sábado, 27 de abril de 2013

Mais um crime brutal que ficará impune


A sociedade está chocada mais uma vez com um crime bárbaro, brutal, sem sentido. Outra vez, com o envolvimento de um menor de 18 anos.

Cinthya Magaly Moutinho de Souza, dentista, de 46 anos, morreu queimada. Seus assassinos atearam fogo a seu corpo porque ela só tinha R$30,00 na conta bancária. Fugiram no Audi da mãe de um deles.

Quem é capaz de tal ato ultrapassou os limites que permitem que os seres humanos convivam em sociedade. Considero que isso é irreversível. Não acho que alguém que tenha chegado a esse ponto seja capaz de voltar dele. Se eles fossem submetidos a qualquer tipo de castigo cruel, desumano ou degradante que se possa imaginar, eu não teria o menor dó. Porém, reconheço a humanidade dos quatro, essa humanidade que eles não reconheceram em Cinthya. São gente como você e eu e, portanto, sua pessoa é e deve ser inviolável. Na minha república ideal, provavelmente cumpririam prisão perpétua. Ficariam numa cela limpa, de preferência sem a companhia de outros presos, com alimentação saudável, assistência médica, uma biblioteca e uma horta, para o caso de quererem trabalhar. Pelo resto da vida. Se eles saíssem, a sociedade estaria ameaçada.

Porém, eles vão sair. Os maiores de idade podem ser condenados a, no máximo, 30 anos. Com a progressão de regime garantida por nossa Lei de Execução Penal, serão libertados depois de 12 anos. O menor de 18 anos não pode ficar internado mais de 3 anos. Não saberemos seu nome. Ele poderá exercer plenamente sua cidadania, trabalhando em qualquer lugar, candidatando-se a cargos públicos, sem qualquer tipo de restrição. Se quiser obter uma arma legal, provavelmente conseguirá. O nome que dou a isso é impunidade.

A legislação brasileira não protege a sociedade. Posso dizer isso logo depois de um crime chocante ou em outro momento em que não tenha ocorrido um crime recente. Mas muitas pessoas dirão que não podemos legislar sob o impacto dos acontecimentos. E não legislaremos nem com nem sem esse impacto.

Quero ressaltar que duas coisas que não têm nada a ver com esse crime são o governo e a venda legal de armas. O governo pode fazer policiamento ostensivo, ter excelentes ações de inteligência, melhorar as condições salariais e de trabalho dos policiais, aumentar o controle da sociedade sobre as ações de segurança, o que for. Não tem como impedir que um grupo de psicopatas decida cometer uma ação bárbara e seja bem sucedido. A única coisa que as forças de segurança podem fazer nesse caso é prendê-los depois do fato. E o crime não foi cometido com armas legais. A venda delas ou sua proibição seriam indiferentes neste caso.

Inúmeros poetas do crime vão culpar "a sociedade", "a desigualdade", "a opressão", "a miséria" ou "a ostentação". Ora, resta evidente que o criminoso tinha condições econômicas melhores que sua vítima neste caso. Se neste caso a culpa não é da "sociedade", posso supor que também não seja em outros. O objetivo do desabafo que escrevo é declarar que o crime é uma decisão moral, de responsabilidade exclusiva do indivíduo que o comete.

sexta-feira, 26 de abril de 2013

O Deus da Máquina, capítulo II


No segundo capítulo de O Deus da Máquina, O Poder das Ideias, Isabel Paterson questiona por que sentimos que os fenícios, que foram tão poderosos e importantes em seu tempo, não nos legaram nada. Entendemos que somos herdeiros dos gregos e dos romanos, mas não dos fenícios. Ocorre que a estrutura da Europa e depois a do Novo Mundo se originaram de três ideias: uma grega, uma romana e a terceira, que será tratada no próximo capítulo.

Costumamos pensar no valor da arte e da literatura da Grécia. Mas as artes gregas são estáticas. A arquitetura é extremamente simples e inorgânica. Politicamente, os gregos usaram a lógica para superar a tradição, mas não encontraram um princípio. Como resultado, não conseguiram um sistema estável. A ideia revolucionária dos gregos, encarnada em Pítias, é a Ciência.

Os gregos entenderam que o conhecimento tem valor em si mesmo e que é possível relacionar o conhecimento de áreas diversas, sistematizá-lo e ampliá-lo indefinidamente. Porém, desprezavam as aplicações práticas do que descobriram. Acreditavam que o objetivo de sua pesquisa devia ser unicamente o prazer intelectual de conhecer a verdade.

Subitamente, foram conquistados pelos romanos, que haviam tido outra ideia revolucionária: a Lei. Povos primitivos acreditam que suas leis são imutáveis, baseiam-se no costume. Porém, quando as condições mudam de maneira muito abrupta, o costume não é suficiente para lidar com a nova situação. Surge a necessidade de haver uma liderança que decida o que fazer. Isso resolve o problema por algum tempo, até que a sociedade se torne mais complexa. Quando são necessárias instituições mais permanentes e organizadas, a liderança não dá conta disso e aparece a monarquia. É fácil a monarquia se converter em despotismo.

Talvez Roma nunca tenha sido uma comunidade bárbara. Sabemos que, desde cedo, usava-se dinheiro em Roma e as terras eram propriedade privada. São elementos de uma civilização avançada. Roma também concedia asilo a estrangeiros. Era necessário nascer grego, mas era possível tornar-se romano. Com esse contexto, Roma procurou resolver o problema da estrutura de governo em bases racionais e criou a República. A base da sociedade era a família. Havia os clãs, que eram uma aristocracia sem a hierarquia do feudalismo posterior. Havia os plebeus, que eram a massa da população, mas não necessariamente os pobre. E um dos pilares do sistema que construíram eram as tribos, uma divisão territorial, não ligada à ancestralidade.

Havia diversos mecanismos para proteger a sociedade de tentativas de usurpação: dualidade nos cargos, mandatos fixos e curtos, controle civil sobre os militares, igualdade entre os senadores, liberdade de expressão. E um mecanismo de obstrução: os tribunos da plebe. Esse sistema funcionou por séculos.

O Poder das Ideias

O Deus da Máquina
O Poder das Ideias
Isabel Paterson



Na perspectiva histórica, os fenícios são únicos; embora tenham tido uma participação ativa e extraordinária nos eventos de seu tempo, foi no papel de antagonistas. No instante em que desapareceram, desvaneceram-se em irrealidade, sem deixar resíduo. Não sentimos que tenham nos legado nada de substancial, nada que tenha se incorporado a nossos ossos, se entrelaçado na textura de nossa vida. É extremamente paradoxal, uma vez que nossa herança da Grécia e de Roma consiste em abstrações, enquanto os fenícios eram práticos e tiveram sucesso com um tipo de organização internacional. Acima de tudo, tocaram os pontos em que nossas ideias vitais se originaram. Sua atividade estimulou a Grécia a especular e forçou Roma a se expandir; erigiram o Templo de Jerusalém e receberam como garantia as humildes aldeias da Galileia. Foram transportadores e catalisadores. Porém, parece que começamos novamente com a Grécia e com Roma. Racionalmente, não pode ser verdade; mas a ilusão deve ter uma razão. É que os fenícios eram intrinsecamente um fenômeno físico. Conectaram-se a um circuito de energia ao qual seu mecanismo político não podia se ajustar. Nos assuntos humanos, o que dura é apenas o que está no pensamento dos homens. A humanidade como tal é um conceito intelectual. Como nação, os fenícios se desintegraram pelo impacto de uma nova ideia. Mas três novas ideias já estavam nascendo, que formariam a estrutura da Europa e, mais tarde, recombinando-se, criariam o Novo Mundo. Essas ideias complementares precisam ser relembradas.

A fama da Grécia é normalmente identificada com a arte e as letras; mas a influência duradoura da Grécia não deriva de nenhuma das duas. A arquitetura grega é do mais simples design, inorgânica como um cristal, famosa pela proporção delicada e pela refinada ornamentação, mas sem indicar nenhum desenvolvimento posterior. A escultura grega fixava um tipo escolhido em perfeição imutável. A arte da Grécia era autocontida e estática. Escapa dos limites pela qualidade atemporal de um momento de beleza salvo e preservado, desafiando o fluxo eterno. Da mesma maneira, os gregos estavam num beco sem saída em seu sistema social. Suas divindades não possuíam ordem moral, representando, em vez disso, o capricho indiferente da natureza em relação ao homem. Além disso, os deuses tornaram-se distantes; para os homens educados, a fé era diluída numa fantasia poética. Como consequência, os gregos tendiam a considerar o universo como fenômeno puro. Os costumes domésticos gregos não faziam do lar um centro de forte envolvimento emocional. O companheirismo mental era procurado em outro lugar; restrições normais foram afrouxadas a um grau sem precedentes. O método político grego era análogo a tudo isso, como é de se esperar num lugar em que a lógica suplantou a tradição e, mesmo assim, não encontrou um princípio. A democracia é puro processo, consistindo em uma série de expedientes pragmáticos, aos quais se chegava pelo voto da maioria, pelo veredito dos números. Seus resultados são aleatórios e não há continuidade, exceto nas pessoas envolvidas. Na verdade, funciona pela força do costume e é, portanto, irrealizável exceto com uma pequena comunidade de uma cultura completamente homogênea. Mesmo assim, pelo hábito grego de pensamento, que era a livre investigação, o costume já estava desacreditado. A democracia inevitavelmente descamba em tirania; mas enquanto está instável, pode deixar temporariamente uma larga margem de conduta e pensamento não regulados. Não se presume que seja assim por direito; isso ocorre porque o poder do todo (o povo) é teoricamente um poder plenário indiferenciado em suas partes ou agências. O que é problema de todos não é problema de ninguém. O poder pleno só pode ser exercido em uma economia fechada, como a que havia em Esparta, onde realmente não havia nenhuma margem para nada. Os atenienses, estando abertos ao comércio, por algum tempo tomaram a liberdade de pensar. O comércio e as viagens permitiram que fizessem observações comparativas; eram ávidos por ouvir coisas novas. A ideia que desenvolveram, tomada por si mesma, corroeu as instituições que possuíam; agravou o perigo em que estavam ao enfraquecer o tecido social. Ainda assim, eles a formularam corajosamente; e foi sua contribuição para o futuro. Pítias a encarnou. Os gregos tiveram a ideia da ciência.

Os selvagens adquirem informações sem classificá-las em categorias conforme os atributos ou qualidades das coisas. Sociedades mais avançadas, mas ainda estabelecidas sobre a tradição, possuem ramos separados de conhecimento que são basicamente considerados como dados pela divindade. Assim, uma investigação mais aprofundada de certas questões pode ser proibida como ímpia. Os gregos tinham as fábulas premonitórias de Prometeu e de Ícaro. Entretanto, perceberam que todo conhecimento poderia ser interconectado e que seria possível ampliá-lo indefinidamente por meio da pesquisa racional. Examinaram os processos do intelecto, aguçaram e testaram suas mentes para se concentrarem em generalizações e na busca por axiomas. De maneira inconsistente, desprezaram a aplicação prática. Ciência, diziam, deve ser buscada pelo prazer intelectual de se conhecer a verdade. Essa atitude singular surgiu das condições políticas adversas. A aplicação da ciência à produção necessita de respeito à propriedade privada, de trabalho livre e de tempo suficiente para que os benefícios oriundos do esforço e do capital despendidos possam retornar. No caso dos gregos, a instabilidade inescapável da democracia não dava nenhuma segurança ao indivíduo contra a massa, nem à nação contra um ataque externo. Porém, enquanto as ideias de um homem permanecerem puramente especulativas e o usufruto confinado ao prazer intelectual, ele não poderá ser privado dessas coisas enquanto viver e é assim que ele vai deixar que as coisas fiquem. Um homem só pode pensar e trabalhar efetivamente se for por seu próprio benefício.

Ainda assim, essa negação extraordinária pode ter tido alguma utilidade naquelas circunstâncias, ao enfatizar o valor intrínseco do pensamento. E é verdade que, quando os homens ficam absorvidos em dispositivos práticos, correm o risco de estreitar seu campo de visão e perder de vista a interconexão entre os vários ramos do conhecimento. Mais que isso, como é o caso em questão, irão até se esquecer dos princípios mais amplos que aplicaram e dos quais depende seu bem-estar.

Mas a implicação que os gregos deixaram de lado era, no fim das contas, inescapável. A ciência é o governo da razão. Em vez de se resignar ao destino inexorável do cego acaso, poderia ser possível, discernindo-se as causas dos eventos, ordená-los segundo a vontade e realizar o que os homens desejam. Uma abstração moverá uma montanha; nada pode resistir a uma ideia. Os gregos encontraram a alavanca.

Aparentemente, os eventos zombaram deles. Enquanto filosofavam, a montanha se moveu numa avalanche; Roma os conquistou. A julgar pela aparência, dir-se-ia que foi uma vitória da substância bruta, uma refutação da premissa oculta de superioridade da mente sobre a matéria. Não foi; ao contrário, mesmo em sua ocorrência imediata, foi uma vitória do intelecto. Roma também desenvolveu uma abstração, um conceito político, que estava entre os universais. Roma teve a ideia da lei.

Todas as nações possuem leis; os mais primitivos selvagens estão obrigados por costumes e um costume que obriga é uma lei. Um tabu é uma lei petrificada. Povos primitivos acreditam que suas leis são permanentes, mesmo que arbitrárias, como "a lei dos medas e persas, que não pode ser alterada".1 O significado efetivo é que o costume pode se alterar somente por graus imperceptíveis, se deve se manter válido. Um costume não pode ser novo. A consequente desvantagem é que, se um costume reinante é subitamente quebrado, não há um substituto imediato. O que pode acontecer, por causa de guerra, peste, migração, ou até por inovações que seriam benéficas, é um período de confusão, em que o hábito é interrompido e são tentados expedientes; mas as instituições resultantes não podem durar a menos que estejam imbuídas de sentimentos tradicionais. É claro que o tecido da tradição nunca é completamente destruído. Entretanto, uma vez que o costume não pode se alterar rapidamente e, acima de um nível elementar de cultura, haverá a necessidade ocasional de decidir um curso de ação que pode afetar o grupo, um conselho informal e um líder são a evolução óbvia. Parece ser suficiente para um bando de caçadores nômades. O próximo passo, seja um grupo de pastores nômades ou agricultores primitivos, pede uma organização mais definida de caráter permanente; para garantir a continuidade, a posição do chefe acabava se tornando mais ou menos hereditária, com o sistema patriarcal de clãs. O clã era uma família permanente; muitos idiomas ainda comprovam desse conceito. Se for necessária uma distinção entre um chefe e um rei, no uso moderno é no grau de organização formal, marcado pela nomeação ou reconhecimento de autoridades com cargo fixo e deveres específicos. A evolução simultânea, junto com o governo secular, de um clero com autoridade moral é significativa. Teve seu sentido próprio. A "divisão de poderes" – ou seja, a existência de agências opostas de autoridade moral e poder físico – é uma característica natural da sociedade; portanto, também é necessária na forma de governo para garantir a estabilidade.

Mas todas essas formas de associação são efetivas apenas em condições apropriadas e têm seus defeitos inatos. O costume não é capaz de lidar com o inesperado. A liderança não funciona com instituições organizadas. A monarquia torna-se despótica. Cada tipo de associação é adequado a um determinado modo de conversão de energia e vai entrar em colapso ou se fundir em rigidez se for obrigada a receber um potencial maior do que pode acomodar.

Quando uma nação passa por condições em que o costume se mostra perecível, a liderança desastrosa e a monarquia opressiva, a razão deve definir a fonte primária de autoridade, para investi-la em uma forma viável.

Por essa sequência, provavelmente encurtada, Roma tornou-se um laboratório político. O que entrou no cadinho precisa ser deduzido a partir dos mitos, lendas, tradições e instituições que se formaram nos obscuros séculos da história inicial da cidade. Não parece que Roma tenha sido nunca primitivamente bárbara, se a cidade teve seu princípio no comércio, usando dinheiro2 e tornando as terras propriedade privada; são elementos de uma civilização avançada. E as fábulas são frequentemente inconsistentes, como seria o caso se fossem parcialmente importadas e misturadas. Histórias como a de Rômulo e Remo e do estupro das Sabinas não podem ser aceitas literalmente; nem precisam ser de origem local. O roubo de noivas faz parte de uma cultura bárbara, na qual não há desonra. A crença de que uma loba amamentou Roma deve ser ainda mais antiga e pode ser derivada de um totem selvagem; mas não necessariamente, porque quando a Europa era bárbara, um proscrito era uma "cabeça de lobo", uma antiquíssima figura de linguagem. A sugestão nas três histórias é de que Roma sempre foi mais ou menos uma cidade aberta, admitindo refugiados, exilados ou imigrantes. Eles trariam costumes variados que deveriam ser harmonizados segundo regras gerais.

De toda forma, a figura do asilo certamente se incorporou ao sistema social e legal romano e, por fim, criou o caráter especial da cidadania romana. Caracteristicamente, era necessário nascer grego, mas era possível se tornar romano.

Outra vez, podemos suspeitar de um resquício de antigas dificuldades em encontrar um modo avançado de associação que funcionasse, por causa de uma instituição peculiar a Roma. É uma instituição altamente extraordinária num povo civilizado, porque existia completamente fora da ordem social. Ninguém sabia exatamente qual a sua função, no sentido em que todos sabiam o que significavam as Virgens Vestais. Esse cargo realizou seu objetivo de maneira tão completa que o objetivo foi esquecido. Embora famosos por sua coragem militar, os romanos não praticavam duelos, nem toleravam a vingança privada informal. Porém, existia um homem, que devia ser um criminoso, dedicado a uma ocupação que tinha de ser conquistada e mantida por assassinato. Esse homem era o Sacerdote de Nemi, “beneath Aricia's trees”.

Those trees in whose dim shadow
The ghastly priest doth reign,
The priest who slew the slayer,
And shall himself be slain.3

Quem estava incumbido desse posto sanguinário havia obtido essa função matando o ocupante anterior. Ele nunca poderia deixar o abrigo do bosque sagrado e estava permanentemente sujeito a ser atacado por outro fora-da-lei que conseguisse alcançar esse santuário da morte. O Sacerdote do Ramo Sagrado foi explicado com referências eruditas a ritos de sacrifício, o bode expiatório que carrega os pecados do povo ou o deus-rei que morreu e foi ressuscitado, como o sol, para garantir a fertilidade dos campos e da tribo. Esses rituais mágicos podem ter sido incorporados pelo sacerdócio de Nemi. Mas os romanos eram solidamente prosaicos até em suas superstições. Suas divindades eram principalmente úteis, com funções práticas definidas. Bem, em sua origem, havia um uso prático para o sacerdócio de Nemi. Era desestimular atentados contra a liderança. Não se pode imaginar uma medida mais ironicamente efetiva para desencorajar tais ambições que a determinação de um ponto em que os aspirantes devem enfrentar contendores e onde o vencedor deve continuar, para sempre, sujeito ao mesmo desafio. Que ele tenha o que pediu e fique satisfeito – o recurso à força. Obviamente, apenas homens já banidos procurariam o santuário terrível. São esses os termos sob os quais o homem deve existir quando não há lei. Estando já muito avançados, tendo superado os estágios do costume e da liderança, e sendo conscientes da ineficácia da democracia, os romanos foram obrigados a resolver o problema do governo em termos racionais, trabalhando com o que tinham. Tinham a família como a unidade social, compensada pela lei contratual sobre a propriedade, o que fazia do indivíduo a unidade política. Assim, a família não podia se dividir numa forma realmente feudal. Tinham clãs (gentes), de antiga linhagem local, que podiam ser reconhecidos como uma aristocracia, mas não em ordem hierárquica feudal. Tinham uma população grande e variada, os plebeus, palavra que significa apenas multidão, as massas; mas não necessariamente os pobres. O elemento mais importante eram as tribos, ou seja, a divisão da cidade em áreas específicas, que supostamente restaram da união prévia de três comunidades. Essas divisões eram estritamente territoriais e políticas, com fronteiras fixas; as pessoas eram incluídas nelas por local de residência, não por descendência. Essas tribos tinham igual representação por direito a partir da propriedade de terras, moradia; e tinham a obrigação de suprir contribuições iguais para a defesa militar. Representação vinculada à área. Mudanças subsequentes – áreas adicionais, divisões novas ou subdivisões por razões políticas – mantiveram essa forma; havia fronteiras regionais e representação.

Roma nunca foi um “todo” indiferenciado, uma simples agregação de partículas, como postula a teoria da democracia. Desde o início, a cidade de Roma foi uma federação, com a forma federal, que engloba bases permanentes e estrutura, os elementos da arquitetura. Tanto os elementos como a forma precisam de um sistema eletivo; e os romanos primeiro tentaram um mandato vitalício para um executivo eleito. Foi completamente insatisfatório, porque não é possível haver controle confiável ou limitação dos poderes executivos nesse caso.4 Tendo-se livrado de seus presidentes vitalícios (reis), os romanos tomaram rigorosas precauções contra seu retorno por usurpação. Eles não teriam só um executivo chefe; e, mesmo em posições mais baixas, inclinavam-se por ter dualidade de cargos, o que funcionava muito bem no conjunto. Os cargos políticos também eram restritos a mandatos fixos e curtos, com rotatividade de exercício e intervalos em que um candidato não poderia ser reeleito. Essa última disposição é correta, já que a única razão para determinar um tempo de mandato é poder tirar o ocupante. O principal objeto de votações, em qualquer caso, era o voto contra pessoas ou medidas. Os romanos também suspeitavam continuamente de seus generais, proibindo até um comandante vitorioso de reentrar na cidade sem permissão formal. Estavam determinados a impedir a tomada militar da autoridade civil. E foram assombrosamente bem-sucedidos, considerando sua posição, que necessitava de uma boa porção de defesa e constante prontidão militar. Nenhuma outra nação antiga manteve esse controle civil sobre o exército por centenas de anos.

Os cargos políticos eram ocupados principalmente pela aristocracia e eram em parte eletivos, em parte sujeitos a nomeação ou preenchidos por cooptação; os diferentes métodos, com mandato vitalício apenas para senadores, impediam a rigidez excessiva ao mesmo tempo em que preservavam a continuidade. Também era possível que homens de talento excepcional subissem a partir dos escalões inferiores. Nada era absolutamente petrificado em status. A igualdade dos senadores (diferente do que ocorre em uma aristocracia hierárquica) e a eleição de outras autoridades não apenas permitia, mas exigia o debate público no corpo de governo e a livre expressão de opiniões pelos cidadãos. Como tanto os eleitores como os ocupantes de cargos públicos possuíam propriedades, tinham um interesse sólido em manter a nação funcionando, com a concomitante obrigação de defesa militar.

Mas o golpe inigualado de gênio político foi que o estado romano previa não apenas o adiamento, mas o impasse concreto. O poder dos plebeus, por meio de seus tribunos, era de obstrução manifesta. Os tribunos da plebe não podiam propor nenhuma medida, mas podiam parar os trabalhos; e suas pessoas eram invioláveis. Nada é mais essencial ao bem-estar de uma nação que a restrição ao governo, por meios legítimos. Um mecanismo sem freios, um motor sem dispositivo de corte, foi construído para a autodestruição. O sistema romano era durável porque era organizado de tal maneira que as tensões se transformavam em força e o controle era assegurado pela separação entre a agência executiva e o dispositivo de corte. Essa realização se tornou possível pela definição da fonte de autoridade. “Os romanos possuíam, desde os tempos mais antigos o conceito de jus, que é mais amplo que o de direito positivo declarado por uma autoridade, e denota uma ordem que obriga moralmente os membros da comunidade, tanto humanos quanto divinos.”5

Essa ideia de direito como um conceito abstrato não é dada pelo costume, pela liderança, por um conselho ou um rei; tampouco é compatível com a democracia. Em todos esses casos, a autoridade é arbitrária, tendo sido dada ou num costume particular, ou depositada em pessoas por precedência (ancestralidade ou antiguidade) ou determinada pelo número. Os romanos afirmaram que há uma ordem moral no universo.


  1. O Ciclo de Energia no Mundo Clássico
  2. O Poder das Ideias
  3. Roma Descobre a Estrutura Política
  4. Roma como uma Demonstração da Natureza do Governo
  5. A Sociedade do Status e a Sociedade do Contrato
  6. Liberdade, Cristianismo e o Novo Mundo
  7. O Nobre Selvagem
  8. A Falácia do Anarquismo
  9. A Função do Governo
  10. A Economia da Sociedade Livre
  11. O Significado da Magna Carta
  12. A Estrutura dos Estados Unidos
  13. Escravidão, o Defeito na Estrutura
  14. A Virgem e o Dínamo
  15. As Emendas Fatais
  16. As Corporações e a Lei do Status
  17. A Ficção da Propriedade Pública
  18. Por que Dinheiro Real É Indispensável
  19. Crédito e Depressões
  20. O Humanitário com a Guilhotina
  21. Nosso Sistema Educacional Niponizado
  22. O Circuito de Energia em Tempos de Guerra
  23. A Economia Dinâmica do Futuro

1 Daniel 6:8 (N. do T.)
2 A familiaridade com a função do dinheiro permitiu a Roma governar um império no devido tempo. Diz-se que os espartanos, não sendo acostumados ao dinheiro, eram rapidamente pervertidos quando abandonavam sua modesta economia de subsistência. Não conseguiam manter o mínimo de honestidade em relações contratuais, tendo sido criados no comunismo. No nível mais baixo, não eram capazes nem mesmo de entender os limites da corrupção. (N. da A.)
3 "Além das árvores de Arícia / Aquelas árvores em cuja sombra escura / O sacerdote espectral impera / O sacerdote que assassinou o assassino / E será ele mesmo assassinado." Do poema The Battle of the Lake Regillus (A Batalha do Lago Regilo), escrito por Lord Thomas Babington Macaulay em 1842. (N. do T.)
4 Uma monarquia constitucional hereditária só é possível como um desenvolvimento a partir do verdadeiro feudalismo. A condição necessária é a sobrevivência de uma aristocracia fundiária com herança inalienável. Quando isso desaparece, a monarquia afunda em seguida. (N. da A.)
5 CAMBRIDGE ANCIENT HISTORY: The Primitive Institutions of Rome. H. Stuart Jackson. Macmillan. (N. da A.)

quinta-feira, 25 de abril de 2013

O Deus da Máquina, capítulo I

O Ciclo de Energia no Mundo Clássico, primeiro capítulo de O Deus da Máquina, de Isabel Paterson, nos apresenta Pítias, o navegador grego que cruzou o Estreito de Gibraltar, por volta de 300 A.C., e navegou pelo Atlântico. Ele era um misto de cientista e aventureiro. Precisou de grande coragem para empreender sua viagem solitária, e relatou com precisão técnica suas descobertas geográficas e de astronomia aplicada à navegação. Principalmente porque, nessa época, os fenícios controlavam o Estreito de Gibraltar e bloqueavam completamente a navegação por ali. Quem tentasse furar o bloqueio tinha grandes chances de ser morto.

Isabel lembra que os fenícios são mencionados no Antigo Testamento, quando Salomão contrata os homens de Hirão, rei de Tiro, para construir seu palácio e depois o Templo. A partir de onde hoje é a Síria, os fenícios avançaram como um furacão rumo a oeste, até a Espanha. Sua maior realização foi Cartago, metrópole comercial entre o mar e o deserto.

Ela menciona as longas guerras entre a Grécia e Cartago, cujo resultado ainda era indefinido quando surgiu Roma e derrotou ambas. As Guerras Púnicas, entre Roma e Cartago, foram predominantemente navais. Enquanto os gregos e os cartagineses tinham grande experiência no mar, a marinha romana era completamente improvisada. Ela diz que "os romanos recuperaram uma embarcação púnica encalhada e o usaram como modelo para construir uma frota, enquanto treinavam as tripulações necessárias em terra, usando bancadas estacionárias dotadas de remos". Mas tentaram transformar um encontro no mar em algo semelhante a um combate em terra e isso deu certo. Conseguiram sucessivas vitórias contra os cartagineses.

Ela lembra que, no tempo da Invencível Armada, a Espanha dominava os mares e a marinha inglesa era mais fraca e improvisada. Porém, a Inglaterra destruiu a Armada. E compara os romanos com os franceses de Napoleão e o Sul dos Estados Unidos na Guerra Civil, levantando algumas hipóteses para a vitória de Roma e rejeitando-as em seguida.

Sobre a famosa expedição de Aníbal com elefantes cruzando os Alpes rumo a Roma, Isabel considera que a estratégia foi correta. Porém, Aníbal esperava que nações subsidiárias de Roma se rebelassem contra ela e isso não aconteceu. Mas, quando Cipião levou a guerra para a África, aliados tradicionais de Cartago o apoiaram.

Não são as vantagens materiais o que determinou a vitória dos romanos sobre os cartagineses. Os imponderáveis são mais importantes que qualquer fator material. As questões levantadas aqui serão respondidas nos capítulos posteriores.

O Ciclo de Energia no Mundo Clássico


O Deus da Máquina, capítulo I
O Ciclo de Energia no Mundo Clássico
Isabel Paterson


Pouco antes do fim do quarto século antes de Cristo, um navegador de uma colônia grega velejou do porto de Massília (atual Marselha), sua cidade natal, através do Estreito de Gibraltar e, dali, pela costa da Espanha, da França e das Ilhas Britânicas até Última Thule, o nome dado ao fim do mundo. Possivelmente Thule era a Islândia; isso ainda é objeto de conjecturas. O nome do ousado marinheiro, Pítias, chegou até nós. Ele aparece em nossa imaginação – uma figura solitária cercada de luz – como se um portal pendesse aberto entre as Colunas de Hércules, em direção ao mundo ocidental.

Agora, o que é curioso sobre este aspecto da aventura de Pítias é que ele não foi de modo algum o primeiro homem civilizado a atravessar o lendário portal do Atlântico. Pelo contrário, essa era uma rota comercial de navios mercantes fenícios desde tempos imemoriais. Estanho da Cornualha e peles e âmbar do Báltico estavam entre as principais cargas entregues aos mercados do leste, para o lucro de Cartago, cuja riqueza provinha de sua posição de intermediária.

Quando Pítias fez sua viagem, as Guerras Púnicas e o Império Romano ainda estavam no futuro. Não que Cartago estivesse em paz; nunca esteve por um período muito longo. Tomada em conjunto, a série de guerras que perpassa a história dos fenícios forma um padrão geográfico que lembra a trilha de um furacão – o fluxo de energia de um ciclone durando quase mil anos e movendo-se irresistivelmente pelo caminho marítimo em meio às terras dos grandes continentes da antiguidade clássica, Ásia, África e Europa. Essa corrente incessante de atividade humana rodopiou através de seu canal sem maré, sempre numa direção principal – uma direção que, em vista do conhecimento de geografia da época, não tinha sentido, porque levava para o oceano vazio. Não estou negando o valor do comércio da costa exterior da Europa, mas o impulso daquela região parece desproporcional ao volume de bens. Durante o período dessa travessia, os fenícios flutuaram na tempestade, ou fizeram parte dela.

Que tipo de povo eram esses fenícios, aprendemos das Escrituras, com outro nome. Foi um fenício, Hirão, rei de Tiro, que enviou seus auxiliares a Salomão quando este subiu ao trono e obteve a incumbência de construir o palácio de Salomão e, depois, o Templo. Hirão forneceu os materiais, transporte e trabalhadores especializados numa estrutura pré-fabricada; troncos de cedro cortados sob medida no Líbano foram levados a Israel e envolvidos em pedras numa pedreira. Ornamentos elaborados de metal foram lavrados segundo especificações, de maneira que a residência real foi levantada e “não se ouviu na casa martelo, nem machado nem instrumento algum de ferro, enquanto ela se edificava”.1 Como pagamento, Hirão recebeu “para sustento da sua casa vinte mil coros de trigo e vinte coros de azeite batido”,2 e ao final um assentamento de “vinte cidades na terra da Galileia”.3 Hirão não gostou das “cidades”, tendo-as aceito sem ver; é uma suposição razoável que ele tenha estendido um pouco além da conta o crédito de Salomão. Quando Salomão enviou seus navios, eles seguiram num comboio fenício.

Obviamente, os fenícios eram a nação industrial e comercial líder de seu tempo. Misteriosamente, não conseguiram montar a estrutura positiva de um império e o centro de sua esfera indefinida de autoridade e influência foi determinado por forças em movimento, numa linha da Síria até a Espanha. Deslocou-se progressivamente passando por Tiro e Sídon até sua última capital, de onde eles desapareceram da lista das nações do mundo. Seu modo de ser histórico estava implícito no caráter de Cartago, sua última e suprema realização, como indicado por sua posição entre o mar e o deserto, um nexo sólido de energia confluente num ponto determinado. Embora a cidade fosse apoiada por um distrito produtor de cereais, a terra arável não mantinha uma relação normal com a população, que se estima que tenha chegado a um milhão de pessoas. Admitindo que haja algum exagero, o número ainda assim impressiona. Cartago era menos uma entidade territorial que um nó amarrado no vento e na água.

Contra as antigas monarquias despóticas do Oriente, os fenícios estabeleceram e mantiveram com sucesso seu lugar especial. Contra os gregos, defenderam-se bastante bem numa longa luta. Os gregos eram claramente seus rivais naturais, habitantes de ilhas fazendo comércio nas mesmas águas e, da mesma maneira, espalhando-se de porto em porto quando tocavam um continente. Nem os fenícios nem os gregos se mostraram capazes de manter suas colônias em estrita confederação; as cidades subsidiárias mudavam de lado sob pressão, e faziam seus próprios tratados quando tinham coragem para tanto. Algum elemento faltava no sistema deles, para amarrar o conjunto.

Há tantas explicações sobre a dominância e o declínio das nações quanto há exemplos. O favor dos deuses ou “as estrelas, desde suas órbitas”4 já foram considerados determinantes. A análise moderna se baseia em fatores temporais, principalmente matérias-primas, alto desenvolvimento econômico, força naval e gênio militar, este último revelado no entendimento da estratégia maior, e numa tropa corajosa e preparada que utiliza disciplinas ou tipos de armamento especiais. O problema é que cada teoria pode ser aplicada apenas a uma época ou a um povo, sem que nada prove a real existência do fator considerado. Experimentemos algumas comparações de acordo com as regras estipuladas.

O conflito entre a Grécia e Cartago pode ser chamado propriamente de guerra comercial. Os dois lados competiam por posições, bens, cargas e clientes. Nesse aspecto, Roma era comparativamente insignificante nesse momento. Possivelmente Roma se tornou um povoado permanente já como um centro local de comércio. (Mommsen defende essa suposição de maneira coerente, baseando-se em evidências internas e históricas.) As origens mescladas da população, a localização ao lado de um rio e suficientemente próxima do mar para ser alcançada por pequenas embarcações, a construção precoce de pontes e o uso de dinheiro indicam comércio; e as relações contratuais eram inextricavelmente entrelaçadas com o sistema político romano. Aparentemente, o fluxo de energia foi suficiente para demandar a acomodação habitual e, consequentemente, fazer com que os romanos percebessem a necessidade equivalente de fortes bases fixas na terra. Mas eles não participaram da corrente principal de comércio mundial durante o período formativo, em que estabeleceram sua estrutura cívica. “Por diversas razões, em momentos diversos, Roma nunca foi, desde sua fundação até hoje, uma cidade industrial… Para o comércio internacional, Roma estava mal localizada… Apenas por cortesia o Tibre poderia ser chamado de corrente navegável… o estuário (era) de pouco valor como porto; e a rapidez da corrente fazia com que a jornada de Roma até o mar fosse uma tarefa laboriosa mesmo para as barcaças fluviais… As imagens familiares de mercadores marítimos engajados no comércio geral, velejando regularmente o Tibre para os dois lados e usando um porto abaixo do Monte Aventino, podem seguramente ser descartadas como produtos da imaginação.” Em seu tratado mais antigo, “Cartago, como seria de se esperar, assegurava insistentemente seu domínio comercial sobre as regiões que controlava,” enquanto Roma “ficava indiferente a considerações que deveriam afetar qualquer comunidade que possa ser chamada de industrial”.5

Comparada à Grécia, Cartago provavelmente estava à frente em organização econômica e conhecimento técnico e possuía um maior número de navios sob um único comando, monopolizando as mais extensas províncias ricas em recursos naturais. A luta entre a Grécia e Cartago já vinha ocorrendo havia séculos e ainda não estava decidida quando Pítias fez sua viagem. Em cinquenta anos, Roma se imiscuiu entre as duas, iniciando o longo, amargo e intermitente esforço que destruiu o poder fenício, arrasou os muros de Cartago e deixou o lugar em ruínas. Os gregos não chegaram a se beneficiar do fim de seu poderoso antagonista; ao contrário, a submissão da Grécia ocorreria em seguida. O determinismo econômico falhou.

O resultado dessa disputa em particular foi tão definitivo que a questão principal se ofuscou. A História é obrigada a recorrer a termos geográficos: Roma e Cartago lutaram pelo domínio do Mediterrâneo. Consequentemente, o cenário de hostilidades é considerado naturalmente variável. Cartago estava situada na costa norte da África, e vivia de sua marinha. Mesmo assim, vemos o general cartaginês Aníbal conduzindo um exército com elefantes contra Roma, numa penosa marcha por sobre os Alpes.

O mais obstinado proponente da interpretação naval dos eventos mundiais, o Almirante Mahan, explicou como a ideia lhe surgiu. Lendo A História de Roma, de Mommsen, ele se recorda de que: “Subitamente me ocorreu… como as coisas poderiam ter sido diferentes se Aníbal tivesse invadido a Itália por mar, como os romanos fizeram tantas vezes com a África, em vez da longa rota por terra.” A partir dessa reflexão, Mahan escreveu A Influência do Poder Naval na História. Ele poderia também ter chamado seu livro de influência da história no poder naval. Sem dúvida, as coisas teriam sido diferentes se tivessem sido diferentes. Particularmente, se o poder naval – uma marinha superior comandando as principais rotas comerciais a partir de bases inexpugnáveis – fosse necessariamente decisivo, Aníbal nunca teria sido arrastado para seu desvio alpino e Cartago teria vencido. Mais propriamente: por esse critério, Cartago deveria ter vencido uma geração antes. Em vez disso, “com a mais forte armada dos mares e com uma experiência naval adquirida ao longo de séculos, os almirantes cartagineses perderam seis das sete batalhas navais que travaram, apesar de os romanos nunca terem possuído um quinquerreme antes dessa ocasião (a Primeira Guerra Púnica), e pouquíssimos romanos terem até então posto os pés a bordo.”6

Esboçado rapidamente, o método pelo qual Roma varreu os mares beira o ridículo. “Enquanto Cartago mantinha uma frota de 120 quinquerremes” (o maior navio de guerra padrão), Roma não tinha nem navios, nem armadores, nem marinheiros. Para compensar a deficiência, os romanos recuperaram uma embarcação púnica encalhada e a usaram como modelo para construir uma frota, enquanto treinavam as tripulações necessárias em terra, usando bancadas estacionárias dotadas de remos. Todos os seus navios foram “construídos, tripulados e comandados por romanos”. Quando feitos ao mar, seus verdes pilotos ficavam “impotentes sempre que uma tempestade surgia”. É difícil conter a sugestão de meu espírito leviano, de que eles ficaram mareados. Ignorantes de manobras navais e sem oportunidade de aprender, os romanos simplesmente transformavam um encontro no mar na coisa mais parecida com uma batalha em terra que conseguiam, e lutavam do seu jeito. Tendo equipado seus barcos com gruas e ganchos, manobravam para ficar ao lado das galeras cartaginesas, prendiam um navio no outro e subiam a bordo. Assim, em seu primeiro combate importante, venceram uma frota cartaginesa que tinha trinta navios a mais que a esquadra romana. Novamente, em Drepana, os romanos estavam aportados quando a frota cartaginesa se aproximou. Caía uma tempestade em terra, o que fazia com que os cartagineses tirassem o vento dos romanos. Indiferentes a essa desvantagem, os romanos atravessaram o curso do inimigo, tomaram setenta navios cartagineses e afundaram outros cinquenta. Entre as vitórias, os romanos geralmente naufragavam suas próprias frotas por inexperiência marítima.7 Depois de cada perda, punham-se a trabalhar e lançavam novos navios em substituição. As despesas pesaram grandemente sobre Roma; Cartago tinha vasta vantagem financeira. Nem assim Roma recorreu ao absolutismo de estado em face da emergência; não houve confisco de meios privados. Quando o tesouro público romano foi exaurido e “os impostos não podiam mais ser elevados”, os cidadãos mais ricos contribuíram para montar uma nova marinha, com a promessa de que seriam reembolsados se vencessem. Venceram.

Os cartagineses ficaram tão desconcertados por esse desempenho inexplicável que chegaram a considerar a ideia de fundar um império em terra, imitando Roma. Os recursos estavam à mão. Mas eles não sabiam como fazer.

Também deve ser observado que, embora a disciplina militar romana fosse estrita e a consideração pelos militares fosse proporcional a sua conduta em campo, um general romano ou seus soldados tinham muito menos medo de punições de seu próprio governo que os comandantes púnicos. Por perder uma campanha, os cartagineses crucificaram um de seus almirantes.

Com relação a bases navais, Roma começou sem nenhuma. Cartago foi a primeira grande nação a ocupar Gibraltar, o que certamente era a chave para o futuro naquele tempo. Obviamente, seria fácil adquirir essa posição de seus habitantes primitivos. Mas, desde então, Gibraltar pertenceu a um império após outro. Sendo a fortaleza pronta para defender a Península Ibérica, voltou ao domínio da Espanha em seu breve período de glória. O enigma é que foi finalmente perdida para a Inglaterra, e isso somente ocorreu depois que a Inglaterra reduziu a Espanha a um papel secundário por meio de operações navais. A derrota da Invencível Armada é normalmente explicada como resultado de gerenciamento inadequado, equipamento ruim e, sobretudo, mau tempo. Mas é difícil de acreditar que faltassem marinheiros à Espanha, da raça que conquistou todo o oceano ocidental e quase conseguiu mantê-lo. A frota inglesa era improvisada, em grande parte composta de piratas; havia falta de provisões e de pólvora. Finalmente, quando a Armada foi dispersa e destruída, os navios ingleses não estavam em doca seca; tiveram de resistir à mesma tempestade. A Espanha sem dúvida teve poder naval, enquanto ele durou. A menos que se concorde com o absurdo de que o poder naval não consiste em navios, marinheiros, portos e oportunidade comercial, ou seja, todos os seus atributos tangíveis, o fato é que o poder naval fracassou.

Por outro lado, se o segredo do desenvolvimento e longevidade do domínio romano está na aptidão militar, o regime conquistador de Napoleão deveria ter deitado raízes e florescido pela mesma duração. Por uma série de ações que figuram entre os clássicos da arte da guerra, Napoleão colocou todo o continente europeu sob sua influência. Seus exércitos invasores foram tacitamente bem recebidos por parte influente dos povos conquistados, que já estavam descontentes com o velho regime e imaginavam uma nova ordem. Reis caíram como pinos de boliche; a organização de caserna foi exaltada como o instrumento de unidade que prenunciaria um milênio de eficiência; a América recebeu um sortimento incongruente de exilados. Napoleão surfou na crista da onda do futuro. Entretanto, a aparência resplandecente de um Império erigido sobre baionetas esfacelou-se em nada depois de uma grande derrota na longínqua Rússia. Roma perdeu mais de uma grande batalha e reviveu com renovado vigor. O desastre de Napoleão em Moscou, com as consequências que teve, é atribuído ao frio e à neve. Mas os russos não passaram o inverno na Riviera. Os meios militares fracassaram.

Mais uma vez, se o domínio romano se originou de sua ordem social antecedente, os cidadãos de Roma, fossem aristocratas ou plebeus, orgulhavam-se de serem simples fazendeiros, alternando entre a espada e a pá. Voltando para casa depois das guerras, Cincinato não pediu nada além de voltar a arar sua terra. A mais honrosa recompensa que pôde ser imaginada por Horácio, aquele que defendeu a ponte,8 foi do mesmo tipo:

            They gave him of the corn-land,
            That was of public right,
            As much as two strong oxen
            Could plough from morn till night.9

Sem dúvida, estas são versões românticas, se não forem puro mito. O que expressam é a tradição, com uma origem real por trás. A descrição, maquiando inclusive uma cruel fundação na escravidão, se adequa igualmente à cultura agrária defendida pela Confederação Sulista.10 Infelizmente, essas são precisamente as razões aduzidas para indicar porque o Sul não teve chance, em nossa Guerra Civil, contra o Norte mecanizado e mercantil, reforçado por suas empresas de navegação.

Acredita-se que Cartago enfraqueceu sua virtude marcial devido ao uso de tropas estrangeiras. Em seguida, Roma governou por séculos enquanto as famosas legiões eram recrutadas em parte das mesmas fontes.

Na estratégia principal, Cartago tinha uma percepção precisa dos pontos vitais. Ao perder a Sicília, foi posta na defensiva no Mediterrâneo oriental, espremida entre o poder naval grego e o poder terreno romano. A jogada de Aníbal através da Espanha foi um ataque evidentemente lógico pelo flanco, e não um expediente desesperado. Ele invadiu o interior em busca de soldados e suprimentos, inclusive prata, que era moeda sonante. Além das montanhas, ele esperava outra circunstância compensadora, mas foi frustrado. Muitas das tribos ou cidades do norte da Itália eram aliadas de Roma, a quem eram mais ou menos subordinadas. Aníbal presumiu que elas se uniriam aos invasores para se livrarem do jugo romano. Em vez disso, permaneceram fiéis a Roma, pelo menos tacitamente. Porém, quando Cipião levou a guerra à África, os mais proveitosos auxiliares locais de Cartago, os Númidas, bandearam-se para os romanos e foram vitoriosos. Seja o que for que envolva a construção de um império, o comportamento dos povos tributários e a confiabilidade dos aliados deve ser parte dela; o ponto crucial é aquilo que os induz a escolher um lado. A proximidade não é suficiente. As explicações convencionais são meramente declarações superficiais do que aconteceu.

Como evento, o que ocorreu quando Cartago foi destruída foi de importância imensa e permanente. Embora a consequência não tenha podido ser apreendida de uma vez, isso prognosticou a futura ascensão da Europa e o declínio, no equilíbrio do poder mundial, do hemisfério oriental. Uma pesquisa racional deveria investigar a natureza do processo que foi conduzido até então pelos fenícios e que só pôde continuar a ser realizado por Roma; e o surgimento aparentemente acidental de Pítias, um grego, como aquele que abriu a porta.

A resposta fácil, por que Pítias é lembrado e seus predecessores permaneceram anônimos, é que ele escreveu uma narrativa de sua viagem. Como os fenícios eram alfabetizados, isso nos leva a perguntar por que não o fizeram muito antes, a partir de sua experiência tão maior.

Não o fizeram porque pretendiam preservar um completo monopólio do Atlântico. Não era uma questão de altas tarifas, ou nações favorecidas, ou um bloqueio em tempo de guerra. Com o estreito sob seu domínio, nenhuma embarcação podia passar exceto as deles, na paz ou na guerra, em qualquer condição. Cartago apostava sua existência nessa política de exclusão. Ocasionalmente, sem dúvida algum pirata temerário furava o bloqueio. Mas, se o fizesse, poderia não voltar nunca. Onde quer que ele aportasse no litoral proibido, arriscava-se a encontrar os fenícios, situação em que o navio não autorizado estava sujeito a ser apreendido e a tripulação a ser morta. Nenhuma palavra podia retornar. Não era à toa que rumores preenchiam aquelas regiões remotas com terrores vagos. Supõe-se que Pítias conseguiu fazer sua exploração em segurança e escrever seu relato enquanto Cartago estava sendo atacada por Siracusa, deixando os estreitos insuficientemente vigiados. Se foi assim, a vigilância foi retomada em pouco tempo, e mantida até o fim. Na corrente principal, o fluxo de energia enfim esmagou os fenícios na estreita eclusa que eles haviam reservado para seu exclusivo benefício. Era forte demais e os fez em pedaços.

No sentido em que os engenheiros falam de carga hidráulica, os romanos representaram uma carga de forças canalizadas. Nem por sua localização nem por seu progresso material, nenhuma pista econômica explica sua função. E, se fosse verdade hoje que mesmo nossa história mais recente não serve como instrução porque vivemos num mundo que muda e temos de lidar com condições inteiramente novas, então isso sempre teria sido verdade. Não é verdade, nem nunca foi. O que o passado demonstra, com provas avassaladoras, é que os imponderáveis têm mais peso que qualquer artigo material na balança do esforço humano. Nações não são poderosas porque possuem terras extensas, portos seguros, grandes marinhas, imensos exércitos, fortificações, depósitos, dinheiro e crédito. Elas adquirem essas vantagens porque são poderosas, tendo desenvolvido sobre princípios corretos a estrutura política que permite que o fluxo de energia tome seu curso adequado. A questão é como; porque o gerador e as possíveis linhas de transmissão e saídas disponíveis tanto para o benefício como para a destruição são sempre os mesmos. A única diferença entre o passado e o presente com respeito à energia é quantitativa, um maior potencial disponível num maior fluxo, o que faz com que uma conexão errada seja mais terrível em seus efeitos por uma dada proporção, tornando-se aparente literalmente numa explosão mundial. Os princípios de conversão de energia e do mecanismo adequado para o uso humano não podem mudar; são universais.

Se Roma, no devido tempo, forçou as travas do Atlântico, havia uma razão. Mesmo assim, foi um grego que atravessou sozinho. Além disso, o caráter pessoal de Pítias é tão relevante que a ficção dificilmente poderia inventá-lo. Ele era um cientista e um aventureiro mercante. Seu livro se perdeu; poucos excertos e referências foram preservados na obra de geógrafos posteriores. Eles o citam com desprezo; não acreditam nele, uma vez que suas observações contradiziam a teoria ortodoxa sobre o clima e as condições gerais das latitudes setentrionais. Vilhjalmur Stefansson11 reabilitou mais tarde a reputação de Pítias no quesito precisão. Embora seus críticos admitissem que Pítias deu contribuições valiosas à ciência exata da astronomia, aplicada à navegação, ele foi acusado de mentir sobre o que viu com seus próprios olhos, por homens que nunca estiveram lá. O que deve ser ressaltado é a forma de oposição que ele foi obrigado a enfrentar, banimento político enquanto estava vivo e censura acadêmica após sua morte. Teorias, quando adquirem credibilidade, tornam-se direitos adquiridos. O prestígio e o sustento de escolas e professores estão vinculados a elas; eles tendem a doutrinas fechadas, não a se abrir a informações novas.

Pítias abriu o caminho, por onde os fenícios, com toda sua astúcia e audácia e suas prioridades factuais, não o fizeram; porque era dotado da rara combinação de curiosidade desinteressada, intelecto especulativo e empreendedorismo ativo, qualidades que o impeliram a escorregar por uma barreira oficial de extremo rigor para experimentar os riscos do desconhecido. Pítias figura entre os descobridores notáveis, um modelo de mente aberta. Ele não podia saber que estava olhando para a América.

  1. O Ciclo de Energia no Mundo Clássico
  2. O Poder das Ideias
  3. Roma Descobre a Estrutura Política
  4. Roma como uma Demonstração da Natureza do Governo
  5. A Sociedade do Status e a Sociedade do Contrato
  6. Liberdade, Cristianismo e o Novo Mundo
  7. O Nobre Selvagem
  8. A Falácia do Anarquismo
  9. A Função do Governo
  10. A Economia da Sociedade Livre
  11. O Significado da Magna Carta
  12. A Estrutura dos Estados Unidos
  13. Escravidão, o Defeito na Estrutura
  14. A Virgem e o Dínamo
  15. As Emendas Fatais
  16. As Corporações e a Lei do Status
  17. A Ficção da Propriedade Pública
  18. Por que Dinheiro Real É Indispensável
  19. Crédito e Depressões
  20. O Humanitário com a Guilhotina
  21. Nosso Sistema Educacional Niponizado
  22. O Circuito de Energia em Tempos de Guerra
  23. A Economia Dinâmica do Futuro


1 Reis I, 6:7 (N. do T.)
2 Reis I, 5:11 (N. do T.)
3 Reis I, 9:11 (N. do T.)
4 Juízes, 5:20 (N. do T.)
5 CAMBRIDGE ANCIENT HISTORY: The Early Republic. Hugh Last. Macmillan. (N. da A.)
6 CAMBRIDGE ANCIENT HISTORY: The First Punic War. Tenney Frank. Macmillan. (N. da A.)
7 Em 255 AC, uma frota romana recém-construída derrotou a principal frota púnica “com facilidade”, mas, na viagem de volta para casa, encontrou uma tempestade perto da Sicília. De 364 navios, apenas 80 se salvaram. Calcula-se que mais de 90.000 pessoas pereceram, na maior parte homens livres; um desastre maior que a perda da Invencível Armada pela Espanha. Foi a mais terrível calamidade marítima conhecida até então e esse recorde se mantém até hoje. (N. da A.)
8 Públio Horácio Cocles, militar romano que, segundo a lenda, impediu sozinho que um exército inimigo invadisse Roma pela Ponte Sublício. (N. do T.)
9 "Deram a ele milharais que eram de direito público. De tal tamanho que dois bois fortes levariam da manhã até a noite para arar." Do poema Horatius, escrito por Lord Thomas Babington Macaulay em 1842. (N. do T.)
10 Analisando friamente, a pequena nobreza rural romana parece ter sido composta também por agiotas, ou muitos deles criariam problemas sem fim, emprestando por hipotecas e escravizando credores que não podiam pagar. Assim também os agricultores do Sul eram empresários rurais em vez de reais cultivadores do solo. Nem um financista nem um avarento parecem ser soldados ideais; mas não se pode negar que aqueles foram excelentes combatentes. Os detalhes são duplamente desconcertantes, uma vez que os resultados não foram os mesmos; Roma triunfou, o Sul foi derrotado. (N. da A.)
11 ULTIMA THULE. Vilhjalmur Stefansson. Macmillan. (N. da A.)

O Deus da Máquina, de Isabel Paterson

Estou publicando O Deus da Máquina, de Isabel Paterson, um dos três clássicos das Libertárias de 1943. (Os outros dois são A Descoberta da Liberdade, de Rose Wilder Lane, e A Nascente, de Ayn Rand.) 

Isabel Paterson faz um panorama da história da liberdade, começando com as Guerras Púnicas e a estrutura da República Romana, passando pela Idade Média e o papel da Igreja, pela a Magna Carta e pela história dos Estados Unidos. Ataca o fascismo, o nazismo e o comunismo como variantes do mesmo mal. Afirma que a liberdade individual só é possível se houver liberdade política. Critica o alistamento militar, o planejamento central da economia, subsídios governamentais para empresas, o papel-moeda e a educação governamental obrigatória.

Não é um livro fácil, por causa das muitas metáforas técnicas, em que ela compara aspectos da sociedade com conceitos de engenharia mecânica ou civil, por exemplo. Mesmo assim, a leitura é agradável por causa da riqueza dos temas e da eloquência com que Isabel Paterson se expressa.

Estou traduzindo de acordo com minha disponibilidade. Todos os erros de tradução e digitação são de minha responsabilidade.




O Deus da Máquina
Isabel Paterson

Desejo reconhecer uma inestimável dívida para com o Professor Thomas T. Read, E.M., Ph.D., por seus comentários críticos precisos e fundamentados sobre o manuscrito deste livro, que foram extremamente úteis para tornar mais clara a apresentação do tema. Isso não implica que o Professor Read necessariamente concorde com todas ou com alguma das ideias e conclusões expressas, pelas quais a autora é responsável.

sábado, 20 de abril de 2013

Profissão de Fé, de Rose Wilder Lane


Se procurarmos na Internet por textos de Rose Wilder Lane, vamos saber que ela escreveu, em 1936, um artigo chamado Credo para a revista The Saturday Evening Post. É uma defesa entusiasmada da liberdade individual contra todas as formas de opressão. Esse artigo foi revisado e ampliado por ela em 1944 e publicado em forma de livro, com o título Give Me Liberty. Podemos encontrar algumas cópias do texto, em formatos diferentes, com os dois títulos. Porém, o texto sempre é o de 1944.

Intrigado com isso, entrei em contato com a revista. The Saturday Evening Post foi fundada em 1728, por Benjamin Franklin, e continua existindo. Responderam que o artigo foi publicado na edição de 7 de maio de 1936, mas não dariam mais informações. Procurei essa edição em sebos e achei um que tinha, no Alabama. Enviaram um exemplar em perfeito estado de conservação; uma revista grande, de 112 páginas pouco menores que uma folha A3, cheia de anúncios de carros (Chevrolet, Buick, Pontiac), refrigeradores, rádios (Philco) e outros produtos (Listerine, Aspirina). E com o texto original de Credo, cuja tradução apresento, com notas indicando as diferenças para a versão de 1944. Em português, chamei Credo de Profissão de Fé, e Give Me Liberty de Quero Liberdade.

O texto não mudou muito. Existem pequenas melhorias estilísticas; algumas ambiguidades foram eliminadas e algumas ideias foram expressas de maneira mais completa. O texto foi enriquecido com uma comparação entre os agricultores da Rússia transcaucasiana, onde Rose visitou uma aldeia comunista, e os colonos de Illinois, uma bela declaração baseada na introdução da Declaração de Independência dos Estados Unidos e provocações a Marx. Algumas narrativas são mais detalhadas, especialmente a da caça aos trustes por William Jennings Bryan.

Há diversas histórias novas em Quero Liberdade que eram apenas sugeridas, ou nem isso, em Profissão de Fé. Por exemplo, aquela em que o carro de Rose quebra na Itália, ou a burocracia na compra de um novelo de lã em Paris, por causa de um decreto de Napoleão. A mais marcante é a da batida policial que Rose acompanhou na Hungria.

Um ponto importante é que, em Profissão de Fé, Rose afirma que a liberdade individual é uma ideia que nunca ocorreu a nenhuma civilização antes do surgimento dos Estados Unidos. Em Quero Liberdade, ela reconhece que a ideia existia como princípio religioso dos judeus, cristãos e muçulmanos. Mas ressalta que nunca havia sido um princípio político.

Mais relevante é uma pequena troca de palavras. Em Profissão de Fé, ela se refere algumas vezes à democracia. Em Quero Liberdade, ela sempre diz liberdade individual. Nesse intervalo de oito anos, Rose percebeu que a democracia, sendo o governo da maioria, poderia não ser garantia suficiente para as minorias e que a menor minoria que existe é o indivíduo.

Existem dois trechos de Profissão de Fé que foram suprimidos em Quero Liberdade. São aqueles em que Rose elogiava alguns serviços públicos dos Estados Unidos, especialmente escolas públicas.

O último capítulo de Profissão de Fé, O Hiato que se Fecha, foi bastante ampliado. Ficamos sabendo muito mais sobre a vida da comunidade rural dos Montes Ozark, próxima à fazenda onde Rose morou por longo tempo.

E o último capítulo de Quero Liberdade é completamente novo, conclamando os americanos a deixarem de lado o conformismo e o pessimismo e passarem para a ação, para defenderem sua liberdade ameaçada.