domingo, 1 de setembro de 2013

O Nobre Selvagem


O Deus da Máquina, capítulo VII
O Nobre Selvagem
Isabel Paterson

A primeira generalização abstrata feita pelos europeus sobre os aborígenes americanos foi que as tribos menos civilizadas não tinham governo.1 A Europa estava tão distante dessa condição que foi tomada de assombro. O fato deu origem ao mito do Nobre Selvagem. Hoje, esse conceito parece uma fabricação gratuita, porque foi traduzido em forma poética e pictórica. O Nobre Selvagem era originalmente um silogismo, uma construção lógica a partir das premissas da teoria europeia de governo. A autoridade secular residia na sociedade, que era uma entidade; e os homens nasciam submetidos a ela. Imaginava-se que, sem governo, a mão de cada homem se levantaria contra seu próximo e todo tipo de crime seria cometido por todos. Possivelmente, a memória das invasões bárbaras contribuiu para essa crença; ao mesmo tempo, a doutrina do pecado original pode ser interpretada de maneira a confirmá-la. E, uma vez que certamente havia crimes sendo cometidos em profusão, parecia razoável supor que mais crimes haveria se os indivíduos tivessem mais liberdade de ação. Como ou por que uma sociedade composta de indivíduos ávidos por assassinar restringiria seus membros pela força pode parecer incompreensível, especialmente quando a Igreja exercia uma autoridade superior à da organização secular, porque apelava à consciência individual, intervindo em disputas armadas com prescrições morais. Mas, para explicar essa inconsistência, apelava-se à missão divina confiada à Igreja. A ordem da sociedade secular fazia necessário prender os homens a uma dada localidade e a uma dada classe e, portanto, determinar o que eles deviam ou não fazer, dizer, escrever ou pensar. Tanto o exílio como a “prisão preventiva”, encarceramento sem julgamento (como por lettre de cachet2) são consequências extremas dessa teoria.

Assim, foi um choque profundo descobrir que havia menos crime entre selvagens sem governo que numa sociedade com um governo autoritário que regulava detalhes da vida dos súditos. Os selvagens praticavam a maioria das virtudes seculares: coragem, hospitalidade, sinceridade, lealdade, talvez até a castidade. É verdade que guerreavam e eram às vezes cruéis, mas os europeus guerreavam e haviam legalizado a tortura.

Porém, os homens não abandonam facilmente uma opinião por meio da qual justificaram suas instituições. Portanto, só se podia concluir que os selvagens eram peculiarmente nobres por natureza; ou, pelo menos, assim eram os selvagens americanos.3 O Nobre Selvagem não era uma criação inteiramente nova; Tácito havia idealizado os bárbaros da mesma maneira, enquanto os bárbaros permaneciam a uma distância segura. Só a racionalização era nova. Mas o Nobre Selvagem passou para a mitologia europeia sem ter obtido crédito na América. Os primeiros colonos brancos, para quem o selvagem era um inimigo presente e sanguinário, podiam não tomar conhecimento de suas virtudes. Exatamente nesse ponto começou o cisma ou a divisão entre as ideias políticas americanas e europeias.

O impacto de um sistema de alta energia em outro de energia menor tem um efeito interno sobre este último que é muito mais desagregador e conclusivo que as consequências diretas da guerra. Por exemplo, se os índios norte-americanos recebessem armas de fogo e munição para seu próprio uso, mantendo todo o restante como era antes, seu modo de vida seria gravemente perturbado. A população ideal que uma economia caçadora consegue sustentar é bastante limitada. Passam-se anos seguidos em que a caça é escassa de qualquer maneira; nesses períodos, os membros mais fracos das tribos selvagens perecem; e em qualquer o tempo, as dificuldades para sobreviver são muito grandes. Com armas de fogo, seria possível aos caçadores matar mais animais, de maneira que a população tenderia a crescer por certo tempo, à custa do suprimento futuro de comida conforme a caça rareasse, até que um ano excepcionalmente ruim trouxesse uma fome em grande escala. Na verdade, algo semelhante foi acontecendo gradualmente. Não houve grandes quantidades de índios norte-americanos massacrados por homens brancos na guerra. Ao contrário, a economia dos índios foi suplantada; e aqueles em contato com o homem branco se perverteram muito antes da ocupação total do continente pelos brancos.

O desvio do Nobre Selvagem de sua virtude imaculada original não pôde deixar de ser observado. O mito permaneceu no pensamento europeu, mas teve de ser modificado para uma hipótese provisória de que talvez todos os homens fossem igualmente nobres até que se corrompessem por — por quê? Pela “sociedade”, pelo menos a partir do momento em que ela se organizou, especialmente em sua forma política. Aproximando-se da lei da física que diz que ação e reação são iguais e opostas, as mentes europeias começaram a balançar para este extremo, a partir de sua teoria anterior de status.

Emigrantes para a América já haviam feito o movimento físico. Portanto, seu pensamento tendia a procurar um equilíbrio. Na opinião dos homens da fronteira, o único índio bom era o índio morto. Mas o homem da fronteira também não tinha uma ligação excessiva com o governo. Americanos informados e ponderados permaneceram conscientes do fato de que o selvagem, em sua condição original, realmente obedecia a um código moral, embora não tivesse governo. Tendo contato direto com as limitações da cultura primitiva, esses homens de intelecto não tinham nenhum desejo de regredir para a selvageria em busca de uma ilusão sentimental; o que os interessava era a questão racional: se o governo não impediu o crime e impôs a virtude, o que foi que o fez? Se, em certas condições, o governo pode ser completamente dispensável, por que e até que ponto ele é realmente necessário em qualquer condição?

As colônias americanas forneceram outro exemplo prático e campo de provas. Nominalmente, estavam sob o mesmo tipo de autoridade que as nações europeias das quais saíram; mas especialmente as colônias inglesas, por razões históricas, tendiam fortemente ao autogoverno, no qual o elemento estritamente tradicional ficava diluído ou era eliminado e a liberdade do indivíduo era considerada um fato. Mesmo assim, elas prosperavam; as pessoas conviviam umas com as outras e, com muito menos governo que na Europa, a criminalidade não era maior. A existência da escravidão ao mesmo tempo só pode ser entendida se compreendermos as duas teorias de sociedade. A escravidão ocorre no que foi depois chamado de “economia mista”. O contrato havia se tornado a relação predominante, mas a teoria do status não havia sido explicitamente rejeitada pela limitação do escopo do governo. O suposto valor moral do status é que ele dá “segurança” a todos, um lugar na sociedade do qual ninguém pode ser tirado e do qual, reciprocamente, ninguém pode sair. Se existia algum benefício no status, o servo desfrutava dele tanto quanto seu senhor.4 Pela teoria de status completa e absoluta, a terra não podia ser vendida em nenhuma hipótese, apenas herdada; e devia ser mantida em arrendamento perpétuo; não podia ser transferida do cultivador hereditário para outra pessoa. Isso parece tão admirável que, ultimamente, foram feitas algumas tentativas de reinstituir a posse irrevogável, por esquemas gradativos como antiguidade no emprego (começando pelo serviço público) e “colônias de subsistência” estabelecidas pelo governo. Essas tentativas são aceitas sem que se dê conta da consequência inevitável: é o retorno da servidão. Se a relação de trabalho não pode ser encerrada pelo empregador de acordo com o contrato, ou o inquilinato não pode ser encerrado pelo proprietário quando o período de aluguel terminar, o empregado ou o inquilino também devem perder o direito de sair do emprego ou da locação. Submetidos ao “estado”, não terão nem mesmo o caráter humano que o servo possuía no feudalismo, tão opressivo quanto fosse. Não serão nada exceto peças em uma máquina.

Mas a escravidão era uma combinação monstruosa de status e contrato, a epítome da “economia mista”. A condição desigual do escravo é status, mas ele é comprado e vendido por contrato. Em teoria, o servo ainda era um homem, enquanto o escravo era um objeto.

Essa anomalia fatalmente perturbaria a consciência dos proprietários de escravos exatamente porque eles eram homens livres. Ela deixava a liberdade dependente de uma condição acidental. O argumento fácil de que o negro era escravo pela maldição de Cam não explicava o fato de que homens brancos também eram condenados e embarcados para a América para serem vendidos como escravos por crimes políticos. Assim, todo o curso da história se repetia, era encenado outra vez, diante dos olhos dos americanos. Um homem, durante seu tempo de vida, o assistiria inteiro, se se preocupasse em contemplar o que estava à vista; as teorias e os argumentos foram colocados em teste por demonstração. Voltando a olhar para a Europa, podia ver o sistema de status ainda em vigência ou gerando várias modificações. Podia distinguir a posição extrema dos homens como súditos daquele estado absoluto; eram escravos. Podia estudar a realidade da vida selvagem em seu melhor e em seu pior, contrastada com as dificuldades, dores e recompensas da civilização. Podia ver homens que haviam renunciado à civilização para adotar a selvageria, afundando no pior, em vez de alcançar o melhor. Podia ver outros que se embrenharam na natureza com a inocência de um cervo ou de um falcão, mas cujos recursos foram suficientes apenas para uma geração.

Podia também ver homens livres em livre associação, produzindo e construindo, trabalhando sem mestre e, mesmo assim, diligentemente, e relacionando-se com outros homens aproximadamente como iguais sem desordem. Surpreendentemente, a maioria dos problemas sociais trazidos da Europa não chegou a ser resolvida nem apaziguada; os problemas simplesmente evaporaram. As guerras de religião minguaram para pequenas perseguições locais. As barreiras de classe se dissolveram; e onde pessoas de várias nacionalidades se misturaram em uma comunidade, conviveram amigavelmente. Porém, como indivíduos, eles não sofreram nenhuma transformação observável; continuavam sendo seres humanos.

Evidentemente, seu comportamento e modo de associação eram viáveis e deviam ter princípios deduzíveis, intrinsecamente diferentes daqueles da Europa. A presença de escravos deu a resposta; as outras diferenças estavam tão apagadas que as duas condições possíveis ficaram completamente evidentes. Ou um homem era livre ou não era livre. E onde se havia assumido anteriormente que os homens não se adequavam à liberdade, agora se podia supor que somente a liberdade era adequada ao homem.

Durante os séculos anteriores, na Europa, várias “liberdades” foram arrancadas ou compradas da autoridade, mas tais concessões sempre foram expressas como outorgas vindas de cima, não direitos, mas privilégios. Quando a soma delas se tornava considerável, a Sociedade do Contrato podia ao menos ser imaginada. Foi imaginada e projetada no Novo Mundo. No Novo Mundo, tornou-se um fato. Finalmente, a ocasião estava madura para afirmá-la como um conceito político, sem restrições.

Os termos foram encontrados: todos os homens são dotados por seu Criador com um direito inalienável à vida, à liberdade e à busca da felicidade.

A liberdade era indivisível, era uma pré-condição. Falar em diversas “liberdades” é usar a linguagem da Europa, não da América; é abandonar o princípio básico sobre o qual foram fundados os Estados Unidos.

Mas, para o conceito de liberdade, a forma apropriada de governo ainda precisava ser criada. A falácia do anarquismo ainda não havia sido cogitada. Embora não fosse completamente claro por que algum governo era inevitável, sentia-se que era uma necessidade. O enigma dos selvagens — por que eles não tinham governo embora fossem sujeitos à fraqueza humana — teve de ser deixado sem solução, embora não tenha sido esquecido e tenha tido grande influência para confirmar a teoria da liberdade. A mudança da base europeia de governo para outra base foi feita postulando-se que os homens nascem livres. Uma vez que começam sem governo, devem, portanto, institui-lo por acordo voluntário. Assim, o governo deve ser um agente deles, não um superior. A vontade é uma função do indivíduo, logo o indivíduo tem o direito prioritário. Então, mesmo que se presuma que o governo resolve parcialmente as deficiências morais da humanidade, ainda assim ele deve ser limitado e subordinado. Se todos fossem invariavelmente honestos, capazes, sábios e bons, não haveria lugar para o governo. Todos entenderiam prontamente o que é desejável e o que é possível em determinadas circunstâncias, todos contribuiriam com os melhores meios para seu objetivo e pela participação equitativa nos benefícios resultantes e agiriam sem coação ou omissão. A máxima produção seria certamente obtida dessa ação voluntária originada da iniciativa pessoal. Mas, como os seres humanos algumas vezes mentirão, quebrarão promessas, deixarão de desenvolver suas capacidades, agirão de maneira imprudente, tomarão pela violência os bens dos outros e até mesmo matarão uns aos outros por fúria ou ganância, um governo precisa ser definido como a organização policial. Nesse caso, ele pode ser descrito como um mal necessário. Não existiria como entidade separada e não teria autoridade intrínseca; não poderia ser habilitado a agir exceto se um indivíduo infringisse o direito de outro, quando imporia as penalidades previstas. Geralmente, permaneceria como uma testemunha contratual, mantendo um penhor das partes. Como tal, a menor quantidade de governo seria a melhor. Qualquer coisa além do mínimo seria opressão.

Dessa perspectiva, os homens não são nem totalmente “nobres” nem incorrigivelmente maus, mas sim criaturas imperfeitas dotadas da fagulha divina e assim capazes de progredir, talvez no longo curso da “perfectibilidade”. Isso é essencialmente uma aplicação secular da doutrina cristã da alma individual, nascida para a imortalidade, com a faculdade do livre-arbítrio, que inclui a possibilidade do pecado e do erro, mas permite igualmente que o homem se empenhe por sua salvação, sua herança. Qualquer pessoa que não reconheça a ligação entre esses princípios deve tentar reescrever a Declaração da Independência sem referência à fonte divina dos direitos humanos. Não é possível fazer isso; fica faltando o axioma. A filosofia do materialismo não admite nenhum tipo de direito; logo, o mais opressivo despotismo jamais conhecido foi o resultado imediato do “experimento” do comunismo marxista, que postulava unicamente um processo mecanicista para sua validação.

A ideia cristã foi necessária para o conceito de liberdade. A ideia romana foi indispensável para a forma — um governo de leis e não de homens.

A questão colocada pela ausência de governo na sociedade selvagem teve de ser deixada de lado naquela ocasião, porque ninguém a reconhecia como um problema de engenharia; e ela não pode ser expressa de outra maneira. É evidentemente um problema moral, uma vez que trata da relação entre seres humanos; mas as relações específicas envolvidas são aquelas que incluem tempo e espaço. A organização de ações no tempo e no espaço constitui a ciência da engenharia.

De qualquer maneira, a tarefa imediata era determinar o modo de um governo mínimo, examinando-se e comparando-se exemplos históricos, avaliando-se o desempenho de intenções e dispositivos. Tendo-se postulado que a fonte da autoridade secular reside no indivíduo, a questão então era impedir que essa autoridade fosse usurpada por seu agente. Entretanto, um fator de engenharia foi certamente entendido — a função da propriedade privada como a base exclusiva da liberdade. Não é por acaso que o rascunho original da Declaração da Independência listava a propriedade privada como um direito inalienável do indivíduo.


1 A palavra governo, como usada aqui, significa uma organização política formal de pessoas nomeadas com funções definidas e autoridade para impor suas decisões. (N. da A.)

2 Lettres de cachet eram cartas assinadas pelo Rei da França, contendo ordens diretas, frequentemente para impor ações arbitrárias e decisões judiciais contra os quais não havia apelo. As mais conhecidas são as que condenavam um súdito à prisão, deportação ou banimento, sem julgamento ou oportunidade de defesa. (N. do T.)

3 Os teóricos ignoraram os caraíbas, cujas práticas canibais são indescritíveis. E os apaches ainda não eram conhecidos. As pessoas simplesmente estavam enjoadas de governo demais. (N. da A.)

4 O servo não era livre para passar fome. Ele tinha de passar fome preso e passava fome com frequência. Fomes eram recorrentes até em regiões férteis. Os Estados Unidos são o único país da história onde nunca houve fome desde que se tornaram uma nação. (N. da A.)

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