sábado, 14 de setembro de 2013

A Economia da Sociedade Livre

O Deus da Máquina, capítulo X
A Economia da Sociedade Livre
Isabel Paterson

A história dentro das nações consiste na luta do indivíduo contra o governo; e, entre as nações, da economia livre contra a economia fechada. São dois aspectos do mesmo processo. A vida primitiva da humanidade é uma fase ímpar da história natural, ocupada pelo esforço do homem em dominar seu ambiente, em vez de simplesmente adaptar-se a ele. O uso do fogo, das armas de caça e a domesticação de animais pertencem a esse tipo de esforço. Quando o homem obteve sucesso nesses contatos diretos, o próximo passo foi começar a mudar o ambiente, pelo cultivo do solo, pela construção de abrigos permanentes e locais de armazenamento e, finalmente, pela invenção de mecanismos para a conversão de energia; essas atividades exigem organização no espaço-tempo, pela delegação de autoridade. Mas como essa autoridade só pode ser proibitiva, o problema é manter essa agência repressiva subordinada à faculdade criativa. A dificuldade é enorme; é necessário um entendimento avançado dos princípios de engenharia para a solução desse problema. Pela falta de opções, desenvolveu-se o sistema de classes, uma ordem que aprisiona toda a comunidade,1 obstrui a energia na fonte e a limita a um circuito local. O pensamento original, portanto, torna-se um crime, porque liberta energia. Mesmo numa cultura elevada que possua um sistema de classes, o princípio repressivo mostra seu caráter ao impor a pena de morte contra opiniões não autorizadas, chamadas de heresia ou traição.

Vemos esse sistema retornando hoje, primeiro gradativamente e depois por ordens generalizadas que impedem o movimento de pessoas ou as tangem para campos de concentração. Antes da guerra mundial de 1914, essa condição medieval de aprisionamento geral havia sido praticamente abandonada e meio esquecida em toda a parte, exceto na Rússia Czarista, onde subsistia uma mistura de barbarismo, absolutismo e anarquia. As nações mais civilizadas não exigiam passaportes, mas os emitiam a pedido de seus cidadãos simplesmente porque poderiam ser exigidos nessas regiões atrasadas. Os ventos reacionários em direção ao governo do status também se percebem pelo persistente descrédito da razão e pela corrupção deliberada da linguagem, para impedir a comunicação.2

O mau uso da linguagem é o meio pelo qual o culto marxista do comunismo causou o dano mais grave à inteligência. Existe um obstáculo natural ao progresso no pensamento abstrato, que muitas vezes atrasou a pesquisa racional: um conceito errôneo ou uma teoria errônea podem ser expressos em termos que incorporam o erro, de maneira que o pensamento fica bloqueado até que as palavras enganosas sejam descartadas do contexto dado. A antiga classificação de terra, ar, fogo e água como “elementos” era um erro desse tipo, que teve de ser abandonado antes que os elementos pudessem ser identificados e denominados como tais. A teoria dos elementos era uma especulação correta e perspicaz; mas os fenômenos designados estavam errados. Por outro lado, a noção dos quatro “humores” corporais é uma teoria errônea que atrasou gravemente a ciência da medicina. De maneira semelhante, a teoria cartesiana dos “vórtices” e a suposição da existência de um tipo de essência do fogo ou do calor chamada “flogisto” foram obstáculos verbais à extensão do conhecimento da física. São obsessões infelizes da linguagem, que os mais agudos intelectos podem criar nas fronteiras do desconhecido. Como não podem ser refutadas até que o conhecimento se amplie e, ao mesmo tempo, tendem a impedir o avanço, essas teorias são um obstáculo muito maior do que afirmações que são simples e demonstravelmente falsas; porém, ocorrem pela própria natureza das coisas e não são imunes à razão no longo prazo.

Mas a terminologia marxista reduz a expressão verbal ao nonsense literal com base nos fatos e no uso. Não é uma linguagem obviamente inarticulada, nem o nonsense humorístico que algumas vezes elucida uma dificuldade intrínseca de expressão ou indica uma falha no conhecimento. É um arranjo de palavras de acordo com as regras da gramática, no qual cada palavra tomada em separado possui um significado habitual. Mas, na sequência dada na frase, o arranjo não significa absolutamente nada. Por exemplo, afirmemos que: “Um triângulo isósceles é verde.” As várias palavras são de uso comum e, como partes de um discurso, estão colocadas numa ordem apropriada; mas a afirmação completa é absurda. Isso já é suficientemente ruim, mas seria bem pior se alguém falasse sobre a “redondeza do triângulo”. A frase “ditadura do proletariado” é como a “redondeza do triângulo”, uma contradição em termos. Não tem significado. A teoria do “materialismo dialético” é um abuso dos termos do mesmo tipo que a afirmação de que um triângulo isósceles é verde. Ela postula uma sucessão inevitável de uma tese produzindo seu oposto ou antítese e a abstração fissípara3 tornando a uni-las numa síntese. Como nada na natureza passa realmente por tal transformação grotesca, debates sem fim e sem sentido podem ser realizados sobre quais relações sociais exibem em várias fases uma tese, antítese e síntese, cada uma supostamente “produzindo” seu “oposto” e combinando-se novamente em outra coisa, como o Squidgicum Squee4 que engole a si mesmo. Tolos podem argumentar solenemente que um triângulo isósceles não é verde, mas azul, ou que um triângulo isósceles verde produzirá um círculo azul e os dois então se sintetizarão numa vaca púrpura ou num romboide; ainda assim, essas afirmações são vazias. Essa é especificamente a linguagem dos tolos; porque a deficiência que a palavra tolo indica é a incapacidade de entender categorias e a relação das coisas e das qualidades.

Marx era um tolo com um vasto vocabulário de palavras longas. Mas ele tinha de fato uma necessidade não reconhecida de adotar a “dialética” ilógica de Hegel. Sendo um pedante parasita, inepto e desonesto, queria fazer reivindicações contra a “sociedade” apenas como consumidor. Abraçou o comunismo porque nenhuma outra teoria, nem mesmo no papel, poderia prometer “a cada um de acordo com suas necessidades”. Somente um suposto “estoque comum”, para o qual toda a produção fosse expropriada, poderia ser imaginado como disponível para o não produtor pegar dali o que quisesse. Mas isso é pura imaginação, o sonho do incompetente e do vicioso ou da mente infantil virgem de produção. Por outro lado, Marx foi confrontado com o fato histórico de que no comunismo, como regra geral, a produção nunca ultrapassa o nível da mera subsistência. Como podia imaginar produção abundante no comunismo? Apenas supunha que os “meios de produção”, levados a um alto nível de produtividade pela propriedade privada e pelo livre empreendimento individual, que é o capitalismo, poderiam ser expropriados e continuar funcionando igualmente, administrados pelo regime sucessor comunista. É fato que nada parecido jamais aconteceu; a tentativa mais próxima do comunismo como norma social sempre foi muito primitiva; mas, se ele imaginasse primeiro o “materialismo dialético”, e então arbitrariamente chamasse o capitalismo de tese; e designasse os que não têm propriedade como antítese proletária, poderia depois afirmar que os dois se “fundiriam” pelo conflito e produziriam uma “síntese”, que teria de ser o comunismo se ele assim dissesse. Já que isso nunca aconteceu, Marx podia dizer que aconteceria inevitavelmente no futuro. Podia também, com muita facilidade, chamar de “sistema de classes” a sociedade capitalista de contrato, embora ela positivamente não fosse isso.

A teoria de luta de classes de Marx é puro nonsense desde sua definição; não se refere nem a classes nem a luta, se está relacionada ao “capital” e ao “trabalho”. É fisicamente impossível o “trabalho” e o “capital” guerrearem entre si. O capital é a propriedade; o trabalho é o homem. Tudo o que pode ocorrer são tumultos esporádicos e, talvez, a destruição de propriedade, porque as próprias armas de guerra numa sociedade industrial só podem ser produzidas e mantidas pela combinação do “capital” e do “trabalho”.

Numa verdadeira sociedade de classes, as classes são as diversas camadas de uma ordem estratificada; classe não é nada mais que a posição relativa horizontal. Portanto, uma classe não pode desalojar outra, nem aboli-la por sua ação como classe. Se e quando as classes existem, as pessoas que ocupam uma dada posição relativa pertencem à classe denominada. É concebível que as partículas possam ser transpostas, mas as classes permaneceriam como antes — o que quer que esteja em cima está em cima, e o que quer que esteja embaixo está embaixo. Embora invasores possam depor os membros de uma classe originalmente mais alta e ocupar a posição, nada disso alteraria o sistema; e tal invasão não é uma luta de classes.

Mas, como o sistema de classes é imposto sobre a energia criativa para restringir seu fluxo, é inevitavelmente sujeito a distúrbios internos. A energia pode causar uma clivagem entre as camadas mais altas e mais baixas, que fará com que elas entrem em oposição violenta; essa é uma genuína luta de classes e ocorreu com frequência.

Todavia, como tal, uma luta de classes não pode produzir mudanças e nunca o fez. Mesmo a transposição de pessoas como partículas de uma classe para outra raramente ocorreu por meios violentos. As repetidas revoltas ou jacqueries na sociedade feudal eram abortivas por natureza — já que eram conflitos reais de classe.

Deduz-se — pela afirmação de que a pólvora aboliu a Idade Média — que o camponês era impotente contra o cavaleiro. Ao contrário, o cavaleiro era desesperadamente vulnerável ao camponês. Um homem em uma armadura, dependendo de um cavalo também em uma armadura para sua mobilidade, podia ser colocado fora de ação por um ou dois homens velozes com foices e forcados. O cavalo seria paralisado e o cavaleiro derrubado. O cavaleiro mal conseguia montar sem ajuda; no chão, era desajeitado; se caísse, não conseguiria se levantar de um salto. Uma tartaruga humana, o cavaleiro estava equipado apenas para encontrar outro cavaleiro. E, economicamente, não era menos dependente. Sua armadura tinha de ser forjada pelo ferreiro, sua comida e suas roupas fornecidas e seu cavalo sustentado pelo trabalho do camponês. O cavaleiro não conhecia nenhuma arte útil e era inteiramente um produto final de um sistema rígido. Se o sistema fosse interrompido por pouco mais que um tempo muito curto, o cavaleiro fatalmente pereceria.5

E, em muitos casos, as jacqueries obtiveram vitórias imediatas pela violência. Em diversas localidades, os camponeses massacraram seus senhores e tomaram seus castelos, saqueando-os e destruindo-os. Porém, não puderam ir além e foram dominados novamente; nada poderia advir dessas revoltas exceto repressão mais severa. Não era possível induzir a maioria dos camponeses a elevar uns poucos dentre eles à posição de senhores, e não era possível elevá-los todos, porque a ordem da cavalaria precisava de camponeses para sustentá-la. Agindo como uma classe, os camponeses não podiam ter outra coisa em que se basear, exceto o princípio de classes, para reinstituir a sociedade. Portanto, as jacqueries estavam destinadas a serem esmagadas, pelos mesmos princípios de classe que uniu os camponeses em rebelião.

Quando a sociedade de contrato começou a emergir novamente e a dissolver o sistema de classes, membros de todas as classes e grupos lutaram em ambos os lados, com indivíduos tomando parte contra a ordem ou a favor dela. Na Revolução Francesa, a mais obstinada defesa do antigo regime foi feita na Bretanha rural, por camponeses da Vendeia, obedecendo a um comandante camponês. Sua posição era insustentável, porque as armas de uma sociedade de classes pertencem a um modo de conversão de energia inferior ao de uma sociedade de contrato. Essa é a importância da pólvora; é o resultado de uma economia livre, que não proíbe a pesquisa e a invenção. É um instrumento, um efeito, não uma causa.

A invenção do maquinário produtivo e seu uso contínuo só são possíveis numa economia livre, sendo coerentes com seus axiomas em relação à energia. O equivalente da ordem feudal na configuração de uma máquina seria carregar o motor com peso morto, de maneira que ele não pudesse funcionar até que parte desse peso fosse removida; e ajustar o freio para que fosse aplicado sempre que o motor partisse, ou melhor, imediatamente antes da partida. Provavelmente, a noção popular atual da economia medieval seja que as pessoas comuns eram obrigadas a trabalhar exaustivamente. Sem dúvida, eram submetidas a trabalho forçado e seu trabalho era executado por métodos exaustivos, lentos e pouco produtivos; mas a maior dureza era que eles não tinham permissão para trabalhar de outra maneira. O trabalho podia ser punido como um crime. Por exemplo, era ilegal construir, possuir ou usar um moinho manual em casa. (O mesmo tipo de penalidade foi mais tarde reintroduzido com o imposto sobre quotas agrícolas e o imposto de processamento.) Mesmo o carro de boi medieval era tão mal projetado que, quando o animal o puxava, o peso de alguma maneira o sufocava. Assim era com os homens; a competência e a poupança eram penalizadas. Aquele que arava a terra não podia ter esperanças de jamais possuí-la; benfeitorias eram revertidas ao senhor e havia grande chance de causarem obrigações adicionais. Além disso, quando morria um servo, o senhor tomava parte dos bens e dos animais, como “melhor gado”6, sempre tomando o melhor, não importando quão pouco sobrasse para a viúva e os filhos. (A reintrodução das obrigações de morte, impostos sobre transmissão de bens, é um retorno à obrigação medieval do “melhor gado”. Incidindo inicialmente apenas sobre grandes patrimônios, está rapidamente avançando sobre o menor fragmento de herança. A obrigação do “melhor gado” era reconhecida como o símbolo do servo.)

Na sociedade feudal, quando os homens falavam sobre direitos ou liberdades, reivindicavam esses direitos por licença ou costume, sempre com referência a uma concessão permissiva no passado, que deviam provar não ter perdido por deixarem de cumprir com suas obrigações financeiras ou de trabalho. O princípio era de que os homens deviam pagar pela licença para trabalhar ou para ir de um lugar para outro. Por último, a restrição ao comércio limitava os materiais disponíveis; as pessoas não tinham muito com que trabalhar.

Quando o elemento produtivo finalmente reconquistou alguma liberdade natural, lançou-se como que numa orgia de trabalho, satisfazendo uma ânsia anteriormente frustrada. Homens livres exigiram de si mesmos muito mais que qualquer senhor jamais foi capaz de exigir de seus servos, e produziram três vezes mais com trabalho manual, enquanto também desenvolviam maquinário produtivo. Essa explosão inédita de energia foi benéfica pelo aumento de bens e de conhecimento. Mas ocorreu na Europa enquanto parte da estrutura aristocrática permanecia na posse de terras. Bens e trabalho estavam no mercado livre, ou seja, na sociedade de contrato; grande parte da terra não estava lá, permanecendo sob morgadio7 e arrendada por prazos longos. O trabalhador sem terra não tinha onde se amparar e foi pego, por assim dizer, entre um automóvel e uma muralha, ou jogado contra uma rocha por uma corrente impetuosa. O assalariado nunca conseguiu uma base sólida na Europa. A “economia mista” invariavelmente inclui as características onerosas tanto do status como do contrato, pioradas pela combinação. No campo da indústria, durante o início da era industrial, indivíduos excepcionalmente astutos, vigorosos e capazes estabeleceram o ritmo para os menos capazes e os mais fracos. Um empregador que começou exigindo muito de si mesmo esperava um empenho extremo dos trabalhadores que contratava. (Presumia-se que a margem de compensação estava nas chances do futuro — mas o trabalho era feito no presente e o empregador não podia dar garantias sobre o futuro.) Além disso, as horas de trabalho eram um remanescente da economia medieval e rural, em que os homens trabalhavam da aurora até a noite; mas o ritmo medieval era comparativamente lento, com períodos de inatividade e tantos feriados quanto os arrendatários e servos conseguiam por meio da Igreja. A economia livre acelerou o ritmo e cortou feriados, mas manteve o longo dia de trabalho, até mesmo estendendo-o pela iluminação artificial. Mas a aceleração e os salários baixos ocorreram em parte por pressão da aristocracia, o que restava do status. Na sociedade feudal plena, os senhores tinham de manter as forças combatentes e pagar outros custos políticos com recursos obtidos localmente; e o rei vivia às suas próprias custas, pela produção de suas propriedades rurais. No período de transição, o exército e a verba designada à família real se tornaram obrigações nacionais, mantidas pela taxação geral, enquanto a nobreza não apenas ocupava os cargos lucrativos, mas tirava recursos da indústria pelo aluguel de terras, sem liberar terra ao mercado para melhorias pela construção competitiva. Lorde Shaftesbury8, o famoso reformador, admitiu privadamente que acusou os industriais, embora soubesse que a culpa era igualmente dos donos de terra, porque precisava de um partido para aprovar suas leis. O que ele não percebeu é que também estava agindo como um aristocrata, porque as leis de “reforma” que criou, embora bem-intencionadas, eram leis de status numa nova roupagem.

A pequena nobreza também abusava de sua posição, apoderando-se das terras comuns e cercando-as. Essas terras haviam dado aos aldeões um pouco de independência, uma base física. Em geral, embora escarnecesse da busca de lucro por parte da indústria, a pequena nobreza nunca deixava escapar um centavo, viesse do aluguel de um cortiço ou da cabana de um pastor ou mesmo do subsídio de alimentação de um soldado.

Assim, a classe alta absorvia a maior parte dos benefícios materiais da emergente sociedade de contrato e, ao mesmo tempo, se livrava de suas principais obrigações. O único bem que resultou ao trabalhador médio, num primeiro momento, foi que a porta se abriu; e a América existia. (Se a América não existisse, é impossível saber se a porta seria ou não arrombada.) O trabalhador livre podia mudar de emprego, de lugar de residência e até mesmo de país, se tivesse coragem para essa aventura.

Mesmo assim, no período de um século, essa possibilidade foi suficiente para, com uma parte das pessoas aproveitando-se dela, elevar o nível dos salários e das oportunidades, da limpeza e da conveniência, para um padrão que teria parecido fabuloso ao senhor medieval. As horas de trabalho foram da mesma maneira encurtadas; o esforço foi transferido às máquinas; a liberdade produziu frutos. Agora, com o atual decréscimo de liberdade, as horas estão se alongando até na América; a produção está diminuindo; e a aceleração está sendo imposta outra vez sobre os homens, em vez das máquinas.

O impasse de classe pode ser quebrado de duas maneiras. Ou retornando-se pelo barbarismo (liderança) à selvageria ou avançando-se para a organização política apropriada à sociedade de contrato. Mas o avanço não pode ser feito até que uma estrutura seja erguida para acomodar o mecanismo, incluindo o tipo de controle que é usado na mecânica de motores por vários dispositivos de segurança, sejam freios, reguladores ou estabilizadores. A característica essencial desses mecanismos é que eles não agem (e não podem agir) até que surja a real necessidade. São projetados para funcionar apenas se o motor ou a transmissão funcionarem mal. Um freio pneumático ferroviário trava as rodas se o engate se soltar; uma válvula de segurança abre no ponto de perigo da pressão do vapor; um fusível queima com uma sobrecarga de corrente, salvando os circuitos; um giroscópio é neutro enquanto o avião está em equilíbrio. O que devemos ter em mente é que esses controles não são preventivos, mas corretivos; não são primários, mas secundários.

A lei de contrato é o mesmo tipo de mecanismo na organização política. A restrição legal não ocorre antes que indivíduos tenham feito um contrato voluntário e uma das partes tenha descumprido seus termos. A lei contratual não tem autoridade primária ou jurisdição, a menos que seja invocada pelo indivíduo; então, ela pode tomar conhecimento apenas do ponto em questão, que é determinado pelo acordo anterior entre os indivíduos. Incontestavelmente, não é nada além de uma agência; a iniciativa cabe exclusivamente ao indivíduo.

É o único método de organização que dá à faculdade criativa e aos processos produtivos resultantes sua liberdade inerente e necessária. O instrumento político deve ser de caráter secundário.

Mas qualquer tipo de organização implica em uma base permanente. Ela deve possuir uma localidade fixa para sua estrutura. Isso é verdade até para mecanismos expressamente projetados para mobilidade; um avião precisa de uma base tanto quanto um antiquado moinho. A base do avião é o campo de pouso; mas, numa visão mais ampla, o avião é parte da linha de transmissão de um sistema de energia de circuito muito longo, que se embasa na propriedade privada como instituição. A propriedade privada é necessariamente individual; nem a propriedade grupal nem o comunismo estatal podem gerar um potencial de energia tão elevado. As nações coletivistas de hoje (Rússia, Itália, Alemanha, Japão) são aviões funcionando com a energia extraída do fim de um circuito longo de energia gerado pelas economias livres no passado recente.

O problema da estrutura para a organização política atrasou a fundação de uma Sociedade de Contrato plena em milhares de anos. A primeira estrutura política que os homens foram capazes de encontrar ou desenvolver foi a da aristocracia. Embora deva ter começado como uma extensão da família (não justificada na natureza), ela foi posteriormente tratada como validada por um conceito ou teoria que tinha ainda menos relação com os fatos. O nobre passou a ser considerado, ou a se considerar, uma espécie superior, alçado à sua posição por uma diferença semimística, semifísica em relação ao camponês ou ao plebeu, uma diferença de “sangue” confirmada por ordenação divina. A biologia não conseguiu descobrir nenhuma evidência para apoiar essa teoria; embora uma família nobre possa ter sido fundada por alguma pessoa de talento excepcional, seus descendentes retornam à média. Além disso, a linha era rompida com frequência e o sangue misturado com o de pessoas saídas das classes supostamente inferiores. Finalmente, aristocracias foram despojadas de sua posição e nenhuma divindade mística interveio em favor delas. É impossível definir, em termos racionais, exatamente em que consiste a qualidade aristocrática. Aquele epítome da categoria, o Duque de Saint-Simon, que “acreditava” fanaticamente nela, descreveu muitos de seus companheiros nobres como canalhas, imbecis, lunáticos, covardes, mentirosos, bajuladores, alcoviteiros, imprestáveis e libertinos, deformados, feios, medíocres, desleais e, de outras maneiras, inúteis ou perniciosos. Mesmo assim, sua fé permaneceu inabalada.

E havia um fato além da fantasia. Embora estivesse obsoleta na França quando observada por Saint-Simon e, por tanto, duplamente corrompida, a aristocracia teve uma utilidade prática em seu tempo. Ela delimitava as bases fixas para a estrutura política, pela soberania local de subdivisões territoriais. Os títulos originais, privilégios e incumbências dos grandes nobres estavam vinculados a áreas determinadas de terra e eram inseparáveis delas.

Não foi a solidariedade de classe da aristocracia que permitiu que ela servisse de estrutura, mas a separação das unidades, um sistema de descentralização. As amargas acusações contra as aristocracias eram bem reais; a ordem era opressiva não apenas por abuso, mas em princípio. Embora os autores de romances medievais possam embelezar o quadro em retrospecto, o senhor tinha o direito de extorquir dinheiro para permitir que uma garota se casasse ou que um menino aprendesse a ler; podia tomar uma vaca da viúva enlutada; um direito costumeiro do senhor que arrendava terras era recolher o esterco dos animais do arrendatário para usar como adubo. A aristocracia bloqueava a luz e o ar. Existia para causar ódio, a expressão emocional da energia frustrada. O mecanismo de governo que ela usava (a lei de status) é o da embreagem preventiva. Sua atmosfera social é tingida pelo desespero; durante a Idade Média, quando a aristocracia predominava, os homens tinham visões de morte e do inferno e do fim do mundo, miséria aqui e no além. Mas toleravam calados porque não sabiam o que colocar em seu lugar. Se derrubassem os pilares da estrutura, o teto cairia sobre eles. Tinham de ter alguma forma local de resistir tanto aos bárbaros como à burocracia centralizada que os havia entregado aos bárbaros. A estagnação completa só era evitada pelo fluxo de energia canalizado pela sociedade modificada de contrato da Igreja e por algum comércio; e não é por acaso que o comércio era feito sob o abrigo da catedral. A Igreja também preservou o aprendizado, uma vez que a palavra escrita é indispensável para um sistema de energia de circuito longo.

Assim, as forças de energia estática e cinética produziram um arranjo incômodo, embora em constante perigo originado de dentro e de fora.




1 Tão recentemente como no reino de Luís XIV na França, era aconselhável a um nobre que estivesse na corte pedir permissão até mesmo para ir para sua propriedade, porque corria o risco ser aprisionado pela vontade do rei, por tempo indeterminado, sem acusação ou julgamento, por lettre de cachet. Ele também poderia ser proibido de deixar sua propriedade ou de retornar a Paris. (N. da A.)
2 Isto foi escrito seis anos antes de George Orwell publicar 1984, em que apresenta os termos “duplipensar” e “novilíngua”. (N. do T.)
3 Fissíparo: que se reproduz pela fragmentação do próprio organismo. (N. do T.)
4 Squidgicum Squee: criatura do folclore dos lenhadores americanos do século 19. Muito tímido, não queria jamais ser visto. Ao ouvir ou ver alguém se aproximando, respirava fundo e engolia a si mesmo. (N. do T.)
5 Em tempos recentes, tem sido dito que a revolução se torna impossível quando um governo tem tecnologia de máquinas a sua disposição, porque a população desarmada é impotente contra armas de alto poder. Ao contrário, o exército equipado tecnologicamente depende absolutamente do livre funcionamento ininterrupto da ordem civil para suas armas e suprimentos. Aviões e tanques são ainda mais imediatamente dependentes da produção fabril que o cavaleiro era do forjador. E a produção de máquinas não pode ser mantida eficientemente por trabalho forçado. (N. da A.)
6 Em inglês, heriot. Era o direito de um senhor na Europa feudal de tomar o melhor cavalo e/ou roupa de um servo, quando este morria. Surgiu da tradição do senhor emprestar um cavalo ou armadura ou armas de combate, de maneira que quando o servo morresse o senhor reivindicaria legitimamente sua propriedade. (N. do T.)
7 Em inglês, entailment. Imóvel herdado que não podia ser vendido, legado livremente ou alienado de nenhuma maneira pelo proprietário, mas que devia passar, por lei, para os seus herdeiros legais quando ele morresse. (N. do T.)
8 Anthony Ashley-Cooper (1801 – 1885), 7º Conde de Shaftesbury, foi um político e reformador social inglês. Foi parlamentar entre 1826 e 1851. Propôs leis para tornar mais humano o tratamento de doentes mentais, proibir o trabalho infantil, limitar a jornada de trabalho, proibir o trabalho de mulheres e crianças em minas de carvão e de crianças como limpadores de chaminés. (N. do T.)

Nenhum comentário:

Postar um comentário