sua organização. É isso o que faz o governo e é tudo o que ele pode fazer. O governo é uma agência proibitória e expropriativa. Seu tipo de mecanismo necessariamente corresponde a sua função.

Se o processo completo não for levado em consideração, é possível imaginar erroneamente exceções à afirmação acima. A citação a seguir é uma exposição clara e concisa do ponto em que ocorre o mal-entendido. “O regulador de uma máquina a vapor não é meramente um mecanismo proibitório, mas comanda mais vapor quando necessário; e os vários controles elétricos funcionam da mesma maneira; por que o governo político não pode funcionar assim? A expedição de Lewis e Clark1 e outras expedições exploratórias patrocinadas por governos no oeste não foram ações proibitórias. O papel que o governo desempenhou no desenvolvimento das terras públicas do oeste não foi meramente proibitório.”

Quando o regulador de uma máquina a vapor comanda mais vapor, obviamente o vapor (energia) precisa estar lá para ser comandado; e foi previamente confinado. A função do regulador não é obter o vapor, ou seja, produzir a energia. Como mecanismo, ele é um instrumento de liberação, o que implica em uma restrição prévia. Um mecanismo proibitório pode ser feito de tal maneira que posteriormente ele deixe de proibir; um freio pode ser desacionado depois que foi acionado, ou ter efeito apenas quando alguma força se levante contra ele, de maneira que a pressão ceda quando a força diminuir. A lei do contrato é um freio desse tipo, que se ajusta automaticamente. Mas a função do freio é, de toda maneira, proibitória. Num mecanismo simples desse tipo, não pode ser atribuída uma “função” à cessação da função. O regulador da máquina a vapor, ou o controle elétrico, são diferentes; a confusão procede do nome “regulador”2. Se esse termo for usado, a definição exata de sua função é que ele governa o governo; ele coloca uma limitação no governo. Numa organização política, essa função é realizada por uma constituição, que estabelece um limite além do qual o governo não tem poder legítimo.

Para averiguar qual a ação do governo numa sequência de ações como a da expedição de Lewis e Clark, consideremos todos os fatores e condições. A terra virgem estava lá, na ordem da natureza. Muitos indivíduos privados haviam explorado boa parte dela. O conhecimento e a habilidade dos dois exploradores citados foram desenvolvidos por eles mesmos. Por que eles foram até o governo antes de fazer sua expedição? Para obter fundos e um comissionamento oficial. O que o governo fez e que Lewis e Clark não podiam fazer? Expropriar fundos de outras pessoas privadas, pelos impostos. Os suprimentos para a expedição vieram da produção privada. A ação do governo foi meramente expropriativa. O comissionamento oficial foi o aviso preliminar de que haveria uma reivindicação proibitória do território que a expedição atravessasse. Outros indivíduos privados foram até lá depois, às suas próprias custas, e fizeram o trabalho de tornar aquela terra cultivável. O governo exerceu sua função proibitória para registrar e impor os termos pelos quais um indivíduo poderia obter títulos de propriedade de qualquer parte da terra. Foi para esse propósito que a função proibitória foi delegada ao governo em primeiro lugar, para estabelecer títulos de registro; mas é um poder proibitório e nada mais. Sua “concessão” é uma liberação carimbada. Em qualquer tempo e lugar em que o governo intervém em uma sequência de ações, ele o faz com um ato autorizado de proibição ou expropriação. Qualquer outra coisa que ele “faça” é simplesmente um ato de liberação, uma cessação de função. Essa é a sua natureza, essa é sua função, esse é seu tipo de mecanismo. Isso não é menos verdade se dizemos que “o governo constrói uma represa”, ou qualquer outra obra. O governo expropria recursos e contrata pessoas para fazer o trabalho. A ação peculiar do governo é o ato de expropriação.3 Pessoas privadas podem construir represas e de fato o fazem. Mas não podem expropriar fundos. Governos despóticos, como o do Egito de quando as pirâmides foram construídas, expropriam a energia na fonte, pela compulsão de pessoas, ou seja, pelo trabalho forçado.

Onde vários fatores operam numa sequência de ações, a função de cada um só pode ser definida por eliminação. Aquela que invariavelmente ocorre quando um dado fator está presente e não ocorre em sua falta deve ser sua função. Examinemos qualquer sequência de ações em que o governo esteja envolvido. A primeira coisa que o governo faz e deve fazer é emitir um decreto ou aprovar uma lei. Nenhum decreto ou lei pode conceder a um indivíduo uma faculdade que a natureza tenha negado a ele. Uma ordem governamental não pode consertar uma perna quebrada, mas pode comandar a mutilação de um corpo sadio. Não pode conferir inteligência a alguém, mas pode proibir o uso da inteligência. Qual a primeira provisão para pôr uma lei em vigor? Deve haver uma “cláusula habilitante”, e uma cláusula habilitante é aquela que toma posse de valores ou materiais de impostos pagos com recursos privados, em dinheiro, em gênero ou em trabalho. Uma pessoa privada que toma os bens de outra é um criminoso; essa ação é reservada ao governo. Da mesma maneira, o governo, por seu poder judiciário, pode julgar pessoas acusadas de crimes capitais e fazê-las morrer. Faz parte dos poderes físicos dos indivíduos matarem uns aos outros; mas não se considera que ninguém tenha esse direito, a menos que seja em legítima defesa (da qual se considera que a vingança seja uma extensão). Uma vez que um homem não pode ser juiz em causa própria, considera-se adequado delegar a autoridade de vingança e, na medida do possível, de ajuda na autodefesa. Esse é o poder de morte. O poder de vida não pode ser delegado. O governo, portanto, é apenas um instrumento ou mecanismo de apropriação, proibição, compulsão e extinção; na natureza das coisas, não pode ser outra coisa, e não pode funcionar para outra finalidade.

Sua exata definição em ação mostra o quanto era acurada a frase “um mal necessário”. Visto sob essa luz, o governo é tão horrível — e suas reais operações no passado foram, às vezes, tão terríveis — que é compreensível que não se perceba que ele é necessário. Mas isso também tem de ser reconhecido, para descobrirmos sua extensão. O governo certamente é necessário para relações econômicas no espaço e no tempo; essa necessidade é derivada da necessidade da faculdade inibitória no indivíduo. Mas o erro básico da premissa autoritária ou estatista consiste em fazer essas necessidades públicas e privadas coextensivas. O governo é um requisito marginal, necessário apenas quando a faculdade inibitória do indivíduo não é exercida de acordo com o consenso e o direito natural (ou seja, liberdade). Além desse mínimo infinitesimal, o governo é uma entronização da paralisia e da morte. Vem daí a perversão da lógica que afirma que o cidadão existe apenas "para o estado" e não tem o direito individual à vida. Na verdade, a vida só pode existir por seu próprio direito; ou seja, é ridiculamente fútil para o estado (ou para quem quer que seja) ordenar a um homem que viva, se suas faculdades estiverem em falência; nem pode uma vida ser criada por uma ordem. O processo criativo não funciona por meio de ordens. Mas é possível ordenar a morte. Assim, o governo é secundário, instituído por acordo; a vida, que pertence ao indivíduo, é primária. O governo é um agente, não uma entidade.

Isto tem de ser reafirmado, porque o significado da afirmação de que os direitos à vida e à liberdade são inalienáveis foi esquecido ou deliberadamente obscurecido. Pessoas que não tem o costume de vincular significados exatos às palavras dirão que o fato de que um homem pode ser injustamente executado ou aprisionado contradiz essa proposição. Não contradiz. O direito está com a vítima da mesma forma e, de maneira completamente literal, não pode ser alienado, porque alienar significa passar para a posse de outro. Um homem não pode desfrutar nem da vida nem da liberdade de outro. Se matar dez homens, não vai viver dez vidas nem dez vezes mais tempo, em consequência disso; nem será mais livre se colocar outro homem na prisão. Os direitos são por definição inalienáveis; somente privilégios podem ser transferidos. Mesmo o direito de possuir bens não pode ser alienado ou transferido, embora um dado bem possa ser. Se os direitos de um homem são desrespeitados, nenhum outro homem os obtém; ao contrário, todos os homens são, por consequência, ameaçados com a mesma injustiça.

Não existe bem coletivo. De maneira estrita, não existe nem mesmo um bem comum. Existem, na ordem natural, materiais e condições com os quais o indivíduo é capaz de experimentar o bem, usando sua vontade e suas faculdades receptivas e criativas. Perguntemos: a luz do sol não é um bem comum? Não; as pessoas não desfrutam do benefício pela comunidade, mas individualmente. Um homem cego não pode enxergar pela comunidade. O mesmo grau de exposição solar pode causar insolação a uma pessoa, enquanto é benéfico para outra; embora, para sermos precisos, não será o mesmo raio de luz solar que cairá sobre ambos. Alexandre, o Grande, com o poder do império a seu comando, perguntou a Diógenes: “Há alguma coisa que eu possa fazer por você?” Diógenes respondeu: “Você pode dar um passo para o lado e parar de me fazer sombra.” O homem, como indivíduo, é capaz de experimentar e infligir tanto o bem como o mal, desde que tenha escolha. E também terá a responsabilidade por seus erros de julgamento. Permitindo a possibilidade do erro, o bem é obtido pela recepção e domínio das forças da natureza, e por meio da associação voluntária de indivíduos por livre escolha. Mas mesmo nessas relações voluntárias entre indivíduos, é possível que uma pessoa tenha prazer enquanto outra experimenta dor; não há uma soma coletiva ou uma equação do bem. “O maior bem para o maior número” é uma frase viciosa; não existe uma unidade do bem que, por adição ou multiplicação, possa constituir uma soma de bem a ser dividida pelo número de pessoas. Jeremy Bentham, tendo adotado a frase, passou o resto de sua vida tentando extrair algum significado de suas próprias palavras. Ele vagueia por imbecilidades quase inacreditáveis, sem nunca perceber por que elas não podem significar nada. Se dez homens gostam de jogar damas e apenas um aprecia uma sinfonia, qual é o maior bem na soma? E se fosse necessária uma escolha do que seria feito e fosse possível provar que a sinfonia seria onze vezes “melhor” que as damas, o que fazer? O resultado seria ou o maior bem para o menor número ou o menor bem para o maior número. Em qualquer caso, é impossível esconder o fato de que o bem é feito apenas para indivíduos (o “número” trai essa verdade, porque é o número de pessoas); mas se admitirmos que o bem de uma pessoa compensa o sofrimento de outra, isso é monstruoso. Justificaria torturas abomináveis de uma minoria se a maioria afirmasse se beneficiar delas; se o “bem” é quantitativo e forma um total por maioria, não pode haver juiz do que é bom, exceto a maioria. Essa regra é, de fato, a justificativa alegada pelos nazistas para o extermínio dos judeus e pelos comunistas russos para o assassinato brutal dos membros mais produtivos da população. Ambos agiram segundo a mesma teoria.

O fato de que não existe bem coletivo não contraria o fato de que o homem tem relações sociais e naturais, que também são de ordem espiritual. E é a expressão dessa possibilidade espiritual que a sociedade coletivista proíbe. A sociedade cristã difere fundamentalmente das formas anteriores de associação humana, sendo organizada para o pleno desenvolvimento da personalidade. A clivagem é mais evidente na instituição do casamento. No regime cristão, um casamento válido pode ser feito pelo consentimento das duas partes e não pode ser feito sem ele; não pode ser anulado pelos pais, guardiães ou pela comunidade, contra a vontade do casal, porque cada pessoa nasce com o direito à sua própria vida. E a autoridade paterna, na sociedade cristã, não pode se estender ao poder de morte ou dano real aos filhos; é apenas coextensiva à necessidade de criação e educação, originando-se da relação natural e da obrigação moral assumida voluntariamente no casamento. Os direitos e obrigações naturais, os direitos e responsabilidades pessoais, a vontade e o senso moral são inseparáveis.

Em sociedades coletivistas primitivas, os pais tem o poder de morte sobre seus filhos. Em reversões modernas a essa regra antinatural, o mesmo poder é concedido ao estado. No Japão, a sociedade coletiva absoluta, a família tem o poder de forçar os jovens ao casamento; e, na verdade, lá não existe outra maneira. Não existe reconhecimento legal de um casamento se não for assim. Além disso, divórcios podem ser determinados e impostos pela família. Isso pode ocorrer simplesmente porque os dois jovens começaram a gostar um do outro. Sua afeição pessoal era considerada prejudicial ao interesse coletivo do clã. Significativamente, essa característica do coletivismo reapareceu espontaneamente a partir do mesmo princípio, na Comunidade Oneida4, nos Estados Unidos. Para impedir o “egoísmo”, a promiscuidade era praticada e, se dois jovens desenvolvessem uma forte afeição mútua, o que era chamado de “amor especial”, isso era denunciado como antissocial; o jovem casal era separado e convencido a mudar de parceiros frequentemente. A ideia é tão revoltante que parece difícil de acreditar, mas é o que era feito. O coletivismo sempre critica as afeições e relações naturais e sugere deslocar o objeto das obrigações pessoais para a “sociedade”. Promete divórcio fácil, apoio do Estado para cuidar das crianças e os prazeres da promiscuidade; termina em escravidão e violação da personalidade.

Então, como o homem tem a capacidade de fazer ou infligir o mal deliberadamente, um dispositivo é usado para fazer com que a ação se retraia sobre si mesma, na medida do possível. Deve ser ou uma barreira estática, ou um mecanismo reativo, ou ambos — proibição e penalidade. Esse poder se origina da coletividade e é encarnado no governo, que deve agir segundo a lei.

A confusão a respeito da ação coletiva surge do poder inicial do homem de fazer o mal e a consequente natureza da lei. Ao propor uma lei qualquer, o proponente não percebe o que está fazendo, a menos que se pergunte: “É minha intenção impor restrições ou infligir perda ou dor a alguma pessoa, na contingência especificada?” Porque é isso o que a lei fará. A pergunta que segue é: “A contingência surge da ação inicial daquela pessoa infligindo injúria ou perda sobre outra pessoa, por intenção ou negligência?” É um erro fundamental supor que uma lei possa fazer algum bem e não prejudique ninguém. Se faz algum bem ou não, uma lei imposta deve prejudicar alguém. A questão correta é se essa pessoa colocou ou não o mecanismo em movimento ao prejudicar outra pessoa anteriormente.

“A lei, em sua majestade, proíbe tanto o rico como o pobre de dormir embaixo da ponte”, escreveu Anatole France. Mas isso é tudo o que a lei pode fazer, a menos que decrete que tanto o rico como o pobre não podem dormir em nenhum outro lugar, ou devem dormir na cadeia. A pobreza pode ser causada pela lei; não pode ser proibida pela lei. O que se chama de legislação moral deve inevitavelmente aumentar o mal alegado. A única maneira de impedir a prostituição completamente seria aprisionar metade da raça humana; fora isso, a lei pode tomar uma parcela dos ganhos da prostituta, com uma multa, e assim induzi-la a ganhar mais e a pagar por “proteção”. O tráfico de drogas se torna rentável pela proibição e, portanto, cresce. Os atos proibidos são aqueles pelos quais as pessoas prejudicam somente a si mesmas; portanto, a lei pode apenas prejudicá-las mais.

Por outro lado, leis que são projetadas para atuar no caso em que uma pessoa prejudica outra voluntariamente não necessariamente conseguem dissuadir o perpetrador de prosseguir em seu curso. Se a lei proíbe o assassinato, ela pode não ser capaz de impedir completamente os assassinatos, mas é razoável supor que deve ser um meio de intimidação. A lei também pode exigir a restituição da propriedade roubada — embora também tenha de executar uma ação de expropriação, ao cobrar um imposto sobre a propriedade, para permitir que os ladrões sejam punidos. Sua limitação é que ela deve funcionar sobre uma ação exercendo uma ação semelhante, mal por mal. Esse é o poder da coletividade e seu uso.

Mas devemos ter sempre em mente que o elemento constituinte do governo não é a força; é a faculdade moral que decide e cria o mecanismo pelo qual a força deve recair sobre si mesma. E a faculdade moral está no indivíduo.

A expedição de Lewis e Clark foi a primeira expedição americana a cruzar o que é hoje a porção oeste dos Estados Unidos. Foi comissionada pelo presidente Thomas Jefferson logo após a Compra da Louisiana, ocorrida em 1803. Composta por um grupo de voluntários do Exército americano, foi comandada pelo capitão Meriwether Lewis e pelo segundo-tenente William Clark. A missão partiu de St. Louis, às margens do rio Mississipi, em maio de 1804 e retornou em setembro de 1806. O objetivo principal era explorar e mapear o território recém-adquirido, encontrar uma rota viável que cruzasse a metade oeste do continente e estabelecer a presença americana nessa área, antes que a Grã-Bretanha e outras potências europeias reivindicassem essas terras. Os objetivos secundários eram científicos e econômicos: estudar as plantas, animais e a geografia da região e estabelecer comércio com as tribos indígenas. (N. do T.)

Em inglês, governor, governador. Dispositivo que regula a velocidade de uma máquina. (N. do T.) (N. do T.)

A agência dos correios é normalmente apontada como o melhor exemplo de empreendimento governamental; mas o serviço postal depende inteiramente dos meios de transporte inventados e operados pela iniciativa privada. É a forma mais simples de negócio que se pode imaginar, pura rotina; mesmo assim, apesar do monopólio estatal, sempre opera no vermelho; e as nomeações lucrativas ocorrem por favorecimento partidário, o maior de todos os empregos sendo concedido a um homem cujo tempo é ocupado principalmente com a obtenção de votos. Boas estradas existem apenas por causa do progresso da iniciativa privada em materiais e maquinário. O abastecimento de água das cidades foi fornecido originalmente pela iniciativa privada e expropriado pelo governo. Por séculos, o governo promoveu a doença, o desconforto e a melancolia com impostos sobre janelas, impostos sobre lareiras, impostos sobre o sal. A iniciativa privada cavou o Canal de Suez e forneceu o maquinário, o conhecimento e a habilidade para cavar o Canal do Panamá. Sempre e em toda parte, o progresso aconteceu exclusivamente por invenção, iniciativa, trabalho e poupança privados, e na razão inversa da extensão do governo. (N. da A.) (N. do T.)

A Comunidade Oneida foi uma comuna religiosa fundada por John Humphrey Noyes em 1848, na cidade de Oneida, Nova York. Seus membros acreditavam que Jesus voltou no ano 70, possibilitando que eles estabelecessem seu reino milenar e estivessem livres do pecado e fossem perfeitos neste mundo, e não apenas no Céu. A Comunidade Oneida praticava a propriedade comunal, a poligamia e tentou uma espécie de programa de eugenia chamado de estirpecultura. Começando com 87 membros, chegou a ter 306 em 1878. Foi dissolvida em 1881 e se transformou na gigantesca empresa de prataria Oneida Limited. (N. do T.) (N. do T.)

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