domingo, 1 de setembro de 2013

A Sociedade de Status e a Sociedade de Contrato


O Deus da Máquina, capítulo V
A Sociedade de Status e a Sociedade de Contrato
Isabel Paterson

O sentido do passado, que é uma combinação de memórias, não é uniformemente contínuo. Olhando para trás, há uma quebra onde o conhecimento em primeira mão se fragmenta em material secundário de boatos e, num terceiro grau, a crença é extraída do registro escrito. Esse registro se classifica em duas divisões principais, que se referem a pessoas muito parecidas conosco e a pessoas que quase poderiam ser de outra espécie, tendo motivos que se tornaram indecifráveis ou incompreensíveis para nós. Dessa gente diferente, certas nações que viveram em eras e lugares muito distantes entre si parecem ser do mesmo tipo; as rígidas figuras hieráticas dos egípcios, do período bizantino e dos incas nos parecem semelhantes. A Idade Média é enigmática, não por ser obscura — já que partes imensas da história humana sumiram de vista — mas porque ocorreu entre intervalos luminosos, como se tivesse acontecido enquanto estávamos dormindo. Esses golfos de tempo não podem ser medidos pelo quadrado da distância. Encontram-se entre dois conceitos antitéticos de humanidade, da relação entre o indivíduo e o grupo, dois métodos de associação. A distinção foi estabelecida claramente por Sir Henry Maine1, com os nomes de Sociedade de Status e Sociedade de Contrato.

O axioma da Declaração da Independência, de que todos os homens são dotados por seu Criador com o inalienável direito à vida, provavelmente é lido hoje por muitos americanos como um truísmo que jamais poderia ser negado. É o contrário: essa foi a primeira vez em que esse axioma foi declarado como o princípio político de uma nação. É o postulado primário da Sociedade de Contrato.

Na Sociedade de Contrato, o homem nasce livre e toma posse de sua herança com a maturidade.

Por esse conceito, todos os direitos pertencem ao indivíduo. A sociedade é formada por indivíduos em associação voluntária. Os direitos de cada pessoa são limitados apenas pelos iguais direitos de outra pessoa.

Na Sociedade de Status, ninguém tem nenhum direito. O indivíduo não é reconhecido; um homem se define por sua relação com o grupo e presume-se que existe apenas por permissão. O sistema de status é privilégio e submissão. Pela lógica básica da Sociedade de Status, um membro do grupo que não cometeu nem mesmo um delito leve pode ser morto pelo “bem da sociedade”2. O Japão é uma Sociedade de Status; até a metade do século dezenove, constituía, nos mínimos detalhes, um exemplo completo e inigualado dessa ordem social.

Na Sociedade de Status, do berço ao túmulo, todos devem obedecer; a única exceção, pela mesma lógica, é um governante cuja vontade é suprema e que, portanto, está livre de qualquer obrigação. Ele não tem como cometer injustiças.

A lógica do status ignora fatos físicos. As funções vitais de uma criatura viva não esperam por permissão e, a menos que uma pessoa seja capaz de agir por si própria, não pode obedecer a um comando. A Sociedade de Status acredita de ter poder de vida e morte; mas, na realidade, apenas pessoas tem o dom da vida. A crença da Sociedade de Status se baseia de fato no poder do grupo de infligir mortes. Em consequência disso, as expressões extremas e características de dois notáveis exemplos de Sociedade de Status eram mortuárias: sacrifício humano como ritual dos Astecas; e as pirâmides do Egito, que eram tumbas.

Entretanto, em sociedades formalmente organizadas, pode haver uma mistura de status e contrato. (A razão pela qual foi possível imaginar que o poder da morte deveria ou poderia determinar o princípio de associação é importante e será discutida depois.) A República Romana se destacava por uma divisão quase perfeita entre contrato e status, meio a meio. Politicamente, incluía uma maior base contratual que qualquer estado anterior ou contemporâneo dela; muito mais que as democracias gregas, já que limitava o âmbito do poder político. No Império, a administração da lei por uma autoridade central e os poderes outorgados ao imperador tendiam para o status. O cidadão parou de participar ativamente do pensamento político. Os homens têm dificuldade de entender aquilo de cuja elaboração ou execução não participam. Quando os selvagens conseguiam rifles, eles os usavam. Mas não possuíam a compreensão dos princípios mecânicos e do contexto industrial que o mais ignorante dos homens brancos tinha como certos. Se o suprimento de rifles dos homens brancos cessasse, os selvagens não conseguiriam fabricar nenhum; e, nesse meio tempo, sua habilidade para fazer arcos se deteriorava. Com a lei imposta por Roma, era improvável que as nações submetidas aprendessem o autogoverno.

Enquanto o Império Romano desmoronava lentamente, como não havia uma nação sucessora capaz de assumir seu lugar resolvendo a equação espaço-tempo, a responsabilidade política retornou para as comunidades separadas. Apareceram combinações paliativas e variações. O Império se dividiu em dois. O Império do Oriente retrocedeu para o antigo hábito regional de despotismo temperado com anarquia, mas ainda com a sombra da lei romana. Enquanto isso, a Europa, o Império do Ocidente, desenvolveu um padrão geral de status com exceções parciais, mas com a estrutura mais civilizada e humana possível dentro do status, porque construída sobre a família monogâmica e sob a égide moral do cristianismo. A Sociedade de Status trabalha em marcha mais lenta que a Sociedade de Contrato, com um potencial de energia mais baixo e, portanto, tende a divisões políticas menores; mas a unidade familiar tem grande duração e estabilidade quando a estrutura política formal é sacudida ou decai. Pode sobreviver a repetidos desastres, como uma invasão esporádica, porque os laços familiares são persistentemente reatados na ordem da natureza. Em termos de energia — não como uma figura de linguagem, mas literalmente — a família é um pequeno dínamo completamente equipado com seu próprio circuito apropriado, que gera e usa energia, inclusive para manutenção. Uma vez que este livro é um estudo do fluxo de energia e da natureza do governo enquanto mecanismo, o aspecto relevante do cristianismo aqui é a organização temporal da Igreja.

A Idade Média é quase um vazio para nós porque qualquer potencial de energia em uso tem uma equação espaço-tempo traduzível em termos dos nossos sentidos físicos. Com um alto potencial, podemos “ver” ou “ouvir” através da distância e do tempo, por comunicação veloz e notação permanente. O baixo potencial, que é tudo o que a Sociedade de Status consegue acomodar, restringe nossa visão a um raio curto; e como a Sociedade de Status resiste a mudanças, seus registros comumente são escassos, com o efeito curioso de não serem datados. Ela usa uma cronologia diferente da Sociedade de Contrato: uma cronologia local que marca o tempo por gerações ou pelo ano de um reino, em vez de usar um ponto no tempo sideral, marcado por um evento determinado. O resultado é que mesmo as mais avançadas culturas de status, como a egípcia, nos dão a impressão de tempo aprisionado.

Mas a Igreja usava o tempo sideral. Por causa de seu contexto histórico, costuma-se considerar que a Igreja era idêntica à sociedade medieval em sua organização. Não era. Ao contrário, era o elemento “não status” na Idade Média, sendo essencialmente um sistema de contrato. Talvez isso não seja percebido imediatamente porque sua forma de contrato era geralmente indissolúvel; um acordo feito voluntariamente, mas obrigatório por toda a vida. Entretanto, era um contrato e determinava a função temporal da Igreja como o canal de energia excedente para a sociedade secular de status conhecida como feudalismo.

A produção sob o feudalismo era comparável a tirar água de um poço num pátio. Quase tudo o que era produzido era consumido imediatamente, no mesmo lugar, e quase tudo o que era consumido tinha de ser produzido imediatamente, no mesmo lugar. Ainda assim, é difícil manter as nascentes de energia humana vedadas de tal maneira que não haja nenhum transbordamento, nenhum excedente. Nada pode fazer isso, exceto o estado absoluto — uma laje de pedra.

A energia fluía para dentro e através da Igreja porque a Igreja proporcionava o único meio de emancipação do status e, portanto, uma liberação do talento individual. Na sociedade secular, o filho era confinado à profissão do pai, independentemente de sua capacidade. Na Igreja, o filho de um camponês poderia se tornar um erudito, um soldado em ordens militantes, ou até mesmo um príncipe da Igreja; podia administrar uma abadia se tivesse inclinações executivas, ou tornar-se um núncio apostólico, ou trabalhar simplesmente num ofício do qual gostasse. Se quisesse, o filho de um nobre podia escolher a vida contemplativa, ou ser um jardineiro, ou um pedreiro, sem se rebaixar. Mas, acima de tudo, na Igreja um homem podia mover-se e agir além do estreito domínio no qual nasceu. Na vida secular, um camponês andando numa estrada pública, se estivesse fora dos limites, podia ser preso por estar longe de casa sem permissão; a acusação contra ele era sair por aí como “um homem sem senhor”. (Prisão por “vagabundagem” em tempos modernos é um anacronismo totalmente injusto, um resquício do feudalismo; vagabundagem não significa outra coisa além de viajar.) Certamente, os homens na Igreja estavam obrigados à obediência e eram impedidos de se casar; mas não estavam presos a um lugar ou a uma tarefa por nascimento; tinham uma escolha inicial; e os assuntos da Igreja eram mundiais, envolvendo viagens e permitindo promoções. A forma da sociedade secular é visível em um uso para o qual a Igreja direcionou o excedente de energia: a direção ascendente das grandes catedrais. Mas o tamanho e a magnificência das catedrais são o resultado do mecanismo lateral da Igreja, pelo qual ela pôde acumular capital líquido para grandes empreendimentos; e sua continuidade no tempo como uma pessoa jurídica, para realizá-los até a conclusão. Era o único sistema de longo circuito e grande capacidade para transmissão de energia. Por essa razão também, lutaram-se as grandes guerras da Europa cristã sob a bandeira da Igreja, nas Cruzadas.

Como uma organização extraterritorial com autoridade centralizada, a Igreja funcionava exatamente pelo mesmo mecanismo que o Império secular. A atração das partículas ocorria pela filiação de unidades familiares “na casa da fé”. Com isso, a Igreja era capaz de encontrar a resistência para a necessária ação recíproca. O impulso separatista centrífugo era agora exercido pelas monarquias ascendentes, no lugar das antigas províncias. A Igreja recriou um mecanismo de controle ao eximir o clero da jurisdição secular e permitir que os leigos apelassem à lei canônica em diversos casos que podiam surgir entre a autoridade secular e os indivíduos, mesmo que servos. (Os feriados, por exemplo, eram declarados pela Igreja.) A Igreja, sediada em Roma, era assim capaz de manter a Europa unida ao colocar os senhores feudais na linha, assim como o Império fez antes, ao permitir que o indivíduo (em sua condição de cristão ou de cidadão) resistisse ao seu governo secular. Para garantir-lhe uma base, a Igreja reconhecia a propriedade privada como um direito divino, fazendo dela um artigo de fé na doutrina cristã. Se um duque ou um rei se tornasse recalcitrante, a Igreja podia excomungá-lo, liberando assim seus súditos de seus deveres para com ele; e se isso não fosse suficiente para trazê-lo à razão, como último recurso a Igreja podia baixar um interdito sobre seu domínio. O resultado disso é que a Igreja tinha condições de causar uma revolta negativa, uma desobediência passiva à autoridade secular, o que tinha exatamente o mesmo efeito na garantia de ação recíproca do mecanismo administrativo que a possibilidade de rebelião espontânea das províncias tinha no arranjo imperial.

Num olhar superficial, pode passar despercebido que esse era o mesmo princípio que havia sido desenvolvido pela República, por meio de uma agência política definida. Como uma proposição da Física, consiste na relação entre energia e massa. A propriedade da massa é a inércia. Em Política, a inércia é o veto. Uma função ou fator só pode ser encontrado onde está. Nenhum plano ou édito pode estabelecê-lo onde não está. O tamanho limitado e a conexão direta do mecanismo da República permitia que os tribunos da plebe fossem investidos do poder formal de veto. Quando esse era o único instrumento político específico que os plebeus tinham, os tribunos da plebe conseguiram sustentá-lo contra o Senado. Em uma ocasião, os tribunos da plebe “pararam toda a máquina de governo” por alguns anos, recusando-se a aprovar e assim permitir qualquer tipo de ato do governo, sem exceção, incluindo a nomeação de magistrados curuis3 ou a convocação regular de tropas, até que suas queixas fossem atendidas. Eram capazes de fazer isso, porque o poder que exerciam era inerente ao grupo que representavam. Ele estava lá. Se o povo não se mover, o governo não se moverá. Embora leis sejam aprovadas e ordens sejam dadas, se a massa inercial estiver em oposição, essas leis e ordens não serão cumpridas. No Império, era impossível, por causa das condições ampliadas de espaço-tempo, continuar com a representação direta do poder de veto do povo; mas esse poder foi igualmente utilizado, como indicado. E também foi assim foi com a Europa cristã e a Igreja. E as três fases sucessivas de Roma no governo cobrem um período de dois mil anos, um recorde de estabilidade sem paralelo. Isso foi possível por causa da função da massa, que os engenheiros mecânicos conhecem bem e, embora seja normalmente ignorada pelos teóricos políticos, foi entendida pelos romanos. Eles a usaram no lugar certo para a estabilidade, vinculando-a diretamente à parte do mecanismo adequada ao fator de inércia, o dispositivo para interromper o motor quando necessário.

A mesma função é corretamente expressa no governo moderno quando se concede o poder da bolsa, finanças públicas, concessão de suprimentos aos representantes eleitos pelo povo para mandatos curtos. O veto efetivo é exercido assim, como deveria ser, pela negação, pela contenção dos suprimentos. Quando suprimentos ilimitados são aprovados automaticamente em quantias massivas e desproporcionadas, é óbvio que a função da massa, o elemento estabilizador, não está mais incluída no governo; a conexão foi rompida em algum lugar. Os cidadãos como tais, o povo, não tem mais nenhum representante. Seus supostos delegados representam de fato os gastadores de suprimentos, como acaba ocorrendo quando as eleições são realizadas por esse gasto. Então, o poder de veto inerente pode mostrar seu peso apenas por dispositivos informais, indicando o perigo iminente de sobrecarga do motor que, fora de controle, se soltará da base e será esmagado. É interessante observar esse verdadeiro poder de veto reafirmando-se novamente pelas “pesquisas de opinião pública”. É o primeiro aviso, mas é um péssimo agouro; porque a expressão final do veto da massa inercial intrínseca, quando privado de representação legítima, consiste nos homens abandonando suas ferramentas e cruzando os braços. A loucura final dos governos é suprimir esse sinal.

Como Roma conseguiu controlar o problema da função da massa, foi capaz de resistir ao longo de sucessivas fases, até que a parte do mecanismo que fazia a transmissão parou de funcionar. Na terceira fase, a Igreja permitiu que o feudalismo sobrevivesse, com modificações graduais, por séculos, não por louvor irrestrito, mas por desviar o excedente de energia da produção local — que se isso não ocorresse teria arrebentado os limites — e usá-lo em canais laterais. A defesa das fronteiras foi mantida pela Igreja, com uma tendência expansiva, por causa das missões para converter os bárbaros.

Tanto na cultura como na organização, a característica notável da civilização romana ao longo de sua trajetória é que a “unidade da Europa” consistiu em dualismo, oposição e diversidade.

A Sociedade de Status é obrigada a restringir a produção à energia potencial que ela consegue acomodar. Isso é feito pelo coletivismo. Fazer com que a propriedade seja grupal exige que as pessoas não tenham liberdade. A posse coletiva da terra resulta em uma agricultura inferior e impede a melhoria das ferramentas.4 O trabalho agrícola medieval obtinha uma produção miserável. O baixo padrão de vida resultante causava fomes e pragas, reduzindo assim a população e fazendo-a mais fácil de ser controlada. Apenas a pobreza — dieta rústica, trabalho manual, o mínimo de conforto, conveniência e prazer — pode se ajustar a uma economia planejada; porque uma economia planejada não pode nem ser imaginada exceto num ambiente de submissão política. Uma economia complexa necessita da simplicidade política do contrato livre. A imposição do poder político sobre a produção começa instantaneamente a reduzir a economia a métodos primitivos e, em consequência, a diminuir a população ótima. Por outro lado, uma sociedade altamente produtiva emerge da ultrarregulada Sociedade de Status ao proclamar liberdade, que requer a abolição do controle político sobre as atividades econômicas.

Como o nível de energia na Europa cresceu novamente, sendo seu primeiro produto os edifícios da Igreja (algumas vezes vários em uma pequena cidade), o transbordamento mais uma vez procurou uma saída de comércio.

Isso é normalmente descrito como a emergência de uma classe média. O termo é completamente incorreto. Os três estamentos do feudalismo eram os nobres, o clero e o povo; duas classes seculares e uma coextensiva às outras ou, se formos fazer uma hierarquia, acima das outras, o que faria dos nobres a classe média. O que é hoje chamado de classe média não era nem é uma classe; é uma forma diferente de sociedade, uma sociedade sem classes: a sociedade livre, a Sociedade de Contrato. Os comerciantes e artesãos independentes não tinham as características de uma classe. Não prestavam serviço feudal, porque pagaram uma cessão para isso. Contribuíam para a organização política com dinheiro, por meio de impostos, e com sua própria milícia. Estabeleceram a soberania cívica de maneira tão inequívoca que, se um servo conseguisse fugir para uma cidade e morar lá por um ano, obtinha a liberdade em virtude de estar em solo livre. Toda referência feita por membros dessa ressurgente Sociedade de Contrato à sua própria condição ressaltava o fato de que eram homens livres. E tinham seu próprio judiciário. Na Inglaterra, o estranho nome de Tribunal do Pó de Torta (Court of Pie Powder) é um resquício da diferença física, real, entre dois tipos de sociedade; por que ela foi o Tribunal dos Pés Sujos (Court of Pied Poudre), que julgava segundo a Lei Comercial. Os homens dos pés sujos eram aqueles que viajavam, os comerciantes, ao contrário dos membros da sociedade estática que viviam presos a um lugar. Os comerciantes necessariamente formavam uma Sociedade de Contrato e viviam segundo leis contratuais. Em qualquer lugar, sempre que se proibiu que as pessoas mudassem de lugar ou comprassem e vendessem, o tipo de sociedade desse lugar está definido; trata-se de uma sociedade estática.

Mas o conceito de homem livre, embora vislumbrado de maneira imperfeita, nunca foi completamente eliminado na Europa. Um magistrado inglês, o Juiz Herle, em 1309, prolatou a seguinte sentença: “No princípio, todos os homens do mundo eram livres. E o direito é tão favorável à liberdade que aquele que já foi livre e esteve em situação de liberdade perante um tribunal de registro público deve ser livre para sempre, a menos que algum ato dele mesmo o torne um servo.” Foi a voz do direito romano quem falou; e o veredito, em sua implicação plena, pôs de lado mil anos de status.

Comércio e dinheiro, que andam juntos na torrente de energia, inevitavelmente derrubam os muros que cercam uma sociedade de status. Infiltram-se por baixo das fundações e penetram cada rachadura. Na Europa, a infiltração, sendo gradual, tem muitos efeitos fantásticos e aparentemente contraditórios, que podem ser percebidos numa perspectiva mais longa. A princípio, parecem fortificar o regime de status; e a frase pode ser lida literalmente, como quando Ricardo Coração de Leão erigiu a maior parte do Castelo Gaillard com dinheiro emprestado pelo qual penhorou seu reino. Gaillard foi projetado para ser inexpugnável de acordo com a técnica de combate medieval; e foi um anacronismo desde o princípio, não servindo para nada exceto causar a completa falência de Ricardo, já afundado nas dívidas que havia contraído por sua participação nas Cruzadas. Do século X ao XIV, as mudanças externas no aspecto social da Europa eram curiosamente comparáveis ao efeito de uma grande enchente que levanta as construções de suas fundações para depositá-las em lugares distantes e imprevisíveis. As fortalezas de estilo normando levadas por refluxo pela rota mediterrânea, em Malta e em Chipre, chegando à Palestina, foram carregadas dessa maneira pelo despejo de energia da Europa nas Cruzadas. Assim, a maré montante é bem recebida e estimulada por aqueles em posição de autoridade, que não preveem que ela corroerá a ordem que os mantém.

O comércio parecia interessante a um nobre, trazendo a ele novos luxos ou pagando-lhe o aluguel em dinheiro em vez de em espécie, quando uma aldeia se tornava uma cidade de mercado. O dinheiro permitia que um servo comprasse sua liberdade. O comércio podia prover navios para que um senhor feudal embarcasse na Guerra Santa; o dinheiro estava disponível como garantia de seu domínio para equipá-lo para o combate. O dinheiro dava poder aos reis para dominarem os nobres; e não seria possível convencê-los de que o comércio iria, no futuro, permitir que parlamentos executassem reis.


A torrente de energia fluiu outra vez de um continente a outro. O império árabe surgiu, ocupando grande parte da área que pertenceu a Cartago e com muitos outros pontos de semelhança, especialmente o fato de não ter estabilidade nem um centro fixo. Recapturou a Espanha e penetrou a Europa além das fronteiras da França, até encontrar resistência. Mas o impacto enfraqueceu o sistema europeu de status, em vez de consolidá-lo. Nada, exceto o dinheiro, poderia prover, pagar, transportar e manter uma defesa suficiente; nada, exceto o comércio, poderia suprir o dinheiro. O comércio continuou em meio à guerra. Politicamente, o império árabe não tinha estrutura e tendia constantemente a se esfacelar. A herança romana da Europa foi reafirmada e, na adversidade, tendia à coesão. O surgimento dos turcos foi um fenômeno peculiar; porque os turcos, como conquistadores, absorveram para uso militar a energia do Oriente e a lançaram contra a Europa. Aparentemente, eram invencíveis; na verdade, eram um poder declinante a partir do momento em que bloquearam as grandes rotas comerciais, por terra e por água, e cortaram assim a linha de energia que abastecia seus exércitos. Impuseram uma sociedade estática de um tipo singular no Oriente, exatamente quando a Europa estava emergindo do status. A Ásia afundou em estagnação mais uma vez. E com as rotas comerciais com o Oriente bloqueadas, a Europa finalmente alcançou Pítias e olhou para além do Atlântico.


1 Sir Henry James Sumner Maine (1822 – 1888) foi um jurista e historiador inglês. É famoso por sua tese apresentada no livro Direito Antigo de que o direito e a sociedade evoluíram “do status para o contrato”. De acordo com essa tese, no mundo antigo os indivíduos estavam fortemente ligados a grupos tradicionais, pelo status, enquanto no mundo moderno, no qual os indivíduos são vistos como agentes autônomos, eles são livres para estabelecer contratos e formar associações com quem quiserem. Por causa dessa tese, Maine é considerado um dos pais da moderna sociologia do direito. (N. do T.)

2 Com essa crença, os cartagineses jogavam crianças pequenas nas fornalhas de Moloch. (N. da A.)

3 Magistrado curul: autoridade romana como os edis, pretores, censores, cônsules e ditadores. (N. do T.)

4 Experimentos de propriedade coletiva tentados por comunidades dentro de uma nação de contrato, como os Estados Unidos, não podem ser comparados às condições de um coletivo genuíno ou sociedade de status. Tais comunidades têm a propriedade de sua terra por títulos privados, com o que é chamado de sociedade indivisível, mas que é na verdade individualmente divisível e aberta a processos judiciais por divisão. Além disso, os membros entram voluntariamente e podem sair sem impedimentos; embora o grupo só admita candidatos escolhidos e possa expulsar membros; ao passo que, numa autêntica sociedade coletiva, os membros nascem nela, não são livres para deixá-la e devem aceitar o lugar que foi determinado que ocupassem ou são exterminados. (N. da A.)

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