O Deus da Máquina, capítulo IX
A Função do Governo
Isabel Paterson
Mapa da Expedição de Lewis e Clark |
Uma
vez que governo e poder sempre foram mais ou menos sinônimos, e “política da
máquina” é uma expressão popular, é curioso que a agência política nunca tenha
sido rigorosamente examinada a essa luz, como um problema específico de
engenharia. Quando a energia é usada num mecanismo, o resultado deve estar de
acordo com o tipo de máquina. A fonte da energia pode ser conhecida; a natureza
do mecanismo é facilmente descoberta em sua ação; e é absurdo esperar qualquer
outra ação além daquela da qual as peças combinadas são capazes. Mesmo que um
dispositivo pare completamente de funcionar ou cause apenas destruição, as leis
da energia e do mecanismo não se alteram nem variam; o defeito está no aparelho.
Mas isso ainda não foi plenamente entendido com relação aos assuntos humanos,
por diversas razões implícitas no desenvolvimento da inteligência humana.
Primeiro,
a energia é um fenômeno natural. No estágio de associação humana no qual a opera
apenas por meio das unidades e modos de conversão encontrados na natureza, a
energia não necessita de uma definição abstrata.
Segundo,
em engenharia mecânica, que trabalha com objetos inanimados, a primeira
consideração é tão óbvia que não precisa ser postulada ou receber um valor
separado no cálculo consciente. É o fator da base subjacente. A base de todos
os mecanismos é a terra física. O engenheiro só precisa escolher um local,
nivelá-lo ou solidificá-lo para permitir que o mecanismo repouse sobre ele e,
evidentemente, precisa equilibrar, pesar ou fixar sua máquina para que ela não
tombe. Mas ele sabe que o chão está lá; todos os seus cálculos levam esse fator
em consideração como um componente distribuído; massa, peso, extensão, tensões,
volume são medidas estabelecidas a partir
da base.
Terceiro,
na engenharia mecânica, que é confinada a condições materiais, a fonte da
energia é determinada; uma unidade pode ser estabelecida e a transmissão e a
carga ajustadas ao fluxo. Cada fator pode ser medido.
Por
último, o ponto mais importante, porque ele obscurece a natureza do governo: a física não tem um nome para a função exata
que é delegada ao governo. É algo que não
existe em nenhuma manifestação de energia por meio de materiais inanimados.
É peculiar às criaturas vivas. A energia é pré-existente no universo e não pode
ser criada a partir do nada; mas, num circuito de energia específico, é
possível determinar um ponto aproximado através do qual uma porção da energia
universal é introduzida no circuito; esse é o dínamo, gerador, conversor ou
motor. Na organização social, o homem é o dínamo, em sua capacidade produtiva.
O governo é um aparelho-fim e um beco sem saída no que se refere à energia que
usa. Em princípio, um mecanismo composto de material inanimado, que utiliza
energia, é completamente calculável. Um motor de certa potência vai propelir
determinada carga a um determinado gradiente; se a energia for cortada, a massa
e a quantidade de movimento vão determinar seu ponto de parada, ou um obstáculo
de determinada resistência vai pará-lo. Nenhuma previsão semelhante pode ser
feita sobre as ações de um ser humano funcionando assim. É verdade que sua
força muscular pode ser medida; mas enquanto ele se move com suas próprias
forças, não é possível medir nem prever o que o fará iniciar um movimento,
parar, virar ou acelerar. Tudo isso depende do que ele pensa; um fator não
mensurável.
O
ser humano tem uma faculdade para a qual não existe equivalente nos processos
da natureza inanimada. Ele inicia a si mesmo e pode inibir a si mesmo.
A
energia é o meio no qual a vida existe. Um bebê é capaz de mover seus membros e
absorver alimentação (combustível) desde quando nasce; cresce em atividade
espontânea instintiva e ganha o controle necessário simultaneamente. Assim, “na
natureza”, a energia, o mecanismo e o controle parecem ser uma coisa só e o
indivíduo pode funcionar sem defini-los separadamente ou de maneira abstrata.
As relações sociais e econômicas dos selvagens também não precisam de tais
distinções. Contatos externos fazem funcionar esses diversos fatores como se eles
fossem um único. A necessidade é imediata; praticamente não existem
consequências posteriores, até onde o selvagem pode perceber. Já que não pode
guardar provisões para o futuro, é prudente se fartar quando existe abundância
de comida e, assim, armazenar alguma energia em seu corpo. Se encontrar um urso
pardo ou brigar com um de seus companheiros, deve tomar a decisão imediata
entre lutar ou fugir. Executa sua própria justiça, se houver uma,
individualmente ou por um comitê do grupo. Se tiver algum tipo de abrigo, tem
de carregá-lo consigo. Nessas questões, está lidando com causa e efeito, que
são fatores da engenharia; mas não incluem transações no espaço e no tempo. Por
outro lado, em suas relações pessoais, mesmo um selvagem reconhecerá que
intenções, até certo ponto, qualificam a resposta ou a retaliação apropriada.
Uma intenção é um imponderável; pertence a uma ordem não matemática de
abstrações. Assim, embora seja uma consideração adequada nas relações humanas,
ela certamente retarda a formulação dos princípios da física ou da engenharia.
A falta dessa distinção é a principal diferença entre o pensamento primitivo e
o científico; e é uma explicação suficiente para a origem da crença em magia.
Uma vez que é possível a uma pessoa dissuadir outra ou convencê-la a agir
usando apenas palavras, não é totalmente irracional, embora seja um erro,
imaginar que as feras, os objetos, as doenças ou o tempo possam ser
influenciados por uma abordagem semelhante. Essa suposição infeliz está quase
inextricavelmente embutida nos hábitos mentais da humanidade. A ciência começa
por bani-la do campo em que ela é irrelevante. A ciência percebe que os objetos
inanimados não ouvem o que é dito a eles, nem se importam com intenções. Ainda
assim, o nome da ciência tem sido usado para levar esse erro um passo além,
numa sequência em que sua falsidade é ainda mais sutil e mais difícil de
erradicar, com a proposição de que o homem não é mais que um mecanismo físico;
e, já que pode ser induzido a liberar sua energia por palavras ou compulsão,
deve responder infalivelmente segundo uma fórmula se for previamente
"condicionado", como a máquina responde aos controles. O que se negligencia
é o fato de que, mesmo se considerado um mecanismo, o homem é uma máquina
genuinamente automática, iniciando-se por conta própria e agindo por conta
própria. Nenhum mecanismo inanimado pode ser automático dessa maneira.
O
homem é assim por virtude da iniciativa e da faculdade inibitória. A iniciativa
é a própria vida. A inibição completa é a morte. Porém, uma criatura viva
incapaz de inibir a si mesma rapidamente se destruiria.
Como
visto, as inibições requeridas pela vida selvagem funcionam diretamente, assim
como o resultado da iniciativa retorna diretamente ao indivíduo. O caçador faz
uma arma para usar, mantém essa arma em sua posse, come a caça que mata; sua
mulher transforma a pele em roupas. Na civilização, os processos para conseguir
comida e abrigo são prolongados. Leva pelo menos um ano de antevisão para
cultivar o solo e colher a produção; os grãos precisam ir ao moinho, as peles
ao curtidor, os têxteis ao tecelão, antes que possam ser usados. Quando um
homem civilizado constrói uma casa, o projeto precisa ser criado e os materiais
reunidos por um período considerável. Essas coisas são pagas com economias que
envolvem a troca de trabalho com muitas outras pessoas. Ele deve, portanto,
impor restrições a si mesmo por causa de objetivos distantes no tempo e que
precisam ser dirigidos através do espaço. Ele vive no passado e no futuro tanto
quanto no presente. Sua iniciativa será perdida, a menos que iniba a si mesmo;
e, além disso, ele precisa poder contar com outras pessoas que participam da
troca, e que também devem observar inibições de longo prazo. Num estágio ainda
inicial do comércio, torna-se inconveniente depender do escambo de bens entre
proprietários. Com objetos de valor desigual, ou numa série de trocas, ou no
caso de entregas em momentos diferentes, faz-se necessário um meio de valor: o
dinheiro. E, ao longo da série, uma sucessão de inibições deve ser seguida; de
outra maneira, em algum ponto os bens seriam consumidos e não haveria retorno.
O circuito de energia seria rompido.
É
por isso que os selvagens não precisam de um governo formal, enquanto ele é
necessário à civilização. Para uma economia civilizada, que consiste em
produção e trocas numa sequência que se estende no tempo e no espaço, deve
haver uma agência para servir de testemunha dos contratos de longo prazo. Essa
agência deve garantir que os contratos sejam cumpridos na ausência de uma das
partes ou impor uma penalidade previamente acordada em caso de descumprimento.
A autoridade apropriada para esse propósito é, portanto, delegada ao governo.
Como
a palavra indica, a faculdade inibitória é uma função do indivíduo; falando
estritamente, não pode ser delegada. Nenhuma faculdade pode ser delegada. Um
homem pode conceder o produto de seu trabalho e talento a outro
voluntariamente; um homem pode tomar o produto de outro por força ou fraude; ou
os homens podem comercializar seu trabalho e seus produtos. Mas um homem não
pode transferir sua força ou inteligência para a estrutura física de outro
homem. O que pode ser feito, no caso em que um indivíduo não iniba a si mesmo
conforme havia concordado em fazer, ou se ele infringe a liberdade ou toma a
propriedade de outro, é obrigá-lo a uma pagar uma multa ou impor restrições
externas; e agentes públicos podem ser encarregados por autoridade delegada de
executar a cobrança. Pelos mesmos meios, esses agentes podem tomar parte de sua
produção, em impostos, para sustentá-los e pagar as despesas de sua
organização. É isso o que faz o governo e é tudo o que ele pode fazer. O
governo é uma agência proibitória e expropriativa. Seu tipo de mecanismo
necessariamente corresponde a sua função.
Se
o processo completo não for levado em consideração, é possível imaginar
erroneamente exceções à afirmação acima. A citação a seguir é uma exposição
clara e concisa do ponto em que ocorre o mal-entendido. “O regulador de uma
máquina a vapor não é meramente um mecanismo proibitório, mas comanda mais
vapor quando necessário; e os vários controles elétricos funcionam da mesma
maneira; por que o governo político não pode funcionar assim? A expedição de
Lewis e Clark1
e outras expedições exploratórias patrocinadas por governos no oeste não foram
ações proibitórias. O papel que o governo desempenhou no desenvolvimento das
terras públicas do oeste não foi meramente proibitório.”
Quando
o regulador de uma máquina a vapor comanda mais vapor, obviamente o vapor
(energia) precisa estar lá para ser comandado; e foi previamente confinado. A
função do regulador não é obter o vapor, ou seja, produzir a energia. Como
mecanismo, ele é um instrumento de liberação, o que implica em uma restrição
prévia. Um mecanismo proibitório pode ser feito de tal maneira que
posteriormente ele deixe de proibir; um freio pode ser desacionado depois que
foi acionado, ou ter efeito apenas quando alguma força se levante contra ele,
de maneira que a pressão ceda quando a força diminuir. A lei do contrato é um
freio desse tipo, que se ajusta automaticamente. Mas a função do freio é, de
toda maneira, proibitória. Num mecanismo simples desse tipo, não pode ser
atribuída uma “função” à cessação da função. O regulador da máquina a vapor, ou
o controle elétrico, são diferentes; a confusão procede do nome “regulador”2.
Se esse termo for usado, a definição exata de sua função é que ele governa o
governo; ele coloca uma limitação no governo. Numa organização política, essa
função é realizada por uma constituição, que estabelece um limite além do qual
o governo não tem poder legítimo.
Para
averiguar qual a ação do governo numa sequência de ações como a da expedição de
Lewis e Clark, consideremos todos os fatores e condições. A terra virgem estava
lá, na ordem da natureza. Muitos indivíduos privados haviam explorado boa parte
dela. O conhecimento e a habilidade dos dois exploradores citados foram
desenvolvidos por eles mesmos. Por que eles foram até o governo antes de fazer
sua expedição? Para obter fundos e um comissionamento oficial. O que o governo
fez e que Lewis e Clark não podiam fazer? Expropriar fundos de outras pessoas
privadas, pelos impostos. Os suprimentos para a expedição vieram da produção
privada. A ação do governo foi meramente expropriativa. O comissionamento
oficial foi o aviso preliminar de que haveria uma reivindicação proibitória do
território que a expedição atravessasse. Outros indivíduos privados foram até
lá depois, às suas próprias custas, e fizeram o trabalho de tornar aquela terra
cultivável. O governo exerceu sua função proibitória para registrar e impor os
termos pelos quais um indivíduo poderia obter títulos de propriedade de
qualquer parte da terra. Foi para esse propósito que a função proibitória foi
delegada ao governo em primeiro lugar, para estabelecer títulos de registro;
mas é um poder proibitório e nada mais. Sua “concessão” é uma liberação
carimbada. Em qualquer tempo e lugar em que o governo intervém em uma sequência
de ações, ele o faz com um ato autorizado de proibição ou expropriação.
Qualquer outra coisa que ele “faça” é simplesmente um ato de liberação, uma
cessação de função. Essa é a sua natureza, essa é sua função, esse é seu tipo
de mecanismo. Isso não é menos verdade se dizemos que “o governo constrói uma
represa”, ou qualquer outra obra. O governo expropria recursos e contrata
pessoas para fazer o trabalho. A ação peculiar do governo é o ato de
expropriação.3
Pessoas privadas podem construir represas e de fato o fazem. Mas não podem
expropriar fundos. Governos despóticos, como o do Egito de quando as pirâmides
foram construídas, expropriam a energia na fonte, pela compulsão de pessoas, ou
seja, pelo trabalho forçado.
Onde
vários fatores operam numa sequência de ações, a função de cada um só pode ser
definida por eliminação. Aquela que invariavelmente ocorre quando um dado fator
está presente e não ocorre em sua falta deve ser sua função. Examinemos
qualquer sequência de ações em que o governo esteja envolvido. A primeira coisa
que o governo faz e deve fazer é emitir um decreto ou aprovar uma lei. Nenhum
decreto ou lei pode conceder a um indivíduo uma faculdade que a natureza tenha
negado a ele. Uma ordem governamental não pode consertar uma perna quebrada,
mas pode comandar a mutilação de um corpo sadio. Não pode conferir inteligência
a alguém, mas pode proibir o uso da inteligência. Qual a primeira provisão para
pôr uma lei em vigor? Deve haver uma “cláusula habilitante”, e uma cláusula
habilitante é aquela que toma posse de valores ou materiais de impostos pagos
com recursos privados, em dinheiro, em gênero ou em trabalho. Uma pessoa
privada que toma os bens de outra é um criminoso; essa ação é reservada ao
governo. Da mesma maneira, o governo, por seu poder judiciário, pode julgar
pessoas acusadas de crimes capitais e fazê-las morrer. Faz parte dos poderes
físicos dos indivíduos matarem uns aos outros; mas não se considera que ninguém
tenha esse direito, a menos que seja em legítima defesa (da qual se considera
que a vingança seja uma extensão). Uma vez que um homem não pode ser juiz em
causa própria, considera-se adequado delegar a autoridade de vingança e, na
medida do possível, de ajuda na autodefesa. Esse é o poder de morte. O poder de
vida não pode ser delegado. O governo, portanto, é apenas um instrumento ou
mecanismo de apropriação, proibição, compulsão e extinção; na natureza das
coisas, não pode ser outra coisa, e não pode funcionar para outra finalidade.
Sua
exata definição em ação mostra o quanto era acurada a frase “um mal necessário”.
Visto sob essa luz, o governo é tão horrível — e suas reais operações no
passado foram, às vezes, tão terríveis — que é compreensível que não se perceba
que ele é necessário. Mas isso também tem de ser reconhecido, para descobrirmos
sua extensão. O governo certamente é necessário para relações econômicas no
espaço e no tempo; essa necessidade é derivada da necessidade da faculdade
inibitória no indivíduo. Mas o erro básico da premissa autoritária ou estatista
consiste em fazer essas necessidades públicas e privadas coextensivas. O
governo é um requisito marginal, necessário apenas quando a faculdade
inibitória do indivíduo não é exercida de acordo com o consenso e o direito
natural (ou seja, liberdade). Além desse mínimo infinitesimal, o governo é uma
entronização da paralisia e da morte. Vem daí a perversão da lógica que afirma
que o cidadão existe apenas "para o estado" e não tem o direito
individual à vida. Na verdade, a vida só pode existir por seu próprio direito; ou
seja, é ridiculamente fútil para o estado (ou para quem quer que seja) ordenar
a um homem que viva, se suas faculdades estiverem em falência; nem pode uma
vida ser criada por uma ordem. O processo criativo não funciona por meio de
ordens. Mas é possível ordenar a morte. Assim, o governo é secundário,
instituído por acordo; a vida, que pertence ao indivíduo, é primária. O governo
é um agente, não uma entidade.
Isto
tem de ser reafirmado, porque o significado da afirmação de que os direitos à
vida e à liberdade são inalienáveis foi esquecido ou deliberadamente
obscurecido. Pessoas que não tem o costume de vincular significados exatos às
palavras dirão que o fato de que um homem pode ser injustamente executado ou
aprisionado contradiz essa proposição. Não contradiz. O direito está com a
vítima da mesma forma e, de maneira completamente literal, não pode ser
alienado, porque alienar significa passar para a posse de outro. Um homem não
pode desfrutar nem da vida nem da liberdade de outro. Se matar dez homens, não
vai viver dez vidas nem dez vezes mais tempo, em consequência disso; nem será
mais livre se colocar outro homem na prisão. Os direitos são por definição
inalienáveis; somente privilégios podem ser transferidos. Mesmo o direito de possuir bens não pode ser
alienado ou transferido, embora um dado bem possa ser. Se os direitos de um
homem são desrespeitados, nenhum outro homem os obtém; ao contrário, todos os
homens são, por consequência, ameaçados com a mesma injustiça.
Não
existe bem coletivo. De maneira estrita, não existe nem mesmo um bem comum.
Existem, na ordem natural, materiais e condições com os quais o indivíduo é
capaz de experimentar o bem, usando sua vontade e suas faculdades receptivas e
criativas. Perguntemos: a luz do sol não é um bem comum? Não; as pessoas não
desfrutam do benefício pela comunidade, mas individualmente. Um homem cego não
pode enxergar pela comunidade. O mesmo grau de exposição solar pode causar
insolação a uma pessoa, enquanto é benéfico para outra; embora, para sermos
precisos, não será o mesmo raio de luz solar que cairá sobre ambos. Alexandre,
o Grande, com o poder do império a seu comando, perguntou a Diógenes: “Há
alguma coisa que eu possa fazer por você?” Diógenes respondeu: “Você pode dar
um passo para o lado e parar de me fazer sombra.” O homem, como indivíduo, é
capaz de experimentar e infligir tanto o bem como o mal, desde que tenha
escolha. E também terá a responsabilidade por seus erros de julgamento. Permitindo
a possibilidade do erro, o bem é obtido pela recepção e domínio das forças da
natureza, e por meio da associação voluntária de indivíduos por livre escolha.
Mas mesmo nessas relações voluntárias entre indivíduos, é possível que uma
pessoa tenha prazer enquanto outra experimenta dor; não há uma soma coletiva ou
uma equação do bem. “O maior bem para o maior número” é uma frase viciosa; não
existe uma unidade do bem que, por adição ou multiplicação, possa constituir
uma soma de bem a ser dividida pelo número de pessoas. Jeremy Bentham, tendo
adotado a frase, passou o resto de sua vida tentando extrair algum significado
de suas próprias palavras. Ele vagueia por imbecilidades quase inacreditáveis,
sem nunca perceber por que elas não podem significar nada. Se dez homens gostam
de jogar damas e apenas um aprecia uma sinfonia, qual é o maior bem na soma? E
se fosse necessária uma escolha do que seria feito e fosse possível provar que
a sinfonia seria onze vezes “melhor” que as damas, o que fazer? O resultado
seria ou o maior bem para o menor número ou o menor bem para o maior número. Em
qualquer caso, é impossível esconder o fato de que o bem é feito apenas para
indivíduos (o “número” trai essa verdade, porque é o número de pessoas); mas se
admitirmos que o bem de uma pessoa compensa o sofrimento de outra, isso é
monstruoso. Justificaria torturas abomináveis de uma minoria se a maioria
afirmasse se beneficiar delas; se o “bem” é quantitativo e forma um total por
maioria, não pode haver juiz do que é bom, exceto a maioria. Essa regra é, de
fato, a justificativa alegada pelos nazistas para o extermínio dos judeus e
pelos comunistas russos para o assassinato brutal dos membros mais produtivos
da população. Ambos agiram segundo a mesma teoria.
O
fato de que não existe bem coletivo não contraria o fato de que o homem tem
relações sociais e naturais, que também são de ordem espiritual. E é a
expressão dessa possibilidade espiritual que a sociedade coletivista proíbe. A
sociedade cristã difere fundamentalmente das formas anteriores de associação
humana, sendo organizada para o pleno desenvolvimento da personalidade. A
clivagem é mais evidente na instituição do casamento. No regime cristão, um
casamento válido pode ser feito pelo consentimento das duas partes e não pode
ser feito sem ele; não pode ser anulado pelos pais, guardiães ou pela
comunidade, contra a vontade do casal, porque cada pessoa nasce com o direito à
sua própria vida. E a autoridade paterna, na sociedade cristã, não pode se
estender ao poder de morte ou dano real aos filhos; é apenas coextensiva à
necessidade de criação e educação, originando-se da relação natural e da
obrigação moral assumida voluntariamente no casamento. Os direitos e obrigações
naturais, os direitos e responsabilidades pessoais, a vontade e o senso moral
são inseparáveis.
Em
sociedades coletivistas primitivas, os pais tem o poder de morte sobre seus
filhos. Em reversões modernas a essa regra antinatural, o mesmo poder é
concedido ao estado. No Japão, a sociedade coletiva absoluta, a família tem o
poder de forçar os jovens ao casamento; e, na verdade, lá não existe outra
maneira. Não existe reconhecimento legal de um casamento se não for assim. Além
disso, divórcios podem ser determinados e impostos pela família. Isso pode
ocorrer simplesmente porque os dois jovens começaram a gostar um do outro. Sua
afeição pessoal era considerada prejudicial ao interesse coletivo do clã.
Significativamente, essa característica do coletivismo reapareceu
espontaneamente a partir do mesmo princípio, na Comunidade Oneida4,
nos Estados Unidos. Para impedir o “egoísmo”, a promiscuidade era praticada e,
se dois jovens desenvolvessem uma forte afeição mútua, o que era chamado de
“amor especial”, isso era denunciado como antissocial; o jovem casal era
separado e convencido a mudar de parceiros frequentemente. A ideia é tão
revoltante que parece difícil de acreditar, mas é o que era feito. O
coletivismo sempre critica as afeições e relações naturais e sugere deslocar o
objeto das obrigações pessoais para a “sociedade”. Promete divórcio fácil,
apoio do Estado para cuidar das crianças e os prazeres da promiscuidade;
termina em escravidão e violação da personalidade.
Então,
como o homem tem a capacidade de fazer ou infligir o mal deliberadamente, um
dispositivo é usado para fazer com que a ação se retraia sobre si mesma, na
medida do possível. Deve ser ou uma barreira estática, ou um mecanismo reativo,
ou ambos — proibição e penalidade. Esse poder se origina da coletividade e é
encarnado no governo, que deve agir segundo a lei.
A
confusão a respeito da ação coletiva surge do poder inicial do homem de fazer o
mal e a consequente natureza da lei. Ao propor uma lei qualquer, o proponente
não percebe o que está fazendo, a menos que se pergunte: “É minha intenção
impor restrições ou infligir perda ou dor a alguma pessoa, na contingência
especificada?” Porque é isso o que a lei fará. A pergunta que segue é: “A
contingência surge da ação inicial daquela pessoa infligindo injúria ou perda
sobre outra pessoa, por intenção ou negligência?” É um erro fundamental supor
que uma lei possa fazer algum bem e não prejudique ninguém. Se faz algum bem ou
não, uma lei imposta deve prejudicar alguém. A questão correta é se essa pessoa
colocou ou não o mecanismo em movimento ao
prejudicar outra pessoa anteriormente.
“A
lei, em sua majestade, proíbe tanto o rico como o pobre de dormir embaixo da
ponte”, escreveu Anatole France. Mas isso é tudo o que a lei pode fazer, a
menos que decrete que tanto o rico como o pobre não podem dormir em nenhum
outro lugar, ou devem dormir na cadeia. A pobreza pode ser causada pela lei;
não pode ser proibida pela lei. O que se chama de legislação moral deve
inevitavelmente aumentar o mal alegado. A única maneira de impedir a
prostituição completamente seria aprisionar metade da raça humana; fora isso, a
lei pode tomar uma parcela dos ganhos da prostituta, com uma multa, e assim
induzi-la a ganhar mais e a pagar por “proteção”. O tráfico de drogas se torna
rentável pela proibição e, portanto, cresce. Os atos proibidos são aqueles
pelos quais as pessoas prejudicam somente a si mesmas; portanto, a lei pode
apenas prejudicá-las mais.
Por
outro lado, leis que são projetadas para atuar no caso em que uma pessoa
prejudica outra voluntariamente não necessariamente conseguem dissuadir o
perpetrador de prosseguir em seu curso. Se a lei proíbe o assassinato, ela pode
não ser capaz de impedir completamente os assassinatos, mas é razoável supor
que deve ser um meio de intimidação. A lei também pode exigir a restituição da
propriedade roubada — embora também tenha de executar uma ação de expropriação,
ao cobrar um imposto sobre a propriedade, para permitir que os ladrões sejam
punidos. Sua limitação é que ela deve funcionar sobre uma ação exercendo uma ação
semelhante, mal por mal. Esse é o poder da coletividade e seu uso.
Mas devemos ter sempre
em mente que o elemento constituinte
do governo não é a força; é a faculdade moral que decide e cria o mecanismo
pelo qual a força deve recair sobre si mesma. E a faculdade moral está no
indivíduo.
1 A expedição de Lewis e Clark foi a primeira expedição americana a cruzar o que é hoje a porção oeste dos Estados Unidos. Foi comissionada pelo presidente Thomas Jefferson logo após a Compra da Louisiana, ocorrida em 1803. Composta por um grupo de voluntários do Exército americano, foi comandada pelo capitão Meriwether Lewis e pelo segundo-tenente William Clark. A missão partiu de St. Louis, às margens do rio Mississipi, em maio de 1804 e retornou em setembro de 1806. O objetivo principal era explorar e mapear o território recém-adquirido, encontrar uma rota viável que cruzasse a metade oeste do continente e estabelecer a presença americana nessa área, antes que a Grã-Bretanha e outras potências europeias reivindicassem essas terras. Os objetivos secundários eram científicos e econômicos: estudar as plantas, animais e a geografia da região e estabelecer comércio com as tribos indígenas. (N. do T.)
2 Em inglês, governor, governador. Dispositivo que regula a velocidade de uma máquina. (N. do T.) (N. do T.)
3 A agência dos correios é normalmente apontada como o melhor exemplo de empreendimento governamental; mas o serviço postal depende inteiramente dos meios de transporte inventados e operados pela iniciativa privada. É a forma mais simples de negócio que se pode imaginar, pura rotina; mesmo assim, apesar do monopólio estatal, sempre opera no vermelho; e as nomeações lucrativas ocorrem por favorecimento partidário, o maior de todos os empregos sendo concedido a um homem cujo tempo é ocupado principalmente com a obtenção de votos. Boas estradas existem apenas por causa do progresso da iniciativa privada em materiais e maquinário. O abastecimento de água das cidades foi fornecido originalmente pela iniciativa privada e expropriado pelo governo. Por séculos, o governo promoveu a doença, o desconforto e a melancolia com impostos sobre janelas, impostos sobre lareiras, impostos sobre o sal. A iniciativa privada cavou o Canal de Suez e forneceu o maquinário, o conhecimento e a habilidade para cavar o Canal do Panamá. Sempre e em toda parte, o progresso aconteceu exclusivamente por invenção, iniciativa, trabalho e poupança privados, e na razão inversa da extensão do governo. (N. da A.) (N. do T.)
4 A Comunidade Oneida foi uma comuna religiosa fundada por John Humphrey Noyes em 1848, na cidade de Oneida, Nova York. Seus membros acreditavam que Jesus voltou no ano 70, possibilitando que eles estabelecessem seu reino milenar e estivessem livres do pecado e fossem perfeitos neste mundo, e não apenas no Céu. A Comunidade Oneida praticava a propriedade comunal, a poligamia e tentou uma espécie de programa de eugenia chamado de estirpecultura. Começando com 87 membros, chegou a ter 306 em 1878. Foi dissolvida em 1881 e se transformou na gigantesca empresa de prataria Oneida Limited. (N. do T.) (N. do T.)
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