domingo, 31 de março de 2013

Ser feliz


      Ser feliz é levar a sério,
      A lei de nosso Senhor:
      Primeiro amar a Deus,
      Cumprindo ao próximo amar,
      Como se ama a si mesmo.
      Compartir alheias tristezas,
      Dividindo as alegrias;
      É a mancheias distribuir os dons,
      Concedidos por graça divina.
      Ser feliz é a alma aliviar,
      Libertando num gesto de amor,
      O generoso perdão.
      Ser feliz é o beijo colher,
      Da criança arredia e brejeira,
      Que é a vida de nossas vidas.
      Ser feliz é enxugar a lágrima,
      Nuns olhos muitos queridos
      E ver a alegria florir,
      De novo naqueles olhos.
      Ser feliz é a certeza abrigar,
      Na alma e no coração,
      De que para alguém ao menos,
      Este mundo conturbado
      É melhor porque existimos!
 




















Jurema Cruz Sampaio (1922 - 1996)

Prece


      No meu templo interior,
      Solitário, belo e silencioso,
      Um Deus calado e pensativo
      Ouve atentamente as minhas preces.
      Ajoelhada e contrita,
      Minh'alma desfia timidamente as suas queixas:

            --- "Senhor,
            Não o compreendo muito bem:
            Não sei de que lugar eu vim,
            Nem sei tão pouco aonde irei parar.
            Não consigo siquer atinar
            Com o que se espera de mim.
            Depois,
            A linha divisória entre o bem e o mal,
            Nem sempre se percebe bem.
            Erro às vezes tentando acertar,
            E acerto outras tantas em que temia errar.
            Atônita e confusa,
            Em desistir eu penso a cada engano,
            Para logo depois voltar atrás.
            E a roda da vida continua a girar.
            Senhor,
            Que devo fazer para acertar?"

      Do fundo do altar, pausada e bela,
      Responde a voz de Deus:

                              --- "Amar e perdoar."
 

Jurema Cruz Sampaio (1922 - 1996)


Poemas de Jurema Cruz Sampaio

Publico dois poemas de minha tia, Jurema Cruz Sampaio, a quem devo muito do que sou.

Prece

Ser Feliz

quinta-feira, 28 de março de 2013

A morte da avó, em O Caminho de Guermantes


Li esta semana o trecho de O Caminho de Guermantes, de Marcel Proust, em que o Narrador relata a morte de sua avó. Os sofrimentos que ele descreve trazem, de maneira muito forte, a lembrança da agonia de duas tias queridas: Tia Jurema, falecida em abril de 1996, e Tia Célia, em dezembro de 2011.

Tia Ju gostava muito de Proust. Relia sempre sua obra em francês. Deve ter passado por esse trecho muitas vezes. Ela teve um câncer que evoluiu muito rápido; do diagnóstico até o fim, levou cerca de um mês. Leio Em Busca do Tempo Perdido em grande parte por causa dela. Se não fosse por ela, eu o leria de outra maneira; o efeito desse livro sobre mim seria outro. Infelizmente, não comecei a ler antes, para ter tido a oportunidade de conversar com ela sobre Proust.

Tia Célia teve uma doença muito mais lenta, dermatomiosite. Passou dois anos doente, um ano e meio sem diagnóstico. Sofreu mais de um mês numa UTI, submetida a respiração artificial.

Volto a Proust. O Narrador conta que sua avó piorou de repente de uma doença que vinha sentindo havia tempos. Não saía mais de casa. Como não melhorava, chamaram outro médico. Este disse que ela não tinha nada físico, e que precisava sair mais. O Narrador e sua mãe ficam muito aliviados e insistem para que ela vá aos Champs-Élisées com o Narrador, que pretende encontrar alguns amigos. Ele fica irritado quando sua avó demora a sair, demora a andar, demora no banheiro do parque. Depois que ela sai do banheiro, ele se dá conta que ela havia tido um ataque. (Imagino que seja um pequeno AVC.)

Ele a leva até um banco de praça e procura por um fiacre para voltar para casa. Encontra outro médico, amigo de seu pai, e pede que ele a examine. O médico não quer, diz que tem que jantar com um ministro, não tem tempo. Acaba concordando em recebê-los em seu consultório. O Narrador leva a avó até lá, com dificuldade. O médico a examina com profissionalismo, mas não diz nada. Ela sai primeiro. O Narrador pergunta qual o diagnóstico e ouve que sua avó está perdida.

Depois disso, ela vai piorando gradativamente. Fala cada vez menos. Tem um período de cegueira, depois um de surdez. Sente dores cada vez maiores, mas tenta esconder isso dos parentes. Aplicam morfina. Um dia tenta, ela tenta abrir a janela para pular. Em meio ao sofrimento do Narrador e de sua mãe, outras pessoas continuam com suas preocupações fúteis.

Enfim, sua mãe acorda o Narrador uma manhã e lhe diz que agora só poderá contar com seus pais. A avó está tendo convulsões. Pouco depois disso, ela morre.

Seguem alguns trechos do livro:

«Subi e achei minha avó bem pior. Desde algum tempo, sem bem saber do que sofria, ela se queixava da saúde. Na enfermidade é que percebemos que não vivemos sós, mas acorrentados a uma criatura de outro reino, cujos abismos nos separam, que não nos conhece e pelo qual nos é impossível fazer-nos compreender: nosso corpo. Qualquer assaltante que encontrássemos no caminho, talvez pudéssemos sensibilizá-lo em seu interesse pessoal, senão pela nossa desgraça. Mas rogar piedade ao nosso corpo é discursar diante de um polvo, para quem nossas palavras não podem ter mais sentido que o rumor das águas, e com o qual nos aterrorizaríamos de ser condenados a conviver.»

«Cottard tentou, para acalmar a agitação da sua cliente, a dieta de leite. Mas as perpétuas sopas de leite não fizeram efeito porque minha avó punha nelas muito sal, cuja inconveniência era ignorada naquele tempo (pois Widal ainda não tinha feito suas descobertas).»

«Estas foram as palavras que me disse, e nas quais pusera toda a sua finura, o seu gosto pelas citações, sua memória relativa aos clássicos, até um pouco mais do que habitualmente faria e como para mostrar que mantinha mesmo a posse daquilo tudo. Mas essas frases, adivinhei-as mas do que as ouvi, de tanto que as pronunciava com uma voz pastosa e cerrando os dentes mais do que poderia explicá-lo o medo de vomitar.
[…]
Ela me sorriu tristemente e apertou-me a mão. Compreendera que não tinha como me ocultar aquilo que eu adivinhara logo: acaba de sofrer um pequeno ataque.»

«Deixei a minha avó passar primeiro, fechei a porta e pedi ao doutor que me dissesse a verdade.

— A sua avó está perdida — disse ele. — É um ataque provocado pela uremia. Em si, a uremia não é fatalmente uma doença mortal, mas o caso me parece desesperador. Nem preciso lhe dizer que espero estar enganado. Além disso, com Cottard, estão em excelentes mãos. Com licença — disse ao ver entrar uma camareira com sua casaca nos braços. — O Senhor sabe que vou jantar com o ministro do Comércio, e tenho uma visita para fazer antes. Ah, a vida não é um mar de rosas, como se crê na sua idade.

E estendeu-me graciosamente a mão. Eu voltara a fechar a porta e um lacaio nos guiava no vestíbulo, a mim e à minha avó, quando ouvimos grandes gritos de cólera. A camareira se esquecera de abrir a botoeira para as condecorações. Aquilo ainda ia levar dez minutos. O professor continuava sempre a esbravejar, enquanto eu olhava, no patamar da escada, para a minha avó, que estava perdida. Como está sozinha cada pessoa! Regressamos a casa.»

«Então, pela primeira vez os olhos de minha mãe fitaram apaixonadamente os de minha avó, não desejando ver o restante de sua face, e ela disse, começando a lista desses falsos juramentos que não podemos cumprir:

— Mamãe, logo ficarás curada; é a tua filha quem te promete.»

«Por causa dos tormentos de minha avó, permitiam que tomasse morfina. Infelizmente, se esta os acalmava, contribuía para aumentar a taxa de albumina. […] Nos dias em que a taxa de albumina se mostrava muito alta, o doutor Cottard, após alguma hesitação, recusava a morfina. […] Do ponto de vista clínico, por menos esperanças que tivesse em pôr fim àquela crise de uremia, era necessário não cansar os rins. Mas, por outro lado, quando minha avó ficava sem morfina, suas dores tornavam-se insuportáveis. […] Quando a minha avó sofria desse modo, o suor escorria sobre sua vasta fronte cor-de-malva, aí colando mechas brancas do cabelo; e, se ela achasse que não estávamos no quarto, soltava gritos: — Ah, é horroroso! — Mas, se se apercebia de minha mãe, empregava logo toda a energia para apagar do rosto os traços de sofrimento ou, ao contrário, repetia as mesmas queixas, acompanhando-as de explicações que davam retrospectivamente um outro sentido às que minha mãe pudera ouvir:

— Ah, minha filha, é horrível ficar deitada com esse sol tão lindo, quando a gente gostaria de ir passear; choro de raiva contra essas prescrições de todos vocês.

Mas não conseguia evitar os olhares queixosos, o suor na testa, o sobressalto convulsivo dos membros, logo reprimido.
[…]
E minha mãe, à beira da cama, presa àquele sofrimento como se, à força de penetrar com os olhos aquela testa dolorosa, aquele corpo que escondia o mal, conseguisse enfim atingi-lo e carregá-lo, minha mãe dizia:

— Não, mãezinha, não te deixaremos sofrer assim, vamos achar alguma coisa, tem paciência por um segundo; permite que te beije sem que precises te mexer?»

«Mandaram-me enxugar os olhos antes de ir beijar minha avó.

— Mas eu julgava que ela não via mais — observou meu pai.

— Nunca se sabe — replicou o doutor.

Quando meus lábios a tocaram, as mãos de minha avó se agitaram, ela foi toda percorrida por um longo tremor, seja por reflexo, seja porque certas afeições tenham a sua hiperestesia que reconhece, através do véu da inconsciência, aquilo que elas quase não necessitam de sentidos para amar. De súbito, minha avó se ergueu a meio, fez um esforço violento, como alguém que defende sua vida. Françoise não pôde resistir àquela cena e rompeu em soluços. Lembrando-me do que dissera o médico, tentei fazê-la sair do quarto. Nesse momento, minha avó abriu os olhos. Precipitei-me para Françoise a fim de lhe ocultar as lágrimas, enquanto meus pais falavam à doente. O rumor do oxigênio silenciara, o médico se afastou da cama. Minha avó estava morta.

Horas depois, Françoise pôde pela última vez, e sem maltratá-los, pentear aqueles lindos cabelos que mal principavam a embranquecer e até então haviam parecido mais jovens que ela. Mas agora, pelo contrário, eram os únicos a impor a coroa da velhice sobre o rosto tornado jovem e de onde haviam desaparecido as rugas, as contrações, os empastamentos, as tensões e as dobras que há tanto tempo lhe vinham aumentando o sofrimento. Como antigamente, quando seus pais lhe haviam escolhido um esposo, ela apresentava feições finamente traçadas pela pureza e pela submissão, as faces brilhantes de uma casta esperança, de um sonho de ventura, e até de uma alegria inocente que os anos lhe tinham destruído aos poucos. A vida, ao se retirar, acabava de carregar as desilusões da existência. Um sorriso parecia pousado sobre os lábios de minha avó. Sobre aquele leito fúnebre, a morte, como o escultor da Idade Média, deitara-a sob a aparência de uma mocinha.»

domingo, 24 de março de 2013

A Cadeira de Prata, de C. S. Lewis


Terminei de ler A Cadeira de Prata, de C. S. Lewis, para minha filha. É o quarto livro das Crônicas de Nárnia que leio para ela.

Gostamos muito de Brejeiro (Puddleglum), o paulama, o personagem sempre pessimista, que espera pelo pior de qualquer situação. Mesmo não acreditando que pode atingir seus objetivos, Brejeiro tem um fortíssimo senso de dever e é quem impele os outros personagens a persistir quando tendem a desanimar.

Minha filha quis ler sozinha as últimas páginas e isso também é uma grande satisfação para mim. Estamos decidindo se vamos continuar em Nárnia ou escolher outro livro para lermos juntos.

terça-feira, 19 de março de 2013

Três mulheres que inspiraram o movimento libertário moderno

Jim Powell
1º de maio de 1996
Tradução: Marcelo Centenaro

A liberdade estava em pleno retrocesso no início dos anos 40. Tiranos oprimiam ou ameaçavam povos em todos os continentes. Intelectuais ocidentais lavavam a reputação de assassinos em massa como Joseph Stalin, e governos ocidentais expandiam seu poder com planejamento central no estilo soviético. Cinquenta milhões de pessoas foram mortas na guerra que assolou a Europa, a África e a Ásia. Os Estados Unidos, aparentemente a última esperança para a liberdade, foram empurrados para ela.

Autores americanos estabelecidos que defendessem a liberdade eram uma espécie em extinção. H. L. Mencken havia deixado a amarga política para escrever suas memórias, enquanto outros como Albert Jay Nock e Garet Garret estavam atolados em pessimismo. 

Em meio ao pior dos tempos, três mulheres corajosas expulsaram o medo. Ousaram declarar que o coletivismo era nocivo. Tomaram o partido dos direitos naturais, a única filosofia que fornece uma base moral para a oposição à tirania em qualquer lugar. Louvaram o antiquado e envelhecido individualismo. Previram um futuro em que as pessoas poderiam ser livres outra vez. Expressaram um alegre otimismo que inspiraria milhões.

Todas eram outsiders que superaram começos difíceis. Duas eram imigrantes. Uma nasceu no território de fronteira, que na época ainda não era parte dos Estados Unidos. Lutaram para ganhar dinheiro como escritoras em mercados comerciais dominados por adversários ideológicos. Todas quebraram financeiramente uma vez ou outra. Passaram por sofrimentos com homens — uma permaneceu num casamento que se tornou estéril e duas outras se divorciaram e nunca se casaram novamente.

Essas mulheres que tiveram origens tão humildes — Rose Wilder Lane, Isabel Paterson e Ayn Rand — publicaram obras-primas no mesmo ano, 1943: A Descoberta da Liberdade (The Discovery of Freedom), O Deus da Máquina (The God of the Machine) e A Nascente (The Fountainhead), respectivamente. O jornalista John Chamberlain relembra que elas, “com desdenhosos olhares de relance para a comunidade de negócios masculina, decidiram reacender a fé numa antiga filosofia americana. Não havia entre elas nenhuma economista. Nenhuma delas era Ph.D.” Albert Jay Nock declarou que “elas fazem todos nós escritores homens parecermos dinheiro confederado. Elas não se confundem nem perdem tempo — cada tiro vai direto ao centro do alvo.”

Rose Wilder Lane

Como seus compatriotas, Rose Wilder Lane surpreendia as pessoas. Uma vez, ela se descreveu assim: “Sou uma mulher gorda do meio oeste, de classe média, de meia idade”. Tinha dentes ruins, seu casamento fracassou, trabalhou para sustentar seus pais que envelheciam e, em uma ocasião nos anos 30, estava tão atrapalhada financeiramente que sua eletricidade foi cortada. Mesmo assim, sua voz se fazia ouvir com grande eloquência enquanto ela ajudava a reviver os princípios radicais da Revolução Americana e ela inspirou milhões de adultos e crianças como editora dos amados livros da “Pequena Casa” sobre responsabilidade individual, trabalho duro, persistência inflexível, famílias fortes e liberdade humana.

Rose Wilder Lane nasceu em 5 de dezembro de 1886, nas proximidades de De Smet, no Território de Dakota. Seu pai, Almanzo Wilder, e sua mãe, Laura Ingalls, eram sitiantes pobres, assolados por secas, tempestades de granizo e outras calamidades que arruinavam as colheitas. Por muitos anos, a família morou em uma cabana sem janelas. Faltavam muitas refeições. A filha deles, cujo nome veio das rosas selvagens que floresciam na pradaria, frequentemente tinha de andar descalça.

Quando Rose tinha quatro anos, a família desistiu de Dakota e mudou-se para Mansfield, no Missouri, onde as perspectivas para a agricultura pareciam melhores. Ela passou a frequentar uma escola de tijolos vermelhos, com quatro salas, onde havia duas prateleiras de livros, e descobriu as maravilhas de Charles Dickens, Jane Austen e Edward Gibbon. Seu livro guia passou a ser o famoso Readers compilado pelo Presidente do Cincinnati College William Holmes McGuffey, que dava lições morais ao mesmo tempo em que ensinava os fundamentos da leitura e expunha as mentes jovens a muitos grandes autores da civilização ocidental. 

“Não gostamos de disciplina,” Rose lembrava, “portanto sofremos até que nos disciplinamos. Vimos muitas coisas e muitas oportunidades que desejávamos ardentemente e pelas quais não podíamos pagar. Então não as conseguíamos, ou conseguíamos apenas com um esforço e abnegação estupendos, torturantes, uma vez que era muito mais difícil aguentar uma dívida que as privações. Éramos honestos, não porque a natureza humana pecadora desejasse sê-lo, mas porque as consequências da desonestidade eram excessivamente dolorosas. Era evidente que se sua palavra não fosse tão confiável quanto seu contrato, seu contrato não era bom e você não valia nada… aprendemos que é impossível conseguir alguma coisa em troca de nada…”

Ela abandou a escola depois do nono ano e resolveu que, de algum jeito, conheceria o mundo além do Missouri rural. Tomou um trem para Kansas City e arranjou um emprego no turno da noite do telégrafo da Western Union. Passava a maior parte do seu tempo livre lendo, talvez três horas por dia. Por volta de 1908, mudou-se para San Francisco, para outro emprego na Western Union e por causa de um romance com o representante de vendas de publicidade Gillette Lane. Casaram-se em março de 1909. Ela engravidou, mas ou abortou ou a criança nasceu morta. Depois disso, ela ficou estéril.

Em 1915, o casamento havia acabado. Por meio de seus contatos em jornais, Rose começou a trabalhar como jornalista. Começou a escrever uma coluna feminina para o San Francisco Bulletin, um jornal trabalhista radical, e depois uma série diária de 1.500 palavras de perfis de personalidades. Escreveu um romance autobiográfico publicado em capítulos na revista Sunset.

Em março de 1920, a Cruz Vermelha a convidou para viajar pela Europa e relatar os trabalhos assistenciais da organização, para que doadores em potencial — de cujo apoio dependia — soubessem das suas boas ações. Baseada em Paris, Rose viajou para Viena, Berlim, Praga, Varsóvia, Budapeste, Roma, Sarajevo, Dubrovnik, Tirana, Atenas, Cairo, Damasco, Bagdá e Constantinopla. Ela imaginava que a Europa era a grande esperança da civilização, mas, ao contrário, fugiu de bandidos, conheceu a corrupção burocrática, passou por inflação galopante, presenciou os horrores da guerra civil e as sombras crescentes da tirania implacável.

Rose visitou a União Soviética quatro anos depois de os bolcheviques tomarem o poder. Como muitas pessoas, estava encantada com a visão comunista de uma vida melhor. Conheceu camponeses que, pensava ela, deviam estar extasiados com o comunismo. Mas escreveu depois: “Meu anfitrião me deixou perplexa com a força com que disse que não gostava do novo governo… Sua queixa era a interferência governamental nos assuntos da aldeia. Ele protestava contra a burocracia crescente que estava tirando mais e mais homens do trabalho produtivo. Ele previa caos e sofrimento resultantes da centralização do poder econômico em Moscou… Quando voltei da União Soviética, não era mais comunista, porque acreditava na liberdade pessoal.”

Depois que voltou para a América, sua carreira deslanchou e ela escrevia para The American Mercury, Country Gentleman, Good Housekeeping, Harper’s Ladies’ Home Journal, McCall’s e The Saturday Evening Post, entre outros. Escreveu romances sobre a vida dos pioneiros. A famosa atriz Helen Hayes representou um de seus romances, Let the Hurricane Roar (Deixe o Furacão Rugir), no rádio. Mas Rose ficou arruinada financeiramente durante a Grande Depressão. Em 1931, ela se lamentava: “Tenho 45 anos. Devo US$8.000,00. Tenho US$502,70 no banco… Nada do que planejei jamais se realizou.”

Em 1936, Rose escreveu Credo, um artigo de 18.000 palavras sobre a liberdade para The Saturday Evening Post. Três anos depois, Leonard Read, Gerente Geral da Câmara de Comércio de Los Angeles, ajudou a fundar uma pequena editora chamada Pamphleteers. Essa editora reimprimiu o artigo de Rose com o título Give Me Liberty [traduzido para o português como Quero Liberdade].

Nele, Rose explica como a livre competição permite que a civilização floresça apesar de existirem canalhas. “Não tenho ilusões sobre os pioneiros,” escreveu. “Em geral, eram desordeiros do pior tipo. A Europa ficou feliz em se livrar deles. Não trouxeram grande inteligência ou cultura. Seu maior desejo era fazer o que bem entendessem… [Ainda assim] os americanos de hoje… são o povo mais bondoso da terra… Só os americanos despejam prosperidade em todo o mundo, aliviando o sofrimento em lugares tão distantes como a Armênia e o Japão… São alguns dos valores humanos que nasceram do individualismo enquanto o individualismo criava esta nação.”

A Descoberta da Liberdade

Em 1942, um editor da John Day Company pediu que Rose escrevesse um livro sobre a liberdade. Ela começou a trabalhar num estacionamento de trailers em McAllen, no Texas, durante uma viagem ao sudoeste. Preparou pelo menos dois rascunhos em sua casa, em Danbury, Connecticut. O livro, The Discovery of Freedom — Man’s Struggle Against Authority (A Descoberta da Liberdade — A Luta do Homem contra a Autoridade), foi publicado em janeiro de 1943.

Enquanto a maioria dos historiadores se concentra nos governantes, Rose registrou a luta épica de 6.000 anos de pessoas comuns que desafiam seus governantes para criarem seus filhos, produzirem comida, construírem negócios, se envolverem com o comércio e, de incontáveis maneiras, melhorarem a vida humana. Foi lírica sobre a Revolução Americana, que ajudou a dar garantir a liberdade e a desencadear uma energia fenomenal para o progresso humano.

Com uma prosa inspiradora e, às vezes, melodramática, atacou uma miríade de influências coletivistas, incluindo escolas públicas e as chamadas regulações econômicas “progressistas”. Ridicularizou os argumentos de que os burocratas poderiam fazer mais pelos indivíduos do que estes fariam por si mesmos. Mandou embora a melancolia com sua altiva autoconfiança. “Cinco gerações de americanos conduziram a Revolução,” declarou ela, “e está chegando a hora em que os americanos libertarão o mundo inteiro.”

O individualista Albert Jay Nock não economizou elogios ao livro, mas Rose não ficou satisfeita com ele e não permitiu que fosse reimpresso. Nunca conseguiu completar outra edição. Somente mil cópias do livro foram impressas durante a vida dela.

Mesmo assim, A Descoberta da Liberdade teve grande impacto, circulando como um clássico underground. Ajudou a inspirar o estabelecimento de diversas organizações para promover a liberdade. Entre elas, a Foundation for Economic Education, de Leonard Read, o F. A. Harper’s Institute for Humane Studies e a Freedom School, de Robert M. Lefevre. Read contratou Henry Grady Weaver, analista de mercado da General Motors, para adaptar o livro, com o título de The Mainspring of Human Progress (O Principal Motivo do Progresso Humano), e centenas de milhares de cópias foram distribuídas pela FEE.

Os livros da Pequena Casa

Embora A Descoberta da Liberdade seja um documento fundador do movimento libertário moderno, Rose talvez tenha tido uma carreira mais importante nos bastidores. Em 1930, Laura Ingalls Wilder deu a Rose um manuscrito sobre sua infância e juventude no Winsconsin, no Kansas e em Dakota. Rose tirou do material a parte sobre o Winsconsin e preparou dois rascunhos do restante, dando mais vida à história e aos personagens. Chegou a um manuscrito de 100 páginas chamado provisoriamente de Pioneer Girl (Menina Pioneira), e o enviou a seu agente literário, Carl Brandt. O material sobre o Winsconsin virou um conto de 20 páginas, “Quando a Vovó era Criança”, um texto para um possível livro infantil ilustrado. Um editor sugeriu que a história fosse ampliada para um livro de 25.000 palavras para leitores mais novos.

Rose levou as notícias a sua mãe e, uma vez que o manuscrito original havia sido reescrito de maneira irreconhecível, ela explicou: “São as histórias do seu pai, tiradas do longo manuscrito MENINA PIONEIRA e rearranjados, como você vai ver.” Rose explicou que tipo de material adicional era necessário, acrescentando: “Se você achar mais fácil escrever em primeira pessoa, escreva assim. Depois eu mudo para a terceira pessoa.” Ela garantiu à sua mãe que a colaboração permaneceria um segredo de família: “Não disse a ninguém que passei o manuscrito pela minha máquina de escrever…” Em 27 de maio de 1931, o “livro infantil” estava pronto e Rose o enviou aos editores. Foi lançado pela editora Harper Brothers em 1932, com o título Uma Casa na Floresta (Little House in the Big Woods) e tornou-se uma história americana adorada pelo público.

Em janeiro de 1933, Laura deu a Rose o manuscrito de O Jovem Fazendeiro (Farmer Boy), sobre as lembranças de infância de Almanzo. Os editores rejeitaram o texto, provavelmente porque era basicamente uma crônica de habilidades agrícolas. Rose gastou um mês transformando-o numa história mais interessante e a editora Harper a comprou. No ano seguinte, Laura passou para Rose um manuscrito sobre sua vida no Kansas e ela a reescreveu em cinco semanas. O resultado é Uma Casa na Campina (Little House on the Prairie).

Os livros começaram a gerar uma renda significativa para os Wilder, um alívio para Rose, cujo objetivo era dar a eles segurança financeira. Laura ampliou parte da história de Menina Pioneira em outro manuscrito e o passou para Rose no verão de 1936. “Escrevi para você os porquês da história enquanto a escrevia,” explicou Laura. “Mas você sabe que seu julgamento é melhor que o meu. Portanto, o que você decidir é o que vai ser.” Rose reescreveu o texto em dois meses e mandou uma carta a seu agente literário, pedindo que o acordo entre eles fosse melhorado. Esse manuscrito se tornou À Beira do Riacho (On the Banks of Plum Creek). Durante a maior parte do ano de 1939, Rose reescreveu o manuscrito de À Margem da Lagoa Prateada (By the Shores of Silver Lake); em 1940, O Longo Inverno (The Long Winter); em 1941, Uma Pequena Cidade na Campina (Little Town on the Prairie); e, em 1942, Anos Felizes (These Happy Golden Years).

Especialmente nos últimos livros, Rose retratou a jovem Laura Ingalls Wilder como uma heroína libertária. Por exemplo, em Uma Pequena Cidade na Campina, descreveu os pensamentos de sua mãe assim: “Os americanos são livres. Isso significa que eles devem obedecer a sua própria consciência. Nenhum rei é chefe do Pa; o chefe dele é ele mesmo. Portanto (pensava ela), quando eu for um pouco mais velha, Pa e Ma vão parar de me dizer o que fazer e não haverá ninguém mais que tenha o direito de me dar ordens. Terei de fazer com que eu mesma me comporte.”

Em 1974, a rede NBC começou a adaptar os livros para uma série de televisão. Chamada Uma Casa na Campina, ficou imensamente popular, foi produzida durante nove anos e resultou em mais de 200 programas. Veio então um acordo editorial que garantiu que a série continuaria sendo transmitida por pelo menos outros vinte e cinco anos. Michael Landon escreveu e dirigiu vários programas e atuou como o pai de Laura, Charles Ingalls.

A última tacada de Rose foi um livro sobre os bordados americanos, que ela transformou em um hino à liberdade. “O bordado americano nos conta,” escreveu, “que os americanos vivem na única sociedade sem classes. Esta república é o único país que não tem bordado camponês… As mulheres americanas… descartaram os fundos, descartaram bordas e armações. Fazem os detalhes criarem o todo e colocam cada detalhe no espaço sem limites, só, independente, completo.”

Isabel Paterson

Rose conhecia, mas não era muito próxima da arrojada, esquentada e muitas vezes rude jornalista Isabel Bowler Paterson. De acordo com o professor Stephen Cox, ela era “uma mulher magra, de 1,60m, muito míope, que amava roupas finas e ligeiramente excêntricas, apreciava pratos delicados, bebia um pouco, uma devota da natureza que podia passar o dia todo assistindo uma árvore crescer…”

Isabel aferrava-se obstinadamente a suas opiniões e dizia o que pensava sobre cada assunto a todos que pudessem ouvi-la. O fato de dominar as conversas tendia a limitar sua vida social, especialmente quando se tornou uma dissidente contra a intervenção governamental do New Deal, mas, mesmo assim, teve alguns amigos fiéis. Um deles comentou: “se as pessoas conseguirem aguentá-la acabarão gostando muito dela.”

Isabel escreveu romances e cerca de 1.200 colunas de jornal, mas foi O Deus da Máquina que lhe concedeu a imortalidade nos anais da liberdade. O livro é um poderoso ataque contra o coletivismo e explica a dinâmica extraordinária dos mercados livres.

Ela nasceu em 22 de junho de 1886, na Ilha Manitoulin, em Ontário. Seus pais, Francis e Margaret Bowler, eram sitiantes pobres que se mudaram para Michigan, Utah e Alberta, em busca de melhor sorte. Isabel fazia sabão, cuidava da criação e frequentou a escola somente por dois anos. Mas lia livros em casa, incluindo a Bíblia, algum Shakespeare e romances de Charles Dickens e Alexandre Dumas.

Por volta dos 18 anos, Isabel foi morar sozinha. Trabalhou como garçonete, auxiliar de contabilidade e taquigrafista, ganhando US$20,00 por mês. Tinha orgulho de ser independente. “Ouça, garota,” ela disse a uma jornalista, “seu pagamento é sua mãe e seu pai; em outras palavras, respeite-o.”

Aos 24, em 1910, casou-se com Kenneth Birrel Paterson, mas a relação azedou e, em poucos anos, tomaram rumos separados. Ela raramente falou sobre ele daí em diante. Ficou mais determinada que nunca em manter sua independência.

Havia escrito algumas coisas para matar o tédio e, depois que começou a trabalhar como secretária de um editor de jornal de Spokane, Washington, passou a escrever mais. Começou a redigir os editoriais para ele. Fez críticas de teatro para dois jornais de Vancouver. Em seguida, ficção — seu romance The Shadow Riders (Os Cavaleiros das Sombras) foi publicado em 1916 e The Magpie’s Nest (O Ninho da Pega) no ano seguinte. Ambos eram sobre mulheres jovens lutando para alcançar a independência. Embora o Canadá fosse uma nação protecionista, Isabel deixava claro em The Shadow Riders que era uma defensora do livre comércio.

Isabel mudou-se para o leste depois da Primeira Guerra Mundial e começou a ler o que pôde da Biblioteca Pública de Nova York. Em 1922, convenceu o editor literário do New York Herald Tribune, Burton Rascoe, a contratá-la, mesmo não gostando dela. “Ela disse abruptamente que queria o emprego,” ele relembra. “Disse a ela que meu orçamento não permitia pagar o que ela valia. Ela respondeu que trabalharia pelo que eu estivesse preparado para pagar, fosse o quanto fosse. Disse que pagaria quarenta dólares por semana. Ela respondeu, ‘Trabalho por esse valor.’”

Em 1924, começou uma coluna semanal sobre livros e esse espaço se tornou um fórum influente pelos vinte e cinco anos seguintes. Usava os livros como ponto de partida para falar sobre praticamente qualquer coisa. Muitas colunas afirmavam seu compromisso com o individualismo americano. Atacou as sociedades coletivistas baseadas no status e defendeu o capitalismo dinâmico. Denunciou o intervencionismo de Herbert Hoover e o New Deal de Franklin Roosevelt.

O Deus da Máquina

Muitas colunas trataram de temas que foram a base de O Deus da Máquina, publicado pela editora Putnam em maio de 1943. Isabel atacou o fascismo, o nazismo e o comunismo como variantes do mesmo mal, o coletivismo. Reservou alguns de seus mais eloquentes disparos para Stalin, que encantava tantos intelectuais. Qualquer um que imagine que os horrores socialistas só foram expostos recentemente ficará chocado em ver como Isabel entendeu claramente porque o coletivismo sempre significa estagnação, atraso, corrupção e escravidão.

Há muito mais neste livro tremendo. Isabel nos deu um panorama formidável da história da liberdade. Demonstrou porque a liberdade pessoal é impossível sem liberdade política. Defendeu os imigrantes. Denunciou o alistamento militar, o planejamento econômico central, o sindicalismo compulsório, os subsídios para empresas, o papel-moeda e a educação pública obrigatória. Muito antes da maioria dos economistas, explicou como o New Deal prolongou a Grande Depressão.

Isabel louvou os empreendedores privados, que são a fonte primária de progresso humano. Por exemplo: “Tudo que foi criação do empreendimento privado nas estradas de ferro é gratificante. O empreendimento privado minerou, fundiu e forjou o ferro, inventou a máquina a vapor, desenvolveu instrumentos de avaliação, produziu e acumulou o capital, organizou os esforços. Na construção e na operação de estradas de ferro, o que quer que seja que pertença ao domínio do empreendimento privado foi feito com competência… O que as pessoas odiavam era o monopólio. O monopólio, nada mais que o monopólio, foi a contribuição política.”

Em 1949, os editores do New York Herald Tribune acharam que as opiniões libertárias de Isabel eram radicais demais e a demitiram. Mesmo assim, ela expressou sua gratidão, dizendo que eles provavelmente publicaram mais trabalhos dela do que seria tolerado em qualquer outro lugar. Deram a ela uma pequena pensão e ela se manteve investindo suas economias em imóveis. Recusou o Seguro Social, devolvendo seu cartão em um envelope onde anotou “Fraude do Seguro Social” (Social Security Swindle).
Nesse ínterim, ela havia se tornado um ponto focal do crescente movimento libertário. Por exemplo, depois que Leonard Read fundou a FEE, Isabel o apresentou ao influente jornalista John Chamberlain, que ela havia ajudado a converter em libertário e isso deu origem a uma colaboração de décadas.

No início dos anos 40, Isabel foi mentora de Ayn Rand, nascida na Rússia e 19 anos mais jovem que ela. Ayn a ajudava semanalmente a revisar as páginas compostas em tipos de suas resenhas para o Herald Tribune. Isabel apresentou a Ayn muitos livros e ideias sobre história, economia e filosofia política, ajudando-a a desenvolver uma visão de mundo mais sofisticada. Quando foi publicado o romance de Ayn, A Nascente, Isabel o promoveu em diversas colunas no Herald Tribune. Os livros de Ayn Rand ultrapassaram os de Isabel Paterson — e praticamente os de qualquer outra pessoa nesse gênero — vendendo cerca de 20 milhões de cópias.

Ayn Rand
Ayn Rand era uma presença impressionante. Sua biógrafa Barbara Branden a descreveu assim, quando chegou à América aos 21 anos: “Emoldurado por seu cabelo curto e liso, seu rosto quadrado ressaltado por um queixo firme, com sua larga boca sensual mantida em rígido controle e seus enormes e intensos olhos negros, parecia o semblante de um mártir, ou de um inquisidor, ou de um santo. Os olhos queimavam com uma paixão que era ao mesmo tempo emocional e intelectual — como se fossem atravessar o interlocutor.” Quando ficou mais velha, o fato de fumar constantemente e os hábitos sedentários fizeram efeitos, mas Ayn ainda era inesquecível, como relembra o editor Hiram Haydn: “Uma mulher baixa, de rosto quadrado, de cabelos negros com franja e cortados abaixo da orelha… Os olhos eram negros como os cabelos e muito penetrantes.”



Ela nasceu Alissa Rosenbaum, em 2 de fevereiro de 1905, em São Petersburgo. Seu pai, Fronz Rosembaum, conseguiu sair da pobreza e chegar à classe média trabalhando como farmacêutico. Sua mãe, Anna, era extrovertida, acreditava em exercícios vigorosos e tinha uma vida social intensa. Alissa não queria saber nem de exercícios nem de festas.



Era precoce. Depois das aulas, estudava francês e alemão em casa. Inspirada por uma revista que publicava histórias em série, começou a escrever contos e, aos nove anos, resolveu se tornar escritora.


O mundo confortável dos Rosenbaum acabou quando o Czar entrou na Primeira Guerra Mundial, que devastou a economia do país. Em um ano, havia mais de um milhão de russos mortos ou feridos. As finanças do governo estavam quebradas. As pessoas passavam fome. Os bolcheviques se aproveitaram do caos e tomaram o poder em 1918.

A Revolução Russa estimulou a jovem Alissa a inventar histórias sobre indivíduos heroicos combatendo reis ou ditadores comunistas. Também nessa época descobriu o romancista Victor Hugo. Seu estilo dramático e seus heróis intensos cativaram a imaginação dela. “Fiquei fascinada pelo senso de vida de Hugo,” declarou. “Era alguém escrevendo algo importante. Senti que esse era o tipo de escritora que eu gostaria de ser, mas não sabia quanto tempo levaria para chegar lá.”

Na Universidade de Petrogrado, foi aluna do rigoroso aristotélico Nicholas Lossky que, como demonstrou a estudiosa Chris Sciabarra, teve enorme impacto sobre o pensamento de Ayn Rand. Ela lia peças de Johann Christoph Friedrich von Schiller (que adorava) e de William Shakespeare (que odiava), filosofia de Friedrich Nietzsche (pensador estimulante) e romances de Fiódor Dostoiévski (bom criador de histórias). Ficou completamente fascinada ao ver alguns filmes estrangeiros. Sua primeira grande paixão foi um homem chamado Leo, que arriscava a vida escondendo membros de grupos clandestinos antibolcheviques.

Em 1925, os Rosenbaum receberam uma carta de parentes que haviam emigrado para Chicago havia mais de três décadas, fugindo do antissemitismo russo. Alissa manifestou um desejo ardente de ver a América. Os parentes concordaram em pagar a passagem dela e se responsabilizarem financeiramente por ela. Miraculosamente, as autoridades soviéticas emitiram um passaporte para que ela viajasse por seis meses. Em 10 de fevereiro de 1926, embarcou no navio De Grasse e chegou a Nova York com US$50,00. 

Logo se juntou a seus parentes num pequeno apartamento em Chicago. Via muitos filmes e trabalhava com sua máquina de escrever — normalmente, depois da meia-noite, o que atrapalhava o sono dos outros. Nesse período, escolheu um novo prenome: Ayn, nome de uma escritora finlandesa que ela nunca chegou a ler, mas gostava da sonoridade do nome. E um novo sobrenome: Rand, por causa da máquina de escrever Remington Rand. A biógrafa Barbara Branden conta que ela pode ter adotado esse nome para proteger sua família de possíveis problemas com o regime soviético.

Decidida a se tornar roteirista de cinema, mudou-se para Los Angeles. Por meio de seus parentes de Chicago, convenceu um distribuidor de filmes a escrever uma carta de apresentação dela para alguém no departamento de publicidade do glamoroso estúdio Cecil B. DeMille. Ela encontrou o grande homem em pessoa quando entrava no estúdio e ele a levou ao set do filme em que estava trabalhando. Começou a trabalhar como figurante, por US$7,50 por dia.

No estúdio de DeMille, Ayn se apaixonou por um ator de pequenos papéis, alto, bonito, de olhos azuis, chamado Frank O’Connor. Casaram-se em 15 de abril de 1929, antes que o visto dela expirasse. Depois disso, ela não teve mais que se preocupar com voltar para a União Soviética. Dois meses depois, requereu a cidadania americana.

O estúdio DeMille fechou e ela arranjou estranhos empregos, como, por exemplo, leitora de roteiros free-lancer. Em 1935, sentiu o gosto do sucesso, ganhando até US$1.200,00 por semana com sua peça Noite de 16 de Janeiro, que foi apresentada 283 vezes na Broadway. Era sobre um industrial cruel e sua poderosa mulher sendo julgada pelo assassinato dele.

We the Living

Ayn passou os quatro anos seguintes escrevendo seu primeiro romance, We the Living (Nós, os Vivos), sobre a luta para encontrar liberdade na Rússia soviética. Kira Argounova, a heroína desesperada, se torna amante de um chefe do partido, para conseguir dinheiro para seu namorado que sofria de tuberculose. Ayn terminou o livro no final de 1933. Depois de várias recusas, a editora Macmillan aceitou publicá-lo e pagou US$250,00 como adiantamento. Foram impressas 3.000 cópias em março de 1936, mas o livro não vendeu. Embora a propaganda boca-a-boca tenha elevado as vendas depois de um ano, a editora tinha destruído o caráter tipográfico e We the Living deixou de ser publicado. Ayn Rand recebeu apenas US$100,00 de royalties.

Em 1937, enquanto lutava para desenvolver a trama de A Nascente, Ayn escreveu uma novela lírica futurista sobre um indivíduo contra uma tirania coletivista — Anthem (Hino). O agente literário de Ayn o vendeu para um editor britânico, mas não conseguiu encontrar quem o publicasse no mercado americano. Cerca de sete anos depois, o gerente geral da Câmara de Comércio de Los Angeles, Leonard Read visitou Ayn Rand e Frank O’Connor — que estavam morando em Nova York — e comentou que alguém devia escrever um livro defendendo o individualismo. Ayn lhe contou sobre Anthem. Read pegou emprestada uma cópia, leu e sua pequena editora Pamphleteers tornou o texto disponível nos Estados Unidos. Vendeu cerca de 2,5 milhões de exemplares.

A Nascente

Ayn Rand terminou a trama de A Nascente em 1938, depois de cerca de quatro anos de trabalho. Então veio a fase de escrever o livro. Seu herói, o arquiteto Howard Roark, exprimia a visão dela de um homem ideal. Combatia o coletivismo em toda parte ao seu redor para defender a integridade de suas ideias, mesmo que isso significasse dinamitar um prédio porque os planos foram alterados violando o contrato.

Foi difícil vender o livro. O editor de Ayn na Macmillan manifestou interesse e ofereceu outro adiantamento de US$250,00, mas ela insistiu para que a companhia concordasse em gastar pelo menos US$1.200,00 em publicidade. Com isso, a Macmillan desistiu. Em 1940, uma dúzia de editoras haviam visto capítulos acabados e recusado o livro. Um editor influente declarou que o livro não venderia nunca. O agente literário de Ayn ficou contra o livro. As economias dela estavam em meros US$700,00.

Ayn sugeriu que o manuscrito parcial fosse apresentado à Bobbs-Merril, uma editora de Indianápolis, que tinha publicado The Red Decade (A Década Vermelha), do jornalista anticomunista Eugene Lyons. Os editores da Bobbs-Merril em Indianápolis rejeitaram A Nascente, mas o editor da companhia em Nova York, Archibald Ogden adorou o livro e ameaçou se demitir se o livro não fosse aceito. Assinaram um contrato em dezembro de 1941, pagando um adiantamento de US$1.000,00. Com dois terços do livro ainda para serem escritos, Ayn estabeleceu o prazo de 1º de janeiro de 1943 para terminá-lo. Houve uma corrida amigável com Isabel Paterson, que estava trabalhando para terminar O Deus da Máquina.

Ayn Rand cumpriu o prazo e A Nascente foi publicado em maio de 1943, o mesmo mês da publicação de O Deus da Máquina e cerca de nove anos depois de quando o livro era apenas um sonho. A Nascente gerou muito mais resenhas que We the Living, mas a maior parte dos críticos ou o atacou ou o deturpou, descrevendo-o como um livro sobre arquitetura. No início, a primeira edição de 7.500 exemplares vendeu lentamente. O boca-a-boca provocou uma grande onda de interesse e a editora fez diversas reimpressões em pequenas quantidades, em parte por causa da falta de papel dos tempos de guerra. O livro ganhou impulso e chegou às listas de best-sellers. Dois anos depois da primeira edição, tinha vendido 100.000 cópias. Em 1948, chegou a 400.000 exemplares. Então veio a edição em brochura da New American Library e A Nascente ultrapassou os 6 milhões de livros vendidos.

No dia em que a Warner Brothers concordou em pagar US$50.000,00 pelos direitos de filmagem de A Nascente, Ayn e Frank decidiram esbanjar e cada um consumiu um jantar de 65 cents no restaurante do bairro. Ayn lutou para manter a integridade do roteiro e foi bastante bem-sucedida, embora algumas das suas falas preferidas tenham sido cortadas. O filme, estrelado por Gary Cooper, Patricia Neal e Raymond Massey, estreou em julho de 1949. Levou o livro às listas de best-sellers outra vez.

Algum tempo antes, quando a edição de capa dura tinha acabado de sair, Ayn contou a Isabel Paterson o quanto estava desapontada com a repercussão do livro. Isabel insistiu para que ela escrevesse um livro de não-ficção e acrescentou que Ayn tinha o dever de fazer suas opiniões mais conhecidas. Ayn se revoltou com a insinuação de que devesse alguma coisa às pessoas. “E se eu entrasse em greve?” perguntou. “E se todas as mentes criativas do mundo entrassem em greve?” Daí surgiu a ideia de sua última obra-prima, chamada originalmente de The Strike (A Greve).

A Revolta de Atlas

Ayn Rand trabalhou nesse livro por cerca de 14 anos. Tudo nele se tornou maior que a vida. O livro retrata seu mais famoso herói, o misterioso John Galt, o físico-inventor que organizou uma greve das pessoas mais produtivas contra os criadores de impostos e outros exploradores. O livro apresenta Dagney Taggart, a primeira mulher ideal de Ayn, que encontra sua contraparte em Galt. Os personagens-chave declamam longos discursos com as opiniões filosóficas de Ayn sobre liberdade, dinheiro e sexo — o livro frequentemente parece mais uma polêmica sobre individualismo e capitalismo. Um amigo sugeriu que o título provisório faria as pessoas pensarem que era sobre sindicatos e ela o deixou de lado. O’Connor disse para ela usar um dos títulos de capítulo e o livro se tornou Atlas Shrugged (em português, A Revolta de Atlas).

As ideias de Ayn Rand eram controversas como sempre, mas as vendas de A Nascente impressionaram as editoras e várias grandes a cortejaram para publicar A Revolta de Atlas. Bennett Cerf, sócio da Random House, foi quem ofereceu mais apoio e Ayn recebeu um adiantamento de US$50.000,00 sobre royalties de 15 por cento, uma primeira edição de pelo menos 75.000 exemplares e um orçamento publicitário de US$25.000,00. O livro foi publicado em 10 de outubro de 1957.

A maioria das resenhas foi brutal. O socialista tradicional Granville Hicks fez críticas fortes no New York Times e outros ficaram ofendidos da mesma maneira pelos ataques de Ayn contra o coletivismo. A resenha mais histérica de todas acabou aparecendo no conservador National Review, onde Whittaker Chambers, presumivelmente ofendido pela crítica à religião, comparou Ayn a um nazista “comandando: ‘Para uma câmara de gás — marche!’” A divulgação boca-a-boca se mostrou muito forte para esses opositores e as vendas começaram uma escalada, chegando a ultrapassar 4,5 milhões de exemplares.

Com A Revolta de Atlas, Ayn Rand havia realizado seus sonhos e ficou deprimida. Estava exausta. Não tinha mais um projeto gigante para direcionar suas energias prodigiosas. Dependia cada vez mais de seu discípulo intelectual nascido no Canadá, Nathaniel Branden, de quem tinha se tornado íntima. Para atender ao interesse crescente em Ayn Rand e ajudá-la a recuperar a disposição, ele criou o Instituto Nathaniel Branden, que oferecia seminários, vendia aulas gravadas e começou a produzir publicações. Ayn escreveu artigos sobre sua corrente de filosofia libertária, que chamou de Objetivismo. Branden, 25 anos mais novo que Ayn, era algumas vezes um capataz difícil de lidar, mas mostrava habilidades notáveis para promover os ideais do individualismo e do capitalismo. Os bons tempos continuaram até 23 de agosto de 1968, quando ele contou a Ayn sobre seu caso com outra mulher. Ayn o denunciou publicamente e eles se afastaram, embora as razões nunca tenham sido completamente divulgadas até que a biografia escrita por Barbara, ex-mulher de Branden, foi publicada, 18 anos depois. Nathaniel Branden tornou-se mais tarde um autor de best-sellers sobre autoestima. 

Durante o último meio século, nenhum indivíduo fez mais que Ayn Rand para converter pessoas para os ideais da liberdade. Seus livros vendem 300.000 cópias ano após ano sem publicidade dos editores e sem serem indicados por professores universitários. De fato, suas obras foram tratadas como lixo pela maioria dos intelectuais. Seu apelo duradouro é um fenômeno assombroso.

Curiosamente, apesar da imensa influência dos livros dela, o impacto fora dos países de língua inglesa é limitado. O mais conhecido é A Nascente, com edições em francês, alemão, norueguês, sueco e russo. We the Living está disponível em francês, alemão, grego, italiano e russo, mas vendeu só um quinto do que vendeu A Nascente. A única edição estrangeira de A Revolta de Atlas é em alemão — incrivelmente, nunca foi publicado na Inglaterra. Anthem nunca foi traduzido, embora edições em francês e sueco estejam sendo preparadas. Uma confirmação, talvez, de que a América continue sendo o santuário do velho individualismo no mundo.

Últimos anos

Ayn, Isabel e Rose se encontraram muito pouco conforme passaram os anos. Ayn e Isabel, ambas de personalidade muito forte, tiveram uma briga amarga nos anos 40; depois da publicação de A Revolta de Atlas, Isabel tentou sem sucesso uma reconciliação. A amizade entre Isabel e Rose aparentemente terminou por causa de alguma disputa intelectual. Sofrendo de gota e de outras doenças, Isabel se mudou para Montclair, em Nova Jersey, com dois amigos que restaram, Ted e Muriel Hall. Morreu em 10 de janeiro de 1961, aos 74 anos. Foi enterrada em um túmulo sem identificação.

Ayn e Rose já haviam se afastado por causa de religião. Embora Rose tenha permanecido ativa durante toda a sua vida — foi mandada ao Vietnã como correspondente de Woman’s Day em 1965 — ela apreciava morar no campo, em sua casa em Danbury, Connecticut. Em 29 de novembro de 1966, assou pães para vários dias e subiu para dormir. Nunca acordou. Tinha 79 anos. Seu amigo próximo e herdeiro literário Roger MacBride levou suas cinzas para Mansfield, Missouri, e as enterrou junto ao pai e à mãe dela. MacBride mandou gravar em sua lápide simples algumas palavras de Thomas Paine: “Um exército de princípios penetrará onde um exército de soldados não chega. Nem o Canal nem o Reno deterão seu avanço. Marchará no horizonte do mundo e o conquistará.”

Ayn havia brigado com muitos amigos e levava uma vida reclusa em seus últimos anos. Passou por uma cirurgia por causa de um câncer de pulmão. Ficou ainda mais solitária após a morte de Frank O’Connor, em novembro de 1979, esquecida de como suas ideias inspiraram milhões. Dois anos depois, pôde desfrutar de um cenário estimulante; o empreendedor James Blanchard mandou que um trem particular a levasse de Nova York para Nova Orleans onde 4.000 pessoas aplaudiram sua retumbante defesa da liberdade.

O coração de Ayn começou a falhar em dezembro de 1981. Ela resistiu por mais três meses, pedindo a seu mais próximo companheiro, Leonard Peikoff, que terminasse vários projetos. Morreu em seu apartamento da East 34th Street, número 120, em Manhattan, em 6 de março de 1982. Foi enterrada junto de O’Connor, em Valhalla, Nova York, enquanto cerca de 200 pessoas jogavam flores sobre seu caixão. Tinha 77 anos.

Com suas excentricidades reconhecidas, Ayn Rand, Isabel Paterson e Rose Wilder Lane foram milagres. Saíram de lugar nenhum para desafiarem com coragem um mundo corrupto e coletivista. De maneira decidida, tomaram a cidadela. Afirmaram o imperativo moral da liberdade. Mostraram que todas as coisas são possíveis.

http://www.fee.org/the_freeman/detail/rose-wilder-lane-isabel-paterson-and-ayn-rand-three-women-who-inspired-the-modern-libertarian-movement#axzz2O2gfJHHe

Homenagem ao Dia da Mulher

Em homenagem ao Dia da Mulher, apresento, um pouco atrasado, a tradução completa do artigo de Jim Powell, Rose Wilder Lane, Isabel Paterson, and Ayn Rand: Three Women Who Inspired the Modern Libertarian Movement, escrito em 1996.

Li esse artigo em março de 2010. Procurei pelos livros e comprei imediatamente The Discovery of Freedom. Fiquei fascinado pelo livro, uma das coisas mais originais que já vi. Baixei da Internet Give Me Liberty e The God of the Machine e li os dois com grande prazer.

Traduzi Give Me Liberty, que é o menor dos três livros. Estou começando a traduzir The God of the Machine. Logo devo começar a publicar os capítulos. Pretendo ainda fazer a tradução de The Discovery of Freedom, mas isso ainda deve demorar.

sexta-feira, 15 de março de 2013

Dois trechos de "O Caminho de Guermantes"


Dois trechos que me chamaram a atenção em O Caminho de Guermantes, terceiro livro de Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust.



I

Parecia-me já ter visto esse olhar; no entanto, somente hoje conhecera o historiador. De súbito, lembrei-me: havia visto esse mesmo olhar nos olhos de um médico brasileiro que pretendia curar as sufocações do gênero das que eu tinha por meio de absurdas inalações de essências vegetais. E como, para que tomasse mais cuidado pela minha pessoa, lhe dissesse que conhecia o professor Cottard, respondera-me como no interesse de Cottard: — Pois eis aí um tratamento que, se o senhor lhe falasse nele, iria fornecer-lhe assunto para uma sensacional comunicação à Academia de Medicina! — Não ousara insistir, mas olhara-me com aquele mesmo ar de interrogação tímido, interessado e suplicante que eu acabara de admirar no historiador da Fronda. Certamente esses dois homens não se conheciam e não se pareciam em nada, mas as leis psicológicas possuem, como as leis físicas, uma certa generalidade. E, se as condições necessárias são as mesmas, um mesmo olhar ilumina animais humanos diversos, como um mesmo céu matinal a lugares da terra situados bem longe um do outro, e que nunca se viram entre si.



II

[O Marquês de Norpois discutindo o caso Dreyfus com Bloch]

— […] Certamente é necessário dar um basta às manobras antimilitaristas, mas também não devemos passar por alto as agitações provocadas pelos elementos de direita que, em vez de servir à idéia patriótica, sonham em servir-se dela. A França, graças a Deus, não é uma república sul-americana, e não se faz sentir a necessidade de um general de pronunciamiento.

domingo, 10 de março de 2013

9 anos dos atentados de Madri

Amanhã faz 9 anos dos atentados de Madri. Na manhã de 11 de março de 2004, homicidas fanáticos explodiram dez bombas em quatro trens, em Madri, matando 191 pessoas inocentes e ferindo mais de 2000.

Esses assassinos são contra a Civilização. Não esta ou aquela civilização, já que isso não existe. Eles são contra a Civilização Humana.

Como faço todos os anos, libertarei um livro do BookCrossing em homenagem à memória das vítimas. O livro que escolhi é Lutando na Espanha, de George Orwell, edição de 1967, da Civilização Brasileira.

Este é o texto da orelha:

MEMÓRIA VIVA

George Orwell (nome verdadeiro: Eric Blair) escreveu Lutando na Espanha baseando-se em experiências pessoais na guerra civil que foi o prelúdio da batalha final contra o fascismo na década de 1940. O livro só pode ser considerado ficção do ponto de vista técnico. No mais, relata fatos. Orwell alistou-se como voluntário nas tropas republicanas e foi ferido no pescoço. Em 1950, êsse ferimento ajudou a matá-lo, pois agravou uma insuficiência pulmonar que o autor trazia consigo desde a infância.

Orwell se definiu como membro da pequena média burguesia. Em outras palavras, sua família deu-lhe uma educação, injetou-lhe preconceitos de classe que não correspondiam a seus meios reais de subsistência. Estudou em Eton, que é par excellence a escola da elite dirigente da Grã-Bretanha. Serviu na Polícia Real na Birmânia. Foi lá que descobriu a mentira e a espoliação em que se assentava o império britânico. Tornou-se socialista.

Orwell não se comportou como o intelectual de esquerda comum, que escreve panfletos contra a classe dominante sem desligar-se dela socialmente. Resolveu experimentar em pessoa a vida dos pobres. Durante dois anos, trabalhou e vagabundeou em Londres e Paris, freqüentando os escalões inferiores da sociedade. Contou o que lhe aconteceu em Down and Out in London and Paris, também a ser editado pela Civilização Brasileira. Quando estourou a revolta fascista de Franco, êle seguiu para a Espanha a fim de defender com armas a causa republicana.

Mais tarde, sem abdicar de sua condição de socialista, tornou-se também um crítico agudo das deturpações do pensamento progressista, cuja degenerescência no totalitarismo êle criticou em vários ensaios e, principalmente, em 1984. Sua última obra, encontrada entre os papéis que deixou para a posteridade, é o ensaio Such, Such Were the Joys, onde narra o sofrimento e a solidão em que viveu na infância.

Em Lutando na Espanha (Homage to Catalonia), Orwell vê a guerra do ponto de vista individual, as misérias, frustrações e horrores experimentados pelo soldado comum, não importa a nobreza da causa que esteja defendendo. Êle humaniza a guerra a fim de revelar-lhe a desumanidade. É um livro simples, modesto e direto, mas só em aparência. Não contém abstrações ideológicas sôbre a condição humana. Fica no terra-a-terra de uma experiência individual diante do perigo concreto da morte, que não toma partido ideológico. Tanto melhor. Quando a guerra civil fôr apenas uma nota ao pé de página na História, a evocação de Orwell será reconhecida pelos nossos pósteros como a memória viva daqueles que pereceram lutando pela justiça e pela liberdade, transcendendo o meramente político e o meramente propagandístico.

Paulo Francis 

sexta-feira, 8 de março de 2013

Sobre o Dia Internacional da Mulher

O Dia Internacional da Mulher é 8 de março porque é a data do início da Revolução Russa.


Capítulo do livro Liberdade Versus Igualdade, vol. 1, O Mundo em Desordem, de Demétrio Magnoli e Elaine Senise Barbosa.

«Voto e Cidadania

A luta pelo voto foi o foco das diversas entidades, comitês e jornais criados a partir da segunda metade do século XIX por mulheres das classes média e alta. Segundo consta, em 1906 o jornal Daily Mail chamou as defensoras do voto feminino de suffragettes, com uma conotação claramente pejorativa. A expressão caiu no gosto das militantes e passou a identificar as mais radicais, ou seja, as que saíam às ruas para se manifestar, em ações cada vez mais combativas, até atingir o ápice em 1913, quando Emily Davison pôs fim à própria vida atirando-se sob as patas do cavalo do rei inglês Jorge V a fim de chamar a atenção para a questão do voto feminino.

Paralelamente, outra temática mobilizava um número ainda maior de mulheres, embora com um nítido recorte de classe: a luta pelos direitos trabalhistas e contra a superexploração a que estavam submetidas. As novas organizações de mulheres socialistas não inscreveram nas suas agendas originais o tema do voto feminino, mas o incorporaram à medida que crescia o movimento sufragista. A ideia de "pagamento igual para trabalho igual", uma ousadia sugerida apenas pelas mais radicais, não teve a aprovação nem dos dirigentes sindicais, nem da massa dos trabalhadores, e só bem mais tarde se converteu em reivindicação geral.

Instituíram-se datas de mobilização geral das mulheres trabalhadoras, embora estas variassem de acordo com o local. Oficialmente, foi no II Congresso Internacional de Mulheres Socialistas, em Copenhague, em 1910, que surgiu a ideia de se criar um Dia Internacional da Mulher, nos moldes do Primeiro de Maio, para concentrar atos políticos em favor dos direitos das mulheres. A autora da proposta foi a alemã Clara Zetkin, dirigente do Partido Social-Democrata e amiga de Rosa Luxemburgo, com quem participaria da criação da Liga Spartacus e, depois, do Partido Comunista da Alemanha, pelo qual se elegeu deputada.

Datas de comemoração, lembrança e luta são símbolos poderosos. Zetkin não sugeriu uma data para o Dia da Mulher e, nos primeiros anos, a comemoração se realizava em datas diversas nos diferentes países. Não se sabe ao certo como a celebração acabou se fixando internacionalmente no 8 de março. Mas a divergência entre a mais provável origem histórica da data e a narrativa predominante sobre esta evidencia um combate subterrâneo pela apropriação de um "lugar de memória".

Na Rússia, em 1917, celebrou-se o Dia da Mulher no 8 de março (23 de fevereiro pelo calendário juliano adotado no império dos czares). Naquele dia, as operárias têxteis deflagraram a Revolução de Fevereiro — e esse fato tem tudo para ser a origem da generalização da data. Curiosamente, porém, no imaginário do movimento feminista, a data acabou sendo associada a um evento diferente, ocorrido nos Estados Unidos, em 1911, mas no dia 25 de março: o incêndio na fábrica têxtil Triangle Shirtwaist Co. que matou mais de uma centena de operárias, rotineiramente trancadas para cumprir a jornada completa de trabalho.

A greve na Rússia remete à revolução e ao socialismo. O trágico incêndio nos Estados Unidos remete aos direitos gerais dos trabalhadores e à exploração sem travas da força de trabalho feminina, mas não necessariamente à luta anticapitalista. A memória fabricada tem sentido e significado, sobretudo por aquilo que deixa na sombra.

A eclosão da Primeira Guerra Mundial e a entrada maciça das mulheres em setores de trabalho até então exclusivamente masculinos foram um divisor de águas. Se os homens sofriam nas trincheiras e morriam lutando, as mulheres, sobretudo as da classe média, sofriam pela perda da segurança que durante séculos haviam sido ensinadas a buscar no matrimônio e na submissão aos pais e maridos. A partir daquele momento, a sobrevivência da família estava em suas mãos. Ao mesmo tempo, paradoxalmente, elas conquistavam uma liberdade inédita e podiam afinal decidir suas próprias vidas.

Encerrado o conflito, os governos encontraram dificuldades para justificar a falta de direitos políticos a quem agora tinha autonomia econômica. As leis eleitorais começaram a se adaptar à nova realidade, a princípio concedendo o direito de voto apenas às casadas ou alfabetizadas, para depois atingir a universalidade. Dinamarca e Islândia aceitaram o voto feminino em 1915. Na Rússia, o voto chegou com a Revolução. Na Grã-Bretanha, Áustria, Alemanha e Canadá, em 1918. Estados Unidos e Holanda, em 1919. No Brasil, em 1932, ampliado em 1934 pela constituição varguista. Na França, contudo, as mulheres tiveram que esperar até o fim da Segunda Guerra Mundial e, em alguns cantões suíços, até 1971.»


Foram muitos os incêndios registrados em fábricas têxteis nos Estados Unidos provocados pela associação entre materiais altamente inflamáveis, iluminação a querosene e portas trancadas para evitar que as operárias abandonassem as oficinas antes do término dos longuíssimos expedientes. Centenas de mulheres morreram antes que os governos estaduais criassem as primeiras leis referentes à segurança e à salubridade nos locais de trabalho.

Dia Internacional da Mulher - Três Mulheres que Inspiraram o Movimento Libertário Moderno


Ainda vou traduzir o artigo todo*, mas, em homenagem ao Dia Internacional da Mulher, aqui vai o início de um texto de Jim Powell, de 1996, sobre Rose Wilder Lane, Isabel Paterson e Ayn Rand, que me levou a ler os livros das duas primeiras.

«A liberdade estava em pleno retrocesso no início dos anos 40. Tiranos oprimiam ou ameaçavam povos em todos os continentes. Intelectuais ocidentais lavavam a reputação de assassinos em massa como Joseph Stalin, e governos ocidentais expandiam seu poder com planejamento central no estilo soviético. Cinquenta milhões de pessoas foram mortas na guerra que assolou a Europa, a África e a Ásia. Os Estados Unidos, aparentemente a última esperança para a liberdade, foram empurrados para ela.

Autores americanos estabelecidos que defendessem a liberdade eram uma espécie em extinção. H. L. Mencken havia deixado a política amarga para escrever suas memórias, enquanto outros como Albert Jay Nock e Garet Garret estavam atolados em pessimismo.

Em meio ao pior dos tempos, três mulheres corajosas expulsaram o medo. Ousaram declarar que o coletivismo era nocivo. Tomaram o partido dos direitos naturais, a única filosofia que fornece uma base moral para a oposição à tirania em qualquer lugar. Louvaram o antiquado e envelhecido individualismo. Previram um futuro em que as pessoas poderiam ser livres outra vez. Expressaram um alegre otimismo que inspiraria milhões.

Todas eram outsiders que superaram começos difíceis. Duas eram imigrantes. Uma nasceu no território de fronteira, que na época ainda não era parte dos Estados Unidos. Lutaram para ganhar dinheiro como escritoras em mercados comerciais dominados por adversários ideológicos. Todas quebraram financeiramente uma vez ou outra. Passaram por sofrimentos com homens – uma permaneceu num casamento que se tornou estéril e duas outras se divorciaram e nunca se casaram novamente.

Essas mulheres que tiveram origens tão humildes — Rose Wilder Lane, Isabel Paterson e Ayn Rand — publicaram obras-primas no mesmo ano, 1943: A Descoberta da Liberdade (The Discovery of Freedom), O Deus da Máquina (The God of the Machine) e A Fonte (The Fountainhead), respectivamente. Relembra o jornalista John Chamberlain que elas, “com desdenhosos olhares de relance para a comunidade de negócios masculina, decidiram reacender a fé numa antiga filosofia americana. Não havia entre elas nenhuma economista. Nenhuma delas era Ph.D.” Albert Jay Nock declarou que “elas fazem todos nós escritores homens parecermos dinheiro Confederado. Elas não se confundem nem perdem tempo — cada tiro vai direto ao centro do alvo.”»

http://www.fee.org/the_freeman/detail/rose-wilder-lane-isabel-paterson-and-ayn-rand-three-women-who-inspired-the-modern-libertarian-movement#axzz2Mzm2wxs1

* Já traduzi o artigo. Está aqui.

domingo, 3 de março de 2013

Quero Liberdade, de Rose Wilder Lane

Terminei de postar o livro Quero Liberdade (Give Me Freedom), de Rose Wilder Lane, que traduzi em 2012.

Esse livro, publicado em 1944, é a segunda versão de um texto que ela escreveu originalmente como um artigo para uma revista. O primeiro título era Credo. Saiu na edição de 7 de março de 1936 de The Saturday Evening Post.

Até hoje, não encontrei o texto original na Internet. Acabei de comprar, num sebo, essa edição da revista. Estou esperando que chegue. Se houver diferenças interessantes entre as duas versões, vou escrever sobre isso.

Estou começando a traduzir O Deus da Máquina (The God of the Machine), de Isabel Paterson, outra das libertárias de 1943 (assim como Ayn Rand). Pretendo começar a postar regularmente os capítulos em breve.

Aqui vai um link para cada capítulo de Quero Liberdade.

I
V
X

Quero Liberdade (cap. XV), de Rose Wilder Lane

XV

Há dez anos, escrevi: O teste vem agora.

Os americanos cantavam: – Os dias felizes voltaram! – Dorothy Thompson publicou I Saw Hitler, relatando que o homenzinho era um alarme falso porque seu programa ilógico não conseguiria influenciar a mente lógica alemã. Ela exclamou exultante para mim: – Rose! Estamos de fato assistindo o fim do capitalismo! – Os capitalistas americanos rapidamente fizeram dela seu oráculo favorito.

Dos intelectuais-papagaios vinha um barulho: “Agora tudo mudou, não há mais terras grátis” e “Liberdade – para quê? Liberdade de passar fome?”

Um fazendeiro no Kansas olhou por seus campos secos, improdutivos há cinco anos, e me disse lentamente: – As pessoas superam as dificuldades. Nos anos 90, trabalhei com uma pá para proteger o trigo do gorgulho, quarenta alqueires com uma pá, uma vez por semana durante todo o inverno. Arrastei o trigo para a cidade na primavera, por dezesseis milhas pela lama, num carroção, e vendi por quarenta centavos o alqueire. As pessoas superam as dificuldades. As pessoas fazem um país. O que não consigo entender é: como alguém pode achar que o governo pode nos sustentar se somos nós que sustentamos o governo.

Numa escolinha solitária no campo, um político de fala mansa tentava ganhar a audiência maltrapilha: – Então, é isso que fizemos por vocês, agricultores. Fomos para Washington por vocês e trouxemos um Ford. Desta vez, vamos voltar lá e vamos conseguir para vocês um Cadillac!

Um silêncio obstinado pesou sobre a sala. O orador disse a mim em particular: – Esses caipiras estúpidos! Precisamos ensiná-los com um porrete.

O sr. Henry Wallace, Secretário da Agricultura, anunciou que os fazendeiros devem ser obrigados a obedecer ordens. “Charrete” se tornou um termo depreciativo e, de vez em quando, em postos de gasolina ou restaurantes 24 horas para caminhoneiros, pode-se ouvir: “Bem, é isso, a Constituição está ficando muito velha, talvez seja a hora de termos algo novo.” Apareceram casquinhas de sorvete duplas, triplas e Jumbo por um níquel; cigarros em celofane e, sob as estrelas do verão, vozes jovens cantam: “Till I grow too old to dream, your name will live in my heart.”1

Em Des Moines, ouvi a discussão de oito empresários influentes. O Congresso abdicou. O poder executivo federal, por decreto, estava saqueando os bancos; os banqueiros estavam em silêncio. O poder político, consolidado e sem restrições, estava destruindo a estrutura política americana. A lei civil não protegia mais os direitos humanos. Eles diziam: – Não há escapatória. Tínhamos a única proteção aos direitos humanos na terra e ela se foi. O mundo vai voltar para a Idade Média.

Eu disse: – Como vocês podem estar cientes disso e não fazer nada? É possível? Vocês sabem que nosso país está sendo destruído e não fazem nada para salvá-lo? Vocês de fato entendem que sua propriedade, sua liberdade, sua vida está em perigo e não fazem nada?

É isso mesmo – eles diziam.

Era um pesadelo. Quando encontrava alguém que entendia a situação como eu, essa pessoa não tinha esperanças, e o pessimismo em si não é americano. Os americanos consideram verdade que todos os homens nascem iguais e dotados pelo Criador de inalienável liberdade. A liberdade é a natureza do homem; toda pessoa se auto-controla e é responsável por seus pensamentos, sua fala, seus atos. Isso é um fato; sabemos disso; os americanos estabeleceram esta República sobre esse fato. E duvidar que o conhecimento de qualquer fato deva dissipar a ignorância desse fato é negar a pura realidade de toda a experiência humana. Acreditar que qualquer ação baseada na ignorância dos fatos tenha chance de ser bem sucedida é abandonar o uso da razão.

Meus amigos diziam: – É inútil, nada pode ser feito. Os americanos desistiram de querer liberdade.

A resposta a isso é: – Você desistiu? O que VOCÊ está fazendo para defender sua liberdade?

Eles respondem cansados, como os europeus: – Um indivíduo não é nada. Você não pode resistir à história.

Resistir à história? – digo eu. – Você e eu fazemos a história. A história não é absolutamente nada além do registro do que pessoas vivas fizeram no passado. Os americanos fazem a história e a América não está morta. Existe um fazendeiro no Kansas.

E em quem ele vota? – eles replicam.

É uma visão rasa. O problema não é de política partidária. O problema em questão é a sobrevivência da legislação constitucional americana, da estrutura política americana. É um problema político real e os grandes partidos políticos não representam problemas políticos reais desde a década de 1860. Esses partidos não defendem princípios políticos opostos; eles diferem apenas nos métodos. Por exemplo: um defende impostos mais altos; o outro, impostos mais baixos. Nenhum deles apresentou aos eleitores o problema político real entre os impostos e o livre comércio.

Os dois grandes partidos apenas disputam os cargos públicos. A política americana, assim chamada, é um esporte profissional, uma questão de organização, trabalho em equipe e conquista de votos. As eleições são eventos esportivos, como os jogos de baseball; e os americanos acertadamente as consideram um esporte2.

Enquanto isso, há meio século, influências reacionárias da Europa vêm deslocando o pensamento americano para um fundamento de premissas socialistas. Nas cidades e estados, ambos os partidos começaram a socializar a América com imitações da Alemanha do Kaiser: leis de bem-estar social, leis trabalhistas, leis de salário-mínimo, leis de previdência social e a chamada propriedade pública.

Há onze anos esse socialismo rastejante brotou, armado com o poder federal, e os americanos – de repente, ao que parece – confrontaram-se pela primeira vez na vida com uma questão política real: a escolha entre o individualismo americano e o nacional-socialismo europeu.

O americano vai defender a Constituição que divide, restringe, limita e enfraquece o poder político e policial, e assim protege a liberdade pessoal de cada cidadão, seus direitos humanos e seu exercício desses direitos numa economia livre, produtiva e capitalista e numa sociedade livre?

Ou vai permitir que a estrutura política destes Estados Unidos seja substituída por um estado socialista, com seu poder de polícia centralizado e irrestrito dividindo os indivíduos em classes, suprimindo a liberdade individual, sacrificando os direitos humanos em nome de um imaginado “bem comum” e substituindo a legislação civil por decretos ou “diretivas”, chamados de maneira precisa no passado de “tirania” e chamados hoje de “legislação administrativa”?3

É esta escolha que todo americano tem de fazer. Não há como fugir dela; a situação atual a coloca perante nós e exige uma decisão.

Todo americano vive hoje a primeira crise política que já viu. De sua decisão e de sua ação dependem seu direito à propriedade, seu exercício da liberdade natural e a segurança de sua própria vida. Porque absolutamente nada exceto a Constituição e a estrutura política destes Estados Unidos protege os americanos da captura arbitrária de sua propriedade e de sua pessoa, da Gestapo e das Tropas de Assalto, dos campos de concentração, da câmara de tortura, do revólver na nuca num porão. Não sou alarmista, é um simples fato.

Os grandes partidos políticos não representam ainda essa questão política.

Em 1933, um grupo de coletivistas sinceros e ardentes tomou o controle do Partido Democrata, usou-o para conquistar o poder federal e, entusiasticamente, por motivos que muitos deles consideram o mais alto idealismo, começou a transformar a América. O Partido Democrata é hoje um mecanismo político que tem um princípio político genuíno: o nacional-socialismo.

O Partido Republicano continua sendo um mecanismo político sem princípio político. Ele não defende o individualismo americano. Seus líderes continuam a praticar o mesmo esporte profissional americano de conquistar votos de 70 anos atrás, chamado política.

Os americanos (de ambos os partidos) que defendem princípios políticos americanos, portanto, não têm meios de ação política pacífica. Um voto no New Deal aprova o nacional-socialismo, mas um voto no Partido Republicano não repudia o nacional-socialismo.

Derrotar o New Deal nas urnas poderia talvez deter o retrocesso do país, mas não é o suficiente para fazer a América voltar a avançar. O estado coletivista não foi inventado em 1932. O princípio político do New Deal vem de Platão, através da Idade das Trevas, da Idade Média, passando por vários desenvolvimentos, por Maquiavel, Rousseau, Fourier e Hegel – que define liberdade como “submissão ao Estado”.

Karl Marx adotou esta antiga mentira de Hegel e fundou a Primeira Internacional Socialista baseada nela. Marx queria a “liberdade” de Hegel para “as classes trabalhadoras”. Bismarck tomou a ideia de Hegel e Marx, usou-a para esmagar os liberais alemães e fundou sobre ela sua Socialpolitik, que é hoje chamada aqui de Seguridade Social.

Lênin concordou com os princípios de Marx, mas não com os métodos. Em 1903, numa conferência em Londres, Lênin dividiu a Segunda Internacional Socialista por causa de uma questão de método e assim começou o conflito entre facções de coletivistas que se tornou a guerra entre comunistas e fascistas. Os europeus e asiáticos do Volga ao Mediterrâneo estão se matando não por princípios opostos de liberdade e tirania, mas por diferentes métodos de usar o mesmo princípio de tirania.

Depois de esmagar a tentativa de estabelecer direitos humanos na Alemanha, Bismarck construiu o centralizado, socializado, despótico Estado Alemão, e os estadistas do mundo e pensadores reacionários o admiraram com fervor. Há quarenta anos, os intelectuais-papagaios da América repetiam sem cessar “A Alemanha está cinquenta anos à nossa frente na legislação social”.

Cegos à América e venerando a Europa, esses pseudo-pensadores reacionários deslocaram o pensamento americano para o seu contrário, num esforço para alcançar a Alemanha do Kaiser. Chamaram de “liberal” a supressão da liberdade; “progressista” o fim da livre iniciativa que é a fonte de todo o progresso humano; “liberdade econômica” a obstrução de toda liberdade; e “igualdade econômica” a escravização do homem.

Ensinaram minha geração que a Revolução Americana foi só uma guerra que terminou em 1782. Nunca ouvimos que estes Estados Unidos são uma estrutura política única em toda a história, construída sobre um fato natural nunca antes usado como princípio político: o fato de que as pessoas individuais são naturalmente livres, autocontroladas e responsáveis.

Em nossa ignorância, não conseguíamos ver que a Alemanha do Kaiser e a Internacional Comunista eram simplesmente dois aspectos da reação do Velho Mundo contra o novo: o princípio americano de liberdade individual e direitos humanos. Os líderes americanos do pensamento, a quem respeitávamos, diziam que a reação comunista era a revolução mundial.

Foi essa mentira que nos enganou. Os americanos são os revolucionários mundiais. Estes Estados Unidos defendem um princípio político que vai conquistar e mudar o mundo inteiro, porque é verdadeiro. Três gerações de americanos vêm criando um novo mundo, o mundo moderno. É nossa tradição, nossa herança, o impulso inconsciente de nossas vidas, destruir o velho para criar o novo. Nossa ignorância nos traiu; acreditamos em rótulos. Desejamos a coisa arcaica que estava marcada como “Nova”.

O New Deal criou raízes há vinte e cinco anos nas faculdades americanas e nos bairros pobres de Nova York, onde, sob risco de violência policial, ouvíamos esses idealistas ignorantes como Jack Reed. Sonhamos que éramos os revolucionários mundiais. Éramos os reacionários, minando a verdadeira revolução mundial na origem, no nosso próprio país.

Desde 1933, a reação avançou rapidamente e avançou muito. (Embora até agora, os Estados Unidos ainda não tenham alcançado a Alemanha em “legislação social”.) Hoje, as agências administrativas federais quase destruíram aquelas divisões do poder político que sozinhas protegem a propriedade, a liberdade e a vida do cidadão americano. O poder administrativo político e policial não pode ser dividido, não pode nem mesmo ser submetido à lei civil, porque um estado que determina as ações humanas na produção e distribuição de bens precisa do poder absoluto e indivisível.

O Congresso não pode mais ser aquele que faz as leis, quando tantos chefes de departamentos e agências diariamente emitem portarias que a polícia faz cumprir como se fossem leis.

Os Estados são invadidos por enxames de coletores de impostos federais e agentes federais que dão ordens aos cidadãos e corroem os últimos poderes dos Estados. E os direitos civis do cidadão têm de desaparecer, uma vez que o poder de autodeterminação de sua comunidade e de seu Estado é usurpado por um poder nacional centralizado.

Hoje, os fazendeiros americanos estão sendo comprimidos numa classe camponesa, sujeita a ordens e punições decretadas por uma classe governante. Hoje, na América, existe uma classe trabalhadora; pelo decreto de 1º de julho de 1944, cinquenta e oito milhões de americanos estão atrelados às linhas de montagem como os servos da Idade Média eram atrelados à terra. Agora, neste momento, nenhum americano pode trabalhar ou parar de trabalhar, nem escolher seu trabalho, nem seu horário de trabalho, nem seu salário em qualquer ramo de atividade; nem produzir, nem vender, nem comprar, nem consumir as coisas necessárias à vida humana sem a permissão de algum autocrata.

Mas é uma emergência. De fato, é. É uma emergência de cinquenta anos, uma emergência que ficou aguda desde 1933, e que se torna mais perigosa a cada hora. Uma eleição não vai terminar com ela, nem a vitória nesta guerra mundial. Porque aqui e na Inglaterra, em toda a Europa e na Ásia, os estadistas que governam supõem que essa supressão da liberdade é boa para a humanidade e que essas novas formas de uma velha tirania vieram para ficar. A questão que eles discutem é: Como estender esses chamados “controles” para o mundo inteiro?

Eles acham que o mundo moderno vai continuar a existir. Mas este mundo moderno, esta civilização moderna só existe onde os homens foram, por dois curtos séculos, libertos dessas antigas tiranias de estado, chamadas controles. Livre pensamento, livre expressão, livre ação e propriedade desembaraçada são a origem do mundo moderno. Ele não pode existir sem essas liberdades. Sua existência depende da abolição desses controles estatais reacionários e da destruição do Estado socialista.

A tarefa diante dos americanos é acabar com esses controles policiais dos pacíficos e produtivos cidadãos americanos; abolir toda a legislação reacionária e revogar os decretos do Executivo que estabelecem o regime nacional-socialista; desmontar as corporações, departamentos, repartições e agências federais que impõem e fazem cumprir esses controles estatais; devolver três milhões de comedores de impostos federais ao trabalho útil e pagador de impostos; libertar os fazendeiros americanos da socialização de Bismarck e tirar das costas dos operários americanos o peso da Socialpolitik de Bismarck, aqui chamada de “Seguridade Social”; e exigir dos homens que detêm cargos públicos que reconheçam de novo o direito natural de todo americano, como pessoa livre, de possuir e cultivar sua terra e colher o fruto de seu trabalho, de gerenciar e ter lucros ou prejuízos em seu negócio, de possuir e gastar ou poupar seu próprio dinheiro, de se filiar ou não se filiar a um sindicato, de assinar ou não assinar um contrato, de escolher seu próprio trabalho e negociar o salário que recebe ou que paga, individualmente ou como membro de qualquer grupo de outros homens livres.

Nenhum politico, até agora, pediu aos eleitores americanos que lhe deem o poder para arrancar de qualquer Estado os poderes que ele usurpou dos seus cidadãos, nem de arrancar do Governo Federal os poderes que ele usurpou dos Estados; para restaurar os direitos dos cidadãos, os direitos e poderes dos Estados e a estrutura política desta União de Estados; nem para acrescentar à lista original de restrições ao poder político – a lista conhecida como Bill of Rights – mais restrições que protejam adequadamente a propriedade, a liberdade e a vida das pessoas do mundo moderno e façam os Estados Unidos novamente o líder mundial dos direitos humanos e da revolução para libertar o mundo.

Os americanos que já assumiram essa tarefa, e a executarão, são indivíduos – o indivíduo que é chamado de “nada” e tratado com paternalismo como “o homenzinho” na Alemanha e como “o homem comum” aqui, o indivíduo que faz e refaz o mundo.

É um gráfico no Texas, que imprimiu uma carta que vinte milhões de americanos leram, embora não tenha aparecido em nenhum jornal; o fazendeiro em Nebraska que se negou a pagar uma multa por plantar trigo e foi para a cadeia “pelo princípio”; o empresário que assinou a Declaração dos Cinquenta Cidadãos de Wichita; os fazendeiros de Nova Jersey que não permitem que os agentes federais classifiquem os ovos de Nova Jersey e rebaixem seu padrão de qualidade; o empregador em Ohio que gasta sua fortuna e põe em risco a existência de sua empresa resistindo à tirania federal que o forçaria a reduzir os salários que paga; as centenas de milhares de homens e mulheres em todos estes estados que estão se levantando e agindo em defesa de seus direitos.

Meio século de retrocesso faz de nosso país menos do que ele poderia ter sido. Mas uma revolução mundial não pode ser vencida sem encontrar reação contrária. Esta última década de nacional-socialismo reacionário agora causa dificuldades para todos os americanos. Mesmo assim, no teste da guerra, este povo, o mais individualista, o até agora menos socializado, apoia ou derrota o Velho Mundo inteiro. Como disse Stalin em Teerã, a produção capitalista americana está vencendo esta guerra mundial. Os homens despreparados e destreinados para a guerra têm a energia econômica e militar que vence na guerra o mais socializado de todos os povos, bem treinado para a guerra pelo serviço militar obrigatório.

Em todos estes Estados, os americanos já estão se unindo em grupos para defender a liberdade em paz. Esses grupos de indivíduos livres, que se organizam e agem por um objetivo comum, são os instrumentos do individualismo. Os americanos têm prática em seu uso. Nossa sociedade livre é um complexo ativo de incontáveis grupos, agindo mutuamente por incontáveis objetivos – Rotary, Lions, Elks, Ladies’ Aids, todas as igrejas, Associações de Pais e Mestres, clubes femininos, D. A. R., Filhas da Confederação, Filhas de 1812, Câmaras de Comércio, Associações de Bibliotecários, a lista é infinita. Agora, os americanos estão se unindo em grupos para defender a liberdade e os direitos humanos. Um americano que toma essa defesa em sua comunidade, sua empresa, seu trabalho logo descobre que não está só.

Os americanos individuais estão acabando com o período reacionário por aqui. Os americanos estão outra vez pensando politicamente, como não fizeram por oitenta anos, e eles não esqueceram que resistir à tirania é obedecer a Deus. Estão respondendo à pergunta que eu não devia ter feito há dez anos. Estão respondendo agora na Europa e na Ásia, e amanhã responderão em casa. A resposta é: Sim, o individualismo tem força para resistir a todos os ataques.
1 Até que eu fique velho demais para sonhar, seu nome vai morar no meu coração. Da música “When I Grow Too Old to Dream”, do filme “The Night is Young”, de 1935. (NT)
2 "A campanha presidencial está naquele momento de calma, depois que o árbitro apitou e antes que a bola comece a zunir pelo campo."—Raymond Moley na Newsweek, de 11 de setembro de 1944. (NA)
3 Tomo esta definição do livro de Ludwig von Mises, "Omnipotent Government: The Rise of the Total State and Total War." Yale University Press. (NA)